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10 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS CURSO DE HISTÓRIA WILLINGTON MARCOS FERREIRA CONCEIÇÃO AS EXPERIÊNCIAS DO TRABALHO LIVRE NO BRASIL ESCRAVOCRATA DO SÉCULO XIX São Luis 2007

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10

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO

CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS

CURSO DE HISTÓRIA

WILLINGTON MARCOS FERREIRA CONCEIÇÃO

AS EXPERIÊNCIAS DO TRABALHO LIVRE NO BRASIL

ESCRAVOCRATA DO SÉCULO XIX

São Luis

2007

11

WILLINGTON MARCOS FERREIRA CONCEIÇÃO

AS EXPERIÊNCIAS DO TRABALHO LIVRE NO BRASIL

ESCRAVOCRATA DO SÉCULO XIX

Monografia apresentada ao Curso de História da

Universidade Estadual do Maranhão para

obtenção do título de Licenciado em História.

Orientador: Profº. Msc. Josenildo de Jesus Pereira

São Luis

2007

12

Conceição, Willington Marcos Ferreira

As experiências do trabalho livre no Brasil escravocrata do século XIX / Willington Marcos Ferreira Conceição – São Luis, 2007.

41 f.: il. Monografia (Graduação em História) – Universidade Estadual do

Maranhão, 2007. 1. Sociedade escravocrata. 2. Homens livres. 3. Relações de trabalho. I. Título.

CDU: 316.323.3:331-055.1

13

WILLINGTON MARCOS FERREIRA CONCEIÇÃO

AS EXPERIÊNCIAS DO TRABALHO LIVRE NO BRASIL

ESCRAVOCRATA DO SÉCULO XIX

Monografia apresentada ao Curso de História da

Universidade Estadual do Maranhão para

obtenção do título de Licenciado em História.

Aprovada em:______/______/2007

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________ Profº. Msc. Josenildo de Jesus Pereira (Orientador)

Universidade Federal do Maranhão

_________________________________________ Segundo Examinador

_________________________________________ Terceiro Examinador

14

A Deus, uma presença constante em meu ser e as

pessoas importantes de minha vida.

15

AGRADECIMENTOS

A Deus, por me ter dado a oportunidade de viver e de chegar a este momento tão

especial de minha vida, conduzindo-me;

Aos meus pais: Francisco Castro Conceição e Eugênia Ferreira Conceição, pela

educação e formação que me deram, orientando e aconselhando-me e pelo amor que a mim

dedicaram;

Aos meus irmãos Rosanna, Washington, Cláudia, Cristhianne e Wellington pelo

amor, pela força, pelos ensinamentos e pelo incentivo que me deram;

A meus tios, tias, primos e primas por acreditarem que eu seria capaz de chegar

nesse momento;

A Karen pela atenção, dedicação, amor, compreensão e solidariedade nos

momentos mais difíceis desse trabalho, dando-me força para não desistir;

A Demiurgo Lopes Trinta pela atenção e orientação nas análises dos censos

abordados na pesquisa;

Aos meus amigos Cláudia e Wellington pelos esforços deliberados para fornecer

materiais que ajudaram o desenvolvimento dessa pesquisa;

Ao professor Josenildo, por ter aceitado me orientar e por ter me ensinado

valiosas lições, dedicando-me tempo atenção e mostrando-me o caminho a ser seguido;

A todos os meus professores, em especial Allan Kardec Pacheco, Helidacy Muniz,

Marcelo Cheche e Elizabeth Abrantes, que ao longo dos anos da graduação me ensinaram e

me ajudaram, de alguma forma, a construir saberes;

Ao professor Yuri Michael Pereira Costa por ter sempre se colocado a minha

disposição, mesmo não sendo meu professor, ouvindo e passando suas experiências e leituras

acerca da temática abordada nessa pesquisa;

Ao professor Paulo Rios pelos ensinamentos deixados que serviram de base para a

elaboração desse trabalho;

A todos os colegas e companheiros de sala que dividiram comigo momentos bons

e ruins;

A todas as pessoas que direta ou indiretamente participaram da produção desse

trabalho e contribuíram para sua realização.

16

“Só se pode entender um sistema, observando-se o conjunto, não apenas, uma das partes”.

Peter Senge

17

RESUMO

Faz-se uma análise historiográfica, buscando entender as experiências do trabalho livre na

sociedade escravocrata brasileira verificadas nas províncias da Bahia, São Paulo e Maranhão,

comprovando-se que, além de senhores e escravos, havia uma diversificada e complexa rede

de relações na qual se encontrava inserido o homem livre. Desconstroem-se conceitos e

definições cristalizados pela historiografia brasileira que apresentavam os homens livres sem

nenhuma relevância sócio-econômica, uma vez que se encontravam à margem do sistema

agroindustrial mercantil reinante no Brasil desde meados do século XVI, mostrando o quanto

o trabalho livre na formação do cotidiano da sociedade escravocrata brasileira foi importante

para a sua reprodução.

Palavras-chave: Sociedade escravocrata, homem livre, relações de trabalho.

18

ABSTRACT

A critical history analysis becomes, searching to understand the experiences of the free work

in the society brazilian slavery, verified in the provinces of the Bahia, São Paulo and

Maranhão, proving that, beyond gentlemen and slaves, it had one diversified and complex net

of relations in which if found the free man inserted. Destroy concepts and definitions

crystallized for the brazilian critical history, that presented the free men without no partner-

economic relevance, a time whom if they found to the edge of the agro-industrial system

mercantile reigns in Brazil since middle of century XVI, showing how much the free work in

the formation of daily of the society the brazilian slavery was important for its reproduction.

Key-words: Slavery Society. Free Man. Work Relation.

19

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

TABELA 1 – População da Bahia em 1808* e 1824................................................... 13

TABELA 2 – População Masculina da Bahia por Cor, 1872 ....................................... 15

TABELA 3 – População Feminina da Bahia por Cor, 1872 ........................................ 15

TABELA 4 – Homens e Mulheres em Idade de Casar. Bahia, 1872 ............................ 16

TABELA 5 – Distribuição da População Baiana por Cor............................................ 17

20

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 10

2 OS HOMENS LIVRES NA BAHIA ........................................................................ 12

2.1 Populações da Província da Bahia no Século XIX.................................................... 12

2.2 A Estrutura Social Rural............................................................................................. 17

2.3 A Estrutura Social Urbana.......................................................................................... 21

3 O HOMEM LIVRE E O MERCADO DE TRABALHO ........................................ 24

3.1 O Gênero e o Mercado................................................................................................. 29

4 AS REPRESENTAÇÕES DO HOMEM LIVRE POBRE NO MARANHÃO ...... 31

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 37

REFERÊNCIAS................................................................................................................... 39

21

1 INTRODUÇÃO

Na formação social escravocrata brasileira, o trabalho escravo tem sido objeto de

análise mais que as outras formas de trabalho, muito embora no cotidiano existisse uma

diversificada e complexa rede de relações envolvendo, também, os libertos e os homens livres

pobres.

É sabido que a utilização do trabalho escravo no Brasil deu-se dentro do projeto de

expansão comercial e agrícola dos países colonizadores, especialmente Portugal. Como bem

afirma Furtado (2000, p.3): “a ocupação econômica das terras americanas constitui um

episódio da expansão comercial da Europa”.

O comércio português inicialmente nutriu-se do tráfico de especiarias, mas como

os portugueses já possuíam experiência no cultivo do açúcar nas ilhas do Atlântico, a junção

desse conhecimento com a capacidade de transporte dos holandeses, na Europa, permitiu a

produção do açúcar em larga escala no Brasil, mudando a configuração desse comércio. O

principal problema para essa expansão era a disponibilidade de mão-de-obra, o qual foi

resolvido por meio da introdução do trabalho escravo.

A agroexportação mercantil, ao acentuar-se, implicou na exploração desses

trabalhadores para aumentar a produção do açúcar e atender às necessidades do mercado

externo. As indústrias açucareiras tornaram-se a base do sistema produtivo. Desse modo, de

acordo com Franco (1997, p.10):

(...) a exploração do açúcar fazia crescer continuamente a procura de braços e vê-se, também, como a escravidão se adequava a essa exigência: ela representava a possibilidade de mobilizar mão-de-obra e fornecer os contingentes adicionais necessários.

Com isso, o trabalho escravo fora a base da economia brasileira até fins do século

XIX, momento em que a abolição da escravatura se delineava como irreversível, despertando

na classe dominante a necessidade de discutir a situação do mercado de trabalho no país.

Considerando que o trabalho livre no Brasil escravocrata teve sua relevância, com

este estudo, desenvolvido a partir de uma análise historiográfica, apresentam-se as

experiências desse trabalho livre verificadas nas Províncias da Bahia, São Paulo e Maranhão,

tendo por pressuposto a concepção de que essas experiências não foram homogêneas, pois as

suas configurações estão articuladas à dinâmica da formação histórico-social dessas

províncias.

22

Nessa perspectiva, a pesquisa deteve-se na análise de autores que abordam de

diferentes formas o tema, mais notadamente: Kátia M. de Queirós Mattoso em Bahia Século

XIX – Uma Província no Império e em Ser Escravo no Brasil; Maria Sylvia Carvalho Franco

em Homens Livres na Ordem Escravocrata e Regina Helena Martins de Faria em A

Transformação do Trabalho nos Trópicos: propostas e realizações.

No primeiro capítulo: Os Homens Livres na Bahia, analisa-se o perfil do trabalho

livre na sociedade escravocrata, procurando apreender os significados das atividades por ele

desenvolvidas. Para tanto, toma-se por referência as obras de Kátia M. de Queirós Mattoso

supracitadas.

Uma vez apresentado o homem livre na sociedade escravocrata da área do

Recôncavo Baiano, no segundo capítulo: O Homem Livre e o Mercado de Trabalho, discute-

se outras especificações deste no mercado de trabalho e as suas determinações. Para a

configuração do cotidiano do trabalhador no contexto rural, utiliza-se a obra Homens Livres

na Ordem Escravocrata de Maria Sylvia de Carvalho Franco, no qual a autora analisa uma

área pobre da região paulista, mais precisamente em Guaratinguetá, durante o século XIX.

Para tratar do contexto urbano em que se encontrava inserido o homem livre, recorre-se à

autora Kátia M. Queirós Mattoso em sua obra Bahia Século XIX – Uma Província no Império,

pela riqueza de detalhamento que tal autora confere à caracterização do mercado de trabalho

livre na província da Bahia, por permitir a compreensão e sua relevância na sociedade

escravocrata brasileira.

No terceiro capítulo: As Representações dos Homens Livres Pobres no Maranhão,

apresenta-se as representações do homem livre pobre no imaginário da elite maranhense da

época, tema analisado e estudado por Regina Helena Martins de Faria em A Transformação

do Trabalho nos Trópicos: propostas e realizações. Por meio deste trabalho, descrevem-se as

idéias de vários intelectuais, relativas ao homem livre pobre ou, em outras palavras, como a

elite da província considerava esses homens.

Por fim, sublinha-se que este trabalho pode contribuir para desmistificar o mito da

marginalização do homem livre na sociedade escravocrata brasileira construído a partir da

noção de que os mesmos por não estarem inseridos diretamente na grande lavoura não tinham

nenhuma relevância sócio-econômica para esta.

23

2 OS HOMENS LIVRES NA BAHIA

Muitos historiadores tentaram reduzir as relações de trabalho na sociedade

escravocrata brasileira ao binômio senhor – escravo. No entanto, há de sublinhar que essa

formação social era permeada por uma diversificada e complexa rede de relações que

transcendiam essa representação dual, pois ao examinar tais relações verificou-se uma trama

social que incorporava alforriados, homens livres e escravos.

Nessa perspectiva, identificou-se na província da Bahia uma rica organização

social, cuja população livre se fixou, sobretudo em regiões que lhe ofereceram alguma

oportunidade de enriquecimento, estabelecendo diversas relações tanto no campo quanto na

cidade, permitindo, assim, verificar a sua importância na formação do cotidiano da sociedade

escravocrata.

Primeiramente, fez-se uma análise da estrutura demográfica e da evolução da

população baiana, para que se pudesse conhecer a dinâmica interna de uma população

matizada, formada por brancos, negros, índios e mestiços.

Posteriormente, analisaram-se as estruturas sociais rural e urbana da província,

definindo o perfil do trabalho livre na sociedade escravocrata, procurando apreender os

significados das atividades por ele desenvolvidas.

2.1 POPULAÇÕES DA PROVÍNCIA DA BAHIA NO SÉCULO XIX

Os estudos das populações da Bahia enfrentaram diversos problemas.

Primeiramente foram resultados de simples avaliações ou “recenseamentos” não controláveis,

sem apresentar uma precisão em seus dados de ordem muito gerais. Em segundo lugar, os

limites da província mudaram no decorrer do tempo, dificultando as tentativas de

comparações entre esses estudos. Além disso, sobretudo no século XIX, as divisões

administrativas da própria província modificaram-se sem cessar, tanto por desmembramentos

quanto por efeito da criação de novos municípios.

Diante deste contexto, passa-se a avaliar a população baiana do ponto de vista

quantitativo e em relação ao território como um todo, tomando-se como referência os anos de

1808, 1824 e 1872, este último sendo o ano do primeiro recenseamento oficial brasileiro.

Segundo Kátia M. de Queirós Mattoso, no início do século XIX, nos anos de 1808

e 1824, a população baiana era, respectivamente, de 411.191 e 858.000 habitantes, com um

24

percentual de brancos de 21.6% (89.004) em 1808 e 22,4% (192.000) em 1824. O número de

índios sempre foi reduzido: 1,4% (5663) em 1808 e 1,5% (13.000) em 1824.

No que diz respeito às relações entre população livre e escrava, observa-se, em

números absolutos, que a população total passou de 411 mil para 858 mil, com forte aumento

relativo na participação de escravos. Brancos e índios aumentaram de 95 mil para 205 mil,

enquanto mulatos e negros livres diminuíram de 177 mil para 129 mil. O número de negros e

mulatos escravos aumentou de 139 mil para 524 mil. Como descreve a tabela abaixo:

Tabela 1 - População da Bahia em 1808* e 1824

População Livre

População

Escrava

Brancos

Índios

Negros e

Mulatos

Total

Negros e

Mulatos

Total

Geral

1808 89.004 5.663 177.133 271.800 139.391 411.191

1824 192.000 13.000 129.000 334.000 524.000 858.000

Variação (%) (116) (130) (-27,2) (23) (276) (108)

(*) Inclui Sergipe del Rei. Fonte: Mattoso (1992, p.86, Tabela 3).

Observa-se que em 1808 e em 1824 não se distinguiram os mulatos e os negros

(livres ou escravos). Entre as duas datas, verifica-se que a porcentagem de escravos no

conjunto quase dobrou, enquanto a dos homens livres diminuiu significativamente.

Apesar disso, o percentual de brancos se manteve, o que certamente se explica pela

chegada à Bahia de uma leva de novos imigrantes, oriundos principalmente do Minho e

Douro, no norte de Portugal. O número desses imigrantes tornou-se maior quando a corte

portuguesa se instalou no Brasil em 1808.

Por outro lado, estas estimativas são muito duvidosas quando se avalia a

participação das populações africanas (negros) e afro-baianas (mulatos) no conjunto da

população livre da província, pois se sabe que o Brasil, no século XIX, apresentou a

população de negros e mulatos com um crescimento maior que o da população branca. Mas,

como se verificou, o censo subestimou o peso dos negros e dos mulatos e em compensação,

superestimou consideravelmente o número de escravos existentes na Bahia e em Sergipe.

25

Essa população escrava aumentou muito durante os trinta primeiros anos do século

XIX, pois os africanos foram trazidos em grandes massas, para acompanhar o verdadeiro

boom açucareiro do fim do século XVIII e do início do século XIX.

Baseando-se, porém, nos números de 1808, mais seguros, e acrescentando-se uma

média de 7.000 escravos importados por ano, chega-se a 251.391 escravos - isto é, menos da

metade do número apresentado -, o que faz perceber uma participação de 42,94% de escravos

na população total da Bahia, percentual comparável ao de 1808 (33,9%).

A população da província, assim, caracterizou-se por um crescimento contínuo e

bem marcado, por causa da imigração da população branca e da importação de negros

africanos, cuja chegada acelerou-se no fim do século XVIII e no início do século XIX.

No censo de 1872, nota-se que houve um trabalho específico para apresentar os

dados de modo muito completo: a população aparece dividida por sexo, condição jurídica,

estado civil e pela cor.

A primeira série de dados de 1872 diz respeito à divisão da população da Bahia

por idade, sexo e cor. Foram adotados critérios que discriminavam faixas etárias mais

numerosas, ou seja, muito detalhadas durante os cinco primeiros anos de vida, tornando-se

qüinqüenais a partir da idade de seis anos e decenais a partir de 31 anos.

Além disso, essa série não fornece informações sobre os escravos de menos de

onze meses, pois a lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, dera a liberdade a todas as

crianças nascidas de escravas a partir dessa data. De qualquer modo, o grosso dos efetivos

populacionais concentrava-se nas faixas etárias que vão de seis a quarenta anos.

A entrada no mundo do trabalho ocorria bem cedo. Por exemplo, os filhos de

escravos começavam a trabalhar aos sete ou oito anos e não eram os únicos nessa situação.

Numerosos foram os portugueses que emigraram para a Bahia para trabalhar em casas de

comércio aos oito, nove e dez anos.

Admitindo-se as hipóteses de que se começava a trabalhar na idade de dez anos

(em certas camadas numericamente majoritárias) e de que a faixa dos sessenta anos era a

idade limite da vida ativa média, mais de dois terços dos baianos integravam, em 1872, uma

população ativa capaz de sustentar seus jovens e velhos.

Nessa população ativa, os homens livres correspondiam a 408.950 habitantes

(64,9%) e as mulheres livres representavam 376.673 habitantes (64,7%). Quanto à população

de homens escravos, estes somavam 62.091, o que correspondia a um percentual de 69,7%,

enquanto que as mulheres escravas representavam um total de habitantes de 56.147,

26

correspondendo a um percentual de 71,3%, conforme comprovam as tabelas abaixo que

descrevem as populações masculina e feminina de 1872:

Tabela 2 - População Masculina da Bahia por Cor, 1872

Homens Livres Homens Escravos

Brancos Mulatos Negros Caboclos Mulatos Negros

0-10 anos 52.689 83.233 36.015 7.427 9.345 10.073

10-60 anos 115.609 183.944 91.774 17.623 25.370 36.721

+ 61 anos 10.307 19.954 9.785 1.993 2.582 5.003

Total 178.605 287.131 137.574 27.043 37.297 51.797

Fonte: Mattoso (1992, p. 96, Tabela 6).

Tabela 3 - População Feminina da Bahia por Cor, 1872

Mulheres Livres Mulheres Escravas

Brancas Mulatas Negras Caboclas Mulatas Negras

0-10 anos 49.331 76.701 32.467 5.777 7.000 9.655

10-60 anos 94.939 180.879 85.161 15.694 19.055 37.092

+ 61 anos 8.604 20.993 9.525 1.368 2.016 3.912

Total 152.874 278.573 127.153 22.839 28.071 50.659

Fonte: Mattoso (1992, p. 96, Tabela 7).

Por meio dos dados, a população infantil, de 0 a 10 anos, equivalia a pouco mais

de 25% (379.713) da população total (1.379.616), encontrando-se o percentual mais elevado

entre os brancos livres, seguidos dos mulatos (nos dois casos as crianças chegavam perto de

30% do total).

Entre os escravos negros se encontrava o menor percentual de crianças, 19,5%, o

que é coerente com tudo o que se sabe sobre a fraca taxa de reprodução desse grupo. Mesmo

assim, o percentual de crianças escravas parece surpreendentemente elevado.

Esses mesmos dados levam a um paradoxo: entre a população de cor, livre ou

cativa, encontram-se percentuais mais elevados de pessoas idosas (6,9% a 9,6%), enquanto os

mais baixos estavam entre a população branca (5,8%).

Segundo Mattoso (1992, p. 95) isso “talvez não seja espantoso, pois evidentemente

era muito difícil saber a idade dos alforriados e dos escravos, sobretudo daqueles que tinham

sido importados da África, bem como a dos caboclos, dos índios puros e dos mestiços”.

27

Em linhas gerais, o perfil feminino era quase idêntico ao masculino, embora com

um percentual mais elevado para as meninas de raça branca (32,3%). Observa-se que, assim

como na população masculina, o maior número de pessoas idosas se encontrava entre a

população de cor, fosse livre ou cativa, constituindo uma população de 37.814 mulheres. O

percentual de mulheres caboclas idosas (5,9%) era praticamente igual ao das mulheres

brancas (5.6%). O número de pessoas idosas era, de modo geral, elevado, sobretudo levando-

se em conta o fato de que essas populações eram mal alimentadas, mal atendidas em termos

de saúde e periodicamente atingidas por epidemias mortais.

Apesar de todas essas reservas, parece mesmo assim paradoxal que entre os

escravos, debilitados pelo trabalho, houvesse maior número de velhos que entre os homens

livres. Isso talvez reforce a idéia de que homens livres pobres, às vezes, vivessem em piores

condições que os escravos.

O número de homens era superior ao de mulheres. A partir da tabela seguinte,

verifica-se que essa diferença era muito sensível no caso de pessoas brancas em idade de casar

(entre dezesseis e quarenta anos). Entre os negros e mulatos ela era menor.

Tabela 4 - Homens e Mulheres em Idade de Casar. Bahia, 1872

População Livre População Escrava

Brancos Mulatos Negros Caboclos Mulatos Negros

Mulheres

(16-40 anos)

49.914

110.528

45.874

10.360

12.267

23.509

Homens

(21-50 anos)

70.077

111.736

59.089

10.770

15.302

22.784

Fonte: Mattoso (1992, p. 97, Tabela 8).

Por fim, comparando-se a divisão por cor apresentada nos recenseamentos de 1808

e 1872, de acordo com a tabela a seguir, percebe-se que o primeiro distinguiu as categorias

branco, índio, negro e mulato, enquanto o segundo trocou ‘índio’ por ‘caboclo’, termos que

não são equivalentes. Caboclo designa o mestiço de índio e branco, que normalmente vive no

interior, como lavrador ou criador de gado. Na linguagem corrente, a expressão é usada

também com o significado de ‘homem rude, pouco civilizado’. Não se sabe se os

recenseadores pretenderam designar dessa forma o índio puro ou mestiço, ou se consideraram

que o índio só existia em 1872 sob forma de caboclo.

28

Tabela 5 - Distribuição da População Baiana por Cor

População Livre

População

Escrava

Brancos

Índios e

Caboclos

Negros e

Mulatos

Total

Negros e

Mulatos

Total

Geral

1808 68.504 4.273 144.549 217.331 118.741 336.072

1872* 331.479 49.882 830.431 1.211.792 167.824 1.379.616

Fonte: Mattoso (1992, p. 97, Tabela 9). (*) O documento original do recenseamento de 1872 intitula-se População em relação à

nacionalidade brasileira e só fornece informações sobre as pessoas que nasceram no Brasil.

Percebe-se que a proporção da população branca pouco progrediu em relação aos

caboclos (que triplicaram sua participação relativa) e, sobretudo em relação aos negros e

mulatos livres, que passaram de 43 a 60,2% do total correspondente a cada ano (1808:

336.072 habitantes; 1872: 1.379.616 habitantes). Ou seja, de modo geral, a população era

mestiça e o elemento branco, minoritário.

Portanto, importa analisar as estruturas sociais rural e urbana que envolviam essas

populações, as quais contribuíram para a formação do cotidiano da sociedade baiana.

2.2 A ESTRUTURA SOCIAL RURAL

Para o estudo dessa estrutura social, passa-se a analisar a atividade agrícola no

Recôncavo açucareiro, esse interior baiano de tão velha tradição, no qual se encontravam

classificados os habitantes dos engenhos em diversas categorias sociais, ordenadas em

pirâmide como destaca Mattoso (1992, p. 592):

(...) no topo, o senhor de engenho, seguido dos “lavradores”; depois, diversos grupos de assalariados, em que os serventes ocupavam o nível mais baixo. Estes geralmente eram recrutados entre os “moradores”, camponeses livres, muitas vezes, ex-escravos ou descendentes de escravos, gente sem terra cuja existência e permanência no domínio dependiam da boa vontade do senhor. Sua função era produzir gêneros de subsistência e alugar sua força de trabalho para os diversos serviços que o senhor os determinava; por fim, na base da pirâmide, encontravam-se os escravos.

O senhor de engenho residia permanentemente em suas terras, cercado pela sua

mulher e seus filhos, além de seus “parentes mais ou menos próximos”: pai, mãe, irmãos,

primos, como também, afilhados e filhos bastardos.

29

Os lavradores, brancos ou mulatos bem claros, eram com freqüência parentes do

senhor. Com suas famílias e seus escravos, viviam em terras separadas, que lhes podiam

pertencer ou ser arrendadas do senhor. “Plantavam cana, partilhando com o senhor de

engenho as responsabilidades e os riscos da produção”. (Mattoso: 1992, p. 592). Eram ditos

“livres” quando podiam moer, no engenho de sua preferência, a cana que colhiam, dando

lucro ao fazendeiro vizinho, e “obrigados” quando tinham que se restringir ao engenho do

senhor.

Entre eles, o número de ex-escravos era muito grande. Não se dispõe de dados

quantitativos, mas se sabe muito bem que os brancos de origem portuguesa se recusavam a

cultivar a terra, todos os relatos da época registram essa queixa, como bem destaca Mattoso

(1990, p. 203): “(...) Repugna ao branco trabalhar um trato de terra, sabendo que nunca poderá

adquirir área suficiente a fazê-lo senhor de engenho, sobretudo porque são poucas as

propriedades à venda (...)”.

Por outro lado, para o liberto a propriedade de parte da produção, que cabia ao

meeiro, representava riqueza considerável, pois lhe permitia prover a sua sobrevivência e até

vender o excedente no mercado. Daí os grandes proprietários confiarem-lhe uma parte de sua

lavoura, por parecer bem menos perigoso, pois sabiam que, pelo menos imediatamente, o ex-

escravo seria incapaz de libertar-se de todo um complexo de hábitos sociais que faziam dele

um homem sempre dependente, como sublinha Mattoso (1990, p. 203):

(...) O alforriado que consegue esta oportunidade de ficar nos domínios do antigo senhor vê garantido seu futuro e afastado o medo do desconhecido; sente-se protegido. Contudo, de imediato, sua liberdade é bem precária, econômica e socialmente. Ele continua a pertencer ao mundo bem fechado gravitando em torno do seu antigo senhor, que continua a ser para ele um modelo de comportamento, um possível refúgio, uma espécie de bóia à qual poderá sempre agarrar-se em caso de necessidade. O escravo liberto está no sopé da escala social agrária e mal se distingue da massa de escravos, pois, embora liberto, continua a dever a seu antigo senhor a mesma obediência, a mesma humildade, as mesmas satisfações de antes, a fim de viver em paz, de conservar o que tanto lhe custou obter.

Para livrar-se de seu antigo proprietário e tornar-se efetivamente independente,

seria preciso partir para muito longe da fazenda e cortar todos os vínculos que o prendiam ao

mundo de escravo. Poucos ex-escravos o fizeram. Os senhores por sua vez, se acautelaram de

lhes abrir tal horizonte, felizes de conservar assim à sua disposição homens ou mulheres

prontos a lhes prestar diversos serviços. O novo agricultor, o liberto, dependia

economicamente da boa vontade do seu antigo senhor, que se tornava comprador dos

produtos por ele cultivado ou intermediário da venda desses no mercado.

30

Os engenhos reuniam quatro grupos de assalariados cada um dos quais englobando

diferentes categorias. O primeiro grupo era composto por empregados, cujos conhecimentos e

habilidades contribuíram para a boa administração do domínio. Estes eram: os advogados, que

muitas vezes atuavam como procuradores do senhor, representando-o junto a negociantes de

Salvador ou defendendo-o na ocorrência de algum litígio. Como podiam ser procuradores de

diversos senhores, freqüentemente acumulavam muitos salários. Em geral residiam na capital.

Outra categoria de assalariados que não viviam nos engenhos eram “os caixeiros da cidade”

que tinham a função de controlar tudo a que estavam relacionados o comércio e a produção do

açúcar.

Os capelães e os médicos, também faziam parte desse primeiro grupo. Em geral,

moravam no engenho e ganhavam salários anuais. Não raro tornavam-se plantadores de cana,

na condição de lavradores do senhor que alugava seus serviços. No final do século XVIII,

porém, os padres residentes escasseavam, e os verdadeiros médicos eram ainda mais raros. A

saúde da população dos engenhos ficou, então, a cargo dos personagens mais variados:

cirurgiões, enfermeiros e enfermeiras, parteiras, curandeiras e herboristas recrutados entre a

população livre e escrava local.

No segundo grupo estavam os trabalhadores assalariados mediante contrato anual.

Entre eles se destacavam os especialistas na fabricação do açúcar e os feitores. Estas

categorias parecem ter sido as mais favorecidas no conjunto de trabalhadores assalariados,

pois sendo especializadas e relativamente pouco numerosas, tinham privilégios com os

empregadores, os quais não podiam prescindir de seus serviços nem substituí-las com

facilidade.

Os outros dois grupos eram compostos por trabalhadores que recebiam por dia ou

por serviço: os artesãos e os serventes. Os primeiros (como ferreiros, ferradores, carpinteiros,

pedreiros, calafates, construtores de embarcações e caldeireiros) trabalhavam para os

engenhos de maneira constante ou esporádica, mas pelo menos uma vez por ano seus serviços

eram solicitados. Quando havia muitos trabalhos de monta a fazer, podiam ganhar mais que

os que recebiam salários anuais. Aos ferreiros e caldeireiros, em especial, nunca faltava

serviços.

Os serventes, por sua vez, eram, entre os assalariados, os que não tinham

especialidade em ofícios, cujos serviços eram demandados ocasionalmente e por pouco

tempo. De acordo com Mattoso (1992, p. 594.):

31

(...) a esses homens livres eram confiadas tarefas como as de perseguir e capturar negros em fuga, abrir trincheiras, cortar árvores na mata para alimentar os fornos e levar mensagens a propriedades vizinhas, tarefa que, por razões óbvias, considerava-se impossível confiar a escravos. Recrutados entre os “moradores” do engenho, eram os trabalhadores que menos recebiam, formando a classe rural pobre.

Artesãos, especialistas do açúcar, serventes, enfermeiros e enfermeiras, cirurgiões

e herboristas eram em geral recrutados entre a população livre de cor, mas havia nítida

preferência pelos mulatos, considerados mais inteligentes, “capazes de aprender mais rápido”.

Não era raro, contudo, o emprego de escravos como artesãos ou especialistas de açúcar, como

provam numerosas cartas de alforria. Isso colocava o escravo em pé de igualdade com um

trabalhador livre, mas apenas no que diz respeito ao trabalho.

Finalmente, na base da pirâmide, os escravos africanos ou nascidos no Brasil, de

diversas etnias, dividiam-se em três grupos com funções bem distintas: os escravos

domésticos, escolhidos de preferência entre mulatos e brasileiros; os que trabalhavam na

plantação ou no engenho; e os escravos qualificados, que dominavam algum ofício.

Nesse grupo, há de se considerar o alforriado sob condições, o “libertável”, o qual

na hierarquia social está mais perto dos escravos do que dos libertos, pois não passa de um

homem “a caminho de ser livre”. Esses libertandos a caminho da emancipação, muitas vezes,

aceitam tal situação híbrida de “meio-escravidão”, “meio-liberdade” por ter a consciência de

que a sociedade não lhes garantirá meios de sua sobrevivência, que outrora o senhor lhes

oferecia. Mas, por outro lado, “a análise das cartas de alforria outorgadas sob condições é

apaixonante, pois permite apreender o exato funcionamento do sistema escravista: o cativo

depende do senhor, mas o senhor também depende do escravo (...)” (Mattoso: 1990, p. 211).

Portanto, a comunidade rural nos engenhos do Recôncavo apresentava-se, no

século XIX, como uma sociedade de estrutura certamente piramidal, mas de composição

diversificada: uma população de trabalhadores livres, maior que no primeiro século da

colonização, e agora de cor, que exercia ofícios que tinham sido, outrora, apanágio dos

brancos. Essa população ordenava-se em categorias que seguiam critérios ligados ao estatuto

legal, à cor, aos ofícios exercidos, e à remuneração percebida, sem esquecer a consideração

social de que gozava o indivíduo, sempre de suma importância. Cabe lembrar, aliás, que essa

consideração podia ser diferente, segundo emanasse do senhor e de seu círculo mais próximo

ou da comunidade.

Analisadas as estruturas sociais rurais, faz-se, agora, a descrição da hierarquia

social urbana fixando os contornos de cada grupo e das categorias que os compõem. Desse

modo, vale compará-los às das comunidades rurais, para estabelecer as diferenças existentes.

32

2.3 A ESTRUTURA SOCIAL URBANA

Mais uma vez cabe distinguir aqui as cidades velhas das que, embora com início

de desenvolvimento bem antigo, somente se tornaram importantes no século XIX. O exemplo

de Salvador é de grande relevância dado ao modelo de organização social. Segundo Mattoso

(1992, p. 599):

(...) A imagem que se guarda é a de uma estrutura social diversificada, em que a população livre parecia ser considerável. As categorias profissionais urbanas eram muitas, e os baianos da época – ainda que não muitos – podiam encontrar trabalhos tanto nos setores militares e administrativos da burocracia real como nas atividades marítimas e comerciais. As camadas intermediárias já formavam uma classe média que englobava todos os que conseguiam ganhar a vida pelo exercício de um ofício ou do comércio.

O primeiro grupo social reúne todos aqueles cujos rendimentos líquidos

ultrapassavam um conto de réis: altos funcionários graduados da administração real

(governador geral, chanceler e desembargadores do Tribunal da Relação, ouvidor geral do

crime, ouvidor geral do cível, tesoureiro geral da Real Junta de Arrecadação da Real Fazenda,

juízes de alçada, deputado da Real Junta de Arrecadação da Real Fazenda, Secretário de

Estado e Governo, intendente geral do ouro, intendente da Marinha e provedor da Alfândega),

oficiais das patentes mais elevadas (coronéis, tenentes-coronéis, sargentos-mores), o alto clero

secular (arcebispos e membros do alto clero), os grandes negociantes e, por fim, os grandes

proprietários de terras, senhores de engenho ou pecuaristas.

O segundo grupo é o dos que auferiam entre 500.000 réis e um conto de réis por

ano. Eram funcionários de nível médio (juiz e procurador da Coroa e Fazenda, escrivães de

agravos e apelações, contadores da Real Junta de Arrecadação da Real Fazenda, escrivães da

Câmara Municipal, juízes de primeira instância, tabeliães, almoxarifes do Arsenal, diretores

da Casa da Moeda etc.), oficiais de nível médio (capitães, tenentes e suboficiais), membros do

baixo clero, lojistas, alguns proprietários rurais (produtores de cana, de tabaco e de

alimentos), profissionais liberais (advogados, médicos, etc.), pessoas que viviam de rendas, e

mestres-artesãos em ofícios considerados nobres. As duas últimas categorias exigem melhor

definição.

Entre os que viviam de rendas incluem-se os aposentados e os que viviam de

aluguéis de imóveis ou de serviços de escravos. Nesta última categoria, encontravam-se

muitas viúvas e mulheres solteiras, bem como homens de profissão mal definida, livres ou

recém-alforriados, que tinham escravos além do necessário para os trabalhos domésticos, o

33

que associado à elevação do preço do escravo após o fim do tráfico internacional, a partir de

1850, viam nesse setor uma fonte de renda valorosa, afinal a elevação do preço da mão-de-

obra cativa, causada pela abolição do tráfico, somada ao aparecimento de novas

oportunidades de investimento (ações bancárias, apólice do governo, bens imobiliários),

provocou na sociedade de Salvador o seu maior envolvimento em todas as oportunidades que

o mercado lhe proporcionasse. Pois, como bem ressalta Mattoso (1992, p. 597):

(...) Ademais, em Salvador todo dinheiro líquido – renda ou salário, aluguel de imóveis ou de trabalho escravo, lucro em investimentos bancários ou imobiliários ou juros sobre empréstimo de curto prazo – fazia do possuidor um agiota em potencial: fosse qual fosse à quantidade de dinheiro envolvida, emprestava-se e tomava-se emprestado em todas as classes da sociedade.

Quanto aos mestres-artesãos, tratava-se daqueles que eram de fato pequenos

empreiteiros em seus respectivos ofícios, ou mestres em ofícios considerados nobres por suas

exigências técnicas ou artísticas, como os ourives, pintores, entalhadores de pedra,

marmoristas, torneadores e escultores de madeira, freqüentemente qualificados de “artistas”

na documentação da época. Especializados e pouco numerosos, esses artesãos gozavam de

uma estima social muitas vezes igual à dos oficiais do Exército.

O terceiro grupo, o daqueles cujos rendimentos não passavam de 500.000 réis

anuais, compreendia funcionários públicos e militares de baixo escalão, integrantes de

profissões liberais secundárias (sangradores, barbeiros, pilotos de barcos, músicos, práticos de

medicina), artesãos e os que comerciavam frutas, legumes e doces nas ruas. Muitas vezes

eram ambulantes, e entre estes predominavam alforriados. Incluíam-se ainda neste grupo os

pescadores e marinheiros do Recôncavo e todos os que ganhavam seu pão em torno do mar e

do porto.

O quarto, o último grupo, era composto por escravos, mendigos e os chamados

“vagabundos”. O escravo era juridicamente marginalizado, uma vez que não tinha qualquer

direito civil, mas, de fato, desempenhava um papel fundamental na dinâmica econômica da

cidade, o que, inclusive, lhe garantia certa independência material. Por volta de 1800 era

possível distinguir dois tipos de escravos urbanos: os de uso doméstico e os destinados a

trabalhar fora, para ganhar dinheiro para o senhor. No tocante a essa categoria, as formas de

trabalho e as relações sociais não se alteraram ao longo do século XIX.

Quanto aos mendigos e aos “vagabundos”, Mattoso (1992, p. 598) assim os

localizava nesse grupo:

34

No degrau mais baixo desse grupo e da escala social urbana, situavam-se os vagabundos, mendigos e prostitutas. A acreditar nas descrições dos contemporâneos, viajantes estrangeiros ou membros do governo municipal, o número desses deserdados era considerável. (...) Entre os mendigos e os vagabundos sem lugar na sociedade, encontravam-se deserdados de toda sorte – soldados, marinheiros, escravos –, doentes e loucos abandonados pelas famílias ou pelos senhores, frutos do subemprego crônico ou ocasional.

A diversidade nos ofícios e nas oportunidades abria vias de mobilidade social,

possibilitadas também por uma estrutura social muito mais aberta que a existente nas

comunidades rurais do Recôncavo. Aberta, em primeiro lugar, porque a riqueza – e com ela o

prestígio ou a preeminência social – estava dividida entre vários parceiros. O senhor de

engenho, personagem único, era aqui substituído por uma elite múltipla, um grupo de pessoas

com autoridade análoga à sua.

Apesar de todos os compromissos firmemente estabelecidos por laços de família

ou compadrio, pelo exercício de um mesmo ofício ou profissão, o baiano, cidadão de

Salvador, tinha opção, diferentemente do membro de uma comunidade pouco numerosa e

relativamente fechada como se definia o Recôncavo. Era possível “um carpinteiro naval, por

exemplo, se conseguisse um emprego no Arsenal da Marinha, tornava-se funcionário público,

alçando-se a uma categoria social mais prestigiosa” (Mattoso: 1992, p. 599). Uma situação

semelhante a esta o interior nunca presenciara. De fato, a mobilidade social era maior na

cidade que no campo porque ali os homens eram menos dependentes. Essa maior autonomia

era desfrutada até pelos escravos que conseguiam adquirir sua liberdade em número maior.

Assim se apresentava a sociedade baiana. A estrutura social da cidade permitia a

violação de limites supostamente rígidos e oferecia um leque de oportunidades muito mais

amplo. Os interesses da elite múltipla que se configurava no meio urbano já não mantinham

mais obstáculos quanto à cor, bastava adquirir condições de fazer parte dessa categoria que as

pessoas de cor não se admitiam mais nem como “brancos da terra” e sim, efetivamente como

brancas, não só pela completa assimilação, como pela pele.

Na cidade ou no campo, as relações sociais no Brasil escravocrata foram

permeadas por diferentes situações que influenciaram no cotidiano de escravos, libertos e

homens livres, ainda que se tenha pretendido esquecer essas mútuas influências verificadas

entre esses segmentos sociais.

35

3 O HOMEM LIVRE E O MERCADO DE TRABALHO

Segundo Kátia de Queirós Mattoso, falar de “mercado de trabalho” numa

economia escravocrata é sem dúvida correr um risco, uma vez que esta é uma terminologia

atual, ou, pelo menos, adaptada à sociedades livres do século XIX. No entanto, torna-se

necessário correr tal risco, pois as diversas relações de trabalho em que se encontrava inserido

o homem livre justificam um aparente anacronismo.

É sabido que “toda organização econômica gera suas próprias hierarquias

sociais”. Em Salvador, como no restante do Brasil, prevaleceu desde meados do século XVI

um sistema agroindustrial mercantil. A empreitada da produção em grande escala para atender

ao mercado externo exigia mão-de-obra abundante, quando a escravidão aparece suportando

um estilo de produção vinculado ao sistema capitalista, o escravo surgiu redefinido como

categoria puramente econômica, assim integrando-se às sociedades coloniais (Franco, 1997, p.

13). Assim, os escravos foram a principal força de trabalho na grande propriedade agrícola do

Brasil até fins do século XIX e desse modo, então, estavam determinados os segmentos

sociais: o senhor, proprietário de terra e dos meios de produção; e os escravos, braços dessa

produção.

Mas desde o início do século XIX já se configurava uma mão-de-obra excedente

formada pelos homens livres pobres, como bem observa Franco (1997, p. 14):

(...) uma das mais importantes implicações da escravidão é que o sistema mercantil se expandiu condicionado a uma fonte externa de suprimento de trabalho, e isto não por razões de uma perene carência interna (efetiva de início) de uma população livre que poderia virtualmente ser transformada em mão-de-obra. Essa situação deu origem a uma formação sui generais de homens livres e expropriados, que não foram integrados à produção mercantil. A constituição desse tipo humano prende-se à forma como se organizou a ocupação do solo, concedido em grandes extensões e visando culturas onerosas. Dada a amplitude das áreas apropriadas e os limites impostos à sua exploração pelo próprio custo das plantações, decorreu uma grande ociosidade das áreas incorporadas aos patrimônios privados, podendo, sem prejuízo econômico, ser cedidas para o uso de outro.

Assim, no Nordeste, como nas áreas agrícolas do sul, e, aqui a pesquisa refere-se à

civilização do café que, no século XIX, floresceu nas áreas do Rio de Janeiro e de São Paulo

pertencentes à região do Vale do Paraíba, os homens livres diante dessa situação – a

propriedade de grandes extensões ocupadas parcialmente pela agricultura mercantil realizada

por escravos – passam a ter o seu espaço na estrutura social vivendo como agregados ou

camaradas, moradores, meeiros, rendeiros, sitiantes, etc., não sofrendo, portanto, dada a essa

36

condição, as pressões econômicas impostas pelo sistema capitalista, pois o peso da produção

significativa para o sistema como um todo, não recaiu sobre seus ombros.

Essa configuração de terras em abundância e uma oferta de emprego escassa e

incerta deram a esse homem a liberdade de atender a dois senhores. Mas esses homens tinham

grandes obrigações pessoais associadas ao ajuste de trabalho, embora os fazendeiros também

devessem arcar com alguns compromissos. Em troca de terra e da proteção que recebiam do

proprietário de terra, os trabalhadores deviam a este uma contraprestação de serviços não-

remunerados. Ao analisar os tropeiros – homens que utilizavam o lombo de burros, para

escoar as safras e para o abastecimento das fazendas – Franco (1997, p. 69) torna bem claro o

preço que esses homens pagavam por essas relações:

(...) A abundância de terras e o uso de cedê-las gratuitamente impediram que fosse sentida uma tal necessidade. E assim, o tropeiro, seduzido pela hospitalidade e “pelas imensas pastagens que cercam a fazenda, pede ao fazendeiro para ceder a seus animais essas riquezas perdidas. Nessa ocasião, estabelece o seu quartel-general na fazenda, onde cria seus burros. De tempos em tempos, faz uma tournée pela vizinhança e vende os que estão preparados”. Se esta prática aumenta-lhe o ganho, o preço que inconscientemente paga por isto não é pequeno, pois atinge sua própria pessoa, colocando-o na situação de retribuir com seus serviços os benefícios recebidos. “Em seus momentos ociosos (o tropeiro) torna-se útil na fazenda: ensina a laçar e a domar animais rebeldes, serve de escudeiro nas viagens e de sacristão ao padre”.

Ao enfocar o sitiante, por exemplo, Franco destacou os fundamentos da

dominação pessoal, entre eles: a relação de compadrio – instituição que implica o

reconhecimento recíproco daqueles que se unem como portadores dos mesmos atributos de

humanidade – que ao manter uma situação de “igualdade” entre o grande e o pequeno

proprietário, este se deixava dominar pelo primeiro inconscientemente. Em vista disso, a

relação entre fazendeiros e sitiantes seria marcada pela acomodação de interesses, não

havendo conflitos significativos. Para a autora, era preciso combinar-se um conjunto muito

especial de fatores para que as tensões emirjam e venha a romper-se o equilíbrio mantido por

um sistema de controle tão forte.

Nessa ordem de relações, destaca-se que os homens livres constituíam uma

clientela política, ou seja, eram eleitores de cabresto, e serviam de guardiões da propriedade.

Quanto à primeira afirmação fica clara a extensão da influência do fazendeiro sobre as pessoas

que dele dependia como bem observou Franco (1997, p. 87): “(...) a dependência em que estes

se encontravam tornava inelutável a fidelidade correspondente. Sua adesão em troca dos

benefícios recebidos é tão automática que nem sequer são tomadas medidas que assegurem seu

voto (...)”.

37

Diante dessas relações de interesses que se estabeleceram no contexto rural da

região do Vale do Paraíba destaca Koster (1978, p. 344): “o homem livre pobre do campo,

fosse ele agregado, parceiro, meeiro, morador, pequeno sitiante, arrendatário, foreiro, etc.,

precisava submeter-se aos caprichos e aos interesses do grande proprietário que monopolizava

o acesso a terra”.

Por fim, vale sublinhar que a configuração do meio rural obedeceu a uma ordem,

como bem observa Franco (1997, p. 237):

(...) Ao lado do latifúndio, a presença da escravidão freou a constituição de uma sociedade de classes, não tanto porque o escravo esteja fora das relações de mercado, mas especialmente porque excluiu delas os homens livres e pobres e deixou incompleto o processo de sua expropriação. Ficando marginalizada nas realizações essenciais da sociedade e guardando a posse dos meios de produção, a população que poderia ser transformada em mão de obra livre esteve a salvo das pressões econômicas que transformariam sua força de trabalho em mercadoria.

Contudo, após apresentar o contexto rural em que se inseria o homem livre, uma

vez mais, a abordagem recorre-se à sociedade urbana da Bahia, e a Bahia do século XIX. O

exemplo de Salvador permite que se compreenda a estrutura do mercado de emprego e os

problemas com os quais se confrontou a experiência de vida do homem livre no Brasil

escravocrata.

Primeiramente, ressalta-se que o mercado de trabalho de Salvador apresentava um

setor industrial reduzido a umas poucas manufaturas têxteis e pequenas indústrias de

transformação que não conseguia absorver muitos assalariados. Em 1875-1876, os

empregados das manufaturas têxteis não passavam de 478 pessoas. Não se tem informação

quanto ao número de empregados desse setor no período posterior, até 1887, quando várias

manufaturas se fundiram. Mas, grosso modo, não chegavam a quinhentos.

Esse setor industrial ainda era formado por outras manufaturas e fábricas.

Segundo Calmon (apud Mattoso: 1992, p. 532):

(...) Salvador tinha também manufaturas de fumo (que preparavam rapé, cigarros e charutos) e fábricas de calçados, biscoitos e móveis. Tinha ainda pequenas fundições de ferro e bronze, destilarias de álcool e lugares para a produção de óleo, serrarias e oficinas que esmaltavam ferro. Além de pregos, anzóis, velas, fósforos e açúcar, fabricavam-se sabões, chocolates, cerveja, massas e até roupas, inclusive luvas.

Apesar de não se conhecer o número de operários engajados nessas atividades de

tipo industrial, é evidente que estas ofereciam em seu conjunto escassas possibilidades de

emprego. As alternativas abertas às massas de trabalhadores eram as empresas de construção

38

civil e naval, além das atividades do setor terciário, em expansão numa cidade que necessitava

de um número crescente de serviços para funcionar.

Nessa perspectiva, afirma Mattoso (1992, p. 533): “Nos setores público e privado,

a construção civil oferecia bom número de empregos aos habitantes de Salvador, sobretudo na

segunda metade do século XIX, quando a municipalidade empreendeu muitas obras”.

Com esse panorama de oferta de emprego, encontra-se o trabalho do homem livre

enfrentando constantemente a concorrência da mão-de-obra escrava, sobretudo por dois

motivos: amparados por seus proprietários, que muitas vezes estavam à frente de pequenas

empresas ligadas à construção, os escravos eram os braços nas obras conseguidas junto ao

governo e, atendendo aos interesses desses proprietários, os escravos passaram a desenvolver

diversas atividades nas cidades, principalmente de ambulantes, que deveriam ser destinadas

aos livres.

A mão-de-obra livre era composta por brancos, mulatos e negros. Os primeiros

eram os descendentes portugueses chegados ao Brasil, ou, em pequeno número, europeus de

outras nacionalidades (espanhóis, italianos, franceses, ingleses e alemães), cuja vinda esteve

subordinada não só à questão do problema de braços na grande lavoura, a partir de 1850, com

o fim do tráfico de escravos, mas também às idéias de introduzir a modernização do país.

Havia também os chamados “brancos da terra”, como assim definia Mattoso (1992, p. 535):

“mestiços de pele mais ou menos clara que, graças à sua diligência ou ao patrocínio de pessoas

influentes, conseguiam transpor a linha de demarcação racial e, por conseqüência, também

social”.

Das ocupações que a sociedade oferecia, os brancos se beneficiavam das melhores

oportunidades. Na Província da Bahia, como no resto Brasil, segundo Mattoso (1992, p. 535):

(...) Eram em geral os mais instruídos, e, desde que fossem brasileiros, tinham fácil acesso às funções públicas. Não encontravam maiores problemas para se empregar como contadores, caixeiros ou vendedores no setor dos negócios e do comércio, nos bancos, nas companhias ou instituições de caridade. Mas os brancos que trabalhavam como artesãos eram também numerosos. Pedreiros, carpinteiros, pintores, entalhadores de pedra, estofadores, funileiros, serralheiros etc. – era entre eles que, o mais das vezes, se recrutavam contramestres e administradores. Em geral, estava também restrito aos brancos o exercício de certos ofícios reputados “nobres” e prestigiosos, como os de joalheiro e relojoeiro. Mas era nas fileiras dos proprietários (termo que abrangia tanto grandes proprietários imobiliários, muitas vezes ex-comerciantes aposentados, como senhores de engenho), dos grandes negociantes, dos profissionais liberais, dos altos funcionários e dos militares de alta patente que se concentrava a maioria dos brancos, “puros” ou da “terra”.

39

Entre os trabalhadores livres contavam-se também negros e mulatos, nascidos

livres ou alforriados. Os primeiros tinham os mesmos direitos que os brancos, ao passo que os

alforriados não gozavam de plena cidadania, pois não podiam, por exemplo, exercer funções

públicas e não tinham direito de voto. Mas, livres ou alforriados, eram eles que exerciam os

serviços mais humildes. Alguns conseguiam desenvolver atividades ao lado dos brancos, como

barbeiros, alfaiates, compositores, professores de música ou de línguas estrangeiras (sobretudo

francês) e professores primários.

Quando nascidos livres, esses homens obtinham empregos subalternos em algum

órgão da administração. Eram nesse grupo que se recrutavam, para as obras públicas, os

estivadores, os marinheiros, os pescadores, os lavradores e os operários, pois o governo os

preferia aos escravos. Chegava a existir documento que recomendava explicitamente, aos

contramestres de obras públicas, que despedissem um cativo sempre que aparecesse um

operário livre para tomar o seu lugar.

Apesar dessa preferência, comprova-se a resistência dos trabalhadores livres em

exercer ofícios que os confundiam com os escravos, chegando por vezes à indignação das

autoridades, como afirma Mattoso (1992, p. 536) ao analisar o relatório de um dos membros

da direção das Obras Públicas do governo provincial, escrito em 1849 que assim dispõe:

(...) Na Bahia, que possui uma população numerosa, é, no entanto, difícil encontrar operários livres. Em geral nos faltam; tenho diante de mim, Senhores, mais de sessenta candidatos para cargos de mestre-de-obra ou de apontador, mas trabalhar, ninguém quer. Há uma repugnância ao trabalho e este é um exemplo evidente da maneira com que vivem, preferindo a ociosidade ao trabalho honesto que lhes daria o pão cotidiano para suas famílias e os prepararia para se tornarem mestre-de-obra ou apontadores. Quanto a mim, prefiro um mestre-de-obra escolhido entre os melhores trabalhadores a um homem que não conhece seu ofício e não é capaz, por isso mesmo, de comandar os outros operários.

Em meados do século XIX, esses trabalhadores livres representavam,

provavelmente, mais da metade da população votante. Nas listas eleitorais aparecem 6.929

profissionais assim discriminados: 281 proprietários, 1.244 comerciantes, 201 empregados no

comércio, 227 profissionais liberais, 186 “profissionais independentes”, 44 empregados

privados, 76 homens de igreja, 189 “homens da lei”, 527 funcionários, 143 militares, 2.597

artesãos, 881 marinheiros, 195 agricultores e 138 profissionais não especificados.

É evidente que a população livre, quando não conseguia obter um bom ganho no

exercício de um ofício, preferia dedicar-se aos pequenos expedientes do comércio ambulantes,

livrando-se das pesadas imposições de horário e de carga de trabalho dos empregos oferecidos

na construção. As mulheres mulatas e negras também preferiam esse tipo de trabalho e vinham

40

engrossar o número de vendedores ambulantes que animavam com seus gritos as ruas de

Salvador.

Mas era justamente nessas atividades que os trabalhadores livres encontravam a

acirrada concorrência dos escravos, que, gradativamente excluídos do exercício de certas

atividades, procuravam nas ruas um espaço de trabalho. Ademais, os escravos, movidos pelo

desejo de comprar a própria liberdade, não recusavam nenhum trabalho, por mais duro que

fosse, que lhes permitisse amealhar algum dinheiro, tornando mais próxima a realização do

sonho de ser livre. No entanto, apesar dessa presença de escravos, eram os livres que

apresentavam as melhores possibilidades de empregos estáveis e lucrativos.

3.1 GÊNERO E O MERCADO

Quanto às mulheres, as da burguesia em geral não trabalhavam. Havia raramente,

algumas que dividiam responsabilidades com os maridos nas atividades comercial ou agrícola,

na plantação de cana-de-açúcar. Mas, há de se considerar que a viúva, quando não apresentava

descendentes masculinos ou estes eram de pouca idade, tomava frente aos negócios comercial

e agrícola. Muitas vezes vivia do aluguel de seus escravos que se encontravam além das

necessidades dos trabalhos domésticos. Tal mercado proporcionava-lhes uma valorosa renda

dada à escassez de escravos, no fim do século XIX.

As mulheres brancas ainda trabalhavam como professoras primárias – a partir de

1830 –, como diretoras de asilos ou abrigos e como enfermeiras de hospitais ou casas de

caridades. Apesar de poucas, a dedicação a essas atividades empurrava as mulheres brancas

para fora do domínio privado, do ambiente familiar. Percebia-se que a imagem de uma mulher

refém dos afazeres domésticos, embora ainda bastante presente, já começava a dá lugar a uma

mulher que cada vez mais buscava seu espaço na sociedade. Aliás, antes que o século XIX

chegasse ao fim já havia mulheres formadas em medicina, fato notável dada às características

gerais da sociedade baiana.

Quanto às demais mulheres da sociedade assim estavam definidas as suas

atividades:

(...) Nas classes médias, quando era preciso equilibrar o orçamento familiar, não eram raras as que se dedicavam a trabalhos de bordado ou costura, ou ao preparo de petiscos – sobretudo doces –, vendidos depois nas ruas por escravas “ganhadeiras”. Negras e mulatas livres, além de fazerem também esses trabalhos artesanais, podiam ser lavadeiras, passadeiras e engomadeiras. (Mattoso, 1992, p. 536)

41

A essas mulheres, ao contrário das professoras primárias, diretoras de asilos e de

abrigos e enfermeiras, que recebiam por mês, não se pode falar em trabalho assalariado.

Observa-se, portanto, o quanto é precária e imprecisa a descrição da estrutura

social do Brasil escravocrata, restringindo-a, apenas, a dois segmentos: de um lado os

proprietários rurais, que comandavam; do outro os trabalhadores escravos, que produziam.

Precária, porque desconsidera toda mobilidade, toda evolução havida nas hierarquias sociais

no Brasil. Imprecisa, porque não leva em conta a imensidão das terras brasileiras, a

diversidade das realidades regionais e suas complexas relações sociais vividas por diferentes

sujeitos sociais.

42

4 AS REPRESENTAÇÕES DOS HOMENS LIVRES POBRES NO

MARANHÃO

Segundo Caio Prado Jr. (apud Costa: 2004, p. 89) entre os senhores e os escravos,

definidos e entrosados na obra da colonização, comprimia-se e aumentava com o tempo, os

desclassificados, os inúteis e inadaptados, indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e

aleatórias ou sem ocupação alguma. Estes eram os homens livres pobres. Como se pode notar,

para o autor, um dos primeiros a analisar o tema, esses homens livres não tinham nenhuma

importância na estrutura produtiva da agricultura mercantil de exportação e de base escravista.

Ao se estudar as representações dos homens livres sem posses na sociedade

maranhense no século XIX, a partir da pesquisa realizada por Regina Helena Martins de Faria

em A Transformação do Trabalho nos Trópicos: propostas e realizações, verifica-se que esses

homens são apresentados sem nenhuma relevância sócio-econômica. Trata-se de noções que

marcaram o imaginário social da época, caracterizado pela consideração daqueles segmentos

sociais envolvidos com o sistema agroindustrial mercantil, que reinou no Brasil desde meados

do século XVI, ou seja: os senhores, os proprietários, que dominavam; e os escravos, braços

da grande lavoura, sujeitos à dominação.

No início do século XIX, as representações do homem livre pobre, à luz de

diversos autores que estudaram a época na província do Maranhão, eram de indolentes e

inúteis, ou de “perigosos criminosos”, “facínoras”, “vadios” que tiravam a tranqüilidade da

sociedade, como bem destaca Faria (2001, p. 157):

(...) as representações dos livres pobres eram marcadas por dois aspectos apresentados juntos ou isolados: a inutilidade e a periculosidade. Como estavam fora da grande lavoura ou dela participavam de forma marginal, suas estratégias de sobrevivência eram vistas como inúteis e perigosas à economia e à sociedade (...)

Dessa forma, os letrados se preocuparam mais em propor medidas que pudessem

conter esses homens, do que colocá-los no trabalho regido pelos padrões do sistema

capitalista, desejados pela elite, pois em tal sistema de produção, no qual se fundamentou a

sociedade escravocrata brasileira, a elite maranhense logo verificou que os livres pobres,

vivendo do extrativismo, da caça e da coleta vegetal, não apresentavam condições de serem

nele inserido, como bem destaca Ferreira (apud Faria: 2001, p.172):

43

(...) Procure um homem para o trabalho: acham-se vinte, o que provoca que não faltam braços no paiz. Trata-se com qualquer deles, e dirá que é um homem de bem as direitas; e para o provar refere que tem servido a muitos patrões e sempre a contento. Depois de uma fastidiosa seca, aí fica o homem contratado, que o proprietário dava por despachado, mas que parece esperar ainda por alguma coisa. Afinal, depois de muitos rodeios, pede abertamente o dinheiro adiantado. Se o proprietário adianta, pela maior parte das vezes, fica sem o trabalhador e sem o dinheiro, e se nega o homem de bem se ofende, e por isso ordinariamente não vai trabalhar. Se vai, trabalha em cada casa 15 dias; faz uma viagem ao mangue num barco, daí vai tirar pedra em uma pedreira, na outra semana vai tirar cipó ou buriti para vender na cidade, porque não quer estar sujeito a patrões; depois se aborrece de andar pelo mato, a vai pescar; n’outra semana vai para um barco buscar sarnambi ou carregar pedra etc. Os proprietários não podem detalhar um serviço para o dia de amanhã, porque não sabe [sic] quantos trabalhadores virão ao serviço, quantos irão pescar, quantos caçar, quantos dormir etc.

O coronel Luís Alves de Lima e Silva e seu secretário Domingos José Gonçalves

de Magalhães acreditavam que a religião católica era a maior e a mais urgente necessidade dos

homens livres pobres para integrá-los ao convívio em sociedade de forma pacífica. Chegaram

a essa conclusão, por terem observado que, em várias vilas da província, havia uma carência

de sacerdotes e um desprezo à religião, confirmado pela descrição das igrejas feita por

Magalhães (apud Faria: 2001, p. 158):

(...) As luzes do cristianismo parecem que ainda não penetravam essas vilas de tetos de palha e essas choupanas esgarradas em tão vasto território. Pobres pardieiros como nome de igreja, ermas de fiéis: apenas aninham as corujas, morcegos e mais aves noturnas, cujas imundices cobrem o chão sem assoalho, e até os mesmos altares; um vapor pútrido, como o hálito da peste se exala do santuário deserto, e tão miserável é o seu aspecto que parecem monumentos de zombaria ao mais sublime dos sentimentos humanos [...]. O que se pode esperar de homens não domados por nenhum freio!

Apesar de essa descrição ter sido feita em tempos de guerra, a imagem traçada do

homem livre pobre, quanto ao seu desregramento atribuído à falta de religião, era a mesma nos

tempos de paz. Além disso, esses livres pobres tinham um modo de vida errante identificado

como um outro elemento que os caracterizou, como bem destaca Magalhães (apud Faria:

2001, p. 158-159):

(...) Eram “homens ociosos”, “sem domicílio certo”, “muito amantes da vida meio errante, pouco dados a outros misteres e muito à rapina e à caça, distinguindo-se apenas dos selvagens pelo uso de nossa linguagem”. A maioria era uma “raça cruzada de índios, brancos e negros” de índole cruel “pelo hábito de pastorear e matar o gado, consumindo o resto da vida em ócio ou rixas”.

Segundo Faria (2001, p. 159), no ano de 1840, já havia uma pequena mudança na

maneira de representá-los. Nesse decênio, o Presidente da Província João José de Moura

44

Magalhães considerou ser a “falta de moral” e os “frouxos laços” da religião as razões da

criminalidade existente na província. Para combater esse desregramento era necessário

incentivar, nos homens livres pobres, o amor à virtude, à moral, à religião e ao trabalho,

através da inserção da instrução civil e religiosa. Tal tarefa era atribuição do poder legislativo,

embora o presidente sugerisse a criação de uma “cadeira de agricultura”, capaz de incrementar

a indústria agrícola.

Esses posicionamentos levam a considerar que a elite do Maranhão começava a

abrir possibilidades de civilizar os homens livres pobres. Primeiramente por meio da religião

católica, adquirindo preceitos morais e comportamentais; e em seguida por meio do trabalho

regular, pondo fim à ociosidade e ao seu modo de vida errante, sem responsabilidades. Muitos

foram os projetos (colônias agrícolas, colônias militares, escolas, leis, etc.) que sugeriam a sua

inserção no mercado de trabalho, mas nenhum apresentava as condições para a sua

implantação.

Fábio Alexandrino Reis na série de artigos de 1856, no Diário do Maranhão, fez

representações dos livres pobres, destacando-lhes os “hábitos de ociosidade”, “a isenção e

ambulância”, “o espírito de independência”, com que fogem do trabalho regular e rotineiro da

lavoura. A “isenção” refere-se à ausência de responsabilidade com qualquer coisa (família,

compromissos, propriedades, etc.) e a “ambulância” relaciona-se com a vida errante que esses

homens levavam. Tais condições permitiram-lhes considerarem independentes e preferir à

ociosidade ao trabalho.

Sobre os livres pobres, “donos de seu tempo” e, de certo modo, de suas vidas, sem

ambição e apego ao trabalho, o autor ainda afirma: “O nosso proletário contenta-se com pouco

e o que possui [é] a sua espingarda, sua faca de mato, e o seu cão, não se verga ao trabalho

rude e penoso do camponês”. (Reis, apud Faria: 2001, p. 160).

O Cel. Fernando Luis Ferreira ao descrever esses livres pobres na sociedade

maranhense aproxima-os às representações dos índios “domesticados” e “civilizados” pelos

jesuítas, que antes eram vistos como “bárbaros”. As descrições feitas sobre ambos não

diferiram, chegando a utilizar, indistintamente, para esses segmentos denominações como

“caboclo”, “cafuzo” e os atributos “vadio”, “indolente”, “perigosos” como se observou na sua

descrição dos livres pobres, com uma riqueza de detalhes, feita nas diversas ocasiões em que

realizou trabalhos no interior da província e apresentada na edição de 14 de fevereiro de 1869

de O Artista (apud Faria: 2001, p. 163):

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(...) São homens ou famílias que não têm terras suas e vivem nas alheias, intrusos ou com licença dos respectivos donos. Há proprietários que têm centenas de intrusos e não têm meios de os fazer evacuar. Mas evacuar para quê? Seria melhor arrendar-lhes terras; mas é que eles não se sujeitam a um arrendamento, e se assinassem algum seria logo necessário expeli-los por falta de pagamento, e as coisas ficariam com estão. Quem não tem uma energia fora do comum não expulsa um destes intrusos por ter que adquirir um inimigo que tem uma infinidade de meios de fazer mal. O pior é, que de todo o modo, quer como amigos, quer inimigos, fazem-se pesados ao senhor das terras: cortam madeiras reservadas, colhem-nas escondidas nas roças, desmancham cercas, quebram porteiras, ligam-se com os escravos para prejudicarem os senhores, têm falas com os escravos fugidos, avisam-lhes das diligências, amigam-se com as escravas e amassam-nas desapiedadamente com pancadas, por ciúmes; matam os animais domésticos, esfalfam os cavalos em passeios noturnos, animam os escravos à insubordinação com discursos subversivos; suas mulheres são parteiras de abortos clandestinos entre as escravas que pretendem subtrair da escravidão o fruto de seu ventre; andam por detrás dos ranchos dos escravos abrindo caminhos novos para fins ilícitos, a pretexto de fazerem o que eles chamam picada de caçador; de maneira que o proprietário não pode ter em sua casa a ordem que deseja.

Observa-se uma rica descrição de informações das relações sociais no campo e os

problemas que os livres pobres / índios “civilizados” causavam aos proprietários de terra,

devido a sua ociosidade.

O Cel. Ferreira localizou, entre esses livres pobres, os que “se dizem lavradores”

por possuírem uma roça, embora em terra emprestada, representando-os como homens que

utilizavam a liberdade e a ociosidade sem atribuir nenhum valor ao tempo:

(...) Pescam ou caçam num dia, fazem farinha noutro, trabalham uma hora na roça em outro e dormem ou passeiam o resto da semana. Andam léguas para ir cavar buraco onde sabem que há uma paca ou um tatu, ou para trazerem arroba de frutas silvestres e voltam com seu achado: se a caça é morta a tiro, avaliam-na no custo da carga de pólvora; se é morta a facão ou a laço, ou se é fruta, tudo é lucro; são dons gratuitos que nada custaram porque eles não sabem dar valor ao tempo. Não tendo de seu senão o tempo, são pródigos de sua fortuna. (O Artista: 1869, apud Faria: 2001, p. 164)

Ainda para caracterizar o desprezo que os homens livres pobres tinham pelo

tempo, o Cel. Ferreira dá mais dois exemplos. O primeiro refere-se ao hábito que esses

homens tinham de passarem a noite sob pequizeiros, disputando, entre si, os frutos que caíam

e, depois, dormirem todo o dia seguinte, pensando estarem em vantagem por ter seu alimento

garantido. O outro exemplo trata do costume de ficarem horas a fio, “contemplando” a

passagem do tempo, sem nenhuma preocupação. Este último foi descrito em forma de uma

pequena estória que, o próprio Cel. Ferreira, apresentou em O Artista (apud Faria: 2001, p.

164):

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(...) Acorda aborrecido o nosso homem, assenta-se à margem do rio ou fica de pé encostado a uma árvore horas inteiras, a ver passar o tempo com as águas; e nessa aparente contemplação da natureza não sente pena nem glória. Passe nesse momento um viajante, que careça de um remeiro, de um guia ou coisa semelhante, vê aquele homem, como que à espera dele, oferece-lhe um salário; pede-se-lhe uma exorbitância. Tenta regatear, a nada o bruto se move, que negligentemente vai virando de costas e dizendo: - por menos de que isto é melhor dormir. E o dito, dito; vai até a roça, arranca um pé de mandioca, faz uma cuia de farinha, cozinha os pequis, que come com ela, e diz com seus botões: - cuidava aquele pateta que eu não tinha que comer.

Na segunda metade do século XIX, os livres pobres, além de inúteis e perigosos,

foram representados também como onerosos. É sabido que a partir de 1850, com o fim do

tráfico negreiro, o mercado de trabalho livre seria uma fonte para recrutamento de novos

trabalhadores. Com isso, a execução das medidas sugeridas para a integração desses homens

livres ao mercado de trabalho significava um aumento nos gastos públicos.

O autor que apontou com mais veemência a onerosidade dos livres pobres foi o

engenheiro Miguel Vieira Ferreira. Para ele, o atraso do Brasil tinha como causa principal a

escravidão e esta gerava a “preguiça” (expressa, também, por indolência / ociosidade / pouco

amor ao trabalho) nesses homens livres, uma vez que “as pessoas livres não queriam trabalhar

para não serem identificadas aos escravos, pois o trabalho manual era considerado

“indecoroso” e a prodigalidade da natureza possibilitava a sobrevivência sem grandes

esforços”. (Ferreira, apud Faria: 2001, p. 168).

Segundo Ferreira, esses fatores formavam uma situação de ausência de “capital

moral”, resolvida apenas com o trabalho. Acreditava que essa indolência era a raiz de tudo,

gerando a “frouxidão de caráter” presente na sociedade maranhense, assim como no Brasil.

Por isso, nada funcionava como deveria: o povo escolhia mal seus representantes, os quais, por

sua vez, eram incompetentes, descompromissados e não elaboravam leis eficazes; os

funcionários públicos se corrompiam e não cumpriam suas tarefas; a imprensa não ajudava a

corrigir os erros; o governo não cumpria suas obrigações e reinava o descaso. A ignorância

imperava, o povo era inconsciente dessas questões.

Ferreira considerava que havia uma “lei de trabalho”, determinada por princípios

da Física (a natureza está sempre em trabalho) e da Religião (o pecado original obrigou o

homem a viver do suor do seu rosto). No entanto, a sociedade maranhense a desconhecia, pois

permitia a ociosidade. Com isso, ele determinava que fosse necessário elaborar leis que

acabassem com o “direito à preguiça”, tornando obrigatório o trabalho. Mas, além disso,

observava que era preciso, por meio da educação, orientar e preparar as pessoas para terem

amor ao trabalho, proporcionando, assim, o crescimento do país.

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Com esse propósito, o autor acreditava que o Estado cumpria o seu dever de banir

da sociedade a ociosidade, sem ferir o direito de liberdade dos cidadãos em escolher em que

queriam trabalhar, pois o que era obrigatório era o trabalho. Além disso, protegia a sociedade

dos livres pobres ociosos que, de acordo com a elite, viviam ou de favor ou de “calote”.

Percebe-se que, a partir da segunda metade do século XIX, aumentava a

preocupação de enquadrar esse homem livre como fonte de mão-de-obra, pois o Maranhão

perdeu parte de seus escravos para o sudeste, devido ao tráfico interprovincial. Com isso,

precisava-se instruir essa massa de livres pobres do dever de trabalhar e, assim, contribuir para

o crescimento da produção como afirmou o presidente da província em 1874, Augusto

Olímpio Gomes de Castro (apud Faria: 2001, p. 166):

(...) a instrução pode operar essa reforma salutar, inspirando nas classes pobres o desejo da propriedade e o amor da família, estímulos poderosos para combater a dissipação e a ociosidade. Melhorada a educação do povo, o trabalho será procurado, e a produção aumentará (...)

Como se observou, os homens livres pobres, assim como os “índios selvagens” e

os escravos, segmentos inferiores da sociedade, incomodavam e causavam temor na elite, uma

vez que esta não aceitava o modo de viver desses homens que, segundo a visão da própria

sociedade, resistiam à obrigatoriedade do trabalho e acabavam por ameaçar-lhe as

propriedades e até mesmo a vida.

Dessa forma, a elite olhava com temor, desconfiança e muito preconceito esses

homens, que constituíram uma camada heterogênea formada nos primeiros tempos da

colonização e que se situava de permeio à polaridade de senhores e escravos, sendo, por isso,

colocados na condição de segregados da sociedade brasileira, fundamentalmente, capitalista.

Por outro lado, deve-se considerar que, apesar da estrutura agrícola mercantil de

exportação e de base escravista fundamentar-se, na aparência, no binômio senhor – escravo,

torna-se necessário desconstruir essa interpretação, por ser um obstáculo que impede

conhecer-se as diferentes camadas sociais que integravam o cotidiano dessa sociedade

escravocrata.

48

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo teve como objetivo apresentar as experiências do trabalho livre

nas províncias da Bahia, São Paulo e Maranhão. Para atingir essa meta, fez-se uma análise

historiográfica, buscando verificar que as experiências do trabalho livre nessas províncias

poderiam esclarecer a respeito da importância do homem livre na formação do cotidiano da

sociedade escravocrata brasileira.

O que ficou evidenciado, após a análise de autores que abordaram o tema de

diferentes formas, mais notadamente: Kátia M. de Queirós Mattoso, Maria Sylvia de Carvalho

Franco e Regina Helena Martins de Faria, é que essas experiências não se deram de forma

homogênea no Brasil, pois as suas configurações encontravam-se articuladas à dinâmica da

formação histórico-social dessas províncias. Nesse sentido, comprovou-se que o homem livre

baiano não se parece absolutamente ao de São Paulo e, muito menos, ao do Maranhão, embora

na historiografia brasileira sejam tratados da mesma forma, como homens sem nenhuma

relevância sócio-econômica, por não terem sido integrados diretamente ao sistema

agroindustrial mercantil, da grande lavoura, que reinou no Brasil desde meados do século

XVI.

Uma outra comprovação obtida pela pesquisa foi que os homens livres possuíam

seu espaço no mercado de trabalho da sociedade escravocrata brasileira, desenvolvendo

diversas atividades como: artesão, professor, comerciante, serviços às Forças Amadas,

atividades ligadas à construção civil, pequenos lavradores, meeiros, rendeiros, tropeiros,

sitiantes, agregados, parceiro, etc., ou seja, encontravam-se inseridos nas estruturas sociais

rural e urbana do Brasil.

Com isso, percebe-se o quanto a visão de muitos historiadores acerca das relações

sociais no Brasil escravocrata é permeada por problemas ao reduzirem, tais relações, a

senhores e escravos, “esquecendo” de incluírem os homens livres na composição dessa

estrutura social, cuja importância está comprovada nas obras, aqui analisadas, pois realçam a

rica e diversificada rede de relações, nas quais esses homens livres estavam imersos.

É notável na historiografia brasileira que os livres são tratados como homens de

nenhuma relevância sócio-econômica, por não terem atendido as imposições dos padrões do

sistema capitalista, desejados pela elite, no qual se fundamentou a sociedade escravocrata

brasileira. Essa forma de tratá-los repercute negativamente na elaboração dos estudos a cerca

dessa sociedade, pois muitos historiadores ao estudarem a época, quando não esquecem de

analisar a participação desses homens livres na formação social escravocrata, as referências a

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esses homens encontram-se nas entrelinhas do discurso desses historiadores, de forma

marginal, sendo considerados sem nenhuma importância para a pesquisa realizada. Trata-se de

historiadores que voltam a atenção de seus estudos, apenas, para aqueles segmentos sociais

envolvidos com a grande lavoura: senhores e escravos, esquecendo que além desse binômio se

estabeleceram outras relações que contribuíram para a formação da sociedade escravocrata

brasileira.

Por fim, considerando que o trabalho livre no Brasil escravocrata teve a sua

relevância, espera-se que com essa pesquisa outras possam ser desenvolvidas, destacando o

homem livre como segmento social que contribuiu para a formação do cotidiano da sociedade

escravocrata brasileira, desmistificando-se a marginalização desses homens, construída na

noção de que os mesmos estavam apartados dessa sociedade por não terem participado

diretamente da implementação do sistema agroindustrial mercantil.

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