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Código ISSN: 2358-0690 ANO 03 DEZEMBRO 15 Alexandre Ferraz | Eduardo Fagnani | Jairnilson Silva Paim | Luciana Jaccoud | Tiago Oliveira REVISTA 28 As demandas sociais da democracia não cabem no orçamento? (Parte II)

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Código ISSN: 2358-0690

ANO 03 DEZEMBRO 15

Alexandre Ferraz | Eduardo Fagnani | Jairnilson Silva Paim | Luciana Jaccoud | Tiago Oliveira

REVISTA

28 As demandas sociais da democracia não cabem no orçamento? (Parte II)

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Todas as fotos:

plataformapoliticasocial.com

EDITOR Eduardo Fagnani

EDITOR ASSISTENTE Thomas Conti

JORNALISTA RESPONSÁVEL Davi Carvalho

REVISÃO Caia Fittipaldi

PROJETO GRÁFICO Nata Design

CONSELHO EDITORIAL Ana Fonseca NEPP/Unicamp

André Biancarelli Rede D - IE/Unicamp

Erminia Maricato USP

Lena Lavinas UFRJ

revistapoliticasocialedesenvolvimento.com

CÓDIGO ISSN: 2358-0690

APOIO

Revista eletrônica idealizada e produzida pela rede Plataforma Política Social que reúne cerca de 300 pesquisadores e profissionais de mais de uma centena de universidades, centros de pesquisa, órgãos do governo e entidades da sociedade civil e do movimento social.

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Índice

08A desigualdade e a política social no debate sobre reforma fiscal

Luciana Jaccoud

22Seguridade Social, financiamento e crise do Sistema Único de Saúde (SUS)

Jairnilson Silva Paim

28Programa Seguro-desemprego: qual a reforma necessária?

Tiago Oliveira e Alexandre Ferraz

14A Previdência social não tem déficit Eduardo Fagnani

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A S D E M A N D A S S O C I A I S D A D E M O C R A C I A N Ã O C A B E M N O O R Ç A M E N T O ? ( PA R T E I I )

O objetivo de construir uma sociedade justa requer, dentre tantos desafios, a preservação da inclusão social ocorrida nos últimos anos e a defesa dos direitos de cidadania assegurados pela Constituição Federal de 1988, marco do processo civi-lizatório nacional.

Não obstante, ambos os desafios estão ameaçados. A estagnação da economia corrói os avanços sociais recentes, enfra-quece o governo democraticamente eleito e amplifica a crise política e o eco das ações antidemocráticas.

Por outro lado, a recessão é funcional para o aprofundamento do projeto liberal, pois

Eduardo Fagnani Professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit/IE-Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Política Social(www.plataformapoliticasocial.com).

Apresentação

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não deixa outra saída a não ser a severa alteração da estrutura dos gastos governa-mentais exigida há décadas pelo mercado.

Nos últimos meses ganhou robustez a visão de que a estabilização da dívida pública requereria a mudança no “contrato social da redemocratização”. Essa visão adquiriu novos contornos com a explicitação do documento “Uma Ponte para o Futuro”, divulgado pela Fundação Ulysses Guima-rães, do PMDB.

Dado este cenário, a Revista Política Social e Desenvolvimento dedica-se a enfrentar a seguinte questão: “As demandas sociais da democracia não cabem no orçamento?”.

Na Revista 27, iniciamos este debate. Nesta Revista 28 damos sequência, primeira-mente com o artigo de Luciana Jaccoud “A desigualdade e a política social no debate sobre reforma fiscal”. A autora critica o diagnóstico liberal de que a crise econômica derivaria do desajuste fiscal provocado pelos gastos com direitos sociais acolhidos pela Constituição Federal. Esta perspectiva reafirma a responsabilidade do Estado brasileiro no enfrentamento da pobreza, negando, contudo, a continui-dade e estruturação do sistema de proteção social tal como vem sendo desenvolvido desde a Constituição democrática de 1988. “O argumento é tão simples como atraente, e tão limitado como insuficiente”, sentencia.

Para a autora, a larga e longa experiência internacional demonstra que as políticas sociais operam frente a casos e situações sociais específicas, como também são parte

orgânica de uma trajetória de desenvolvi-mento – ou seja, crescimento socialmente não predatório.

Contudo, nesta “nova-velha” agenda liberal brasileira, os temas da desigualdade e da equidade não são contemplados. “Uma agenda de reformas se impõe”. Porém, não é a agenda do “constrangimento das generosas possibilidades que nos delegou a proteção social desenhada pela Consti-tuição de 1988”, afirma Jaccoud

Em “A Previdência social não tem déficit”, Eduardo Fagnani, aponta que, em flagrante confronto com a Constituição da Repú-blica, desde os anos de 1990, setores da sociedade esforçam-se para “comprovar” a inviabilidade financeira da Previdência, para justificar nova etapa de retrocesso nesses direitos. A recorrente recusa em não reconhecer o que reza a Constituição Federal conduz ao falso argumento de que haveria “déficit” sempre que a contribuição dos empregados e empregadores para a previdência social seja insuficiente para bancar o conjunto dos benefícios rurais e urbanos. A parcela que cabe ao estado no sistema tripartite não é considerada como fonte de receita, sendo contabilizada como o suposto “déficit” ou “rombo”.

Além disso não se considera que a Previ-dência Social é parte da Seguridade Social (artigo 194); e, que, para financiar a Seguridade Social, os constituintes de 1988 criaram o Orçamento da Segu-ridade Social (artigo 195) um conjunto de fontes próprias, exclusivas e dotadas de uma pluralidade de incidência. Eles estabeleceram no Brasil o mecanismo de

APRESENTAÇÃO

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financiamento tripartite clássico (traba-lhador, empresa e governo, através de impostos) dos regimes de Welfare State. Todavia, desde 1989, o Ministério da Previ-dência Social, ao arrepio da Carta, não contabiliza a contribuição do governo para o financiamento da Previdência Social. Daí decorre o suposto “rombo”. Ainda segundo o autor, estudos revelam que o Orçamento da Seguridade Social sempre foi superavi-tário. “Portanto, à luz da Constituição da República, não há como se falar em déficit na Previdência Social. Na verdade, sobram recursos que são utilizados em finalidades não previstas na lei”, afirma.

Em “Seguridade Social, financiamento e crise do Sistema Único de Saúde (SUS)”, Jairnilson Silva Paim, aponta que a insta-bilidade e a insuficiência do financiamento impostas ao SUS pelos diversos governos do pós 1988 inviabilizaram, até o presente, a construção de um sistema universal de saúde a partir da concepção de Seguri-dade Social expressa na Constituição da República. A estrutura tributária iníqua, o exorbitante pagamento de juros da dívida pública, as modificações da legis-lação desde a Emenda Constitucional 29 de 2001 e as desonerações fiscais são determinantes fundamentais do subfi-nanciamento do SUS. O agravamento da crise econômica e as dificuldades polí-ticas desde o processo eleitoral de 2014 reforçam um cenário ainda mais pessi-mista, onde prevalecem os interesses dos empresários da saúde. Segundo o autor, “está em curso uma subversão do projeto constitucional para a saúde”.

Finalmente, Tiago Oliveira e Alexandre

Ferraz , em “Programa Seguro-desem-prego: qual a reforma necessária?, reafirmam que a Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo capítulo no processo histórico de construção de um sistema de proteção social e de garantia de renda no Brasil. A Carta reconheceu o seguro-desemprego como direito social do trabalhador submetido a situação de desemprego involuntário, ao tempo que estabeleceu as fontes de seu financiamento. O programa atua como estabilizador auto-mático dos ciclos econômicos, ao repor uma parcela da renda do trabalhador demitido; permite a especialização da mão de obra, a retenção de competências e o aumento da produtividade do trabalho; e influencia o estabelecimento de um piso salarial no mercado de trabalho, dificultando abertura muito expressiva do leque salarial.

Não obstante, desde o final de 2014 o Seguro-Desemprego também foi vítima do ataque ideológico proposto pelos libe-rais que passaram a responsabilizá-lo pelo desarranjo fiscal. Este artigo se contrapõe a essa visão que não aprofunda a análise das reais causas do crescimento das despesas com o programa. As recentes restrições nas regras de acesso tiveram como mote apenas preocupações de ordem fiscal de curto-prazo. Elas não enfrentam a aparente “contradição entre baixas taxas de desemprego e crescimento dos gastos com o seguro-desemprego”. Segundo os autores, em síntese, “foi o aumento do universo potencial de beneficiários que pressionou os gastos do programa, e não uma ocorrência generalizada de fraudes, hipótese muito aventada, mas que carece de maiores evidências factuais”. Por outro

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lado, o desequilíbrio financeiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) reside, fundamentalmente, na perda de receitas a partir de 1994 por conta da criação do Fundo Social de Emergência (FSE), que depois se transformaria na Desvinculação de Receitas da União (DRU). Ademais, o FAT também vem perdendo expressivas somas de recursos devido às desonerações fiscais que atingem diretamente a arreca-dação proveniente da sua principal fonte de financiamento.

Boa leitura.

APRESENTAÇÃO

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Após mais de uma década, voltamos a assistir no debate público ao recrudescimento das críticas às políticas sociais. Alimentada pelo diagnóstico de que a crise econômica impõe urgente e estruturante ajuste fiscal, retoma-se a discussão de se as políticas sociais, acolhidas pela Constituição Federal como responsabilidade pública obrigatória, são financeiramente sustentáveis ou mesmo socialmente desejáveis. De fato, tornou-se usual o argumento de que, ampliadas

A desigualdade e a política social

no debate sobre reforma fiscal

Luciana Jaccoud Doutora em Sociologia pela Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales (EHESS). Técnica de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Economia Aplicada (Ipea).

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desmesuradamente, as políticas sociais têm causado o descontrole do gasto público. Estariam hoje beneficiando públicos que a elas não fazem jus, além de ofertarem serviços de qualidade duvidosa e que poderiam ser, em maior ou menor medida, mais bem geridos pela esfera privada.

Como resposta aos problemas identifi-cados, retoma-se a antiga receita da racionalização do gasto público, tendo em vista sua maior eficiência, com ênfase na priorização das ofertas públicas para aqueles que de fato delas necessitariam. Nesta perspectiva, reafirma-se a res-ponsabilidade do Estado brasileiro no

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enfrentamento da pobreza, negando, contudo, a continuidade e estruturação do sistema de proteção social tal como vem sendo desenvolvido desde a Constituição democrática de 1988. A crítica à ampliação da responsabilidade pública e à construção de um campo adensado de direitos sociais estendido a todos os brasileiros sustenta-se, assim, tanto na reafirmação da natureza essencialmente compensatória da política social, como na confiança reiterada na esfera privada e no esforço individual. O argumento é tão simples como atraente, e tão limitado como insuficiente.A larga e longa experiência internacional demonstra que as políticas sociais operam não somente frente a casos e situações sociais específicas, mas ao contrário, são parte orgânica de uma trajetória de desenvolvimento – ou seja, crescimento socialmente não predatório. Como destaca Atkinson em trabalho recente, não se conhece entre os países desenvolvidos, trajetória relevante de redução das desigualdades que não tenha sido acompanhada por expressivos gastos e adensadas institucionalidades em políticas sociais (Atkinson, 2015). Não é por outro motivo que, mesmo com taxas reduzidas de crescimento econômico, confirma-se a expressiva participação estatal no campo social entre os países da OCDE, seja em termos de magnitude da oferta, seja no gasto social que lhe dá sustentação (OCDE, 2014). É o reconhecimento de que o desenvolvimento pressupõe papel significativo do Estado na regulação da vida social, seja para a garantia de patamares de bem-estar, seja para a

manutenção de níveis limitados de desigualdade social (e não apenas de renda). Desde a obra seminal de Esping-Andersen (e mesmo antes), a sociologia comparada vem mostrando o papel dos adensados sistemas de proteção social nas sociedades modernas. O ideário de sociedade de indivíduos, onde apenas autonomia, o esforço, o empreendedorismo seriam tanto molas de crescimento econômico e de bem-estar social, não encontra âncora em evidências (nem mesmo nos EUA como demonstram não apenas a política de educação, como o recente debate sobre o acesso à saúde). Contudo, na agenda brasileira atual, educação, saúde, assistência social e previdência social passam a ser objeto de propostas reformistas que visam a reduzir seu escopo em oferta e público beneficiário. Nesta nova-velha agenda, a ausência dos temas da desigualdade e da equidade revela um debate que, abstraindo a perspectiva sociológica, restringe a análise da política social a uma dupla dimensão: a individual, afirmada pela perspectiva do beneficiário, sob o qual se exercitam critérios de justiça que adequariam a seleção e cobertura; e a econômica-tributária, aqui limitada ao esforço do gasto público. Da perspectiva social, entretanto, o debate se impõe em outro registro. A pobreza, mesmo quando atingindo apenas parte da sociedade, repercute de forma ampla na dinâmica da vida social. Como já afirmou Rosanvallon (2011), a desigualdade é vivida solidariamente. Longe de afetar somente os menos favorecidos, ela diz respeito à sociedade

A DESIGUALDADE E A POLÍTICA SOCIAL NO DEBATE SOBRE REFORMA FISCAL

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como um todo e tem efeito deletério sobre toda ela. Operar com mais ou menos igualdade afeta extensamente a sociabilidade e os vínculos sociais, tanto na vida privada como pública, alterando as formas como se processam e mediam os conflitos distributivos, e com impactos que se estendem dos patamares de violência urbana à legitimidade da ordem política. A desresponsabilização das políticas sociais sobre o nível e a dinâmica das desigualdades sociais tem consequências efetivas e para o conjunto da sociedade. A sociedade dinâmica em contexto de

crescente individualização não prescinde de amplas políticas de proteção social. Entre os vários motivos, cabe lembrar dois destacados por Castel (2003): em termos individuais, estar em situação permanente de insegurança impede tanto controlar o presente como antecipar positivamente o futuro em termos sociais; as políticas sociais fortalecem a inserção dos indivíduos, de modo que possam participar da sociedade em parte inteira. Ela atua, portanto, como canal privilegiado de integração social, fazendo face aos riscos de fragmentação e ruptura social que a desigualdade social promove na medida em que avança.

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Concluindo, cabe lembrar os impactos diversos das políticas sociais. Para além do enfrentamento das situações de pobreza, elas operam preventivamente seja no campo da garantia de renda, permitindo o enfrentamento dos riscos de pobreza nas situações de impedimento de participação no mercado de trabalho, seja no dos serviços, se voltadas ao desenvolvimento das capacidades e ao acesso a oportunidades via ofertas de educação, saúde e cultura. Podem ainda ter papel expressivo na construção e melhoria de inclusão produtiva, seja frente aos riscos inerentes a um mundo do trabalho em rápida transformação,

seja face à população trabalhadora ainda inserida em atividades precárias e de baixa produtividade. Desnecessário, por evidente, avançar no argumento de vínculo entre políticas sociais e desenvolvimento. Mas talvez o impacto mais relevante da proteção ancorada em direitos universais seja que, ao reconhecer certos padrões de igualdade referentes a condições de vida, seguranças e oportunidades, e ao manter em negociação permanente o seu conteúdo, as políticas sociais operam na contramão de heterogeneidades, hierarquias e desigualdades. Afirmam, assim, conteúdos no campo do que é comum e do que é coletivo. E é neste campo que valores e vivências podem afirmar uma sociedade, uma sociabilidade que vá além dos indivíduos e suas diferenças. Neste sentido, uma agenda de reformas se impõe, mas certamente não a do constrangimento das generosas possibilidades que nos delegou a proteção social desenhada pela Constituição de 1988. Mais do que uma alternativa, este parece ser o único caminho para tornar o Brasil um lugar onde a dignidade seja afirmada e permita tanto a confiança no futuro como o usufruto e o convívio social. E não apenas para os pobres, mas para todos aqueles que não podem ou não pretendem viver em Miami.

BIBLIOGRAFIA

ATKINSON, Anthony. Inequality- what can be done ? Harvard University Press, Cambridge, 2015.

CASTEL, Robert. L’ insécurité sociale. Paris, Seuil, 2003.

OCDE. Le Point sur les dépenses sociales. OCDE, novembre 2014

ROSANVALLON, Pierre. La société des égaux. Paris, Ed Seuil, 2011.

Neste sentido, uma agenda de reformas se impõe, mas certamente não

a do constrangimento das generosas possibilidades que nos delegou a proteção social desenhada pela Constituição

de 1988. Mais do que uma alternativa, este parece

ser o único caminho para tornar o Brasil um lugar onde

a dignidade seja afirmada e permita tanto a confiança no futuro como o usufruto

e o convívio social. E não apenas para os pobres, mas para todos aqueles que não podem ou não

pretendem viver em Miami.

A DESIGUALDADE E A POLÍTICA SOCIAL NO DEBATE SOBRE REFORMA FISCAL

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As conquistas do movimento social das décadas de 1970 e 1980 contrariaram os interesses dos detentores da riqueza. Em grande medida, isso se devia ao fato de que mais de 10% do gasto público federal em relação ao PIB passou a ser vinculado cons-titucionalmente à Seguridade Social. Desde a Assembleia Nacional Constituinte até os dias atuais, esses setores desenvolvem ativa campanha difamatória e ideológica orientada para “demonizar” a Seguridade Social e, especialmente, o seu segmento da Previdência Social, cujo gasto equivale a 8% do PIB.

A Previdência social não tem déficit1

Eduardo FagnaniProfessor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit/IE-Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Política Social – Caminhos para o Desenvolvimento (www.plataformapoliticasocial.com).

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Nesta campanha prepondera o vale--tudo para recapturar esses recursos. Em flagrante confronto com a Constituição da República, especialistas esforçam-se para “comprovar” a inviabilidade financeira da Previdência, para justificar nova etapa de retrocesso nesses direitos.

O objetivo deste artigo é assinalar que não existe déficit na previdência, caso seja considerado o que a Constituição da Repú-blica Federativa do Brasil manda fazer e o modo como determina que sejam execu-tados os procedimentos.

O modelo tripartite de finaciamento da Seguridade

A Seguridade Social é ao mesmo tempo o

mais importante mecanismo de proteção social do País e um poderoso instrumento do desenvolvimento. Além de transfe-rências monetárias para a Previdência Social (Rural e Urbana), contempla a oferta de serviços universais proporcio-nados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), pelo Sistema Único de Segu-rança Alimentar e Nutricional (Susan) e pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), com destaque para o programa seguro-desemprego.

Para financiar a Seguridade Social (artigo 194 da Constituição Federal), os consti-tuintes de 1988 criaram o Orçamento da Seguridade Social (artigo 195) um conjunto de fontes próprias, exclusivas e dotadas de uma pluralidade de incidência. As contri-buições sociais pagas pelas empresas sobre a folha de salários, o faturamento e lucro,

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e as contribuições pagas pelos trabalha-dores sobre seus rendimentos do trabalho integram esse rol exclusivo de fontes do Orçamento da Seguridade Social, com destaque para:

• Receitas da Contribuição previden-ciária para o Regime Geral da Previdência Social (RGPS) pagas pelos empregados e pelas empresas;

• Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL);

• Contribuição Social Para o Financia-mento da Seguridade Social, cobrada sobre o faturamento das empresas (Cofins);

• Contribuição para o PIS/Pasep para financiar o Programa do Seguro-Desem-prego e para financiar os programas de desenvolvimento do BNDES, igualmente cobrada sobre o faturamento das empresas;

• Receitas das contribuições sobre concurso de prognósticos e as receitas próprias de todos os órgãos e entidades que participam desse Orçamento.

Destaque-se que a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL) e a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social, cobrada sobre o faturamento das empresas (Cofins) foram criadas pelos constituintes em 1988 para financiar os benefícios típicos da Seguridade Social (Previdência Rural, Benefício de Prestação Continuada e SUS, público, gratuito e universal). Essas contri-buições estavam previstas no documento “Esperança e mudança: uma proposta de

governo para o Brasil” (PMDB, 1982).

Com o Orçamento da Seguridade Social, os constituintes estabeleceram o meca-nismo de financiamento tripartite clássico (trabalhador, empresa e governo, através de impostos) dos regimes de Welfare State.

Estudos realizados pelo IPEA (2006) demonstram que para um conjunto de quinze países da OCDE, em média, os gastos com a Seguridade Social repre-sentam 27,3% do PIB e são financiados por 38% da contribuição dos empregadores; 22% pela contribuição dos empregados; e 36% da contribuição do governo (através de impostos gerais pagos por toda a sociedade). Em cinco países (Dinamarca, Irlanda, Luxemburgo, Reino Unido e Suécia), a participação do governo é rela-tivamente mais elevada.

No Brasil, a contribuição estatal que deve integrar essas contas é muito pequena. Em 2012, de um total de R$ 317 bilhões utilizados para pagar benefícios previden-ciários, as contribuições exclusivamente previdenciárias (empresas e trabalha-dores) somaram R$ 279 bilhões (88% do total). A parcela estatal propriamente dita seria de apenas 12%, um montante muito inferior à terça parte (33%) que caberia numa conta tripartite.

Se nessa conta fossem consideradas as renúncias fiscais, outros R$ 22 bilhões comporiam as receitas previdenciárias, cabendo ao Tesouro tão somente comple-mentar 5% do total das despesas previden-ciárias. Uma conta insignificante, de R$ 16 bilhões, 0,33% do PIB (ANFIP, 2013).

A PREVIDÊNCIA SOCIAL NÃO TEM DÉFICIT.

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Por tanto, os constituintes de 1988 seguiram a experiência internacional clássica e ratificaram o sistema tripartite introduzido por Getúlio Vargas na década de 1930 e seguido desde então, inclusive pela ditadura civil e militar.

Os reformadores de 1988 vincularam cons-titucionalmente recursos do Orçamento da Seguridade Social, para evitar uma prática corrente na Ditadura Militar: a captura, pela área econômica, de fontes de finan-ciamento do gasto social. Naquela época, em vez de a política econômica financiar a política social, a política social financiava a política econômica. Aquela lógica inver-tida assim continuou (invertida) pelos governos democráticos a partir de 1990.

“Déficit” e Contribuição do Governo

Desde 1989 nunca se cumpriu rigorosa-mente o que reza a Constituição da Repú-blica, no que diz respeito aos princípios da Organização, Financiamento e Controle Social da Seguridade Social (consultar FAGNANI E TONELLI VAZ, 2013). Como mencionado, o artigo 194 da Constituição Federal declara que a Previdência Social é parte integrante da Seguridade Social e conta com recursos do Orçamento da Seguridade Social (artigo 195).

Contrariamente ao que determina a Cons-tituição os Poderes Executivo (MPAS, MPOG, MF e BC) e Legislativo não consi-deram a Previdência como parte da Segu-ridade Social. Desde 1989, o MPAS adota

critério contábil segundo o qual a susten-tação financeira da Previdência depende exclusivamente das receitas próprias do setor. Esse critério leva, inexoravelmente ao “déficit” do Regime Geral de Previdência Social (Urbano e Rural).

Essa prática contábil só serve, unicamente, para criar, alardear um falso déficit e justi-ficar mais ‘reformas’ com corte de direitos. São invencionices, pois desconsideram os artigos 165, 194, 195 e 239 da Constituição da República.

A Seguridade Social é Superavitária

O governo jamais organizou a Seguri-dade Social e apresentou o Orçamento da Seguridade como ordenam os dispositivos constitucionais mencionados. Alguns espe-cialistas (GENTIL, 2007) e instituições têm desenvolvido esforço metodológico nesse sentido. Esses estudos revelam que o Orçamento da Seguridade Social sempre foi superavitário. Em 2012, por exemplo, apresentou saldo positivo de R$ 78,1 bilhões (as receitas totalizaram R$ 590,6 bilhões e as despesas atingiram R$ 512,4 bilhões) (ANFIP, 2013)(Tabela 1).

Portanto, à luz da Constituição da Repú-blica, não há como se falar em “déficit” na Previdência Social. Na verdade, sobram recursos que são utilizados em finalidades não previstas na lei. Assim, como ocorria na ditadura, a Seguridade Social continua a financiar a política econômica.

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TABELA 1: RECEITAS, DESPESAS E RESULTADO DO ORÇAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL 2008 A 2012. Fonte: : ANFIP (2013)

Notas: (1) Apenas a receitas previdenciárias líquidas; (2) acrescidas das compensações pela desoneração da folha, sendo R$ 1,7 bilhão transferido pelo Tesouro e R$ 2,4 bilhões de compensações não repassadas; (3) A CPMF foi extinta em 2007, as arrecadações posteriores referem-se a fatos geradores ocorridos antes; (4) inclui contribuições sobre concursos de

prognósticos; (5) corresponde às despesas com Encargos Previdenciários da União – anistia e outras indenizações; (6) Inclui as despesas de pessoal ativo e todas as demais despesas de custeio e investimento. Fonte: SIAFI. – extração Siga Brasil e para os dados do RGPS, o fluxo de caixa do MPS.

A PREVIDÊNCIA SOCIAL NÃO TEM DÉFICIT.

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Captura de Recursos da Seguridade Social

O Orçamento da Seguridade Social tem-se mantido superavitário, mesmo com a insti-tuição da atual Desvinculação das Receitas da União (DRU), em 1994, que captura 20% dessas receitas para serem aplicadas livre-mente pela área econômica. Com subtração de recursos e com muitas manobras que inflavam artificialmente as despesas, fizeram da Seguridade uma importante fonte para o ajuste fiscal do período. Só em 2012, a DRU retirou da Seguridade Social R$ 52,6 bilhões. O acumulado, só para o período 2005-2012, totaliza mais de R$ 286 bilhões (ANFIP, 2013).

Da mesma forma, o Orçamento da Seguri-dade Social tem-se mantido superavitário

mesmo com o aprofundamento da polí-tica de concessão de isenções fiscais para setores econômicos selecionados iniciado nos anos de 1990, quando, por exemplo, o setor do agronegócio foi isentado de contribuir para a Previdência Rural. Essa política foi aprofundada a partir de meados da década passada. Em 2012, as isenções tributárias concedidas sobre as fontes da Seguridade Social (CSLL, PIS/Pasep, Cofins e Folha de Pagamento) totalizaram R$ 77 bilhões (1,7% do PIB). Em 2013 a ANFIP previa que elas atingiriam 2,7% do PIB no ano seguinte (ANFIP, 2013).

Assim como a DRU, esse processo também deprime o superávit da Seguridade Social e poderá comprometer sua sustentação financeira no futuro.

A PREVIDÊNCIA SOCIAL NÃO TEM DÉFICIT.

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A Previdência é parte da Seguridade Social

Em 1988, a sociedade concordou em asse-gurar proteção à velhice para milhões de trabalhadores rurais que começaram a trabalhar nas décadas de 1940, sem registro na carteira e em condições de semiescra-vidão. Houve naquele momento um pacto social para resgatar uma injustiça histórica cometida contra esse segmento.

Por outro lado, a Carta de 1988 fixou uma contribuição com base muito limitada para financiar o estoque de trabalhadores rurais e o fluxo de novos beneficiários. Essa base de contribuição é ainda mais restringida pelas isenções fiscais dadas ao agrone-gócio exportador (Emenda Constitucional 33/1997). Entretanto a COFINS e a CSLL, criadas em 1988, suprem o finaciamento deste benefício típico da seguridade. Essas contribuições foram instituídas para que o estado cumpra sua parte no sistema tripartite.

Em suma, à luz da Constituição da Repú-blica, não se pode considerar a Previ-dência Social apartada da Seguridade Social. Mais especificamente, não se pode excluir o financiamento da Previdência Social (Rural e Urbana) do conjunto de fontes que integram o Orçamento da Seguridade Social que sempre foi supe-ravitário. Portanto, não há como se falar em “déficit” na Previdência Social.

Nas contas dos resultados financeiros do RGPS apresentados pelo MPAS, além da devida e pronta compensação das

renúncias, é necessário acrescer a contri-buição do Estado, para complementar a base de financiamento tripartite do modelo. Se as contas da previdência social fossem assim apresentadas, o mito do déficit estaria desmascarado.

NOTAS

1 Artigo escrito para o projeto “ Política, Planejamento e Gestão das Regiões e Redes de Atenção à Saúde no Brasil” (Região e Redes – Caminho para a Universalização da Saúde no Brasil). Baseado em Fagnani e Tonelli Vaz (2013).

REFERÊNCIAS

ANFIP (2013). Análise da Seguridade Social 2012. Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil e Fundação ANFIP de Estudos da Seguridade Social – Brasília: ANFIP, 2013, 131 p.

FAGNANI, E. e TONELLI VAZ, F. (2013). Seguridade social, direitos constitucionais e desenvolvimento. In: FAGNANI. E. & FONSECA, A (ORG). (2013 - B). Políticas sociais, universalização da cidadania e desenvolvimento: educação, seguridade social, infraestrutura urbana, pobreza e transição demográfica. São Paulo, Fundação Perseu Abramo (ISBN, 978-85-7643-178-7).

GENTIL, Denise, L. (2007) Política econômica e Seguridade Social no período pós-1994. Carta Social e do Trabalho, n.7. Campinas: Instituto de Econômica da Unicamp: Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho. Publicação eletrônica (www.eco.unicamp.br)

IPEA (2006). Brasil – o estado de uma nação – mercado de trabalho, emprego e informalidade. Tafner, P (editor). Brasília: Ipea.

PMDB (1982). Esperança e mudança: uma proposta de governo para o Brasil. Revista do PMDB, ano II, n. 4. Rio de Janeiro: Fundação Pedroso Horta.

A PREVIDÊNCIA SOCIAL NÃO TEM DÉFICIT.

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A S D E M A N D A S S O C I A I S D A D E M O C R A C I A N Ã O C A B E M N O O R Ç A M E N T O ? ( PA R T E I I )

Um sistema de saúde, objeto de políticas públicas, apresenta um conjunto de áreas--problema tais como infraestrutura, gestão, organização, financiamento e modelo de atenção. Contudo, na presente conjuntura, questão do financiamento da saúde adquire proeminência, diante dos retrocessos impostos à Seguridade Social no Brasil. Na realidade, a instabilidade e a insuficiência do financiamento impostas ao SUS pelos diversos governos do pós-1988 inviabi-lizaram, até o presente, a construção de um sistema universal de saúde a partir da concepção de Seguridade Social expressa

Jairnilson Silva PaimProfessor titular no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenador do Grupo de Pesquisa em Planificação, Gestão e Avaliação em Saúde.

Seguridade social, financiamento e crise

do Sistema Único de Saúde (SUS)

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Foto: CCO

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A S D E M A N D A S S O C I A I S D A D E M O C R A C I A N Ã O C A B E M N O O R Ç A M E N T O ? ( PA R T E I I )

na Constituição da República.

No Brasil, a estrutura tributária iníqua, o exorbitante pagamento de juros da dívida pública e as modificações da legis-lação desde a Emenda Constitucional 29 de 2001 são determinantes fundamen-tais do subfinanciamento do SUS. Além disso, manobras de parlamentares e de governos reproduzem desigualdades na alocação, transferência e aplicação dos recursos obtidos. Mesmo o dispositivo constitucional que permitiria taxar as grandes fortunas no Brasil jamais foi regulamentado.

Apesar de toda a gritaria de empresários e da reverberação do “impostômetro” pela mídia, quem mais paga impostos no Brasil, proporcionalmente, são os mais pobres e justamente os mais prejudicados no acesso e qualidade dos serviços públicos, inclusive no SUS. E a desoneração fiscal para empresas, assegurada pelo governo nos últimos anos, comprometendo fontes de financiamento da Seguridade Social (PIS/PASEP, Cofins, CSLL, folha de paga-mento, etc.), só fez reduzir recursos para os serviços sociais, como o financiamento do SUS.

Do mesmo modo, a Desvinculação das Receitas da União (DRU) tem permitido que o governo federal retire 20% do orçamento para outros fins. Só em 2012 a DRU seques-trou a quantia de R$ 52,6 bilhões da Segu-ridade Social, acumulando para o período 2005-2012 uma apropriação indevida de mais de R$ 286 bilhões (FAGNANI, 2014). E esta sangria de recursos não para por aí, embora o prazo de vigência da EC 68/11,

aprovada no Governo Dilma, se encerre no final deste ano. O Executivo enviou Projeto de Emenda Constitucional (PEC 87/15) para o Congresso Nacional visando a pror-rogar a DRU até 31/12/2023, aumentando a desvinculação para 30% (SCAFF, 2015).

No caso do SUS, a situação do financia-mento não melhorou nos anos de 2014 e 2015. De acordo com a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) o valor total do orça-mento destinado aos gastos do governo federal em 2014 correspondia a R$ 2,5 trilhões, dos quais R$ 1,8 trilhão vincula-va-se ao orçamento fiscal, seguridade social e investimento de empresas estatais. Já R$ 654,7 bilhões foram reservados aos bancos para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública, enquanto que para a saúde foram previstos R$ 106 bilhões, ou seja, seis vezes menos que o apropriado pelos banqueiros e rentistas (RADIS, 2014). Entre 1995-2014, o gasto do Ministério da

É neste contexto que, hibernados por mais de

uma década de crescimento econômico, os terroristas do mercado ressuscitaram, pois se abriu uma nova temporada

de oportunidades para dar sequência a um processo iniciado há mais de duas décadas, de aprofundar o projeto liberal no Brasil.

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SEGURIDADE SOCIAL, F INANCIAMENTO E CRISE DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)

Saúde (MS) com ações e serviços mante-ve-se em torno de 1,7% do PIB, enquanto o pagamento feito de juros da dívida pública representou em média 6,5% do PIB nesse período (MENDES, 2015).

Estudos indicam que o governo deixou de arrecadar R$ 327,17 bilhões a título de desonerações e subsídios para os empre-sários, valor muito maior que aquele destinado a saúde e educação (R$ 197,74 bilhões). Somente para as montadoras as desonerações cresceram 38,68% acima da inflação entre 2011 e 2014 (RADIS, 2014). O Governo federal deixou de arrecadar em 2014 apenas em contribuições sociais R$ 136,5 bilhões, recursos que deveriam ser destinados à Seguridade Social e,

consequentemente, ao SUS (RADIS, 2015).

Assim, a participação relativa da União no financiamento do SUS vem decrescendo, sistematicamente, passando de 72% em 1993 para 42,93% em 2013 (CONASS, 2015). Portanto, as contradições verificadas no financiamento da saúde no Brasil vincu-lam-se, em última instância, às injustiças produzidas pela estrutura tributária e por uma dívida pública nunca auditada. Entidades como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Associação Brasileira de Economia em Saúde (Abres) e Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) indicam as raízes do subfinancia-mento da saúde e têm apostado em algumas alternativas. Portanto, enfrentar a questão

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A S D E M A N D A S S O C I A I S D A D E M O C R A C I A N Ã O C A B E M N O O R Ç A M E N T O ? ( PA R T E I I )

do financiamento do SUS implica pensar e agir para além do setor saúde.

O agravamento da crise econômica, a ameaça de uma crise social e as dificul-dades políticas desde o processo eleitoral de 2014 reforçam um cenário pessimista, sobretudo diante do ajuste fiscal, do aumento da taxa de juros e das restrições do apoio da base parlamentar do governo Dilma, conduzindo a economia à recessão.

Enfim, o balanço das forças políticas e ideo-lógicas em relação à Reforma Sanitária Brasileira (RSB) e à defesa do SUS é muito assimétrico. A favor do SUS encontram-se técnicos, pesquisadores, trabalhadores de saúde e intelectuais vinculados ao Cebes,

Abrasco, Abres, dentre outras entidades, movimentos sociais e segmentos dos partidos PSOL, PT, PC do B, PCB, PDT, PSB, PSTU, Rede, dentre outros.

E permanecem contra a RSB e o SUS o empresariado da saúde, articulado ao capital financeiro (operadoras de planos de saúde) e ao capital industrial (medica-mentos, equipamentos, kits diagnósticos, descartáveis, etc.), a mídia, a publicidade, o Banco Mundial e outros organismos internacionais, corporações profissionais, oligarquias, setores clientelistas e fisioló-gicos, além dos partidos de direita, mesmo com nomes simpáticos como “democrata”, “republicano”, “progressista”, “cristão”, “solidariedade”, etc.

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A análise da conjuntura reforça o que se vinha alertando nos últimos anos em artigos e entrevistas sobre a crise do SUS. A crueza dos fatos produzidos desde o final de 2014 ilustra a gravidade da situação atual: está em curso uma subversão do projeto constitucional para a saúde. Esta é a conclusão da Abrasco e de outras entidades do movimento da RSB que defendem um SUS público, universal e igualitário quando formularam a seguinte pergunta:

“A quem interessa fragmentar os usuários do SUS, subfinanciar o sistema, abrir a assistência médica ao capital estrangeiro, tudo numa só tacada, sem diálogo com seus usuários, os movimentos populares de saúde, os estudiosos e os pesquisadores da Saúde Coletiva, os conselhos de saúde, os trabalhadores do SUS?” (ABRASCO et al., 2015)

Certamente não é apenas um deputado nefasto que insiste em permanecer no poder. É a intervenção via legislativo de operadoras de planos privados de saúde que financiaram as campanhas das eleições de 2014, especialmente a operadora vincu-lada a um dos maiores bancos brasileiros que tem “presença” em todos os muni-cípios e na área econômica do governo. A “presença” do titular do Ministério da Fazenda deixa na política de ajuste e no contingenciamento de recursos para o SUS a marca do seu banco original, pois como filho pródigo retornará à casa paterna depois do “estágio” na burocracia federal já cacifado com o “treinamento em serviço” e após um rápido período de quarentena formal. É o transformismo de sujeitos polí-ticos que fragiliza a luta dos trabalhadores,

sacrificando o atendimento das neces-sidades e direitos sociais da maioria da população brasileira. Enfim, é o capital financeiro que não aparece nos noticiários, mas se manifesta através da mídia quando denuncia as mazelas do SUS e defende a manutenção da DRU, restringindo as políticas sociais no Brasil.

Portanto, é a luta política de todos que sofrem as consequências trágicas desse modelo econômico e da sua configuração no projeto mercantilista da saúde em curso que tem a potencialidade de alterar a corre-lação de forças e o binômio da conservação--mudança da revolução passiva brasileira.

REFERÊNCIAS

ABRASCO, ABRS, AMPASA, APSP, CEBES, IDISA, REDE UNIDA, SBB. Em defesa do SUS universal e igualitário. A PEC 451 viola o direito à saúde e promove a segmentação do SUS. 2015.

CONASS. Carta à Nação. João Pessoa, Paraíba, 10 de junho de 2015.

FAGNANI, E. Fragmentação da luta política e agenda de desenvolvimento: notas e provocações para impulsionar o debate. Texto para Discussão # Plataforma Política Social. (Texto elaborado como contribuição para o debate promovido pelo Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, integrado por várias entidades que historicamente atual em defesa da Saúde Coletiva no Brasil).s/l, 16 de junho de 2014.17p.

MENDES, A. Por trás do ajuste fiscal o que se tem é menos saúde. www.cebes.org.br (Acesso em 19/6/2015).

RADIS, 137, fevereiro 2014. www.ensp.fiocruz.br/radis

RADIS 150, março de 2015 www.ensp.fiocruz.br/radis

SCAFF, F.F. A DRU, os direitos sociais e o pagamento dos juros da dívida. www.abrasco.org.br (acesso em 22/7/2015)

SEGURIDADE SOCIAL, F INANCIAMENTO E CRISE DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)

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A S D E M A N D A S S O C I A I S D A D E M O C R A C I A N Ã O C A B E M N O O R Ç A M E N T O ? ( PA R T E I I )

A Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo capítulo no processo histórico de construção de um sistema de proteção social e de garantia de renda no Brasil. Ao incorporar o conceito de Seguridade Social como princípio organizador da proteção social brasileira, a Carta Magna procurou articular as políticas de previ-dência social, assistência social, saúde e seguro-desemprego, ampliando considera-velmente o acesso a estas políticas e dotan-do-as de novas formas de gestão – mais

Tiago Oliveira Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo IE/UNICAMP.

Alexandre FerrazDoutor em Ciência Política pela FFLCH/USP.

Programa Seguro-desemprego:

qual a reforma necessária?

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A S D E M A N D A S S O C I A I S D A D E M O C R A C I A N Ã O C A B E M N O O R Ç A M E N T O ? ( PA R T E I I )

descentralizadas e com maior participação social –, assim como de orçamento próprio com fontes exclusivas e diversificadas de financiamento. Assim, pode-se dizer que a Constituição de 1988 formatou as bases de um sistema de proteção social de vocação universal, com o que redefiniu o alcance da cidadania no país, conforme sugerem Delgado, Jaccoud e Nogueira (2009).

O Programa Seguro-desemprego foi criado em 1986, pelo Decreto-lei nº 2.284, no contexto do Plano Cruzado e da centra-lidade do combate à inflação no debate econômico e na agenda governamental.1 No mercado de trabalho, contribuíram para

o seu surgimento as oscilações do desem-prego em sintonia com os ciclos econô-micos da década de 1980, o que, em alguns momentos, provocou um deslocamento do seu nível para patamares elevados, e o crescimento da informalidade, alimentado pela dificuldade do trabalhador demitido em transitar para uma situação de desem-prego aberto.

A Constituição Federal de 1988 reconheceu o seguro-desemprego como direito social do trabalhador submetido a situação de desemprego involuntário, ao tempo que estabeleceu as fontes de seu financiamento, o PIS – Programa de Integração Social – e

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PROGRAMA SEGURO-DESEMPREGO: QUAL A REFORMA NECESSÁRIA?

o Pasep – Programa de Formação do Patri-mônio do Servidor Público, posteriormente regulamentadas pela Lei nº 7.998/90, que criou o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Nesse quesito, convém destacar que o texto constitucional prevê ainda a

criação de uma contribuição adicional para as empresas que apresentam índices de rotatividade superiores à média do setor (Art. 239, § 4º). Este dispositivo, até o momento não regulamentado, teria o duplo benefício de desincentivar a rotatividade no mercado de trabalho e de dar maior sustentabilidade financeira ao programa.

O fato é que a Constituição Federal de 1988 lançou as bases para a edificação de um sistema público de emprego no Brasil, tal como hoje ele se organiza.

Nos anos seguintes, o universo potencial de beneficiários do seguro-desemprego foi ampliado para além do público-alvo tradicional, ou seja, o trabalhador desem-pregado demitido sem justa causa. Em 1992, passaram a fazer jus ao benefício os pescadores artesanais impedidos de exercer a sua atividade profissional durante o período de defeso. Em 1999, instituiu-se a bolsa de qualificação profissional, bene-fício voltado para trabalhadores que têm o seu contrato de trabalho suspenso, mediante acordo ou convenção coletiva, e que frequentam cursos de qualificação profissional oferecido pelo empregador. Em 2001, as empregadas domésticas foram incorporadas ao universo de beneficiá-rias potenciais do seguro-desemprego.2. Dois anos mais tarde, em 2003, foi criado o seguro-desemprego para o trabalhador resgatado de regime de trabalho forçado ou da condição análoga à do escravo.

Reconhecer os aludidos avanços não implica desconsiderar a pouca aderência do programa a um mercado de trabalho de perfil subdesenvolvido, onde persistem altos níveis de rotatividade e informa-lidade, desemprego estrutural e baixos salários. Conforme se apontou em outra ocasião, na comparação internacional, o seguro-desemprego brasileiro possui baixas taxas de cobertura e de reposição salarial, e, principalmente, uma curta duração, insuficiente para atender o desemprego de média e de longa duração

Reconhecer os aludidos avanços não implica desconsiderar

a pouca aderência do programa a um mercado de trabalho de perfil subdesenvolvido,

onde persistem altos níveis de rotatividade e informalidade,

desemprego estrutural e baixos salários. Conforme

se apontou em outra ocasião, na comparação internacional,

o seguro-desemprego brasileiro possui baixas taxas de cobertura

e de reposição salarial, e, principalmente, uma curta

duração, insuficiente para atender o desemprego de média

e de longa duração

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A S D E M A N D A S S O C I A I S D A D E M O C R A C I A N Ã O C A B E M N O O R Ç A M E N T O ? ( PA R T E I I )

(FERRAZ; OLIVEIRA, 2015).

No período recente, a manifestação de uma aparente contradição, qual seja, a ocorrência simultânea de baixas taxas de desemprego e crescimento do número de segurados e dos benefícios pagos pelo Seguro-desemprego, motivou sucessivas revisões das regras de acesso ao benefício com o objetivo de conter a ampliação dos gastos com o programa.

Nesse sentido, destacam-se as seguintes iniciativas:

i) obrigatoriedade da participação do trabalhador desempregado em cursos de qualificação profissional5;

ii) diminuição da taxa de reposição salarial, a partir da alteração da correção das faixas usadas para calcular o valor do benefício;6

iii) aumento do tempo mínimo de vínculo empregatício exigido para o primeiro e o segundo acessos ao seguro-desemprego7 (FERRAZ; OLIVEIRA, 2015).

Salientou-se que a contradição entre baixas taxas de desemprego e crescimento dos gastos com o seguro-desemprego é somente aparente. Convém explicitar o porquê. Em primeiro lugar, é preciso entender a natureza do fenômeno da queda das taxas de desemprego no período recente. Este indicador é uma razão entre o número de desempregados, no numerador, e a popu-lação economicamente ativa, no denomi-nador. Portanto, o seu comportamento pode ser resultado de um aumento (ou diminuição) do número de desempregados,

da população economicamente ativa, ou de ambos os movimentos. Assim, uma análise mais cuidadosa das estatísticas de mercado de trabalho indica que as menores taxas de desemprego apresentadas pelo mercado de trabalho brasileiro nos anos mais recentes devem-se não tanto a uma ampliação da ocupação (que cresceu a taxas menores pós-crise de 2008), mas sim a uma queda da população economicamente ativa, ou seja, da taxa de participação.

Em segundo lugar, cumpre chamar a atenção para o fato de que as menores taxas de desemprego vieram acompanhadas por um crescimento espetacular dos vínculos empregatícios formais no mercado de trabalho. De acordo com a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), desde o início da década passada, houve uma incorporação no mercado de trabalho

Por outro lado, a taxa de rotatividade

permaneceu alta no período em tela. De acordo com

o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos

Socioeconômicos (Dieese), tal taxa, desconsiderando

os desligamentos motivados por falecimento, aposentadoria,

transferência e demissão a pedido do trabalhador, foi

estimada em 40,9% em 2003, contra 43,1% em 2014.

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formal brasileiro de aproximadamente 20 milhões de pessoas, alcançando a marca de quase 40 milhões de vínculos celetistas ativos em 2014 (Ver Gráfico 1 ao lado). A informalidade, por seu turno, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí-lios (Pnad), regrediu, no mesmo intervalo de tempo, de algo em torno de 58,0% para aproximadamente 46,0%.6

Por outro lado, a taxa de rotatividade permaneceu alta no período em tela. De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), tal taxa, desconsiderando os desligamentos motivados por falecimento, aposen-tadoria, transferência e demissão a pedido do trabalhador, foi estimada em

40,9% em 2003, contra 43,1% em 2014.

Ora, é sabido que o fato gerador primordial de exigibilidade para o seguro-desemprego é a demissão sem justa causa. A incorpo-ração de uma parcela expressiva de traba-lhadores no mercado de trabalho formal, associada à permanência de altas taxas de rotatividade e a uma política de valorização do salário mínimo (que serviu de base para o reajuste do valor do benefício até 2013), explicam, portanto, o aumento dos gastos com o Seguro-desemprego no período recente. Em outras palavras, foi o aumento do universo potencial de beneficiários que pressionou os gastos do programa, no lado das despesas, e não uma ocorrência genera-lizada de fraudes, hipótese muito aventada,

Gráfico 1 – Evolução do Seguro-desemprego Brasil – 1995/2014

0,0  

20,0  

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60,0  

80,0  

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120,0  

0  5.000.000  10.000.000  15.000.000  20.000.000  25.000.000  30.000.000  35.000.000  40.000.000  45.000.000  

1995

 

1996

 

1997

 

1998

 

1999

 

2000

 

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2002

 

2003

 

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2005

 

2006

 

2007

 

2008

 

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Segurados   Emprego  Formal  

Demi>dos  Sem  Justa  Causa   Segurados/Emprego  Formal  

Segurados/Demi>dos  Sem  Justa  Causa  

GRÁFICO 1 – EVOLUÇÃO DO SEGURO-DESEMPREGO BRASIL – 1995/2014

Fonte: Ferraz e Oliveira (2015). Obs.: O emprego formal refere-se apenas aos vínculos celetistas.

PROGRAMA SEGURO-DESEMPREGO: QUAL A REFORMA NECESSÁRIA?

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mas que carece de maiores evidências factuais. O Gráfico 1 abaixo mostra que há uma relativa estabilidade nas relações entre segurados e emprego formal e entre segurados e demitidos sem justa causa entre 1995 e 2014.

Posto isto, não há como ignorar que o FAT apresenta um desequilíbrio financeiro preocupante, ainda mais se se consideram as enormes lacunas que o sistema público de emprego ainda apresenta no Brasil. As razões para tanto devem ser buscadas, fundamentalmente, no lado das receitas que compõem o aludido fundo.

Os dados financeiros do FAT revelam que os recursos do PIS/Pasep nunca foram suficientes para cobrir os gastos com o

Abono Salarial e o Seguro-desemprego, sendo sempre necessária a sua complemen-tação com receitas financeiras próprias, provindas principalmente do patrimônio do FAT alocado no BNDES.

As receitas totais, porém, as quais, além do componente financeiro, são acrescidas de multas e juros e da receita de contribuições sindicais, sempre foram em montante adequado para financiar o Fundo, que teve aumento crescente de patrimônio até 2013. A partir de 1994, o FAT começou a perder parte expressiva das suas receitas, devido à criação do Fundo Social de Emergência (FSE), que depois se transformaria na Desvinculação de Receitas da União (DRU). Para que se tenha ideia mais precisa do impacto da DRU, estima-se que ela retirou

Desoneração PIS/Pasep 11.638,9 Petroquímica 95,6 Embarcações e Aeronaves 115,3 REPNBL-Rede 126,9 Produtos Químicos e Farmacêuticos 137,9 Construção Civil e PMCMV 157,8 Transporte Coletivo 259,3 Retaero, Reporto e Reid 387,1 Medicamentos 732,7 Programa de Inclusão Digital 952,1 Zona Franca de Manaus 1.175,5 Desoneração Cesta Básica 3.209,0 Simples Nacional 3.913,2

Arrecadação Total PIS/Pasep 51.892,8 Arrecadação Sem Desoneração 63.531,6 Fonte: Receita Federal do Brasil.

TABELA 1: DESONERAÇÃO E ARRECADAÇÃO DO PIS/PASEP EM 2014 (EM MILHÕES DE R$)

Fonte: Receita Federal do Brasil.

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do FAT, entre 1995 e 2014, cerca de R$ 150,0 bilhões em termos reais, dos quais R$ 60,0 bilhões seriam repassados para o BNDES, conforme estipulado em lei, devendo poste-riormente render remuneração financeira anual igual a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP).

A perda de arrecadação com a DRU é, portanto, o principal fator da crise financeira do fundo. O PIS/Pasep é uma

contribuição para fins específicos e não deveria ter seus recursos dirigidos para outras finalidades. Não é possível saber a destinação dos recursos originariamente devidos ao fundo, mas pode-se imaginar que contribuíram duplamente para a composição do superávit primário, uma vez que a parcela destinada ao BNDES é contabilizada na dívida líquida do setor público.

Ademais, o FAT também vem perdendo expressivas somas de recursos devido às desonerações fiscais, que atingem dire-tamente a arrecadação proveniente do PIS/Pasep. Tais desonerações, vale dizer, tiveram um peso pequeno até 2003, quando passaram a crescer de forma substancial – cerca de 32% ao ano –, passando de R$ 930 milhões naquele ano, para R$ 11,6 bilhões em 2014 (Tabela 1). A partir de 2008, as desonerações com o PIS-Pasep passaram a equivaler a uma nova DRU por ano, ampliando a frustração de receitas do FAT.

O valor desonerado, desde 2003, passa dos R$ 74,0 bilhões, sem contar a receita com a remuneração financeira dos recursos incorporados ao patrimônio do fundo. A Tabela 1 traz os grandes números da desoneração. Os dez grupos destacados respondem por cerca de 97,0% do valor desonerado. É importante ressaltar que boa parte dos grupos desonerados, com destaque para as empresas do Simples, respondem por grande parte dos gastos com o seguro-desemprego.

Em suma, o crescimento dos gastos com o Programa Seguro-desemprego

Em suma, o crescimento dos gastos com o Programa Seguro-

desemprego acompanhou o processo de formalização do

mercado de trabalho brasileiro. Desta forma, a formalização estendeu direitos vinculados

à “carteira de trabalho” a um enorme contingente de

trabalhadores pouco protegidos socialmente. Por outro lado, o FAT vem sendo privado ano a ano dos recursos que lhes são de direito, combalindo a sua

capacidade de financiamento das ações do sistema público de

emprego, justamente quando esses direitos estão sendo

expandidos. Tal situação pode se agravar a partir deste ano,

com a alta acelerada das taxas de desemprego.

PROGRAMA SEGURO-DESEMPREGO: QUAL A REFORMA NECESSÁRIA?

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A S D E M A N D A S S O C I A I S D A D E M O C R A C I A N Ã O C A B E M N O O R Ç A M E N T O ? ( PA R T E I I )

acompanhou o processo de formalização do mercado de trabalho brasileiro. Desta forma, a formalização estendeu direitos vinculados à “carteira de trabalho” a um enorme contingente de trabalhadores pouco protegidos socialmente. Por outro lado, o FAT vem sendo privado ano a ano dos recursos que lhes são de direito, comba-lindo a sua capacidade de financiamento das ações do sistema público de emprego, justamente quando esses direitos estão sendo expandidos. Tal situação pode se agravar a partir deste ano, com a alta acele-rada das taxas de desemprego.

As mudanças recentes nas regras de acesso

ao seguro-desemprego tiveram como mote apenas preocupações de ordem fiscal. Tal programa contudo, quando devidamente estruturado, é importante por pelo menos três razões: atua como estabilizador auto-mático dos ciclos econômicos, ao repor uma parcela da renda do trabalhador demitido; permite a especialização da mão de obra, a retenção de competências e o aumento da produtividade do trabalho; e influencia o estabelecimento de um piso salarial no mercado de trabalho, dificultando abertura muito expressiva do leque salarial.

Iniciativas que visassem a uma maior integração das ações do sistema público

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de emprego, notadamente o seguro-desem-prego, a intermediação de mão de obra e a qualificação profissional, aumentariam a eficácia, a eficiência e a efetividade do sistema, ao tempo que inibiriam as práticas fraudulentas. Na ótica dos trabalhadores e das organizações que os representam, o caminho desejado para o FAT é o do forta-lecimento do fundo, com o fim do alcance da DRU sobre os recursos do PIS/Pasep e uma compensação pela perda de recursos com as desonerações, quiçá sua completa revisão.

O desafio das políticas de mercado de trabalho a partir da recomposição finan-ceira do fundo é o de aperfeiçoar os instrumentos de política ativa, como a intermediação de mão de obra e a qualifi-cação profissional, e sua integração com as demais políticas, ditas passivas. Estas devem ter a devida sustentação financeira para suportar novos avanços na forma-lização das relações de trabalho – ainda muito baixa para os padrões internacio-nais –, amparando o desemprego de longa duração, e vir acompanhadas de medidas que efetivamente combatam os altos níveis de rotatividade ainda presentes no mercado de trabalho brasileiro.

NOTAS

1 Houve tentativas anteriores de implementação de um seguro-desemprego no país. A primeira delas foi em 1965, a partir da Lei nº 4.923/65, não obstante a Constituição de 1946 já previsse uma assistência ao trabalhador desempregado.

2 Inicialmente, o pagamento do benefício estava condicionado ao recolhimento do FGTS por parte do empregador. A partir da publicação da Lei Complementar nº 150/2015 e da sua posterior regulamentação pelo Codefat (Conselho Deliberativo do FAT), o recebimento do benefício não mais depende desta condicionalidade, ainda que não tenha sido equiparado ao seguro-desemprego recebido pelo trabalhador dispensado sem justa causa.

3 Em 2012, tal exigência abrangeu os trabalhadores que requereram o benefício pela terceira vez, e, em 2014, estendeu-se esta obrigatoriedade para aqueles que requereram o seguro já na segunda vez. A esse respeito, ver a Lei nº 12.513/2011, regulada pelo Decreto nº 7.721/2012 e o Decreto nº 8.118/2013.

4 Optou-se pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) em substituição a um reajuste equivalente ao do salário mínimo. Ver Resolução do Codefat nº 707 de 10 janeiro de 2013.

5 Para o primeiro acesso, a exigência passou de um mínimo de 6, para 12 meses. Já no segundo, passou de 6, para 9 meses. Ver Lei nº 13.134/2015.

6 A taxa de informalidade aqui considerada é expressa pela seguinte relação: (empregados sem carteira + trabalhadores por conta própria) / (trabalhadores protegidos + empregados sem carteira + trabalhadores por conta própria). Informação obtida no Ipeadata.

BIBLIOGRAFIA

DELGADO, Guilherme: JACCOUD, Luciana; NOGUEIRA, Roberto. Seguridade social: redefinindo o alcance da cidadania. Políticas Sociais – Acompanhamento e análise. BRASILA: Ipea, 17, vol. 1, 2009.

FERRAZ, Alexandre; OLIVEIRA, Tiago. Mercado de Trabalho e Programa Seguro-desemprego: Uma Análise Comparativa entre o Brasil e Países Selecionados da OCDE. XIV Encontro Nacional da ABET. Campinas. Anais ABET, 2015.

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