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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP ALBERTO CAETANO PORTUGAL As Contradições do Pós-Fordismo: A Insustentável Leveza do Trabalho Imaterial na Produção de Software MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS SÃO PAULO 2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

ALBERTO CAETANO PORTUGAL

As Contradições do Pós-Fordismo: A Insustentável Leveza do

Trabalho Imaterial na Produção de Software

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO

2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

ALBERTO CAETANO PORTUGAL

As Contradições do Pós-Fordismo: A Insustentável Leveza do

Trabalho Imaterial na Produção de Software

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora do Programa de Pós-Graduação

em Ciência Sociais da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência parcial

para a obtenção do título de Mestre em Ciência

Sociais, sob a orientação da Profa. Dra.

Rosemary Segurado.

SÃO PAULO

2017

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BANCA EXAMINADORA:

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DEDICATÓRIA

A todos os trabalhadores imateriais, especialmente os professores, que

cumprem um papel fundamental na construção de uma sociedade mais livre,

esclarecida, igualitária, democrática, inclusiva, e que apesar disso, notadamente

em nosso país, seguem recebendo um tratamento muito aquém de sua

importância.

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Agradeço a todos que fizeram parte

do processo de outorga da Bolsa CAPES

na modalidade taxa, sem a qual esse

mestrado seria inexequível.

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AGRADECIMENTO

A todos aqueles que participaram dessa pesquisa, que muito

gentilmente doaram uma parcela de seu precioso tempo para a realização das

entrevistas, evangelizadores, agile coaches e desenvolvedores. À Katia e ao

Rafael da Secretária de Pós-Graduação das Ciências Sociais, bem como aos

funcionários da biblioteca, todos sempre muito solícitos. Especialmente aos

membros da banca examinadora, Prof. Dr. Rafael Araújo e Prof. Dr. Sérgio

Amadeu que colaboraram de forma decisiva para que essa pesquisa ganhasse

um contorno final. Sobretudo, Profa. Dra. Rosemary Segurado, minha

orientadora, que com carinho e maestria soube dar direção às minhas aflições

diante das incontáveis frustrações, ansiedades, dúvidas e intuições, ao longo da

jornada do mestrado.

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“Informam-nos que as empresas têm uma

alma, o que é efetivamente a notícia mais

terrificante do mundo. ”

(Gilles Deleuze)

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RESUMO

Partindo de um olhar retrospectivo da reestruturação produtiva que marca a

passagem do fordismo ao Pós-Fordismo, da sociedade disciplinar para uma

sociedade de controle, essa pesquisa busca um aprofundamento dessa passagem

pelos estudos de Michel Foucault, e também por Hardt e Negri que situaram esse

momento como uma consolidação das empresas transnacionais. Para compreender

a produção e captura de conhecimento no contexto da sociedade de controle

neoliberal utilizamos a noção de noopolítica de Maurizio Lazzarato. O conceito de

trabalho imaterial que fundamenta a pesquisa foi inspirado nas noções de Hardt e

Negri nas quais ressaltam a mudança de perfil do trabalhador com ênfase nas

habilidades cognitivas, afetivas e comunicativas. Procura salientar a importância que

a produção de software possui na configuração do capitalismo atual, além de servir

de estudo de caso para compreender os processos de trabalho mais recentes. Para

entender de que forma tais processos se articulam com a sociedade de controle, e

com a ideologia gerencialista já presente nas empresas, possibilitando a criação de

subjetividades muito específicas, analisamos o movimento ágil no Brasil, que traz por

intermédio de suas práticas e valores uma nova forma de gestão e produção de

software. Busca, entre outros aspectos, compreender como se dá adesão de

indivíduos à valores, crenças e afetos neoliberais, tornando-se mais suscetíveis a

sociedade de controle. A pesquisa de cunho qualitativo utiliza a entrevista como

ferramenta para registrar a percepção de profissionais designados como

evangelizadores, que ocupam posição de destaque no movimento ágil.

Palavras-chave: Pós-Fordismo, trabalho imaterial, subjetividade, sociedade de

controle, ideologia gerencialista, neoliberalismo.

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ABSTRACT

Starting from a retrospective look at the productive restructuring that marks the

transition from Fordism to Post-Fordism, from disciplinary society to a control society,

this research seeks to deepen this passage through the studies of Michel Foucault,

and also by Hardt and Negri, who placed this Momentum as a consolidation of

transnational corporations. In order to understand the production and capture of

knowledge in the context of the neoliberal control society, we use the notion of no-

politics by Maurizio Lazzarato. The concept of immaterial work that underlies the

research was inspired by the notions of Hardt and Negri in which they emphasize the

change of the profile of the worker with emphasis on the cognitive, affective and

communicative abilities. It tries to emphasize the importance that the production of

software has in the configuration of current capitalism, besides serving as a case study

to understand the latest work processes. In order to understand how these processes

are articulated with the control society, and with the managerialist ideology already

present in the companies, making possible the creation of very specific subjectivities,

we analyze the agile movement in Brazil, which brings through its practices and values

a New way of managing and producing software. It seeks, among other aspects, to

understand how individuals give themselves to the values, beliefs and neoliberal

affections, becoming more susceptible to the control society. Qualitative research uses

the interview as a tool to register the perception of professionals designated as

evangelizers, who occupy a prominent position in the agile movement.

Keywords: Post-Fordism, immaterial labor, subjectivity, control society, managerialist

ideology, neoliberalism.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Método Waterfall............................................................................. 90

Figura 2 - Scrum Framework ........................................................................ 113

Figura 3 - Quadro Kanban ............................................................................ 116

Figura 4 - Reunião Diária .............................................................................. 117

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Comparação entre Paradigmas de Métodos .................................. 92

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SUMÁRIO

Introdução ....................................................................................................... 13

1.1 Exploração em moto continuo .................................................................. 27

1.2 Fordismo ................................................................................................... 33

1.3 Keynesianismo ......................................................................................... 36

1.4 Pós-Fordismo ........................................................................................... 42

2.1 Da sociedade disciplinar à sociedade de controle .................................... 55

2.2 Sociedade de controle .............................................................................. 61

2.3 Trabalho imaterial ..................................................................................... 69

2.4 O homo credor e a vida como dívida ........................................................ 74

3.1 Introdução aos métodos ágeis e contexto histórico .................................. 85

3.2 Análise do manifesto e princípios ágeis .................................................... 95

3.3 Principais métodos ágeis ........................................................................ 111

3.3.1 Scrum .................................................................................................. 112

3.3.2 Extreme Programming (XP) ................................................................. 118

3.3.3 Lean ..................................................................................................... 122

3.3.4 Kanban ................................................................................................ 126

CAPÍTULO 1 - REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA ....................................... 27

CAPÍTULO 2 - SOCIEDADE DE CONTROLE ............................................... 55

CAPÍTULO 3 - MOVIMENTO ÁGIL ................................................................ 85

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4.1 Planejamento e execução das entrevistas .............................................. 131

4.2 Trajetória dos métodos ágeis no Brasil ................................................... 134

4.3 Análise do impacto de algumas práticas ágeis ....................................... 144

4.3.1 Time-box .............................................................................................. 144

4.3.2 Auto-organização ................................................................................. 147

4.3.3 Gestão visual ....................................................................................... 162

4.3.4 Especialista em métodos ágeis............................................................ 172

4.3.5 Melhoria contínua ................................................................................ 178

4.3.6 Liberdade e autonomia ........................................................................ 192

4.4 Análise da adesão das empresas aos métodos ágeis ............................ 209

Considerações Finais ................................................................................... 221

Referências ................................................................................................... 229

Anexos .......................................................................................................... 233

CAPÍTULO 4 - EVANGELIZADORES .......................................................... 131

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Introdução

Visão geral sobre o contexto da pesquisa a partir do debate sobre o trabalho

imaterial, sociedade do controle e ideologia gerencialista. A importância da indústria do

software como principal representante da nova economia. Definição do objeto, objetivo e

do recorte espaço-temporal da pesquisa. Motivação e justificativa da pesquisa. Breve

descrição dos capítulos.

Diversos autores sustentaram que o capitalismo na passagem do século XX

para o século XXI apresentou diversas mudanças no seu Modus Operandi,

questionando o paradigma da produção de valor baseado na indústria tradicional. Ao

longo da história do capitalismo muitas revoluções tecnológicas se sucederam, porém,

o desenvolvimento das tecnologias de informação e de comunicação no final do

século XX trouxeram mudanças profundas nos processos de trabalho, afetando a

cadeia de produção de valor e todos os atores envolvidos nesse processo. O horizonte

temporal no qual vivemos nos dias de hoje é marcado pelo curto prazo, e afeta

diretamente a capacidade de controlar o futuro.

Nessa pesquisa procuramos descrever as mudanças ocorridas no mundo do

trabalho, desde o final do século XIX, com a Gerência Científica do Trabalho proposta

por Taylor, passando pelo Fordismo e pela reestruturação produtiva que tem seu início

na segunda metade do século XX, para configurar um período que pode ser entendido

como Pós-Fordista. Tais transformações implicam também na mudança de

sociedades disciplinares, bem caracterizada pelos estudos de Michel Foucault, para

sociedades de controle.

No afã de traduzir esse momento de passagem utilizaremos, sob vários

pontos de vista, o marco teórico da sociedade de controle. Hardt e Negri situaram essa

passagem como uma consolidação das empresas transnacionais. A partir dessa

mudança ocorre um recrudescimento da produção de subjetividades, a lógica das

instituições, antes baseadas no confinamento, expande-se para ocupar todo o espaço

social. O capitalismo cada vez mais se posicionará de forma privilegiada na

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reprodução possibilitada pela velocidade proporcionada pelas tecnologias de

informação e comunicação, que representam dispositivos de controle que abrangem

todo o tecido social. Assistimos à passagem dos processos pesados, dos espaços

hegemonicamente rugosos, da burocracia asfixiante, para os processos leves que

adere bem a produção de desejos, afetos e conhecimento da sociedade pós-moderna.

Trata-se de uma realidade que se tece e se esfacela continuamente, caracterizada

por contradições e hibridismos. Uma tecnologia de poder que se apresenta como mais

uma camada sedimentar a se depositar sobre o solo árido das disciplinas e biopolíticas,

articula-se com elas produzindo dispositivos que modulam mentes, afetos e desejos.

Nas rachaduras da crise institucional nasce a sociedade de controle, o

marketing e a publicidade assumem nessa configuração uma posição de destaque,

pois trata-se aqui de criar mundos que operam uma influência que transbordam as

relações e capturam as subjetividades. Esse é o novo modelo de controle social que

Gilles Deleuze propõe em suas análises sobre o socius. A centralidade ocupada pelas

capacidades cognitivas e afetivas dos indivíduos se torna o objeto privilegiado da

extração da mais-valia. A produção de conhecimento e informação efetua-se na rede,

portanto os dispositivos de controle posicionam-se a partir das relações sociais para

capturar toda a produção coletiva com o propósito de privatizá-la.

Lazzarato (2006) cria o conceito de noopolítica para dar conta das novas

técnicas de controle que modulam desejos e crenças. O noopoder captura a cognição,

a memória e a atenção para explorá-las economicamente. A ideia do empreendedor

de si mesmo será produzida e reforçada por intervenções neoliberais, colocando

sobre as costas do trabalhador todos os riscos e fracassos que o mercado e o Estado

não querem mais assumir, contando para atingir esse objetivo com a anuência dos

próprios indivíduos. É o mercado que se incumbirá de criar mundos e de articular as

relações sociais dentro dos limites desses mundos de possibilidades, criação que

contará com a participação dos indivíduos, e também com o consumo e a produção,

cujas subjetividades serão meras engrenagens.

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O conceito de trabalho imaterial que fundamenta essa pesquisa foi inspirado

na visão de Antônio Negri e Michel Hardt. Negri captura o momento mais agudo da

passagem do Fordismo para o Pós-Fordismo, dentro do contexto do movimento

operaísta italiano, observando a mudança requerida no perfil do trabalhador sob o

qual passa a pesar a responsabilidade por tomada de decisões, pela própria

qualificação, por reunir habilidades cognitivas, afetivas e comunicativas. Para Hardt e

Negri o trabalho imaterial torna-se hegemônico designa uma tendência, tornando as

fronteiras entre economia, política e social mais porosas, indistinguíveis, da mesma

forma que o tempo do trabalho e do não-trabalho. Destacam alguns elementos que

reforçam essa tese: o crescimento do setor de serviços; os setores mais ligados a

produção material que sofrem influência dos mecanismos de produção de informação,

comunicação e afetos; preocupação crescente com questões relacionadas à patentes

e direitos autorais, principalmente porque a produção imaterial acontece na rede de

forma cooperativa dificultando a apropriação.

O momento histórico, a atual fase do capitalismo é marcada pelo êxito do

neoliberalismo que impõe à sociedade um controle e uma intensificação do trabalho

sem precedentes, dessa investida exitosa surgem figuras subjetivas que são

construídas e mantidas com o propósito de reproduzir a servidão. Surge a figura do

homem endividado, que tem a sua vida pautada pela dívida para obter inserção social

desejada, e adquirir ou consumir os produtos e serviços essenciais a sua

sobrevivência. A culpa que advém da dívida solapa as forças criadoras subjetivas.

O sentido do trabalho transformou-se em um misto de liberdade e coerção,

armadilha que passa pelo empreendedorismo de si, que apesar de ter sido abalado

pelas crises do capital desde 2008, continuam em voga, articulado com a

subjetividade da dívida subjugam a todos ao risco e a incerteza com o consentimento

do subjugado. A sobrecarga de informação, a velocidade das mensagens cifradas,

repletos de vetores prontos para capturar a atenção forma um mecanismo privilegiado

de reprodução do controle em um contexto social no qual todas as interações são

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tecnologicamente registradas e rastreadas.

Importante ressaltar como a produção de software se enquadra nessa

categoria como atividade que exige total envolvimento cognitivo, afetivo e

comunicacional. A produção de software hoje ocupa uma posição de destaque, pois

estará o tempo todo utilizando e produzindo algoritmos com os mais diversos

propósitos, centralidade que pode ser vista como o cerne da sociedade de controle.

Não é objeto dessa pesquisa um aprofundamento sobre a questão dos

algoritmos, mas devido a importância desse assunto por tratarmos da produção de

software a partir do contexto da sociedade de controle, cabem alguns esclarecimentos.

Algoritmos são rotinas construídas de acordo com uma lógica específica,

normalmente são introduzidas em uma máquina, que executará as instruções visando

solucionar um problema, expressa um padrão de comportamento, um procedimento

computacional que produz um conjunto de valores a partir de valores de entrada, pode

ser determinístico se depende apenas os dados de entrada, probabilístico se usa

dados aleatórios, e preditivo se usa dados do passado para tomar decisões futuras.

(Silveira, 2017)

Segundo Silveira (2017), no contexto da sociedade informacional emerge

uma nova dimensão do poder, o poder de análise que pode ser definido como

“capacidade de captar, organizar, armazenar, processar, projetar e analisar os dados

que podem ser gerados nas redes e dispositivos cibernéticos. O Big Data é uma

tecnologia que expressa o poder de análise na sociedade atual. ” (SILVEIRA, 2017, p.

40)

As grandes empresas digitais, representantes inequívocas do poder

econômico, justificam a opacidade dos algoritmos que constituem seus produtos e

serviços, usando três argumentos: a concorrência acirrada no meio digital, a

propriedade intelectual por se tratar de uma produção singular da empresa, e da

possibilidade constante de que os algoritmos sejam burlados. Por outro lado, uma

análise sociológica não deve “conceber os algoritmos como realizações técnicas

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abstratas, mas deve desempacotar as escolhas humanas e institucionais quentes que

estão por trás desses mecanismos frios”. (GILLESPIE apud SILVEIRA, 2017, p. 51)

Silveira (2017) apresenta, a partir da pesquisa de Gillespie, seis dimensões

dos algoritmos de relevância pública e validade política, cito aqui de forma abreviada:

os algoritmos escolhem o que deve ser excluído e como os dados são produzidos;

tentam conhecer e predizer os usuários e desenhar conclusões a partir disso; definem

critérios que determinam o que é relevante, obscurecendo os critérios; apresenta-se

como algo objetivo e imparcial; os algoritmos se encaixam nas práticas cotidianas de

informação das pessoas, os usuários moldam suas ações em função do algoritmo e o

algoritmo se modifica conforme tais mudanças, há um ciclo recursivo entre cálculos

do algoritmo e os cálculos das pessoas; os código e algoritmos são obscuros para a

maioria, não para determinados especialistas e empresas; a apresentação algorítmica

dos públicos forma o sentido de si mesmo para esse público, e quem está melhor

posicionado para se beneficiar desse conhecimento.

O crescimento do setor de serviços que aponta para atividades “imateriais ou

cognitivas”, e a emergência da sociedade informacional a partir da centralidade que

adquiriu a informação, transformou a indústria de software no principal ramo da nova

economia. A produção de software tem se difundido em larga escala e adquire um

protagonismo tecnológico que excede a produção de hardware, pode ser adaptado,

configurado, possui uma plasticidade, como um éter se faz presente em todas as

atividades quotidianas, impulsiona outras áreas da economia e principalmente do

trabalho imaterial. O desenvolvimento de software se expandiu exponencialmente

dentro do contexto sociedade informacional, e, portanto, traz características próprias

dessa nova economia. Trata-se de uma atividade que está no cerne da sociedade da

informação e da sociedade do controle.

O propósito desta pesquisa é realizar um estudo de caso para compreender a

partir das propostas de processo de trabalho mais atuais utilizadas no

desenvolvimento de software, as dinâmicas do trabalho imaterial, como elas se

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articulam com a sociedade de controle, e de que forma tais dinâmicas possibilitam a

produção de subjetividades específicas. A subjetividade será entendida nesse

trabalho como causa e efeito de instituições sociais em um dado contexto histórico.

Caracterizo o movimento ágil, lançado mundialmente em 2001, aportando no

Brasil em 2004, como um representante genuíno de um novo processo de produção

de software, trazendo valores, princípios e práticas, aderentes às ideias elaboradas

pelos teóricos do Pós-Fordismo, notadamente da sociedade de controle. As

contradições e promessas do processo de trabalho preconizado pelo movimento e

sua aderência com os conceitos de trabalho imaterial e noopolítica. Cabe também

expormos as vísceras desse processo a fim de conhecer suas raízes dentro de um

quadro teórico mais amplo da sociedade de controle, da sociedade informacional e do

neoliberalismo.

Pretende-se compreender como o movimento ágil, que pode ser entendido

como um novo processo empírico de produção de software, trazendo valores,

princípios e práticas que valorizam a incerteza e a adaptação, que preconiza uma

nova forma de trabalho, uma nova estrutura organizacional, uma mudança cultural

profunda da empresa, prezando por um ambiente mais democrático, por um ritmo de

trabalho sustentável, por autonomia e liberdade, se articula, notadamente em grandes

empresas, com a gestão gerencialista, entendida como uma ideologia prescritiva que

reproduz modos de viver e trabalhar, que busca por intermédio de um fundamento

racional maior eficácia e eficiência tanto da empresa quanto do indivíduo, e que visa

produzir formas de trabalho e subjetivação muito específicas. Tal articulação se

estabelece pelas próprias contradições do discurso gerencialista, e das mediações

que visam minimizar conflitos entre interesses organizacionais e individuais,

privilegiando os interesses organizacionais em detrimento dos interesses dos

indivíduos, dissimulando contradições sociais. Buscamos entender também que

apesar desse movimento preconizar uma maior humanização do processo de trabalho,

levaria pelo contrário a uma intensificação do mesmo.

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Tal compreensão poderá elucidar de que forma se dá, a partir de um processo

de trabalho específico, a adesão dos indivíduos à valores, crenças e afetos neoliberais,

tornando as subjetividades suscetíveis a sociedade de controle, bem como as

resistências ou linhas de fuga possíveis, pois na visão dos autores acima

mencionados a subjetividade produzida nesse novo contexto possui uma potência

inventiva que permite resistir aos mecanismos de opressão, entrevendo uma outra

afirmação do desejo.

Buscamos construir esse entendimento a partir da percepção de profissionais

designados como evangelizadores, responsáveis por disseminar esse novo modelo

de trabalho, entendido por esses atores como a melhor forma de pensar e fazer

software, atuando a partir de comunidades que se articulam em torno de um novo

paradigma conhecido no mercado de tecnologia da informação como “processo ágil”,

largamente influenciado pelo espírito pós-fordista.

Implica também em desvendar o trabalho de profissionais que chamaremos

de “evangelizadores”, responsáveis por consolidar os processos ágeis no mercado

como uma forma mais apropriada de trabalho, promoveremos uma análise do seu

discurso, salientando seus apelos no sentido de constituir uma nova estrutura

organizacional e um novo perfil de liderança que sustentem os processos de trabalho

por eles preconizados. Estratégia de atuação que se baseia em rede, articulando

comunidades digitais e encontros presenciais, promovendo capacitações diversas,

lançando-se em jornadas empreendedoras, uma espécie de cruzada que visa “mudar

o mundo do trabalho”, não raramente utilizando uma abordagem que se pretende

revolucionária. Pretende-se aqui avaliar, entre outras questões, o quanto esse

discurso promove e reforça a ideia do indivíduo empreendedor de si e do capital

humano.

Os discursos de gestão e processos em geral acompanham as

transformações do capitalismo, e, portanto, das empresas também, difundido valores,

organizando o trabalho, promovendo engajamento, nos interessa aqui entender de

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que forma esse discurso dos métodos ágeis tece uma teia que visa enredar todos os

atores desse processo em um novo modelo de trabalho, rejeitando um processo de

produção mais tradicional considerado burocrático e inadequado.

A escolha por uma pesquisa de cunho qualitativo relaciona-se com a própria

essência dessa abordagem eminentemente indutiva, que busca analisar os

comportamentos e pontos de vista dos atores sociais envolvidos na análise. A

abordagem qualitativa, utilizada nessa pesquisa, transita entre quatro escalas: na

escala macrossocial, das pertenças sociais e culturas; na escala mesossocial, das

organizações e instituições, das ações político-administrativas; a escala microssocial,

dos espaços e pequenos grupos; microindividual, do universo do indivíduo, da sua

subjetividade, seus afetos. Traz no seu bojo um repertório de técnicas que permitem

se adaptar às agruras da pesquisa de campo, aceitar a incerteza, assumir riscos.

Ferramenta adequada para ser aplicada como método de exploração de fenômenos

sociais emergentes, sua eficácia está em evidenciar a ambivalência das realidades

sociais. Busca-se compreender com essa abordagem a lógica social dos atores,

identificando eventualmente margens de manobra diante da coerção.

É uma prática de pesquisa que preza pelo improviso e pela flexibilidade, pois

explora a realidade sem hipóteses iniciais imponentes, partindo de um tema. O real é

opaco, os fatos serão analisados, explorados, não procura apreender toda realidade

social, mas a partir de um recorte, os pontos de vista se alternaram através das

escalas de observação. Leva em consideração as instâncias que estruturam a vida

social, seja a material, levando em consideração os espaços, os tempos, as injunções

da economia, seja das relações sociais esclarecendo relações de poder, de regulação,

de autonomia, de controle, de resistência, seja da imaginação, que confere sentido às

práticas quotidianas. As três instâncias se misturam e se articulam no real.

Empiricamente não se pode observá-las ao mesmo tempo, a partir de um recorte da

realidade. As três dimensões não podem ser esclarecidas mediante as mesmas

técnicas de coleta de informações. A técnica de coleta escolhida para essa pesquisa

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foi a entrevista semiestruturada, depois de alguns transtornos e inquietações próprias

do trabalho de campo, que serão esclarecidas na seção de entrevistas do capítulo

quatro.

A entrevista é uma ferramenta que apreende as estratégias e as opiniões.

Optamos pela utilização da entrevista semiestruturada ou semidiretiva pela liberdade

que ela oferece ao entrevistado no desenvolvimento do seu discurso. É feita com base

em um documento formalizado, no nosso caso ele pode ser encontrado no apêndice

A. Trata-se de uma trama flexível de questões que se referem a problemática e

hipóteses. As perguntas são agrupadas em temas. A formulação das questões deve

convidar o entrevistado a expressar suas percepções e convicções, ser flexível o

suficiente para explorar questões que emergem.

A pesquisa de estudo de caso envolve o estudo de um caso dentro de um

ambiente ou contexto contemporâneo da vida real. Alguns a encaram como uma

escolha do que deve ser estudado, um caso dentro de um sistema delimitado pelo

tempo e espaço, outros como uma estratégia de investigação, optamos por encará-la

como metodologia: um tipo de projeto de pesquisa qualitativa que pode ser objeto de

estudo, como também um produto de investigação. A pesquisa de estudo de caso é

uma abordagem qualitativa na qual o investigador explora um sistema delimitado

contemporâneo da vida real, um caso, ou múltiplos sistemas delimitados ao longo do

tempo, por meio de coleta de dados detalhada em profundidade envolvendo múltiplas

fontes de informação, e relata uma descrição do caso e temas do caso. (CRESWELL,

2014)

A motivação para realização dessa pesquisa nasceu em parte de uma

necessidade de compreender a interação entre as pessoas e a produção de

subjetividades a partir das mudanças do processo de trabalho e das mudanças

tecnológicas, essas últimas sempre mais rápidas do que as primeiras. O pesquisador,

atuando há 35 anos na área de tecnologia da informação, notadamente na cidade de

São Paulo, elegeu-a como local para a realização do trabalho de campo em 2017.

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Além da pesquisa de cunho qualitativo, ao longo do trabalho descreverei situações

pessoais vividas na área de tecnologia da informação fazendo bom uso da

familiaridade com o jargão da área, elucidando os conceitos mais técnicos sempre

que necessário.

Cabe salientar que o pesquisador atua, desde 2005, com métodos ágeis,

marcando presença na comunidade, eventos e fóruns de discussão, e disseminando

esse modelo de trabalho principalmente em grandes empresas, que sempre se

caracterizaram por uma baixa aderência ao novo modelo de trabalho. Tomado pelo

entusiasmo engajou-se em um movimento que prometia mudar o mundo do trabalho

do desenvolvimento de software para melhor, possibilitando a participação das

pessoas de uma forma mais efetiva, com plena autonomia, ritmo de trabalho mais

sustentável, conferindo mais sentido às atividades laborais quotidianas. Com o passar

do tempo tais promessas não se efetivaram, sem embargo, constata-se uma

intensificação do trabalho e uma autonomia controlada. Em alguns casos a iniciativa

se mantinha por algum tempo, promovendo um engajamento dos trabalhadores

jamais visto ao longo de seus anos de prática, transformando-se logo em seguida em

algo bem distinto da proposta original dos métodos ágeis. Hoje vivemos em um

contexto diferente no que diz respeito ao volume de empresas que aderiram ou estão

em vias de aderir aos métodos , o que pode ser corroborado pelas narrativas dos

evangelizadores, os métodos ágeis tornaram-se a abordagem preferencial, e antes o

que parecia improvável, muitas empresas de grande porte enxergam nesse modelo

de trabalho a única forma de sobreviverem à proliferação de Startups e Fintechs de

todo tipo, e talvez esse seja o principal motivador da ampla adoção que ora

presenciamos. Cabe notar que, pela própria percepção dos evangelizadores o saldo

é positivo apesar do distanciamento dos princípios e valores preconizados pelos

métodos ágeis.

Este trabalho também se justifica pela escassez de pesquisas na área de

tecnologia da informação e produção de software, especialmente no que diz respeito

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à processos de trabalho. O pioneirismo dessa pesquisa está baseado na articulação

de referenciais teóricos da área de ciências sociais para entender a proposta de um

novo processo de trabalho para desenvolvimento de software que passa a ser

divulgado globalmente em um movimento batizado de “ágil”, iniciado em 2001 e

encabeçado por alguns engenheiros de software, na sua maioria estadunidenses.

Esta pesquisa foi estruturada em quatro capítulos, além da presente

introdução e considerações finais.

No capítulo um, apresento um quadro que analisa a reestruturação produtiva

do surgimento do Taylorismo ao Pós-Fordismo, passando pela crise do fordismo sob

várias óticas que se complementam, destacando a importância do Keynesianismo que

viabiliza o sistema Fordista de produção. O Pós-Fordismo caracterizado pela

flexibilização, intensificação e precarização do trabalho, vem acompanhado de um

novo espírito, de uma nova cultura organizacional em estreita relação com outros

âmbitos da vida social. Os impactos da inovação tecnológica da nova estrutura

produtiva na vida dos trabalhadores, revelando a busca, dessa nova estrutura, por um

consenso de uma subjetividade que aceite de forma pacífica a intensificação

proporcionada por novos processos de trabalho, e o inevitável aprofundamento da

precarização. Trata-se do contexto político e econômico do neoliberalismo que

ensejando o crescimento econômico globalizado fragiliza a situação laboral com a

redução de direitos trabalhistas e flexibiliza os contratos de trabalho. A partir da

exposição das mudanças que ocorrem nas esferas econômica, social, política e

cultural poderemos situar a importância crescente do trabalho imaterial e da sociedade

de controle.

No capítulo dois, analiso a importância do conceito de sociedade disciplinar

proposto por Michel Foucault, e sua relação com o Fordismo, no que diz respeito à

temática do poder, da disciplina imposta aos corpos confinados no espaço, bem como

a maneira como se lida com a dimensão do tempo. A passagem da sociedade

disciplinar para a sociedade de controle é sintetizada por Deleuze (2013) como uma

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forma diferenciada de organização do poder, onde a fábrica é substituída pela

empresa, que funciona como um gás, se fazendo presente em todos os lugares,

terreno fértil para a flexibilização, incentiva uma ideia de autonomia e as

compensações são moduladas pela performance. Para Hardt (2000) essa passagem

não anula a disciplina, antes a intensifica por mecanismos mais sutis. Também reflito

sobre o êxito do neoliberalismo e da mutação antropológica que ele empreende

criando figuras subjetivas específicas, cujo propósito é reproduzir e perpetuar o

modelo neoliberal. Entre elas destaca-se a figura do homem endividado, que passa a

ter a sua sobrevivência pautada pela dívida. Exploramos também o conceito de

noopolítica, elaborado por Maurizio Lazzarato, para dar conta das novas técnicas de

controle, entendidas como um conjunto de dispositivos que visam capturar e controlar

a cooperação entre cérebros para explorá-los economicamente.

No capítulo três, fazemos uma introdução aos métodos ágeis, situando o

movimento, que tem seu marco oficial em 2001, em um contexto histórico. Procuramos

mostrar as diferenças entre uma organização do trabalho de software que já não

atendia mais as necessidades de mercado, que passou a mudar cada vez mais rápido,

tanto em termos de negócio como em termos tecnológicos, exigindo das empresas

uma adaptação no modelo de produção de software.

Destacamos o manifesto e os princípios ágeis que estão na base de todos os

métodos que se disseminam na esteira desse movimento, e problematizamos alguns

de seus aspectos. Destaco o conceito de leveza que está no cerne das propostas dos

métodos ágeis, trazendo as reflexões de Lipovestsky (2015) sobre o assunto.

Oportunamente introduzo trechos das narrativas dos evangelizadores, que fazem

sentido para as discussões empreendidas nesse capítulo. Vale destacar também a

discussão de como o tempo é percebido e gerenciado pelos métodos ágeis. Com a

justificação de melhor tratar problemas complexos, esses mecanismos de gestão do

tempo encerram uma flexibilidade e fluidez, instabilizando as relações sociais e

promovendo uma corrosão do caráter (SENNETT, 1999), e impondo uma

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autodisciplina cada vez mais austera. Essas questões sobre o tempo serão tratadas

com mais profundidade no capítulo quatro. Destaco também a debate sobre a

obsessão por medição colocando em evidência os mecanismos sutis para controlar

os indivíduos a partir da sua subjetividade, mesclando autonomia e alienação

(GAULEJAC, 2015). As práticas e dispositivos de intensificação presentes nos

métodos ágeis também são levados em consideração, bem como a questão da

tecnologia presente no cotidiano laboral, desmistificando a ideia preconizada de

trabalho sustentável (ROSSO, 2008). Fazemos também uma sinopse dos principais

métodos ágeis (SCRUM, XP, LEAN, KANBAN), destacando tópicos que interessam

nessa pesquisa.

No capítulo 4, conceituamos e detalhamos a atuação dos evangelizadores,

que assumem um papel central na pesquisa pelo protagonismo assumido diante do

movimento ágil, e cujas narrativas são fundamentais para o entendimento do

problema proposto. Descrevemos em detalhes o planejamento e execução das

entrevistas, relatando os percalços e soluções encontradas. Estão organizadas em

três blocos, o primeiro abrange questões relacionadas à adesão dos evangelizadores

ao movimento ágil, a definição do que seria o método ágil na visão de cada um, as

percepções sobre a trajetória do movimento no Brasil e sua contribuição pessoal.

Aproximamos a narrativa dos evangelizadores do discurso de autoajuda na área de

gestão e fazemos uma introdução ao poder e ideologia gerencialista, sociedade de

controle e sua articulação com os métodos ágeis. Conceitos que perpassam o capítulo

de uma forma geral.

No segundo bloco de entrevistas, analisamos o impacto de algumas práticas

ágeis. Nesse bloco retomamos o debate sobre a gestão do tempo a partir do conceito

de time-box, que se constitui em um instrumento de intensificação e de modulação da

subjetividade dos trabalhadores, pois o tamanho e as atividades contempladas por

essa caixa de tempo, variam conforme as estratégias da empresa. A questão da auto-

organização traz um debate sobre o engajamento como controle e possibilidade de

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emancipação (ZARIFIAN, 2002). A modulação das subjetividades dos trabalhadores

pode ser entendida também pela gestão de requisitos, que são os insumos para a

produção de software, viabilizada por um planejamento que implica em determinar

granularidade e quantidade de requisitos a serem produzidos. Destacamos também a

importância da formação de indivíduos que sejam empreendedores de si mesmos

reforçando a adesão à ideologia neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016), bem como a

autonomia controlada no contexto da gestão gerencialista. A gestão visual suscita o

debate sobre a imposição de transparência, presente no regime de visibilidade atual,

bem como a comunicação ubíqua e o seu efeito em termos de hipercomunicação e

hiperprodução (HAN, 2014). Destacamos a importância dos especialistas ágeis, por

ser o principal protagonista da adoção de métodos ágeis nas empresas. Esses

trabalhadores mantêm um forte vínculo com a comunidade ágil e com os

evangelizadores. Buscamos compreender as contradições que nascem da tentativa

de compatibilização entre ideologia gerencialista e métodos ágeis, bem como a ideia

de qualidade como elemento de mobilização da energia no trabalho. Principais

disseminadores da ideia de sucesso e de progresso, produzem um discurso sedutor

difícil de ser contestado. A melhoria continua, pilar fundamental dos processos ágeis,

também será analisada nesse bloco, destacando o fenômeno da avaliação como

poderoso sistema de controle, e como potente instrumento de legitimação da

organização. No último tópico deste bloco, retomamos o debate sobre noopolítica e a

colaboração entre cérebros (LAZZARATO, 2006), no contexto da liberdade e

autonomia preconizadas pelos métodos ágeis, buscamos compreender as adesões,

resistências, limites e possibilidades em torno dessas ideias.

No terceiro bloco discutimos sobre a adesão das empresas aos métodos ágeis,

como os evangelizadores enxergam essa adoção na atualidade, destacando as

contradições, dificuldades, soluções que emergem das narrativas.

As considerações finais fazem um balanço da pesquisa realizada e propõe

possíveis aberturas para estudos futuros.

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CAPÍTULO 1 - REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

Apresentação do quadro que analisa a reestruturação produtiva, do surgimento do

Taylorismo ao Pós-Fordismo, passando pela crise do Fordismo, sob várias óticas que se

complementam. A importância do Keynesianismo como política econômica e social e sua

relação com o sistema de produção Fordista. Caracterização do Pós-Fordismo,

flexibilização, precarização e intensificação do trabalho.

1.1 Exploração em moto continuo

Para que o capitalismo cumpra seu fim último, acumular capital, para além

dos limites que se contraponham a essa acumulação, terá que lançar mão de técnicas,

estabelecer padrões, a fim de exercer controle sobre a força de trabalho, garantindo

que a exploração tenha uma aparência de normalidade, seja aceita e desejada,

mantendo assim seu principal vetor de crescimento.

No final do século XIX, com o crescimento das empresas e de monopólios,

cresce a necessidade de controle e organização das empresas. Será Taylor com uma

proposta de gerência cientifica do trabalho, que dará um caráter cientifico às soluções

para equacionar os problemas que surgiram com a ausência de controle e

organização. Essa gestão cientifica se propunha a criar regras para garantir a

eficiência das rotinas de trabalho, com foco em dois elementos: tempo e movimento.

As leis cientificas da administração do trabalho de Taylor visavam a

exploração máxima, otimização máxima do corpo, dos movimentos do trabalhador

redundando na separação entre planejamento e execução do trabalho.

“Um tipo de homem é necessário para planejar e outro diferente para executar

o trabalho [...] em quase todas as artes mecânicas, a ciência que rege as

operações do trabalho é tão vasta e complexa que o melhor trabalhador

adaptado a sua função é incapaz de entendê-la, quer por falta de estudo, quer

por insuficiente capacidade mental” (TAYLOR, 1990, p. 43)

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Atividades de gestão visando apropriação do conhecimento tácito dos

trabalhadores, prática presente tanto no Fordismo como no Pós-Fordismo, embora

abrindo mão de outros mecanismos para alcançar o mesmo objetivo.

“À gerencia é atribuída a função de reunir todos os conhecimentos

tradicionais que no passado possuíam os trabalhadores e então classificá-los,

tabulá-los, reduzi-los a normas, leis ou fórmulas, grandemente úteis aos

operários para execução do seu trabalho diário” (TAYLOR, 1990, p. 40)

A execução de tarefas fragmentadas levava a constituição do trabalhador

como um ser autômato, essas experimentações de rotinas de trabalho deveriam ser

lideradas por gerentes e não pelos próprios trabalhadores, assim se dá, apesar da

notória mudança de paradigma, em muitas empresas atualmente, um gerente

controlará, calculará os tempos, realizará o planejamento de todas as atividades

relacionadas ao processo de trabalho, controlando e organizando o trabalho das

equipes sob sua gestão.

“Se você é um operário classificado deve fazer exatamente o que este

homem lhe mandar, de manhã à noite. Quando ele disser para levantar a

barra e andar, você se levanta e anda, e quando ele mandar sentar, você

senta e descansa. Você procederá assim durante o dia todo. E, mais ainda,

sem reclamações. ” (TAYLOR, 1990, p. 46)

Taylor parte da premissa de que os trabalhadores não têm condições de

controlar o próprio ritmo de trabalho, pelo conhecimento que detém sobre a tarefa que

realizam, na maioria das vezes superior ao conhecimento dos gerentes que os

controlam, se constituindo em uma resistência política à exploração. Isso por si só

justifica a delegação de autoridade aos gerentes que devem assumir toda a

concepção do trabalho, expropriando saberes, controlando tempos e movimentos,

restando ao trabalhador a simples execução.

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Pode-se observar também um estímulo a partir de remuneração variável como

proposta no fordismo.

“Instituiu-se preciso registro diário da qualidade e quantidade do trabalho

produzido [...] este registro permitiu ao chefe incitar a ambição de todas as

inspetoras, aumentou o ordenado daquelas que realizavam grande

quantidade de trabalho de boa qualidade, enquanto, ao mesmo tempo,

abaixava o salário daquelas que trabalhavam sem interesse ou despedia

outras que se revelavam incorrigivelmente lentas ou desleixadas. ” (TAYLOR,

1990, p. 71)

Trata-se de produzir mais, melhor e em menos tempo, o artefato tecnológico

que permitirá tal proeza é o cronometro, segundo Taylor o controle do tempo é

fundamental:

“Durante cerca de trinta anos, homens dedicados ao estudo do tempo em

colaboração com a administração das oficinas se consagraram

completamente ao estudo científico dos movimentos e a exata medida do

tempo por meio de cronômetros, em todas as fases do trabalho mecânico”

(TAYLOR, 1990, p. 73)

O viés ideológico dessas proposições é muito claro, revestido de caráter

científico, procura moldar o trabalho àquilo que o capital requisita em dado momento.

A vida de um ser humano nos dias de hoje é regida pelo relógio, o tempo foi

transformado em uma mercadoria negociável, a exploração de trabalhadores estaria

inviabilizada não fosse a presença ritmada desse artefato tecnológico. Não me parece

exagero dizer que o período histórico que marca o predomínio do capitalismo e da

sociedade disciplinar tenha também marcado a hegemonia do relógio em nossas

vidas. Além de medir o tempo a própria fabricação de relógios serviu para habilitar

tecnicamente o ser humano a produzir máquinas cada vez mais complexas na

revolução industrial. Na medida em que os capitalistas perceberam o novo valor que

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o tempo adquirira, o trabalho se transformava na matéria-prima fundamental da

indústria. A regularidade e a inevitável monotonia desse ritmo de vida artificial eram

ditadas pelos patrões, nas palavras de Woodcock o escravo da fábrica reagia:

“Nas horas de folga, vivendo na caótica irregularidade que caracterizava os

cortiços encharcados de gim dos bairros pobres no início da Era Industrial do

século XIX. Os homens se refugiavam no mundo sem hora marcada da

bebida ou do culto metodista. ” (WOODCOCK, 1981, p. 122)

O século XIX cristalizou, através da religião, a ideia de que perder tempo seria

um pecado sem remissão. Disseminou a dependência servil ao tempo, e a virtude da

pontualidade. Atualmente presenciamos diversas formas de distúrbios de saúde

reputados à vida moderna, principalmente nas grandes cidades, devido às

dificuldades de mobilidade, às refeições rápidas, aos horários em nada flexíveis dos

compromissos de trabalho.

Todo esse rigor impetrado pelo uso opressivo do tempo só asseverou as

contradições e paradoxos entre eficiência e eficácia, regulando e ajustando os critérios

de qualidade de acordo com as metas de lucro. O trabalhador perde o sentido do

trabalho, e transforma o possível prazer em anseio pelo fim do expediente, para tentar

recompor suas forças nas garras de uma outra indústria, a cultural, dentro dos limites

da sua disposição física e psíquica, e de sua condição financeira. Sobre o uso

adequado do relógio Woodcock diz que:

“O tempo mecanizado serve como uma das formas utilizadas para coordenar

as atividades numa sociedade altamente desenvolvida, assim como a

máquina serve como um dos meios para reduzir ao mínimo todo trabalho

desnecessário. Ambos são válidos pela contribuição que dão no sentido de

tornar a vida mais fácil, e devem ser usados na medida em que auxiliam o

homem a cooperar eficientemente e a eliminar as tarefas monótonas e a

desordem social. Mas não se deve permitir que nenhum deles passe a

dominar a vida do homem como hoje acontece” (WOODCOCK, 1981, p. 124)

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O aumento de produtividade é uma espécie de Santo Graal para o capitalismo,

pois busca-o incessantemente visando maximizar os lucros. Apenas o controle do

tempo não é suficiente para conseguir a aquiescência do trabalhador nesse imbróglio

que se tornou o conceito de produtividade. O bônus, estratégia antiga, entretanto

amplamente utilizada até hoje, consiste em conceder incentivos financeiros adicionais

à remuneração, no sentido de estimular o trabalhador ultrapassar as metas de

produtividade e qualidade estabelecidas previamente. Taylor destaca a importância

dessa estratégia:

É absolutamente necessário, então, quando os trabalhadores estão

encarregados de tarefa que exige muita velocidade de sua parte, que a eles

também seja atribuído pagamento mais elevado, cada vez que forem bem-

sucedidos. Isto implica não somente em determinar, para cada um, a tarefa

diária, mas também em pagar boa gratificação ou prêmio todas as vezes que

conseguir fazer toda a tarefa em tempo fixado. É difícil alguém apreciar, no

seu justo valor, o auxílio que o uso adequado desses dois elementos presta

ao trabalhador, para levá-lo ao mais alto nível de eficiência e rapidez em seu

serviço e aí mantê-lo, sem antes ter visto, sucessivamente, o mesmo

empregado trabalhar sob o velho e o novo sistema. (TAYLOR, 1990, p. 78)

Para realçar a fragilidade da estratégia do bônus, que podemos associar à

ideia de motivação extrínseca presente em manuais de gestão, vamos analisar

algumas premissas que o fundamentam. A primeira delas, segundo Oliveira (2010, p.

4), é a de que o trabalho seria uma espécie de castigo, ideia presente na bíblia, na

idade média e na modernidade com Adam Smith:

“O verdadeiro preço de qualquer coisa, aquilo que ela efetivamente custa ao homem

que a pretende adquirir, é a labuta e os incômodos a que é obrigado para adquirir.

Aquilo que efetivamente vale um objeto para o homem que o comprou e que

pretende dispor dele ou trocá-lo por qualquer outra coisa é a labuta e os incômodos

a que se poupa e que impõe a outras pessoas [...]. No seu estado normal de saúde,

força e disposição, e com um grau normal de habilidade e destreza, o trabalhador

deve sempre abrir mão de mesma quantidade de seu conforto, de sua liberdade e

de sua felicidade. “ (SMITH, 2010, p. 3 Apud OLIVEIRA, 1979, p. 27)

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A própria Revolução Industrial, não deixou dúvidas sobre o aspecto penoso

que repousa sobre qualquer atividade laboral. Entretanto é necessário destacar que

se pode alcançar algum grau de motivação intrínseca, respeitados todos os

condicionamentos sociais que dificultam alcançá-la. Para além de toda precariedade

e intensidade, é possível em alguns momentos relativizar a ideia do trabalho como um

castigo, e romper com a dicotomia entre trabalho e não-trabalho encontrando um

sentido constantemente capturado pelo capital.

A segunda premissa, segundo Oliveira (2010, p. 5), parte da ideia de que, da

mesma forma que o patrão tenta maximizar o lucro, o empregado, trabalhando mais,

visa maximizar seu salário. Segundo Weber ganhar mais dinheiro é o bem maior que

se busca alcançar pela ética do espírito do capitalismo. Weber assevera que esta ética

não fazendo parte da natureza humana, pode ser produzida culturalmente, de forma

que:

“O capitalismo hodierno, dominando de longa data a vida econômica, educa

e cria para si mesmo, por via da seleção econômica, os sujeitos econômicos

- empresários e operários - de que necessita. E, entretanto, é justamente esse

fato que exibe de forma palpável os limites do conceito de “seleção” como

meio de explicação de fenômenos históricos. Para que essas modalidades

de conduta de vida e concepção de profissão adaptadas à peculiaridade do

capitalismo pudessem ter sido “selecionadas”, isto é, tenham podido

sobrepujar outras modalidades, primeiro elas tiveram que emergir,

evidentemente, e não apenas em indivíduos singulares e isolados, mas sim

por um modo de ver portado por grupos de pessoas”. (WEBER, 2004, p. 48)

Essa premissa está condicionada a relação direta em que os indivíduos

tenham suas mentalidades colonizadas pelo espírito do capitalismo, portanto também

não pode ter uma validade universal.

A terceira premissa, segundo Oliveira (2010, p. 6), coloca a vantagem

financeira como único caminho para obter máximo comprometimento dos

trabalhadores. Além dessa premissa ser condicionada pelas duas anteriores,

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despreza completamente a motivação intrínseca caracterizada pelo prazer obtido

através do trabalho bem feito, do aprendizado continuo, e do reconhecimento.

Esse sentimento de fazer bem feito, é uma habilidade artesanal bem descrita

por Sennett:

“A expressão ‘habilidade artesanal’, pode dar entender um estilo de vida que

desapareceu com o advento da sociedade industrial - o que, no entanto, é

enganoso. Habilidade artesanal designa um impulso humano básico e

permanente, o desejo de um trabalho bem feito por si mesmo. Abrange um

espectro muito mais amplo que o trabalho derivado de habilidades manuais;

diz respeito ao programa de computador, ao médico e ao artista; os cuidados

paternos podem melhorar quando são praticados como uma atividade bem

capacitada, assim como a cidadania. Em todos esses terrenos, a habilidade

artesanal está centrada em padrões objetivos, na coisa em si mesma. As

condições sociais e econômicas, contudo, muitas vezes se interpõem no

caminho da disciplina e do empenho do artesão: é possível que as escolas

não proporcionem as ferramentas necessárias para o bom trabalho e que nos

locais de trabalho não seja realmente valorizada a aspiração de qualidade. E

embora a perícia artesanal possa recomendar o indivíduo com o orgulho pelo

resultado de seu trabalho, não é uma recompensa simples. ” (SENNETT,

2008, p. 19)

1.2 Fordismo

O sonho da produtividade levada às últimas consequências parecia ter se

concretizado com o surgimento do fordismo como novo modelo produtivo, ao fazer o

trabalho girar em torno dos trabalhadores através de uma esteira rolante. Mais do que

aprimorar os mecanismos de organização e controle do trabalho, o fordismo visava

conquistar o consenso dos trabalhadores, apesar da intensificação do trabalho

implícita na sua proposta.

À princípio Ford rejeita a ideia de ser mero seguidor de Taylor, dando uma

outra roupagem para os princípios de Taylor, em destaque a captura da subjetividade:

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“Se um operário deseja progredir e conseguir alguma coisa, o apito será um

sinal para que comece a repassar no espírito o trabalho feito a fim de

descobrir meios de aperfeiçoá-lo” (FORD, 1954, p. 41)

Apesar disso o modelo de produção Fordista incorporou técnicas do modelo

taylorista, a ampliação de direitos sociais atenuou o conflito capital-trabalho,

associado a altos salários os trabalhadores suportavam a intensidade imposta pelo

ritmo de trabalho marcado pela esteira rolante.

Para colocar e prática seu modelo Ford elaborou e instituiu princípios de

gestão para reduzir o tempo de produção, visando a colocação de produtos mais

rápida no mercado, redução de estoques de matérias-primas, aumentar a

produtividade elevando o nível de especialização dos trabalhadores, e finalmente

implantando a linha de montagem.

Preconizava a redução de níveis hierárquicos combatendo o poder dos

“gênios organizadores”, que definem a estrutura de autoridade, o organograma com

suas funções limitadas, Ford salienta que a fábrica não deve ter uma organização tão

rígida, a maioria dos homens é capaz de manter a organização sem as alucinações

do poder formal. Ford realça a responsabilidade individual, sem possibilidade de

fragmentá-la em uma estrutura de comando-controle, muitos gerentes, coordenadores

e chefes levam a uma situação na qual a responsabilidade é sempre atribuída ao outro,

os cargos não importam, o que importa é a disposição de um homem de valor pronto

para encarar qualquer desafio e ganhar com isso.

Estimula a gestão participativa visando apropriar-se do conhecimento tácito

do trabalhador, deve haver liberdade de crítica, e a fábrica deve estar pronta para

acolher sugestões, isso deve ser registrado em um livro, e serão bem-vindas

principalmente as ideias relacionadas à redução de custos, sempre deixando claro

que ninguém é insubstituível.

A rigidez da disciplina estava presente conjugando normas e punições. Seu

objetivo era reduzir custos e tempo de diversas etapas produtivas. Esse padrão de

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produção estava associado fortemente à produção de massa, ao compromisso de

manter benefícios sociais, a estimulação de consumo das mercadorias produzidas.

Manteve a rígida separação entre concepção e produção, da forma preconizada por

Taylor, mantendo um abismo de qualificação entre operários e gestores.

Gramsci observou as similitudes e contradições entre as técnicas de

organização laboral preconizadas por Taylor e Ford e a sua ultrapassagem por um

tipo superior de trabalhador, adequando-se ao desenvolvimento histórico do modo de

produção capitalista.

“Taylor exprime com cinismo brutal o objetivo da sociedade americana:

desenvolver ao máximo, no trabalhador, as atitudes maquinais e automáticas,

romper o velho nexo psicofísico do trabalho profissional qualificado, que

exigia uma determinada participação ativa da inteligência, da fantasia, da

iniciativa do trabalhador, e reduzir as operações produtivas apenas ao

aspecto físico maquinal. Mas, na realidade, não se trata de novidades

originais, trata-se somente da fase mais recente de um longo processo que

começou com o próprio nascimento do industrialismo, fase que é apenas

mais intensa do que as precedentes e manifesta-se sob formas mais brutais,

mas que também será superada com a criação de um novo nexo psicofísico

de um tipo diferente dos precedentes e, indubitavelmente, superior. ”

(GRAMSCI, 2001, p. 397)

Ideologicamente o fordismo foi muito além da inovação técnica. A produção

de massa estava atrelada a aspectos sociais, políticos e culturais, seja visando a

reprodução da força de trabalho e a sua manutenção, seja reforçando o hábito do

consumo. Modos de viver e pensar a vida são indissociáveis dos padrões de produção,

como assevera Harvey:

“A produção de massa significava consumo de massa, um novo sistema de

reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência da

força de trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um

novo tipo de sociedade democrática [...] O fordismo equivaleu ao maior

esforço coletivo para criar, com velocidade sem precedentes, e com uma

consciência de propósito sem igual na história, um novo tipo de trabalhador e

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um novo tipo de homem. Os novos métodos de trabalho são inseparáveis de

um modo específico de viver e pensar a vida. (HARVEY, 1992, p. 121)

Homem ajustado aos tempos, ritmos e exigências do trabalho à serviço da

acumulação capitalista. A intensificação do trabalho gerada pela inovação tecnológica,

notadamente para Ford, a esteira rolante, levou a um desgaste brutal da força de

trabalho, e índices elevados de turn-over nas empresas. As resistências à exploração

pelo ritmo alucinante que extenuava os trabalhadores, foram contidas em um primeiro

momento por medidas de aumento salarial pela Ford, e depois quando o modelo

fordista se tornou de fato um padrão a ser seguido, o Estado passou a desenvolver

políticas públicas salariais e de benefícios sociais, de educação e saúde. O consumo

estava ligado de forma umbilical ao crescimento industrial, despertando desejos por

bens até então inacessíveis, estimulando prazeres que afrontavam a postura

espartana exigida pela rotina e ritmo de trabalho.

No afã de conter os excessos do sexo e do álcool, que poderiam afetar a

produtividade, Ford contratou agentes, que eram responsáveis por uma cruzada

moralista, para fiscalizar e orientar a classe operária, para além dos muros da fábrica.

O fordismo se pretendia hegemônico, e de fato conquistou esse objetivo, ao conseguir

a adesão da classe trabalhadora apesar de toda resistência, a partir do chão da fábrica.

Para compreender o processo de construção dessa hegemonia e da resistência

operária cabe recuperarmos o contexto do Keynesianismo, doutrina econômica e

política que serviu de pano de fundo para essas transformações.

1.3 Keynesianismo

Com o fordismo houve um recrudescimento da divisão do trabalho visando

obter maior produtividade os operários ocupavam uma posição fixa na linha de

montagem, essa foi a grande inovação instalada em uma fábrica automotiva no

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Estado de Michigan. Foi instituída a jornada de trabalho de 8 horas. No plano

corporativo ocorriam grandes fusões A utilização da tecnologia foi empregada de

forma intensiva. Com mais tempo livre e mais dinheiro o trabalhador, através do

consumo, devolvia parte do que ganhara. Mas a proposta de Ford não despertava a

confiança necessária para que o empresariado assumisse como modelo.

O Estado intervencionista surge a partir da crise econômica e do colapso da

Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929. Nos anos 1920 os Estados Unidos da

América apresentavam uma economia pulsante, era grande exportador e inspirava

grande confiança, anos que representaram também uma consolidação das práticas

Tayloristas-Fordistas. A pujança econômica era tal, que fortalecia o sentimento de que

as pessoas poderiam ficar ricas da noite para o dia apenas investindo na Bolsa de

Valores. Em 1929, depois de forte declínio na produção industrial, a país entrou em

profunda depressão tornando-se o epicentro de uma crise global.

Keynes estudou profundamente esse episódio da história econômica

mundial, ele denuncia em seus estudos um flagrante desequilíbrio entre oferta e

demanda, em função do aumento de produtividade na década de 1920, alavancada

por novas técnicas de produção e tecnologia.

Keynes exerceu influência direta sobre o New Deal, programa de viés

econômico e social, lançado na década de 1930 pelo presidente estadunidense

Franklin Delano Roosevelt para recuperar a economia. Em linhas gerais o programa

tratava de regular fortemente a economia por intermédio de agências federais,

investimento em políticas públicas sociais, de infraestrutura, e no setor privado. Visava

com isso combater o fantasma do desemprego que grassava sobre a população,

atingindo o fordismo em uma de suas engrenagens fundamentais, o consumo. Keynes

salientou que o Estado deveria assumir o papel de conduzir os investimentos dada a

limitação do capital privado, entretanto tal conduta despertava desconfiança do

mercado.

Keynes também teve papel fundamental nos acordos após as duas Grandes

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Guerras Mundiais, na primeira como mero coadjuvante, sem nenhum poder de

influência, na segunda como protagonista. O acordo após a Primeira Grande Guerra,

homologado pelo Tratado de Versalhes, não agradou a Keynes que entendeu ser uma

vingança consubstanciada em acordo de paz, impondo aos derrotados um pesado

fardo financeiro.

Após 1929, o Keynesianismo disseminou um sentimento de segurança

através de medidas que mantivessem a economia estável. Isso foi possível graças às

medidas protecionistas que protegiam as empresas nacionais garantindo o lucro,

consolidado pelo consumo de massa. O papel dos sindicatos também foi importante,

na luta por melhores condições de trabalho e salariais. O Estado por sua vez

administrava as crises econômicas, amparava as empresas, investia em infraestrutura

e no bem-estar social, provendo educação, saúde e moradia, esta é a definição de

Estado Keynesiano, um coração pulsante que tentava articular e metabolizar mercado

e sociedade em um todo harmônico.

A conferência de Breton Woods em junho de 1944 definiu regras comerciais

e financeiras, a Segunda Grande Guerra Mundial ainda estava em curso, o acordo

vigorou até 1971, quando o dólar se tornara moeda fiduciária acabando com a

conversibilidade do dólar em ouro, o dólar passou a ser moeda reserva de muitos

países. Para que o novo sistema de regras fosse legitimado foram criados o Banco

para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e o Fundo Monetário Internacional

(FMI). Havia um consenso entre as nações a respeito da intervenção do Estado na

economia. Ressentidos ainda da depressão1 de 1930, e sofrendo as consequências

da devastação causada pela guerra, a Europa ansiava por reestabelecer sua

economia e os Estados Unidos um mercado para colocar seus produtos, o acordo

preconizava um mínimo de barreiras ao fluxo de comércio e capital privado. Criou-se

1 As Disputas entre Estados colocavam-nos em uma situação de guerra iminente, o sistema internacional de pagamentos estava constantemente à beira de um colapso por conta de disputas alfandegárias. Os Estados reduziam as taxas de exportação visando equilibrar a balança comercial, entretanto tal estratégia gerou deflação, diminuição de produção, desemprego em massa, redundando na profunda crise de 1930.

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um conceito de segurança econômica que justificava a criação de um sistema

internacional com feições liberais para garantir a paz. Existia também uma intenção

de conter a expansão do bloco socialista que se fortalecia. Para que o sistema

proposto no acordo funcionasse era condição sine qua non os Estados atuarem como

interventores nas suas próprias economias, assumindo o protagonismo na geração

de bem-estar social para a população, o ideário econômico Keynesiano tornou-se

referência.

Os Estados Unidos da América assumiram uma posição hegemônica nas

negociações, pois contava com uma economia pujante, uma indústria e uma matriz

energética poderosas, e o exército mais bem equipado. Depois de um período de

acumulação de capital sem precedentes, tornou-se a principal fonte de investimentos

para os países europeus. A liberação do comércio mundial pretendida fortaleceu ainda

mais a posição vantajosa dos Estados Unidos. Outra consequência desse processo

foi a propagação do fordismo como modelo de produção, principalmente através do

Plano Marshall, programa de recuperação Europeia visando reconstruir os países

aliados. A divisão internacional do trabalho, efeito deletério desse contexto, além de

levar no seu bojo o espírito do desenvolvimentismo, aprofundou a dependência entre

países subdesenvolvidos que ofereciam matéria-prima e países desenvolvidos,

depois que suas economias foram reestabelecidas exportavam produtos com alto

valor agregado, causando a estagnação de muitas economias.

Para Negri (1967) todas essas transformações sociais, políticas e

econômicas a começar pela revolução de 1848 na França, passando pela comuna de

Paris em 1870, e culminando com a revolução Russa em 1917, transformam a luta

operária em uma possibilidade objetiva e presente, que se torna referência para

operários de todo mundo. Negri entende que:

“El País de los soviets es el signo del antagonismo obrero que ha llegado a

estructurarse autónomamente como Estado; por esta misma razón se

convierte en un punto de identificación política interna para la clase obrera

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internacional, em tanto que signo de una possibilidad objetiva y presente. A

decir verdad, aqui el socialismo pasa de la utopía a la realidad. De ahora en

adelante la teoría del Estado deberá ajustar cuentas no sólo con los

problemas inherentes al mecanismo de socialización de la explotación, sino

con una clase obrera políticamente identiificada y que ha devenido sujeto,

con una serie de movimientos materiales que ya dentro de su materialidad

acarrean toda la connotación política revolicionaria.” (NEGRI, 1967, p. 1)

Partindo dessa compreensão sugere que o Fordismo aliado ao

Keynesianismo surge como alternativa de negociação para conter um possível

protagonismo da classe operária, ameaça real e imediata ao capital, por organizar-se

politicamente. A repressão aos movimentos operários com leis que restringiam as

greves, os novos modos de produção, bem como uso intensivo de tecnologia, não

foram suficientes para desarticular a organização operária, debilitando o Fordismo nas

primeiras décadas de 1900. Tampouco arrefeceu o ímpeto da luta operária todo o

esforço de isolamento diplomático e político da Rússia. As greves eram cada vez mais

intensas e frequentes. Para Negri 1929 representa:

El contragolpe de las técnicas represivas antiobreras que repercute en toda

la estructura del Estado capitalista, es un 1917 que se ha convertido en un

momento interno de todo el sistema capitalista. La iniciativa política obrera de

1917, puntual y ferozmente destructiva, se ha objetivado, se ha convertido en

una continua e poderosa acción de erosión: controlada a corto plazo tras 1917,

se expresa ahora, en 1929, con toda fuerza que ha acumulado un desarrollo

interior y secreto. De este modo 1929 representa en la evolución del Estado

contemporáneo un momento de importancia excepcional. [...] Se trata, por el

contrario, de una reconstrucción capitalista del Estado a partir del

descubrimiento de la radicalidad del antagonismo obrero. (NEGRI, 1967, p. 3)

O Estado agora intervém e engloba todos os âmbitos da vida, traz para dentro

de si todos os conflitos, para Negri trata-se do nascimento do Estado Social que unifica

aspectos antagônicos da sociedade, socializa o modo de produção, impõe uma

organização social conquistando certo consentimento na exploração. Definitivamente

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os capitalistas empreendem uma leitura muita específica do marxismo, que reconhece

antagonismos, e o põe em funcionamento ao mesmo tempo em que impede sua

liberação e a consequente destruição de um dos polos.

A forte intervenção do Estado presente no Keynesianismo amadurece a partir

das críticas de Keynes à economia liberal, ao laissez-faire, ao equilíbrio promovido

pela “mão invisível”. Um Estado que faz cumprir contratos, promove o bem-estar da

classe trabalhadora através de políticas públicas, que conduz os investimentos

necessários, que reestabelece a confiança necessária entre os atores econômicos. O

New Deal nos seus primeiros anos foi alvo de muitas críticas do mercado. Negri

destaca a perspicácia de Keynes que estudou as “vicissitudes capitalistas” entre 1917

e 1929, oferecendo uma solução que não agradou aos capitalistas mais

entusiasmados que acreditavam em um enriquecimento infinito, mas que estabelecia

as condições necessárias para que o capitalismo continuasse pulsando.

Para além da oportunidade política a intervenção estatal se coloca como

necessidade técnica, que garante o presente contra os riscos e incertezas do futuro,

produzidas por pressão da classe operária, estabelecendo um horizonte de segurança

relativamente amplo para o capital. Para Keynes a reforma capitalista do Estado é

uma exigência com o fim de atenuar a dramática tensão que o futuro suscita.

Entretanto, a intervenção do Estado não será suficiente, é necessário que ele se torne

estrutura econômica e sujeito produtivo, nas palavras de Negri:

“Garantizando la convención que une presente y futuro el Estado continua al

servivio de los capitalistas: planteándose a su vez como capital productivo el

Estado quiere superar también las fricciones estructurales que pueden

determinar la economia de mercado y una relación indirecta con cada uno de

los capitalistas. Se trata de un nuevo Estado: del Estado del capital social.”

(NEGRI, 1967, p. 14)

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1.4 Pós-Fordismo

Uma nova fase do capitalismo, que já vinha se delineando com as crises do

padrão de produção fordista, torna-se cada vez mais presente a partir dos anos 1970,

com especial destaque para o modelo criado pela empresa japonesa Toyota.

Entretanto é mister enfatizar que surgiram várias alternativas ao modelo fordista.

Na Itália, o modelo sugeria empresas com estrutura reduzida, processos de

trabalho mais flexíveis, capacidade de inovar, emprego de alta tecnologia,

trabalhadores qualificados e multifuncionais. O Estado cumpria o seu papel

protecionista e flexibilizando leis trabalhistas. Havia uma certa aversão à hierarquia,

ao comando-controle taylorista, mas também ao trabalho em equipe, sendo este

último o maior obstáculo para o pleno funcionamento do novo modelo de produção.

O modelo taylorista-fordista também foi desafiado na Suécia, empregado

inicialmente na Volvo. Acentuada inovação na organizacional do trabalho, bem

acolhidas pelos trabalhadores que percebiam como uma mudança real no mundo do

trabalho, as adaptações levariam a mais produtividade e bem-estar crescente. A linha

de montagem foi constituída com pequenas células, compostas por trabalhadores

qualificados e multifuncionais, trabalhando de forma mais ou menos autogerenciada,

sem obstáculos para aplicação do conhecimento. Apesar de toda autonomia, e do

engajamento necessários para que o trabalhador fosse corresponsável pelas decisões

tomadas no processo produtivo, a ampla automação e as restrições impostas pela

divisão do trabalho, excluindo-os do processo de concepção, roubava-lhes o controle

sobre suas atividades.

As duas alternativas de constituição de um modelo alternativo ao taylorismo-

fordismo esbarraram em questões relativas à produtividade queda na margem de

lucro, incentivando a mescla de práticas tradicionais mais coercitivas, controle mais

rígido sobre as atividades.

Harvey, inspirado em Marx, sugere que o modo de produção capitalista tem

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na sua essência a necessidade do crescimento, para satisfazer essa necessidade

explora o trabalho vivo, para viabilizar e maximizar essa exploração tem que ser

dinâmico na sua organização e agregar tecnologia constante aos seus processos.

Esse contrates e contradições inserem o capitalismo no mapa das crises infindáveis,

convivendo ciclicamente com superacumulação, altos estoques, capacidade produtiva

ociosa e alto desemprego, cuja a saída está sempre na reinvenção.

Ao final dos anos de 1960 é registrado mais um momento nesse mapa de

crises, que de fato já se desenhava há muitos anos: a classe trabalhadora começa a

reagir contra a intensificação e inevitável precarização gerados pelos processos de

trabalho com greves e absenteísmo, ocorre um declínio na produtividade. O modelo

fordista, profundamente marcado pela disciplina e pela automação, chega a um

esgotamento. Aos poucos o contrato social estabelecido pelo Estado de bem-estar

social que envolvia todos os atores econômicos em torno do consumo, é rompido.

Em 1968 estudantes e operários franceses unem-se contra esse modo de vida

fabricado pelo fordismo. A crise no consumo recaí sobre os declinantes níveis de

lucros das empresas. A crise do petróleo em 1973 alavanca os níveis de inflação. Os

Estados Unidos berço do fordismo, sofre com os custos altíssimos sociais e

econômicos, resultado da malsucedida campanha militar no Vietnã. Nações

periféricas que foram industrializadas começaram a concorrer globalmente com os

países ditos de primeiro mundo. Ocorreu uma acentuada mudança nos hábitos de

consumo, os consumidores exigiam produtos mais diferenciados. A economia

japonesa em crescente fortalecimento desde o final da 2a. Grande Guerra, apresenta

altos índices de produtividade, crescimento viabilizado pela cultura do pais de não

diferenciar relações familiares de relações laborais, por forte apoio estatal, e por um

padrão de produção criado pela Toyota, empresa do ramo automobilístico, conhecido

como STP, Sistema Toyota de Produção, que ao longo dos anos se tornou um padrão

para as outras indústrias japonesas. O modelo japonês foi concebido nas fábricas da

Toyota, a partir de um longo período de experimentações, o modelo amadureceu e

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ganhou notoriedade na academia e no discurso gerencial, o que lhe conferiu um apoio

publicitário sem igual, a ponto de ser considerado por muitos como sinônimo de Pós-

Fordismo.

Ao final da 2a. Grande Guerra a indústria japonesa apresentava sérios

problemas, apresentava problemas de produtividade, aplicaram o modelo de

produção que estava em voga, o fordismo, entretanto adaptaram o modelo à cultura

japonesa, às necessidades socioeconômicas, produzindo veículos pequenos,

econômicos, de baixo custo e preço reduzido, respeitando a frágil infraestrutura do

pais. O Estado empenhou-se em apoiar a iniciativa com medidas protecionistas,

limitando investimento estrangeiro e importações.

O modelo japonês se diferenciava dos outros modelos principalmente pela

adequação da produção ao fluxo de demanda, no combate sistematizado ao

desperdício, ampla utilização da terceirização e da flexibilização das leis trabalhistas,

paulatinamente ocorre a introdução de inovações como o uso do kanban, just-in-time,

dos círculos de controle de qualidade, as equipes pequenas e qualificadas,

multifuncionais preparadas para resolver problemas de produção de qualquer

complexidade, reduzindo substancialmente o tempo de parada médio das máquinas.

A reestruturação produtiva que ocorre a partir desses eventos, é uma reação

à queda de produtividade, do consumo e do lucro. É necessário, portanto romper com

o contrato estabelecido pelo Estado de bem-estar social, dispersar a classe

trabalhadora, atingindo-a na sua capacidade de reivindicar salários e direitos, e

flexibilizar toda a estrutura laboral, da organização à produção.

A imprevisibilidade dos mercados globalizados, exigirá uma flexibilidade das

empresas em todas as suas dimensões, sejam elas organizacionais, trabalhistas ou

tecnológicas. A introdução maciça de tecnologia possibilitou o controle sobre as

atividades produtivas visando os altos índices de produtividade e qualidade desejados.

A automação irrestrita acentuou a redução de mão de obra. A nova era trazia no seu

bojo o desemprego, a redução drástica de direitos sociais e a ausência de política

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salarial. Essa configuração produtiva condena ao limbo do desemprego ou do

subemprego, grupos menos favorecidos na estrutura social: mulheres, negros, idosos,

jovens, pessoas com baixa qualificação. O grupo de trabalhadores mais privilegiados

dos núcleos centrais das empresas cedem aos desígnios corporativos, que em troca

de um pacote de benefícios sedutor, devotam suas vidas à empresa atuando de forma

flexível, adaptável e disponível. Outro grupo intermediário deve atuar da mesma forma,

mas através de um contrato de terceirização, que exclui os benefícios.

Ao longo das transformações do capitalismo assistimos a um aprimoramento

constante das técnicas de controle, de cooptação de subjetividades, ao contrário do

discurso produzido pelas ideologias gerencialistas que, cada uma a seu tempo,

tentaram subsidiar o empenho e adesão das pessoas envolvidas no processo de

acumulação capitalista, de que teria atingido o estado da arte em gestão, entretanto o

que o ocorreu foi a intensificação e precarização do trabalho levada às últimas

consequências.

É possível fazer uma análise entre o modo de produção fordista e o Pós-

Fordismo que dá tom ao capitalismo global atual. Levando em consideração a

flexibilização da rígida burocracia presente nas empresas desde o início do século XX.

A crise do fordismo enseja uma crise das instituições causando instabilidades sociais

de toda ordem. Quando o curto-prazo se torna prioridade, impossibilita aos indivíduos

tecerem narrativas, antes elaboradas a partir de um planejamento de longo prazo,

possibilitado pela estabilidade do vínculo laboral, quando não conseguem mais criar

uma identidade a partir de seus talentos inatos e desenvolvidos em função de novas

capacitações que são requeridas a cada instante, e quando o processo de

presentificação se impõe, obrigando a abandonar vivências passadas:

“Uma individualidade voltada para o curto prazo, preocupada com as

habilidades potenciais e disposta a abrir mão das experiências passadas só

pode ser encontrada - para colocar as coisas em termos simpáticos - em

seres humanos nada comuns. A maioria das pessoas não é assim,

precisando de uma narrativa contínua em suas vidas, orgulhando-se de sua

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capacitação em algo específico e valorizando as experiências por que passou.

Desse modo, o ideal cultural necessário nas novas instituições faz mal a

muitos que nelas vivem. ” (SENNETT, 2006, p. 14)

Essa busca por um ser humano ideal redundará em uma pandemia de

ansiedade e depressão. Todas essas questões colocam um desafio à subjetividade

requisitando uma resposta existencial. Nesse contexto de mudanças de uma cultura

fordista para uma nova cultura vale destacar o papel da burocracia. A burocracia foi

uma técnica adotada por empresas e Estados para garantir estabilidade e não

sucumbir diante das classes perigosas. Sennett reflete sobre a burocracia a partir dos

argumentos de Karl Marx, Schumpeter e Max Weber. Weber estudou com

profundidade o fenômeno da burocracia e a descreveu como uma técnica que torna

possível o planejamento de longo prazo, a previsibilidade. Para Weber a organização

militar se aproxima mais do capitalismo e reflete mais a modernidade em termos de

mecanismo de organização do que o próprio mercado.

Na passagem para o novo capitalismo ocorrem mudanças significativas que

solapam a base desse capitalismo social militarizado, que na verdade já vinha

passando por um longo processo de flexibilização há muitos anos.

O poder gerencial perde espaço para os acionistas, os burocratas perdem

poder para os investidores, que perseguem resultados de curto prazo, com o

desenvolvimento de tecnologias de informação e comunicação possibilitando a

coordenação de negócios globais a partir de um núcleo. Condição necessária para

que o capitalismo financeiro se consolidasse globalmente, permitindo a migração do

capital de um negócio para outros mais vantajosos muito rapidamente, de tal forma

que a informação se constituiu no ativo mais valioso das empresas.

Surge a partir dessas mudanças na nova arquitetura institucional

caracterizada pela flexibilidade exacerbada, levando a uma precarização das relações

de trabalho, por impossibilitar o planejamento de longo prazo garantido pela

estabilidade dos processos. O processo de flexibilização possibilitou que as empresas

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se configurassem em termos de mão-de-obra conforme a necessidade do momento,

contratando e demitindo sem entraves burocráticos da legislação trabalhista. Para

atender as demandas diversificadas e atender os objetivos de lucro de curto prazo, se

faz necessário um trabalhador que execute diversas atividades e seja flexível para se

adequar a qualquer contexto de produção.

O capitalismo da acumulação flexível abalara os muros inexpugnáveis da

burocracia destituindo o sentido que as pessoas depositavam na atividade laboral, o

estilo de vida baseado no planejamento de longo prazo permite que se estabeleça

objetivos de longo prazo, que se tenha visibilidade dos riscos assumidos. Essa nova

cultura do capitalismo influencia a formação do caráter dos indivíduos por não

possibilitar tecer narrativas de vida de uma forma contínua. Sennett define o caráter

como:

“Valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações

com os outros, ou se preferirmos, são os traços pessoais a que damos valor

em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem”

(SENNETT, 2012, p. 10)

O trabalhador flexível, em virtude das incertezas e mudanças ininterruptas de

contexto de vida, não consegue tecer laços de afinidade. As formas de poder que

emergem do modo de produção capitalista flexível ensejam uma reinvenção contínua

da empresa, ancorada em discursos de inovação e qualificação incessantes, os

nichos de mercado são ocupados estrategicamente e monitorados constantemente a

fim de se buscar outras oportunidades mais rentáveis em outros nichos, inserindo a

estrutura produtiva em um redemoinho infinito.

O trabalho em equipe é estimulado, algum poder é outorgado, mas somente

no âmbito do “como” fazer, ficando fora da esfera de decisão “o que” fazer, o “quando”

fazer, e muitas vezes “o porquê” fazer, essas ficam na esfera de decisão dos acionistas

e alto escalão da empresa. Autonomia da decisão que confere um caráter de

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concentração da decisão, porém sem centralização, o controle passa a ser exercido

por diversos mecanismos eletrônicos como: indicadores, painéis digitais, sistemas

gerenciais de toda espécie que consolidam informações em tempo real.

A flexibilização do tempo na produção leva a uma flexibilização do caráter,

pela aceitação do curto prazo imposto e pela tolerância com a fragmentação das

atividades laborais. Com o rompimento dos laços sociais no trabalho, a identidade

social do trabalho fica comprometida, a capacidade imediatista se valoriza em

detrimento da experiência acumulada. O caldeirão de incertezas no qual o trabalho

flexível submerge coage os trabalhadores a assumir riscos, sem dar-se conta das

probabilidades de fracasso, não aceitar o jogo da competição é abraçar o fracasso

antes do embate.

Uma nova ética do trabalho é produzida, há muito não se fala mais dos planos

de carreira, porque a longa experiência profissional não tem mais valor, as instituições

não são mais estáveis para ancorar essa experiência, Sennett não propõe uma volta

ao passado, entretanto não vê a flexibilidade como solução para as mazelas do

trabalho no capitalismo social:

“Seria um mal-humorado sentimentalismo lamentar o declínio do trabalho

árduo da autodisciplina - para não falar da boa educação, do respeito aos

mais velhos e de todos os outros prazeres dos bons velhos tempos. A

seriedade da velha ética de trabalho impunha pesados fardos ao eu

trabalhador. As pessoas tentavam provar seu próprio valor pelo trabalho, em

forma de ascetismo leigo, como o chamou Max Weber, o adiamento da

satisfação podia tornar-se uma prática profundamente autodestrutiva. Mas a

alternativa moderna para a longa disciplina de tempo não é um verdadeiro

remédio para essa autonegação. “ (SENNETT, 2012, p. 118)

O trabalho flexível, preconizando o trabalhador multifuncional e adaptável a

qualquer contexto de negócios, procura romper com a rotina, reduz a burocracia, mas

não supera totalmente o fordismo, levando as relações de trabalho a outro patamar

de intensidade e precariedade, onde trabalho de equipe e rotina, autonomia e controle,

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se articulam em uma mixórdia de discursos para modular a subjetividade dos

trabalhadores. Como construir uma narrativa, uma identidade, uma história de vida se

esse trabalhador está à deriva? A antiga bússola não funciona mais no mar revolto da

flexibilidade. Relações fugazes enfraquecem a confiança, a lealdade e o compromisso,

valores relevantes para alicerçar o caráter.

O trabalho em equipe substitui a vigilância ostensiva descrita por Foucault na

metáfora do panóptico, por uma pressão dos pares, diluindo a responsabilidade entre

todos os membros da equipe. O fenômeno social do fracasso transformou-se em uma

indústria a partir do discurso do empreendedorismo, mercado que faz fortuna para os

gurus da gestão que chegam com fórmulas prontas. O fracasso é uma experiência

constante diante da vida sem objetivos e fragmentada, na impossibilidade de tecer

uma narrativa. O antídoto seria na visão de Sennett do compartilhamento da

experiência, recuperar um senso de comunidade.

Sennett descreve uma partilha de experiências entre programadores da IBM,

que foram demitidos depois de uma reestruturação, substituindo estruturas

hierárquicas por estruturas organizacionais flexíveis. Ao longo do processo de diálogo

uma narrativa vai sendo tecida até que a responsabilidade pelo fracasso emerge como

questão fundamental, momento em que o fracasso deixa de ser algo caótico

inenarrável, obscuro. A culpa deixou de ser um peso.

O toyotismo se caracteriza por um sistema de emprego que garante

estabilidade, por uma produção empenhada em produzir no tempo certo e na

quantidade certa, participação dos trabalhadores no processo de melhoria continua,

foco no trabalho em equipes pequenas e multifuncionais, equilibrando especialização

e generalização de forma que fosse autossuficiente em relação às suas atividades. A

relação com as outras empresas, que por questões logísticas impostas pela filosofia

do just-in-time (produzir na quantidade e no tempo certos), era de subcontratação, a

Toyota mantinha um núcleo de elite de trabalhadores bem formados e regiamente

remunerados, enquanto as empresas subcontratadas gravitavam em torno desse

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núcleo, mantendo trabalhadores sob trabalho intenso e precário, com baixos salários

e sem regalias. As empresas ocidentais incorporaram alguns traços do toyotismo

visando sair da crise, aumentando os lucros e a produtividade, dando início a um tipo

de acumulação conhecido como acumulação flexível, termo cunhado por David

Harvey (2014).

É possível a partir da tipologia criada por Bihr (1999) situar as empresas em

uma forma específica de absorção das características do toyotismo, farei um exercício

utilizando as empresas de tecnologia da informação, baseado na minha experiência

profissional e conhecimento da área. Na forma difusa temos um núcleo que coordena

esforços de empresas periféricas, o núcleo é composto por trabalhadores bem

remunerados, os restantes dos trabalhadores ficam lotados nas empresas periféricas,

via de regra terceirizados, trabalhando em condições mais precárias e sujeitos à

intensidade estabelecida pelo núcleo. É o caso por exemplo das fábricas de software,

que é contratada por grandes empresas, visando redução de custos e riscos de

processos trabalhistas.

Na forma fluída, a produção é contínua levando a intensidade e a

produtividade à níveis muito altos. A forma flexível combina organização flexível,

trabalhador ágil, multifuncional, com a flexibilização da força de trabalho, gerando

muitos conflitos entre empregados e terceirizados, pois, trabalham no mesmo

ambiente, mas não usufruem das mesmas condições, ficando muitas vezes expostos

ao trabalho mais intenso em troca de banco de horas ou horas extras. O cipoal de

modelos ou padrões de produção deixa escapar um elemento que parece articulá-los:

o controle do tempo. No taylorismo é o cronometro, no fordismo é a esteira rolante, no

toyotismo será o just-in-time e o kanban.

A ideologia por trás da flexibilização, marca distintiva do capitalismo vigente,

se empenha em propagar a crença de que todos tornaram-se livres, do rigor imposto

pela burocracia e rotina dos tempos áureos do fordismo e do estado de bem-estar

social. Se a nova fase do capitalismo requer um trabalhador adaptável predisposto a

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assumir riscos, polivalente, o discurso de gestão vigente insiste na ideia de

“resiliência”, segundo a qual o ser humano pode ser dotado de elasticidade, preparado

para adaptar-se a qualquer contexto. Ao invés de autonomia e emancipação criaram-

se outros mecanismos de controle, quando o capitalismo atinge o limite na luta para

contornar suas próprias contradições. Um complexo conjunto de acontecimentos

colocaram por terra o fordismo e o Keynesianismo.

A crise de acumulação requer uma reestruturação produtiva trazendo no seu

âmago consequências políticas, sociais, econômicas e culturais. O contrato de

trabalho na vigência do fordismo assegurava proteção social, uma relação laboral de

longo prazo e uma dedicação integral. O capitalismo flexível cria instabilidade por

fragilizar o contrato de trabalho, que acarreta perda de direitos trabalhistas e ausência

de política de salários adequadas às necessidades dos trabalhadores. A ampliação e

aprofundamento da precariedade se dá de diversas formas: através de um sentimento

de insegurança generalizado, necessidade constante de corresponder a novos perfis

de trabalho, alternância entre períodos de trabalho e desemprego.

Em nossa sociedade o trabalho ocupa uma posição central, por constituir

identidades, por ser um importante componente subjetivo para construção de sentido

para a vida, além de afetar o ritmo de todas as outras atividades cotidianas, possibilita

fazer frente às necessidades de sobrevivência no presente e planejar de alguma forma

o futuro.

“Existir positivamente como indivíduo é ter a capacidade de desenvolver

estratégias pessoais, dispor de uma certa liberdade de escolha nas condutas

da sua vida porque não estamos na dependência do outro”. (CASTEL;

HAROCHE Apud SÁ, 2010, p. 6)

“Uma sociedade da incerteza e do risco está associada a uma concepção

liberal da sociedade encarando o risco como algo, dado, como uma fatalidade,

que não pode mudar nessa situação, cada qual procura estratégias

individuais que permitam vencer os obstáculos, esquecendo as dimensões

societárias e coletivas”. (CASTEL, 2005, p. 60)

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O trabalhador requisitado pela reestruturação produtiva pós-fordista adere a

noção de empregabilidade2 segundo a qual a empresa deixa de ser responsável pela

aprendizagem do trabalhador, torna-se responsável por adquirir as competências, que

mudam de acordo com o contexto de negócios que a organização lhe apresenta. O

trabalhador passa a ser um empreendedor de si.

O Pós-Fordismo caracteriza-se entre outras coisas por uma flexibilização dos

contratos de trabalho, dos modelos de produção, das condutas profissionais, que

apontam para um novo espírito do capitalismo. Requisita um trabalhador mais

adaptável, que seja capaz de atuar em uma hierarquia mais horizontalizada e células

organizacionais autogeridas, que seja capaz de operar e interagir com uma tecnologia

sempre em constante atualização. A nova cultura organizacional que emerge desse

contexto, coloca ênfase no sujeito empreendedor, competitivo, que deve reunir

capacidades cognitivas, possuir domínio técnico na sua área de atuação, capacidade

de comunicação, e outras competências comportamentais como resiliência, pró-

atividade, comprometimento.

Tal perfil é reforçado pela própria cultura organizacional das empresas, pela

mídia e também pelas instituições de educação. Todo esse dinamismo exige uma

atualização ininterrupta de saberes, uma busca premida pelas inovações tecnológicas.

A área de tecnologia e desenvolvimento de software é exemplo patente do quanto as

qualificações são efêmeras. Experiências e conhecimento são úteis dentro de um

lapso de tempo muito curto. Não podemos deixar de observar que esse dinamismo

alimenta um mercado de educação contínua formado por certificações técnicas,

2 O termo empregabilidade, estrategicamente criado pelo discurso de gestão, isola o trabalhador na

sua relação com o mercado de trabalho pautado pela flexibilidade. Nessa equação talvez a incerteza

seja a única constante, funciona como um motor para que o trabalhador sempre tenha em vista as

condições do mercado, buscando a adaptação e qualificação que se fizerem necessárias. O termo

empregabilidade sugere uma constante contabilidade do capital humano, direcionando os

investimentos de acordo com uma lógica do mercado, seja na aquisição de softskills (comportamentos,

atitudes, personalidade, seja na aquisição de hardskills (conhecimento técnico). O regime de produção

preponderantemente imaterial aliada a ideia de trabalhador-empresa faz da empregabilidade uma

passagem de um lugar para outro sem sentido algum.

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capacitações comportamentais e habilidades comunicativas.

Há uma dupla captura do trabalhador pela dívida, primeiro pelo sentimento de

dívida engendrado pela velocidade de mudança dos contextos tecnológicos e

organizacionais que constrói subjetivamente uma sensação de déficit de

conhecimento, segundo pelo receio de perder a empregabilidade contraindo dívidas

que figuram como investimentos educacionais necessários.

A velocidade é um vetor das mudanças, de forma que, vivendo uma época de

rápidas transformações tecnológicas, o empenho psíquico, todo o tempo de vida

laboral e extra laboral não são suficientes para acompanhar o ritmo das inovações. O

empreendedor de si é um capital que precisa render juros e dividendos a partir de uma

descomprometida e tênue participação da organização. Segundo Gaulejac trata-se de

um culto à excelência, um modelo cultural de comportamento que parte do

pragmatismo, da conquista, da performance e do sucesso. Essa excelência é bem

diferente da aprendizagem de uma profissão, que corresponde a um saber que vai

acumulando com o tempo.

“A nova excelência é aqui entendida num outro sentido: procurar a excelência

é procurar ultrapassar-se aproximar-se da perfeição, vencer-se a si próprio

como o alpinista que procura ir cada vez mais alto...” (AUBERT; GAULEJAC

apud SÁ, 2010, p. 7)

Nessa acepção, ela tem um caráter efêmero, de conquista pessoal, de

concorrência de indivíduos consigo próprio e com os outros na procura de sucesso.

Assim a preocupação da excelência, associada a uma seleção permanente dos

trabalhadores, significa que o indivíduo vive o seu cotidiano de trabalho em stress

constante e insegurança permanente. Essa avaliação constante lembra o mito de

sísifo, necessidade constante de legitimar sua competência. O que está em jogo em

relação ao trabalho, já não é conseguir fazer o trabalho bem feito, mas jogar o jogo,

onde o azar e a sorte estão presentes, segundo Sennett:

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“O gosto pelo risco já não é considerado apanágio dos capitalistas e relação

a lugares especulativos ou de personalidades muito aventurosas. O risco

tornou-se uma necessidade cotidiana que pesa sobre os ombros da massa. ”

(SENNETT, 2012, p. 110)

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CAPÍTULO 2 - SOCIEDADE DE CONTROLE

Analisamos a importância do conceito de sociedade disciplinar proposto por

Michel Foucault, e sua relação com o Fordismo, no que diz respeito à temática do poder.

A passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle é sintetizada por

Deleuze como uma forma diferenciada de organização do poder, onde a fábrica é

substituída pela empresa. Para Hardt (2000) essa passagem não anula a disciplina, antes

a intensifica por mecanismos mais sutis. Também reflito sobre o êxito do neoliberalismo e

da mutação antropológica que ele empreende criando figuras subjetivas específicas, cujo

propósito é reproduzir e perpetuar o modelo neoliberal. Exploramos também o conceito de

noopolítica, elaborado por Lazzarato, para dar conta das novas técnicas de controle,

entendidas como um conjunto de dispositivos que visam capturar e controlar a cooperação

entre cérebros para explorá-los economicamente.

2.1 Da sociedade disciplinar à sociedade de controle

É possível analisarmos a relação entre a empresa e o trabalhador como uma

relação de poder por intermédio da qual a primeira apreende o conhecimento

produzido pelo segundo. A disciplina de gestão do conhecimento, que esteve muito

em voga no meio corporativo nos anos 1990 e parte dos anos 2000, preconizava que

o conhecimento tácito do trabalhador deveria ser capturado e registrado em meio

eletrônico, tornando-se um ativo valioso para a empresa. Difundiu-se uma infinidade

de aplicativos de software que se prestavam a esse papel, entretanto como

argumentarei mais adiante, a captura do conhecimento se dá por dispositivos mais

sutis e menos intrusivos, não dispensa a tecnologia e vai além dela, diante de uma

produção biopolítica do saber, em uma sociedade do controle, que se dá

hegemonicamente em rede digital, e também da reprodução de trabalhadores mais

aptos ao trabalho flexível, multidisciplinar, alicerçado na qualificação ininterrupta,

facultando à empresa a prerrogativa de substituir rapidamente um trabalhador por

outro ou obter a informação que necessita no manancial inesgotável de conhecimento

na internet, e na própria rede que se forma a partir da empresa, com base no estímulo

à cooperação e colaboração, agregando todo valor e conhecimento aos produtos e

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serviços criados, em ciclos de trabalho cada vez mais curtos e intensos.

A temática do poder foi exaustivamente perscrutada por Michel Foucault ao

longo de sua vasta obra, colocando o debate em uma perspectiva diferente dos

contratualistas que difundiram entre os séculos XVI e XVIII a ideia do Estado como

estrutura fundamental de organização da sociedade, portanto monopolizando todo o

poder garantido por um arcabouço jurídico. Em Vigiar e Punir Foucault analisa formas

históricas de poder e elabora o conceito de sociedade disciplinar constatando que as

relações sociais são constituídas por relações de poder e saber. O poder seria uma

teia que envolve a todos, não podendo, portanto, ser atribuído à uma instituição

qualquer. O poder deve ser analisado a partir das técnicas de dominação que o

viabilizam, portanto, o poder não pode ser apropriado, não é privilégio de um indivíduo,

grupo ou classe. Sobre o fenômeno do poder Foucault afirma que:

“É preciso não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e

homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros,

de uma classe sobre outras; mas ter bem presente que o poder não é algo

que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detém exclusivamente

e aqueles que não os possuem. O poder deve ser analisado como algo que

circula, ou melhor, como algo que funciona em cadeia [...]. Nas suas malhas

os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este

poder e de sofrer sua ação [...]” (FOUCAULT, 2014, p. 193).

A importância que o conceito de sociedade disciplinar ganha nesse trabalho

parte de duas percepções, a primeira de que segundo Foucault, o auge desse regime

de poder alcança seu apogeu no final do século XIX e início do século XX, coincidindo

com o nascimento e consolidação do Fordismo. A segunda, viabilizar a análise do

surgimento de um outro regime de poder, a sociedade de controle, a partir do declínio

da sociedade disciplinar após a Segunda Grande Guerra Mundial.

A análise que Foucault empreende parte das práticas de punição presentes

na idade média, notadamente o suplício, como expressão de poder absoluto do

soberano. Paulatinamente esse poder será questionado e substituído por mecanismos

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de vigilância e controle. Cada instituição produzirá um conjunto próprio de normas

para fazer funcionar esses mecanismos. A norma foi o veículo pelo qual o poder

soberano se disseminou pelo tecido social possibilitando o exercício da disciplina

sobre os indivíduos constituindo relações de poder. Sobre o poder disciplinar Foucault

ressalta que:

“É com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como

função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar

ainda mais e melhor. [...] Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo

o que lhe está submetido, separa, analisa, diferencia, leva seus processos de

decomposição até às singularidades necessárias e suficientes. “Adestra” as

multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma

multiplicidade de elementos individuais [...] A disciplina “fabrica” indivíduos;

ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo

tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. ” (FOUCAULT,

2014, p. 167)

O poder se exercerá de uma forma microscópica, quase imperceptível, sobre

corpos obedientes e úteis, o corpo humano “entra numa maquinaria de poder que o

esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (FOUCAULT, 2014, p. 135).

Aumenta a potência do corpo em termos econômicos diminuindo essa mesma

potência em termos políticos. Para Foucault essa produção de corpos produtivos e

submissos é realizada mediante um saber específico constituindo uma microfísica do

poder ou uma nova anátomo-política.

Tratam-se de dispositivos minudentes, que medirão o tempo e o espaço, para

que os corpos sejam ritmados a partir de uma ordem social burguesa estabelecida.

À primeira vista poderá parecer que Foucault sugere que o poder seja

essencialmente repressivo, entretanto há resistência, há confronto de forças nesse

terreno cotidiano, as lutas ocorrem nas finas teias da estrutura social. A posição social

define de que forma essa relação de poder se estabelecerá, entretanto, tal relação

não se resume aos polos dominante e dominado, porque para Foucault trata-se de

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um fenômeno positivo que produz coisas, conhecimento, prazer, uma rede produtiva

que atravessa a sociedade, nesse caso lemos dominação como exercício de poder e

não como repressão. Apesar da dominação ser muito heterogênea, levando em

consideração os diversos papéis que um indivíduo exerce pautado pelas normas

próprias das instituições onde ele os exerce (trabalho, família, igreja, escola), o poder

não pode ser visto sob uma perspectiva de dominação de um sobre o outro, é algo

que circula. O indivíduo mesmo em situação de dominação poderá reivindicar seu

espaço e criar seus mecanismos de poder.

O poder disciplinar foi fundamental para que a Revolução Industrial lograsse

sucesso. Os mecanismos de vigilância e controle permitiram que o corpo, o tempo e

o trabalho fossem organizados eficientemente para promover o acúmulo de capital.

As fábricas eram construídas de tal forma a privilegiar a fiscalização dos trabalhadores.

O Panóptico de Jeremy Bentham é um modelo arquitetural que sintetiza novos

mecanismos do poder disciplinar. Segundo Foucault:

“O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a

seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de

penetração no comportamento dos homens: um aumento de saber vem se

implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser

conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça” (FOUCAULT, 2014,

p. 198).

O Panoptismo tornou-se uma metáfora para o sistema de vigilância e controle,

exercido nas prisões, escolas, nas fábricas, o objeto desse sistema são as relações

de disciplina, nesse sistema os indivíduos sentem-se controlados pelo olhar do

observador. A abordagem disciplinar também incidiu sobre o tempo, tornando-o

organizado, otimizado e rentável. Dividir a duração em segmentos, organizar os

segmentos de acordo com um esquema analítico, fixar o término dos segmentos para

examinar os resultados obtidos, a partir desse esquadrinhamento do tempo coloca-se

as atividades em série, que o poder controla e corrige, possibilitando com que os

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indivíduos fossem aproveitados de acordo com seu nível. Tais práticas podem ser

observadas nas fábricas tayloristas-fordistas e até hoje em atividade como a gestão

de projetos. Foucault destaca que:

“O ponto de apreço é o ‘exercício’, a técnica pela qual se impõe aos corpos

tarefas ao mesmo tempo repetitivas e diferentes, mas sempre graduadas.

Dirigindo o comportamento para um estado terminal, o exercício permite uma

perpétua caracterização do indivíduo, seja em relação a esse termo, seja em

relação aos outros indivíduos, seja em relação a um tipo de percurso. Assim

realiza, na forma da continuidade e da coerção, um crescimento, uma

observação, uma qualificação. ” (FOUCAULT, 2014, p. 158)

O corpo é apenas uma engrenagem em uma máquina da qual a disciplina visa

obter a máxima eficiência. O estabelecimento de horários fixos viabiliza o controle das

atividades, a divisão do tempo nasceu da prática religiosa como técnica para

estabelecer rotinas, foi incorporado no cotidiano por intermédio das escolas e

amplamente utilizados na fábrica. O poder disciplinar também buscou regular a

ocupação dos espaços, por meio de técnicas fixas e clausura, um espaço útil, com a

privacidade necessária para o exercício das atividades, mas constantemente vigiado

e hierarquizado. O poder disciplinar se estabelece nesse espaço-tempo controlado,

preservando o corpo para que seja dócil e produtivo. A trajetória dos corpos deve ser

meticulosamente pensada. Esse papel cabia à disciplina de organização e métodos,

ensinada nas faculdades de administração e amplamente exercida nas empresas e

fábricas e muito em voga pelo menos até a década de 1990.

A burguesia não sustentaria sua hegemonia somente com o aparato jurídico,

são necessárias tecnologias de poder disseminadas pelo tecido social de maneira

capilar. A divisão do trabalho proporciona um controle mais eficaz porque o

trabalhador deve executar atividades em tempos determinados, jamais conhecendo

todas as etapas do processo, conhecimento que lhe é vedado sendo apropriado pelo

capitalista, com a administração científica de Taylor e as inovações promovidas pelo

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Fordismo principalmente no que diz respeito às especializações para restringir o

conhecimento e a linha de produção para maximizar a exposição dos trabalhadores,

esse controle e essa captura de saberes é levada às últimas consequências, restando

o trabalho intenso e alienado. Como já mencionado nessa pesquisa, tal controle se

efetuou com muita resistência, principalmente sindical. A vigilância perscruta a

maneira de ser dos indivíduos, suas atitudes e comportamentos, acumulando assim

conhecimento que possa ser utilizado para balizar condutas mediante exames

constantes e a partir de normas específicas. Essa relação simbiótica entre saber e

poder, o saber respaldando o exercício do poder e o poder viabilizando o acúmulo de

saber é basilar para a acumulação de capital. Os mecanismos de poder e produção

de saberes para Foucault ocorre de forma recíproca, porém a ausência de consciência

dessa via de mão dupla pode comprometer a autonomia e prolongar a dominação.

A apropriação do corpo na visão da sociedade disciplinar visa a apropriação

do tempo, uma vez que o tempo seja apropriado é possível pelo decurso de uma

infinidade de mecanismos disciplinares, extrair da força de trabalho, a maior lucro

possível. O poder que se exerce sobre o trabalhador é múltiplo, primeiro econômico,

para sobreviver necessita vender sua força de trabalho, segundo político, por

intermédio de uma hierarquia de comando e controle dentro das empresas, e por

último jurídico que regula essas relações e estabelece as punições necessárias.

Um dos aspectos já mencionados nesse trabalho sobre a relação de trabalho

diz respeito ao tipo de contratação que se modificou na reestruturação produtiva,

submetido à flexibilização redundando em precarização e intensificação do trabalho.

A perda de direitos trabalhistas em tempos pós-fordistas e neoliberais enfraquece uma

relação de poder que poderia ser mais equilibrada. O tipo de contrato que se

estabelece, portanto é um mecanismo de poder que preserva certa simetria garantida

por dispositivos legais. Vivemos um momento no Brasil no qual tal simetria entre as

partes está sendo vilipendiada por mudanças jurídicas e políticas que visam privilegiar

ainda mais o capital.

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Foucault associa a tomada de consciência dentro do processo produtivo ao

cuidado de si, quando o trabalhador faz uso do seu poder e se apropria do saber

produzido nas relações, atua de forma coletiva para equilibrar a assimetria das

relações de trabalho e conquistar certa emancipação. Mais adiante problematizarei

essa questão do cuidado de si na perspectiva da sociedade do controle argumentado

por um lado a possibilidade de emancipação real e por outro a produção de indivíduos

empreendedores.

2.2 Sociedade de controle

Hardt e Negri situam a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade

de controle com base na ideia do enfraquecimento da sociedade civil, e a passagem

do imperialismo dos estados-nação para uma ordem mundial das empresas

transnacionais e o mercado mundializado. Os moldes fixos das sociedades

disciplinares dão lugar às redes flexíveis e moduláveis.

“Os muros das instituições estão desmoronando de tal maneira que suas

lógicas disciplinares não se tornam ineficazes, mas se encontram, antes,

generalizadas como forma fluida através de todo corpo social. O “espaço

estriado” das instituições da sociedade da disciplina dá lugar ao “espaço liso”

da sociedade de controle”. (HARDT, 2000, p. 357).

Se os muros das instituições vêm abaixo, as distinções entre dentro e fora se

esmaecem, a soberania se defina pelo seu território e sua relação com todo o resto.

O espaço da modernidade é estriado, o espaço do império na pós-modernidade é liso,

o poder está em todos os lugares e em lugar nenhum, é uma utopia, um não lugar.

Para Hardt império, sociedade de controle e pós-modernidade são sinônimos.

As consequências do esmaecimento da fronteira que separava o dentro e o

fora se traduzem em uma produção social de subjetividade, que segundo as análises

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empreendidas por Foucault, Deleuze e Guattari, é tecida a partir do campo de forças

sociais, estão enraizadas nele.

Trata-se de um processo em constante produção e reprodução, as ações

quotidianas formam e conformam as subjetividades, na visão de Hardt (2000, p. 368)

as instituições são como “arquipélagos de fábricas de subjetividades”. Nas instituições

modernas o lugar exercia forte influência na construção das subjetividades. Na

passagem para a sociedade de controle se intensificou a produção de subjetividades,

a lógica das instituições que antes funcionavam no seu interior agora se expande para

todo o social. A prisão antes da clausura, agora é a prisão movediça das tornozeleiras

eletrônicas. A crise é a indistinção do dentro e do fora, entretanto continuamos

capturados pelos tentáculos das lógicas e técnicas institucionais, da família, da escola,

da prisão, das fábricas, dos hospitais, que invadiram todos os espaços sociais.

Se não há um lugar para a produção de subjetividades, as mesmas são

produzidas de forma vaga e indefinível. O capitalismo encontra seu lugar privilegiado

de reprodução, sua velocidade de penetração nos espaços mais recônditos, é

diretamente proporcional ao desregramento. Um processo leve e fluido corrompe a

subjetividade continuamente, não obstante a passagem à uma sociedade de controle

deve variar em extensão e profundidade, dependendo da economia de um país e suas

instituições. De qualquer forma, qualquer regime de produção, seja ele taylorista-

fordista ou pós-fordista, somente se estabelece com a cooperação de instituições

sociais, econômicas e políticas, e seus respectivos gurus, evangelizadores e diáconos,

responsáveis por disseminar o espírito necessário. Na visão de Hardt seria parte de

um projeto imperial exportar a crise institucional:

“Em suma, enquanto no processo de modernização os países mais

poderosos exportavam, para os países dependentes, formas institucionais,

no atual processo de pós-modernização, o que se exporta é a crise geral das

instituições. A estrutura institucional do império é como um programa de

computador que contém um vírus, de forma que modularia e corromperia

continuamente as formas institucionais que o cercam”. (HARDT, 2000, p. 370).

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Nessa sociedade de controle, imperial ou pós-moderna, as contradições e

ambiguidades se proliferam, caracteriza-se pelo hibridismo e pela corrupção, no

sentido de se esfacelar. É o caminho para estabelecer uma sociedade

substancialmente capitalista. Na sociedade moderna e disciplinar existia uma

superioridade do poder de Estado em relação às potências da sociedade, era marcado

por uma transcendência, conferindo ao espaço social uma qualidade de territorializado

e estriado. Nas sociedades de controle vigora uma forma de Estado imanente.

Para compreender as mudanças nas modalidades de governo

contemporâneas, principalmente a passagem de um poder de soberania, que se

ocupava de decidir sobre a morte do súdito e administrar sua vida, para um biopoder

que se apropria da totalidade dos processos vitais como objeto de governo. Nos

séculos XVII e XVIII surgem técnicas de poder centradas no corpo individual,

sociedade disciplinar, que promove uma dominação social a partir de dispositivos que

produzem e regulam hábitos e práticas, em espaços fechados. A partir da segunda

metade do século XVIII surge a biopolítica, tecnologia de poder que não se caracteriza

pela disciplina, todavia não a exclui, a biopolítica se estabelece nos espaços abertos,

e se dirige à espécie, seu objeto é a população, e suas ferramentas a estatística, as

previsões, as medidas globais. Trata-se de gerir a vida por intermédio de políticas

diversas: econômica, de saúde, de saneamento, de família, estabelecendo uma

margem de segurança contra os imprevistos que afetam a população.

O Biopoder como tecnologia de governo está presente tanto nas disciplinas

voltadas para os corpos, individualizantes como na biopolítica que objetiva a

população. Segundo Foucault em Segurança, Território e População não existe uma

linearidade de fases que se sucedem, apagando o rastro e se colocando como

tecnologia de poder única, ocorre uma mutação apresentando características distintas.

Trata-se precisamente da sociedade de controle, que difere da biopolítica no sentido

de que objetiva algo além dos processos biológicos (nascimento, morte, epidemias).

Tal tecnologia de poder viabiliza-se pela evolução tecnológica dos meios de

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comunicação, dispositivos que visam controlar os cérebros, modular a memória, os

afetos e desejos dos indivíduos.

Nessa nova configuração o marketing e a publicidade assumem uma posição

de destaque pois de forma perspicaz, sutil e extenuante cria subjetividades e mundos

possíveis. Uma verdadeira crise institucional deixa entrever a emergência da

sociedade de controle, os espaços fechados sofrem reformas, já não exercem as

mesmas funções. Ainda existem, mas não explicam por si só todos os dispositivos de

governo. Os mecanismos de controle vão paulatinamente se articulando com as

disciplinas, administrado corpos, espaços e tempos de uma forma diversa, Deleuze

(2013) propôs o marketing como o novo modelo de controle social, como práticas de

gestão que modulam as multiplicidades em espaço aberto. As sociedades

disciplinares eram marcadas por redes institucionais estáticas, nas sociedades de

controle os mecanismos de controle tecem redes flexíveis, capazes de identificar a

posição de um elemento, de como eles se posiciona diante de si e dos outros, por

quais mudanças passou, o que pretende, doravante as mentes, as subjetividades, a

existência, serão mapeadas com precisão. Por um lado, essas redes flexíveis

expressam-se de forma aberta e transigente, por outro será astuta e extenuante, o

capitalismo para além de produzir coisas, produzirá sujeitos e formas de vida, estendo

os mecanismos de dominação sobre todas as relações sociais.

Nas sociedades de controle passamos de um modelo de fábrica para um

modelo de empresa, que procura modular, segundo Deleuze (2013), o salário que

varia de acordo com os méritos conquistados. Assim como a educação permanente e

continuada sucederá a escola, o sistema de modulação ocupará todos os espaços

sociais associando méritos acumulados à benefícios cedidos.

Deleuze (2013) dirá que não se trata mais de fabricar a partir de matéria-prima,

mas de comprar produtos prontos e montar peças, porque o objetivo é vender serviços.

Podemos constatar esse processo na área de software, com o surgimento das

arquiteturas orientadas a serviços (SOA), a componentização intensa, conjunto de

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ferramentas para Cloud e BigData, modulares e parametrizadas, além da infinidade

de engrenagens de software para as mais variadas finalidades, extremamente

configuráveis. A área comercial e de marketing se transformaram na alma da empresa.

No centro da produção capitalista e da extração de mais-valia estão as capacidades

cognitivas e afetivas, a economia, o político e o cultural se imbricam de maneira

indissociável em uma produção biopolítica, os mecanismos de controle ocupam

mentes e corpos. A vida se torna uma engrenagem do capital sob um controle

perpétuo.

Os comportamentos de integração social e de exclusão próprios do mando

são, assim, cada vez mais interiorizados nos próprios súditos. O poder agora

é exercido mediante máquinas que organizam diretamente o cérebro (em

sistemas de comunicação, redes de informação etc.) e os corpos (em

sistemas de bem-estar, atividades monitoradas etc.) objetivando um estado

de alienação independente do sentido da vida e do desejo de criatividade.

(HARDT; NEGRI, 2001, p. 42)

A cooperação entre mentes começa fora da empresa, na produção de

conhecimento, linguagem, ciência, informação, posteriormente essa produção será

assimilada pela máquina capitalista, a cooperação de se dá forma pública, a

sociedade de controle captura no campo das relações sociais a produção da

cooperação entre cérebros que não mais se pode confinar. Novas políticas de poder

foram gestadas para além das biopolíticas e disciplinas que vigoraram no Estado de

bem-estar social e da organização do trabalho fordista.

Os acontecimentos que marcaram o ano de 1968 suscitam novas

subjetividades que lutam contra a apropriação privada do comum produzido e

asseveram a sua livre circulação, surgem então novas tecnologias de controle para

se apropriar dessa produção, por esse motivo a cognição e os afetos ocupam um lugar

de destaque, sendo o principal alvo dos mecanismos de controle e dos processos de

geração de riqueza. Os mecanismos de controle pavimentam o caminho para a

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acumulação capitalista, quando captura as potencias cognitivas e afetivas, não

deixando escapar nenhuma dimensão da vida. A máquina comunicativa exercerá um

papel central nesse modelo de produção, controlando e capturando os fluxos de

trabalho e desejo no interior da urdidura social, a publicidade encontra a sua razão de

ser na produção de subjetividade.

Lazzarato (2006) cria o conceito de noopolítica para dar conta das novas

técnicas de controle, para Lazzarato os dispositivos de poder que nascem em épocas

distintas e tem propósitos diversos não se substituem, antes se agenciam mutuamente.

Assim o modelamento dos corpos se dá nos espaços confinados, a gestão de

populações através de técnicas biopolíticas, e a modulação da memória é pautada

pela noopolítica, a partir de redes tecnológicas, marketing e formação da opinião

pública. A memória é o que o capitalismo quer capturar para controlar a cooperação

entre cérebros. A partir da modulação de desejos e crenças, o noopoder pretende

capturar a inteligência, a memória e a atenção, para explorá-las economicamente,

novas subjetividades serão forjadas pela instituição da opinião pública e pela ação do

marketing. No final do século XIX surgem novas tecnologias de poder que agenciam

subjetividades no espaço aberto, marca o momento de nascimento da atual sociedade

de controle que se caracteriza pela emergência da cooperação entre cérebros e seu

funcionamento por fluxos e redes, e desenvolvimento de dispositivos tecnológicos de

ação à distância como telegrafo, o telefone, o cinema, televisão, internet.

Para Lazzarato (2006), Gabriel Tarde, é testemunha privilegiada dessa época,

e ele traçara um esboço de sociedade cuja centralidade é ocupada pela categoria por

ele denominada de público, não se tratando destarte de classe, massa ou população.

Tarde entenderá por público, não mais o público determinado por posição social ou

pela tradição, remete ao aditamento de algum produto, serviço ou opinião. O público

da mídia, dos meios de comunicação, “é uma massa dispersa, cuja influência de uns

espíritos sobre os outros se converte em uma ação a distância” Lazzarato (2006, p.

90).

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A cada tipo de sociedade, evidentemente, pode-se fazer corresponder um tipo

de máquina: as máquinas simples ou dinâmicas para as sociedades de

soberania, as máquinas energéticas para as de disciplina, as cibernéticas e

os computadores para as sociedades de controle. Mas as máquinas não

explicam nada, é preciso analisar os agenciamentos coletivos dos quais elas

são apenas uma parte. (DELEUZE, 2013, p. 220)

A captura da multiplicidade de subjetividades se dará pelas novas tecnologias

de ação à distância, que se desenvolvem e se influenciam mutuamente em espaço

aberto. O que nos remete a uma subjetividade midiática. As máquinas de expressão,

constituída por tecnologias de velocidade, transmissão e contágio, vão modular por

intermédio do marketing, as vontades, desejos e crenças compartilhadas por um

público. A instituição da opinião pública e da inteligência coletiva junto com as

tecnologias de ação à distância vão expressar as novas relações de poder. O controle

sobre a opinião, estilo de vida e identidades vai além da disciplina e da biopolítica.

Trata-se de um modo de subjetivação que vem na esteira dos acontecimentos de 1968,

presentes nos movimentos culturais e políticos, caracterizada pela produção de bens

comuns através da cooperação entre cérebros.

Ainda a partir de uma perspectiva da sociedade de controle, podemos afirmar

que o empresário de si mesmo, produzido por intervenções neoliberais, garante que,

a partir de uma estrutura competitiva, todos os agentes sociais assumam seus riscos,

e encontrem por si mesmos, seu espaço na economia de mercado.

O capitalismo busca capturar a memória para controlar a produção entre

cérebros, a gestão desses mecanismos se dará por dispositivos noopolíticos, desse

modo as tecnologias de ação à distância operam como memórias artificiais

conectadas a memória e atenção dos indivíduos. O que se gerencia é a vida articulada

a máquinas de informação, com bases de dados, grandes reservatórios de

informações. Tudo está registrado, as consultas médicas, as dívidas, as compras, os

desejos e os sonhos, os hábitos alimentares, as preferências músicas e estéticas.

Esse é um tipo de governo que depende dos regimes de empresas, não do Estado,

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embora exista articulação entre ambos. A empresa, pois, deverá criar mundos mais

do que mercadorias, para acolher a todos os indivíduos.

“E de que mundo se trata? Basta ligar a televisão ou o rádio, fazer um passeio

pela cidade, comprar um jornal ou uma revista, para saber que este mundo é

constituído pelos agenciamentos de enunciação, pelos regimes de signos em

que a expressão recebe o nome de publicidade e em que a expressão

constitui uma solicitação, um comando, que são, eles mesmos, formas de

avaliação, de julgamento, repertório de crenças trazido para o mundo, a

respeito de si mesmos e dos outros. A expressão deixa de ser uma avaliação

ideológica para se tornar uma incitação, um convite a partilhar determinada

maneira de se vestir, de ter um corpo, de comer, de comunicar, de morar, de

deslocar-se, de ter um gênero, de falar e assim por diante. ” (LAZZARATO,

2006, p.100)

Doravante será o mercado o articulador das relações sociais, não mais o

Estado, nem tampouco a sociedade civil. A produção noopolítica promove uma

homogeneização e não a singularização das individualidades.

É possível fazer uma conexão com as categorias de “maioria” e “minoria”

elaboradas por Deleuze, que não se refere a quantidade de pessoas, mas a um perfil

subjetivo específico utilizado como padrão de medida para outras subjetividades. A

gestão noopolítica da vida nas sociedades de controle se dá pela criação de modelos

predominantes. O jovem cheio de vida e energia, desejando se inserir no mercado,

usuário de tecnologia, buscando uma formação constante, não se constitui em maioria

no mercado de trabalho, mas serão as técnicas de marketing que estabelecerão um

molde, conformando desejos e crenças. Esse molde norteará uma infinidade de

iniciativas do mercado. As máquinas de expressão respondem a interesses de setores

dominantes, conformando perfis de subjetividades, como a subjetividade do

“empreendedor de si” tão cara ao neoliberalismo vigente. Assim se dá a modulação

de condutas, de comportamentos, de desejos, na sociedade de controle. Todos serão

afetados por essas máquinas de expressão e captura, que seguem rigorosamente uma

gramática neoliberal, dando origem a uma massa despolitizada e sequiosa por dinheiro.

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2.3 Trabalho imaterial

O conceito de trabalho imaterial foi construído a partir das experiências de

Antônio Negri no movimento operaísta na Itália entre as décadas de 1960 e 1970.

Nesse período ocorre a fase mais aguda da transição do fordismo para o Pós-

Fordismo.

Desse acontecimento depreende-se o declínio do operário fordista habituado

ao trabalho mecânico da produção em massa, que será substituído por tipo de

operário que se depara com situações diversificadas, espera-se que tome decisões

assertivas, que exigirão mais qualificação, habilidades cognitivas, afetivas,

comunicativas, cooperativas. A hierarquia e o comando-controle passam a afetar

sobremaneira a produtividade, porque coloca empecilhos à criatividade e inovação,

conquistadas às custas do engajamento anímico irrestrito dos indivíduos. Na

linguagem contábil os produtos criados a partir da perspectiva do trabalho imaterial

serão considerados intangíveis, comunicação, informação ou relações afetivas.

Salienta-se que a característica principal não é o produto gerado, mas o processo em si.

O desenvolvimento de software enquadra-se nessa categoria de trabalho

imaterial, atividade que exige um grande esforço cognitivo e de comunicação, voltado

para resolução de problemas complexos, lida o tempo inteiro com linguagens de

programação atividade puramente simbólica, deve-se considerar que o código escrito

de alguma forma comunica ideias e estabelece procedimentos que serão executados

de acordo com algoritmos escritos pelo desenvolvedor. Mas também implica em

trabalho afetivo, pois além da sensação de bem-estar e satisfação que persegue ao

resolver problemas complexos e criar soluções com qualidade, deve interagir com

seus pares de maneira a compartilhar e buscar harmonia, e também interagir com

clientes e outros atores envolvidos nesse processo produtivo visando também a sua

satisfação.

Os departamentos de recursos humanos das empresas passam a orientar

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seus colaboradores no sentido de serem mais cordiais na comunicação corporativa,

generosos, educados, da importância do traquejo social, do jogo de cintura, da

resiliência, de suportar de forma positiva as pressões e contradições do ambiente de

trabalho, fazendo do trabalho afetivo uma competência fundamental. O trabalho será

tão mais produtivo se as relações forem permeadas por confiança e espaço para o

ser e o fazer criativo.

No contexto do trabalho flexível, precário e intenso que procuramos

elucidar nesse trabalho, o conceito “colaborador” criado pelo discurso de gestão, soa

na verdade como um eufemismo que busca suavizar a realidade da exploração. O

termo amplamente utilizado atualmente busca passar a ideia de que o trabalhador é

artífice e protagonista do sucesso da empresa, adotando os objetivos da corporação

como se fossem seus próprios, o sujeito dessa forma se vê encapsulado pela cultura

organizacional. Vemos como o poder da linguagem, da comunicação e dos afetos,

utilizado pelo marketing interno das empresas tem uma eficácia insidiosa. Exalta a

cooperação, a tomada de decisões e a responsabilidade pela qualidade, produzindo

uma outra maneira de ver, sentir, pensar e fazer. Guarda relação estreita com o

processo perpétuo de qualificação, pois não se trata mais de disciplina, mas de uma

intensidade que o trabalhador impinge a si mesmo buscando um sentido existencial

entre objetivos que dizem respeito somente à empresa. Estratégia para garantir a

adesão do trabalhador ao trabalho fluído, multidisciplinar, que não se resume mais à

distribuição de tarefas, pois a exploração não está mais restrita ao tempo e espaço,

ela se dá de maneira rizomática ao sabor da sociedade de controle.

Ainda assim existe um esforço em automatizar todas as tarefas que forem

suscetíveis de serem automatizadas, reduzindo ainda mais o trabalho mais “braçal” e

repetitivo na produção de código. Há que se destacar também que o desenvolvedor

está inserido em uma rede gigantesca de blogs, sites técnicos, comunidades

tecnológicas de todo tipo, redes sociais, fóruns de discussão, de forma que muitas

soluções e troca de informações técnicas, de negócio e comportamentais ocorrem o

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tempo inteiro, inclusive fora do trabalho, no suposto “tempo livre”. Cooperação que

extrapola os limites da empresa, em alguns momentos se tem a impressão de uma

diluição da individualidade em um mar de informações, ideias, conhecimentos e

experiências. Segundo Hardt e Negri:

“A informação, a comunicação e a cooperação tornam-se as normas da

produção, transformando-se a rede em sua forma dominante de organização.

Assim é que os sistemas técnicos de produção correspondem estreitamente

a sua composição social: de um lado, as redes tecnológicas, e de outro a

cooperação dos sujeitos sociais que trabalham” (HARDT; NEGRI, 2012, p.

156)

Essa nova estrutura do trabalho predispõe novas formas de exploração, no

fordismo a exploração do valor era baseada na espoliação da medida do tempo

individual ou coletivo, no Pós-Fordismo a espoliação se dará pelo trabalho cooperativo.

Na economia muitos tipos de trabalho coexistem, entre eles apenas um assume o

papel de transformar os outros, tornando-se hegemônico. Para Hardt e Negri

hegemônico designa tendência. (Hardt e Negri, 2012, 148).

No fordismo o trabalho industrial foi hegemônico, não quantitativamente na

sua origem, o trabalho puramente braçal ainda caracterizavam a agricultura e a

mineração. Com o tempo todas as indústrias e formas de trabalho se viram

pressionadas a acompanhar as mudanças ditadas pelo fordismo. Paulatinamente o

ritmo de trabalho industrial colonizou outras instituições sociais, como a família, a

escola. Com o declínio acentuado do fordismo nos últimos anos da década de 1960 e

início da década de 1970, ganha destaque o trabalho imaterial, cuja essência está na

produção de conhecimento, informação, comunicação, relações sociais, todo o resto

até mesmo o trabalho industrial passa a gravitar em torno desse núcleo que rearranja

todas as relações de trabalho e sociais. Na comunicação, afeto e cognição estão

sempre juntos, trata-se de uma unidade de corpo e mente que colocada em

movimento forma um todo produtivo e potente.

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Quem produz software, por exemplo, deve ter em mente que ele deve

possibilitar “boas experiências” para os clientes, de forma que fiquem maravilhados,

que tenham a sensação de êxtase, a ponto de curtir, recomendar, emitir julgamentos

positivos, dessa forma o software ao ser utilizado cria afeto e também estimula a

cognição. Depois tudo isso pode ser capitalizado em uma campanha de marketing

que utilizará conhecimento, comunicação e afetos para gerar mais valor. Seja um

software comercial, um jogo digital ou o Internet Banking, o cliente também está

produzindo valor, afetos, conhecimento. Quando algo não lhe agrada ou apresenta

um defeito, mesmo sem receber por isso, ele interage com a empresa que vai

capitalizar essa experiência, e se possível corrigir as falhas, gerando mais valor. Ainda

assim a empresa fornecedora monitora os hábitos do cliente, formando uma grande

base de informações, conseguindo determinar aspectos que mais agradam. Veremos

adiante como a questão do feedback torna-se fundamental no processo de trabalho.

Hardt e Negri sugerem que o adjetivo biopolítico represente melhor essa nova

configuração do trabalho do que o termo imaterial, porque as fronteiras entre

economia, política e social praticamente esmaeceram-se, tornaram-se indistinguíveis.

A posição de hegemonia que o trabalho imaterial ocupa não se deve a seu aspecto

quantitativo, mas enquanto tendência, em um sentido qualitativo. Influencia outras

formas de trabalho e a sociedade como um todo.

Em outras palavras, Hardt e Negri sustentam que:

“O trabalho imaterial encontra-se hoje na mesma posição em que estava o

trabalho industrial há 150 anos, quando respondia por apenas uma pequena

fração da produção global e se concentrava em uma pequena parte do mundo,

mas exercia hegemonia sobre todas as outras formas de produção. Assim

como naquela fase todas as formas de trabalho e a própria sociedade tinham

de se industrializar, hoje o trabalho e a sociedade devem se informatizar”.

(HARDT; NEGRI, 2012, p. 151)

A hegemonia do trabalho imaterial também nada tem a ver com qualquer

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teoria etapista, que utopicamente coloca o trabalho imaterial como sendo uma

evolução benéfica. Como alguns gurus da gestão, a exemplo da expressão

“trabalhador do conhecimento” cunhada por Peter Drucker, entre outros profetas da

nova economia.

Outra mudança profunda se dá com relação ao tempo de trabalho, que não

se restringe mais às horas dentro da empresa. Isso se faz notar com clareza no

trabalho do desenvolvedor de software e outros trabalhos ligados a indústria digital,

dada a complexidade dos problemas e tecnologias envolvidas, adquire-se o hábito de

pesquisar e aprofundar conhecimentos tecnológicos, que não caberiam no espaço de

tempo produtivo contratado, ampliando capacitações e competências, mas também

criando um tipo de subjetividade nerd 3 , bastante apreciada nesse segmento de

negócio. Aqui o tempo de trabalho se expande como um gás, ocupando toda a vida

da pessoa. Afetos, conhecimentos, comunicação, são elementos que possibilitam um

compartilhamento quase infinito, não sendo possível estabelecer esse fundo comum

através de bens materiais. Para sustentar a tese da hegemonia do trabalho imaterial

como tendência, Hardt e Negri apresentam provas. (Hardt e Negri, 2012, 152)

Em primeiro lugar o crescimento do setor de serviços, principalmente nos

países dominantes. A produção material acaba sendo transferida para países

periféricos, seguindo os ditames globais da divisão de trabalho e poder.

Em segundo lugar outros setores da economia sofrem influências e acabam

se enquadrando nas exigências de adequação e assimilação de mecanismos de

3 “Nerd é um conceito sociológico moderno que por vezes é descrito como uma tribo urbana, muito

embora possua características gerais mais imprecisas do que a maioria delas, e embora também não

preceda à autoidentificação. A ideia de "nerd" está profundamente atrelada, historicamente, à

adolescência e juventude, bem como à cultura do sistema escolar dos Estados Unidos, ainda que

também tenha sido exportada para outros países. Em termos gerais, o nerd é uma pessoa vista como

excessivamente intelectual, obsessiva por assuntos que a maioria das pessoas não se interessa, e com

falta de habilidades sociais fora do meio nerd. Tal pessoa pode gastar quantidades excessivas de tempo

em atividades impopulares, pouco conhecidas ou não, que geralmente são altamente técnicas,

abstratas ou relacionadas a tópicos de ficção ou fantasia, com exclusão de atividades mais comuns”.

Disponível em:< https://pt.wikipedia.org/wiki/Nerd/>. Acesso em: 05 de ago. 2017.

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produção de informação, comunicação e afetos. Além disso outros segmentos do

setor de serviços vão emergindo e proliferando a partir dessa produção, como as

diversas consultorias de marketing e comunicação, as consultorias de coaching, as

consultorias de head hunter, as consultorias de treinamento em geral, via de regra

incorporando conceitos como complexidade, recentes descobertas das neurociências,

escolas de psicologia que se prestam a todo tipo de papel pragmático e utilitarista.

Em terceiro lugar a crescente importância e preocupação com controles e

questões legais relacionadas à patentes e direitos autorais. Vale destacar que tal

obsessão se dá porque diferentemente da propriedade material, a produção imaterial

se dá em rede, de forma cooperativa, e seu valor está relacionado ou é diretamente

proporcional a sua circulação e reprodução, esse caráter fugidio dificulta a sua

apropriação.

Em quarto lugar a produção se dá em rede, de forma colaborativa, baseado

em troca de conhecimento, a rede tornou-se a gramática através da qual deciframos

e nos situamos no mundo.

2.4 O homo credor e a vida como dívida

O momento histórico pelo qual passamos reflete o êxito do neoliberalismo,

que operou uma profunda mudança antropológica, urdiu meticulosamente todos os

fios necessários para estabelecer um controle e uma opressão sem precedentes.

Dentro desse contexto Negri e Hardt sugerem quatro figuras subjetivas que nasceram

a partir dessa nefasta transformação: o homem endividado, o homem midiatizado, o

homem securitizado e o homem representado.

O endividado é aquele que tem sua vida e sobrevivência pautada pela dívida.

O avanço neoliberal sobre as políticas de bem-estar transformou necessidades sociais

em produtos e serviços adquiridos mediante financiamento. Essa relação de controle

criada pelos contratos de prestação de serviços e financiamento de bens essenciais

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molda nossos ritmos e escolhas, como exemplifica Negri e Hardt:

“Se você terminar o curso superior endividado, deverá aceitar o primeiro

emprego oferecido a fim de honrar sua dívida. Se comprar um apartamento

hipotecado, não deverá perder seu emprego, tirar férias, nem pensar em

deixar o trabalho. “ (HARDT; NEGRI, 2014, p. 160)

A dívida exerce uma coerção utilizando um expediente de culpa minando a

potência subjetiva e subordinando os endividados à uma lógica espúria. A produção

capitalista não está mais confinada às paredes de uma fábrica, expandiu-se

açambarcando a vida, explora nossas capacidades de criação, comunicação e afeto,

rompeu as barreiras de tempo do trabalho e não trabalho, atravessando nossas

subjetividades à velocidade da luz, quase não deixando rastros. O sentido do trabalho

mudou, mesclou-se de tal forma à vida, que faz coexistir liberdade e sujeição em um

paradoxo quotidiano por vezes indecifrável. O capitalismo, entretanto, precisa

subjugar, caso contrário o processo de acumulação corre risco de se romper, tal é sua

capacidade de se adaptar, para se esquivar do risco, da incerteza, coloca o motor da

acumulação na renda que se vale mais de instrumentos financeiros do que do lucro

propriamente dito, a dívida, portanto passa a ser o fiel da balança na relação de

produção. A dívida aqui assume um caráter mais amplo, não é só financeiro, mas de

trabalho, de consentimento, de excelência, de tempo. A medição de produtividade que

desde os primórdios do capitalismo se mostrou como ferramenta imprescindível de

comando e controle, perdeu sua legitimidade nessa nova máquina de fragmentar

corpos e almas. A dívida passa a exigir um comprometimento de produção em regime

de 24/7, como afirma Crary:

“Um ambiente 24/7 aparenta ser um mundo social, mas na verdade é um

modelo não social, com desempenho de máquina - e uma suspensão da vida

que não revela o custo humano exigido para sustentar sua eficácia [...] a

novidade está na renúncia absoluta à pretensão de que o tempo possa estar

acoplado a quaisquer tarefas de longo prazo [...] O tempo 24/7 é um tempo

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de indiferença, ao qual a fragilidade da vida humana é cada vez mais

inadequada. ” (CRARY, 2015, p. 65)

O esforço midiático em esmaecer as fronteiras entre a necessidade e o

supérfluo coloca a relação consumo-sobrevivência em outro patamar, constituindo-se

em outra engrenagem na máquina da dívida. Crary lembra que:

“A ausência de restrições de consumo não é simplesmente temporal. Foi-se

a época em que a acumulação era, acima de tudo, de coisas. Agora nossos

corpos e identidades assimilam uma superabundância de serviços, imagens,

procedimentos e produtos químicos em nível tóxico e muitas vezes fatal. A

sobrevivência do indivíduo, a longo prazo, é sempre dispensável, se para

tanto seja preciso contar, mesmo que indiretamente, com a possibilidade de

interregnos sem compras ou sem o fomento delas. ” (CRARY, 2015, p. 71)

Atualmente vivemos um dilema no que diz respeito ao acesso à informação,

que não passa pela escassez, mas pelo excesso. O indivíduo não tem mais um

espaço existencial a partir do qual possa digerir todas as informações que recebe,

Deleuze falará de “vacúolos de solidão e de silêncio a partir dos quais eles teriam,

enfim, algo a dizer”. (DELEUZE, 1992, p. 166)

Para além da subjetividade ativa ou passiva, existe uma disputa sem trégua

pela atenção. O trabalho e a economia dependem cada vez mais da tecnologia e da

comunicação, sem as quais a colaboração da produção biopolítica não seria possível.

A mídia exerce uma dupla influência sobre a subjetividade ora aprisionando, ora

libertando.

Segundo Negri e Hardt podemos buscar uma inspiração na definição de

trabalho vivo e trabalho morto de Marx para entender o processo de produção da

informação:

“Enquanto a linguagem morta da administração e das máquinas codifica e

reforça o funcionamento da disciplina e as relações de subordinação, a troca

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de informação viva entre os trabalhadores pode ser mobilizada na ação

coletiva e insubordinação [...] A classe e as bases da ação política são

formadas não por meio da circulação das informações ou até mesmo das

ideias, mas sim mediante a construção de afetos políticos, o que requer a

proximidade física. ” (HARDT; NEGRI, 2014, p. 102).

O homem midiatizado está sobrecarregado de informação morta, já não pensa,

apenas reproduz com base na sua conveniência insuspeita, versões de fatos e

acontecimentos produzidos por centros de poder que trabalham para que tudo tenha

aparência de mudança sem mudar absolutamente nada. A preponderância da

sociedade da informação articulada com a exacerbação da vigilância nos coloca no

cerne da sociedade de controle. Toda nossa interação com o mundo, sejam físicas,

emocionais, informais, laborais, intelectuais, cognitivas são rastreadas e registradas.

Vivemos reclusos nesse emaranhado tecnológico-prisional e nos regozijamos com a

falta crescente de liberdade. O medo é que caracteriza o homem securitizado, e a

mídia particularmente, ajuda a reforçar essa sensação de guerra constante, de

selvageria, do qual tentamos evadir, adestrando nossos desejos e receios, criando

uma atmosfera de suspeição e desconfiança. Tal situação opera na subjetividade uma

mudança mais sutil, nos transforma, para além de objetos, em sujeitos da segurança,

como próteses humanas do aparato de vigilância. O Estado de exceção permanente,

promovido pelo Neoliberalismo requisita e reproduz esse homem securitizado, que por

sua vez serve voluntariamente aos propósitos desse sistema político-econômico

opressivo.

O capitalismo global insiste na ideia de que a democracia representativa é a

solução mais bem-acabada da nossa civilização para inclusão política de todos os

indivíduos de uma determinada sociedade, mais uma vez a mídia investe no reforço

na figura subjetiva do homem representado sugerida por Negri e Hardt. A

representação seria mais obstáculo do que veículo para a realização da democracia,

pois todo o processo eleitoral está subordinado às elites que exercem seu poder

econômico para conquistar posições na complexa estrutura de tomada de decisões

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estatal. Todos os movimentos sociais que almejam mais participação democrática são

sufocados ou incorporados por uma ampla frente parlamentar-midiática-judiciária. A

ideia de que essas “classes perigosas” possam participar do processo decisório,

mantém as pessoas atreladas ao decadente sistema representativo. O que torna esse

contexto mais dramático é o encapsulamento dos sistemas de representação política

nacionais, por instituições globais, que operam um afrouxamento da governança local

via implantação de políticas neoliberais. O representado torna-se um recipiente vazio,

acossado, despojado de suas vestes de cidadão, presa fácil de qualquer investimento

fascista.

Todas essas figuras subjetivas estão imbricadas, acionam-se reciprocamente,

formando um rizoma4, não obstante farei uma leitura no sentido de que o homem

endividado se constitui no nexo sobre o qual a sanha neoliberal repousa, e a partir do

qual todas as outras figuras se articulam para reforçar os grilhões do homem

endividado.

A dívida reforça os mecanismos de dominação, podemos falar de uma relação

dominante-dominado deslocada para uma relação credor-devedor. A fabricação do

homem endividado não se dá por coerção, mas pela produção de uma subjetividade

específica. Dotada de uma capilaridade ardilosa, penetra no tecido social de forma

indistinta colocando no mesmo plano trabalhadores e desempregados, consumidores

e produtores, ativos e inativos. Até mesmo a dita sociedade do conhecimento e da

informação, com suas esperanças de libertação, sucumbe diante da economia da

dívida, cujo instrumento privilegiado é a culpa. Decreta uma despossessão tripla: no

plano político promove ou acelera a derrocada da democracia representativa; das

riquezas conquistadas pelas lutas históricas contra as desmedidas capitalistas; e

sobretudo do futuro, do tempo como possibilidade.

A culpa e a responsabilidade engendrada a partir da subjetividade do

4 Segundo Deleuze e Guattari, é um labirinto, uma estrutura de passagem subterrânea, nele não há começo nem fim, é uma estrutura de passagem disposta em uma tal confusão métrica que se torna obscuro, não se sabe qual elemento ou lugar do labirinto nos levará ao próximo, um sistema de atalhos e desvios, mas jamais em vias diretas e retas. Um lugar de encontros imprevistos.

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homem endividado, foi magistralmente costurada com a ideologia neoliberal das

décadas de 1980/1990 de capital humano, empreendedorismo de si, meritocracia,

conceitos que já não aderem como antes, apesar de todo esforço midiático e do

discurso de gestão ainda vigente. Toda mitologia criada em torno das aventuras épicas

de empreendedores já perdeu grande parte de seu glamour, o empresário criativo e

inovador, o funcionário empreendedor. Lazzarato (2013) aponta dois acontecimentos

recentes que contribuíram para arrefecer o sonho do empreendedor bem-sucedido: a

bolha da internet nos anos 2000 e a crise do Subprime em 2007/2008. A crise do

subprime, como ficou conhecida em 2008, ganhou proporções globais rapidamente,

impactado de forma deletéria a economia de diversos países, e foi considerada por

muitos como a pior crise desde o crash da bolsa de 1929. Gerou uma onda de

desemprego avassaladora, cortes salariais e um significativo aumento da pobreza

mundial, afetando principalmente os mais vulneráveis, mas também a camada jovem

da população. Uma crise que tem seu início no mercado imobiliário, se alastra pelo

setor financeiro e atinge empresas de qualquer tamanho e segmento.

A bolha das empresas “ponto com", termo que se refere a um aquecimento

demasiado do mercado que infla e pode estourar, se estendeu pelos anos finais da

década de 1990, e seu ápice no primeiro semestre de 2000. Nesses anos as ações

das empresas de comércio eletrônico e outras do segmento, alcançaram altos preços

nas principais bolsas de valores. Existia uma aposta demasiada do mercado no rápido

retorno de investimentos dessas empresas, havia muito capital de risco, provocando

um descaso sobre o que diziam aqueles que defendiam métodos mais tradicionais de

avaliação de ativos, inebriados com a possibilidade de altos lucros e do avanço

tecnológico que tais investimentos viabilizavam, deixaram a cautela de lado. Muitas

empresas ofereciam serviços e produtos gratuitamente esperando valorizar a marca

e ganhar no futuro, as despesas seriam pagas pelas ofertas públicas de ações. Entre

as causas para o estouro da bolha, queda vertiginosa das ações, podemos citar: a

corrupção corporativa, pois as empresas faziam largo uso da contabilidade criativa

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para esconder seus balanços contábeis; os altos investimento no Bug do milênio,

milhares de aplicações de software não estavam preparadas para operar na virada do

milênio; e por último a percepção tardia de que a internet não oferecia reais

possibilidades de lucro rápidos e ilimitados para todos como se acreditava. Muitas

empresas faliram outras, entretanto lucraram muito com a crise, entre elas Google,

Yahoo e Amazon. Ao final da crise a internet se expandiu ainda mais e de forma mais

sólida. Bolhas tecnológicas são comuns na história do capitalismo, a exemplo das

ferrovias na década de 1840, dos carros e do rádio na década de 1920 e dos

eletrônicos na década de 1950.

Discurso de gestão que paulatinamente se transforma em discurso de

contenção de custos e de análise de riscos em vista de uma possível catástrofe

financeira global. O indivíduo deve seguir os passos do Estado e das empresas,

preocupar-se em primeiro lugar com suas dívidas. Trata-se também de uma amnésia

crônica e conveniente das crises financeiras cíclicas que drenam todas as riquezas

produzidas pela sociedade, e as transfere para os mais ricos e para as empresas. A

mídia, os empresários e os economistas, como legítimos operadores e beneficiários

do bloco de poder neoliberal, não desejam regular os excessos do capitalismo

financeiro, mas administrá-los mediante a chantagem da não quitação da dívida. A

orquestração de políticas neoliberais passa pela imposição de medidas de

austeridade, que normalmente incluem redução e congelamento de salários e

benefícios sociais, operando uma dupla pilhagem, ao mesmo tempo em que direciona

os recursos para pagamento dos títulos da dívida pública regiamente pagos com juros

escorchantes, abre as portas dos serviços de educação e saúde para a iniciativa

privada.

Lazzarato (2013) assevera que carecemos de conceitos que nos permita

analisar as finanças e a economia da dívida como política de sujeição, nessa

empreitada intelectual ele recupera a relação credor-devedor descrita no Anti-Édipo

de Deleuze e Guattari, como antecipação teórica do deslocamento do capital, busca

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elementos na genealogia da moral de Nietzsche e na teoria marxista da moeda. A

partir desse referencial teórico levanta a hipótese de que o paradigma social deve ser

buscado na relação de crédito e dívida, que impõe uma assimetria e não uma

igualdade de intercâmbio, sua história antecede a história da produção e do trabalho

assalariado. Postula também que a dívida é uma relação econômica indissociável da

produção do sujeito devedor e sua moral, o conceito de economia abrange a produção

econômica e de subjetividades. Se quisermos combater o capital, devemos entender

como as categorias clássicas revolucionárias foram subsumidas, atravessadas e

redefinidas pela dívida. “Com o crédito se volta a uma situação verdadeiramente

feudal, de uma porção de trabalho devida de antemão ao senhor, ao trabalho servil. ”

(BAUDRILLARD apud LAZZARATO, 2013, p. 82).

O déficit estrutural é artificialmente criado por políticas públicas de emprego

que privilegiam a exploração do trabalho precário, facilitada pela flexibilização da

legislação trabalhista ideologicamente assentada na igualdade de negociação entre

empresários e trabalhadores. A dívida pública gerada pelo mercado financeiro, força

o Estado a gerar títulos que serão adquiridos pelos bancos privados drenando em

benefício próprio toda a mais valia produzida pela sociedade. As agências

internacionais que qualificam o nível de insolvência dos países, estão associadas ao

grande capital e trabalham no sentido pode produzir uma dívida pública impagável,

constitui-se, portanto, por seu poder de avaliação, em uma engrenagem vital do

moinho da subserviência. Outra fonte importante para os credores é o consumo, pois

através dele se mantém uma relação quotidiana com a economia da dívida,

carregamos o vínculo com o credor no cartão de crédito, um inocente pedaço de

plástico que nos transforma em devedores perpétuos.

Por todos os lados as riquezas escoem dos indivíduos, empresas e Estado

para os credores, a economia real não passa de mera engrenagem, de duto, para as

máquinas de valorização, acumulação e exploração capitalista. O crédito é um dos

melhores instrumentos de exploração que homem já criou, meros contratos assinados

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se apropriam de trabalho e riquezas. Aquilo que a mídia chama eufemisticamente de

especulação constitui uma máquina de captura de mais valia, nas condições da

acumulação capitalista atual na qual é impossível distinguir renda de ganância. O

processo de mudança das funções da produção e da propriedade do capital, que

começa a se estabelecer na época de Marx, hoje está consumado, segundo Marx “o

capitalista se transforma em mero administrador do capital”.

O neoliberalismo promove a interpretação dos sistemas monetário-bancário-

financeiro mediante as técnicas que traduzem a vontade de fazer dessa relação um

objetivo político de primeira magnitude. Ela reflete sem ambiguidade alguma, uma

relação de forças fundada na propriedade, na crise. A relação entre proprietários e

não-proprietários do capital multiplica seu fluxo sobre todas as outras relações sociais.

A financeirização é um enorme dispositivo de gestão de dívidas públicas e privadas.

Por esse motivo Lazzarato (2013) sustenta a centralidade da dívida na contramão do

que repetem jornalistas especializados e economistas, ou seja, as finanças não são

um excesso de especulação que deve ser contido, é o instrumento por excelência do

capitalismo neoliberal, que afeta e compromete visceralmente a sobrevivência,

abrangendo todos os aspectos da existência material como a moradia, a saúde, a

educação, a alimentação, a cultura.

“A dívida não se coloca como desvantagem para o crescimento, constitui pelo

contrário o motor econômico e subjetivo da economia contemporânea, a fabricação

da dívida é a construção de relação de poder entre credores e devedores, núcleo

estratégico das políticas neoliberais. ” (LAZZARATO, 2013, p. 37)

A economia da dívida é decisiva para compreender e combater

adequadamente o neoliberalismo, que se articula desde a sua gênese em torno da

lógica da dívida. O ponto de inflexão do neoliberalismo se deu em 1979, considerado

por alguns como um “golpe”, possibilitou a conformação de enormes dívidas públicas,

com as taxas nominais para reembolso das dívidas subindo constantemente, geraram

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um endividamento acumulado dos Estados de forma brutal. Diante da impossibilidade

de monetizar a dívida social, do Estado benfeitor, o próprio Estado organiza e coloca

em posição hegemônica os mercados financeiros, acarretando um aprofundamento

dos planos de austeridade, redução da máquina estatal e redução drástica de

benefícios sociais tão arduamente conquistados ao longo de muitas décadas de luta

contra a acumulação capitalista.

A dívida atua como máquina de captura e punição sobre a sociedade em seu

conjunto, como instrumento de gestão macroeconômica, funciona como dispositivo de

produção e governo de subjetividades coletivas e individuais, Lazzarato cita a teoria

econômica de André Orlean, que fala do poder credor e define a relação credor-

devedor como central na produção da governança, ou seja, mando capitalista:

“A potência credora, cuja a força se aprecia na capacidade de transformar o

dinheiro em dívida, e a dívida em propriedade, e influir diretamente nas

relações sociais que estruturam nossas sociedades. ” (ORLEANS apud

LAZZARATO, 2013, p. 93)

A regulação financeira coloca em primeiro plano o polo financeiro-credor, que

não se limita a influenciar as relações sociais, é em si uma relação de poder, implica

modalidades específicas de produção e controle de subjetividades, uma forma

particular de Homo Economicus, um Homo Credor.

A dívida exala uma moral própria, complementar a do trabalho, o esforço-

recompensa da ideologia do trabalho se soma à moral da promessa de reembolsar a

dívida, e a culpa de tê-la contraído. O poder da dívida não se exerce por opressão, o

devedor é “livre”, na medida em que assume um estilo de vida baseado no trabalho-

consumo. As técnicas que visam instruir como os indivíduos devem tratar a dívida já

começa na mais tenra idade. Já não é mais o pecado original que se recebe ao nascer,

mas as dívidas das gerações precedentes. O homem endividado está submetido à

uma relação de poder credor-devedor que o acompanha do berço à cova.

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CAPÍTULO 3 - MOVIMENTO ÁGIL

Fazemos uma introdução aos métodos ágeis, situando o movimento, que tem seu

marco oficial em 2001, em um contexto histórico. Destacamos o manifesto e os princípios

ágeis que estão na base de todos os métodos que se disseminam na esteira desse

movimento, e problematizamos alguns de seus aspectos Vale destacar também a

discussão de como o tempo é percebido e gerenciado pelos métodos ágeis. Destacamos

também a debate sobre a obsessão por medição colocando em evidência os mecanismos

sutis para controlar os indivíduos a partir da sua subjetividade, mesclando autonomia e

alienação. As práticas e dispositivos de intensificação presentes nos métodos ágeis

também são levados em consideração, bem como a questão da tecnologia presente no

cotidiano laboral, desmistificando a ideia preconizada de trabalho sustentável. Fazemos

também uma sinopse dos principais métodos ágeis (SCRUM, XP, LEAN, KANBAN),

destacando tópicos que interessam nessa pesquisa.

3.1 Introdução aos métodos ágeis e contexto histórico

Nas últimas décadas a indústria de software assumiu uma liderança em

relação à todas as outras, tal liderança justifica-se pela presença em praticamente

todas as atividades econômicas. O ambiente de negócios caracteriza-se por uma

competitividade acirrada cuja inovação é o carro chefe. Na visão do mercado devido

a uma incompatibilidade entre qualidade e velocidade, o que diferencia empresas

desse segmento é a entrega de produtos com qualidade, de forma rápida e valor

agregado. Esse cenário exerce uma pressão sobre as empresas que por sua vez

procuram maneiras mais eficientes e eficazes de construir os seus produtos e serviços.

Por volta dos anos 1990, surgem os métodos ágeis como resposta possível aos

anseios dessa indústria, essa nova proposta traz no seu bojo a necessidade de

mudança cultural nas organizações, assim também como uma nova subjetividade,

sendo mais adaptativo que prescritivo, mais empírico que determinista, preconiza

desenvolvimento de software simples e leve, um foco maior em pessoas, alicerçando-

se sobre um conjunto de valores, princípios e práticas.

Esse novo processo de trabalho popularizou-se depois de um encontro entre

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especialistas em desenvolvimento de software5 em 2001 numa estação de Esqui no

Estado de Utah nos Estados Unidos, do encontro resultou uma troca de experiências

e experimentos que evidenciou traços comuns. Para sacramentar e divulgar a

iniciativa elaboraram um documento que ficou conhecido como Manifesto Ágil:

Estamos descobrindo maneiras melhores de desenvolver software,

fazendo-o nós mesmos e ajudando outros a fazerem o mesmo. Através

deste trabalho, passamos a valorizar:

Indivíduos e interações mais que processos e ferramentas;

Software funcionando mais que documentação abrangente;

Colaboração com o cliente mais que negociação de contratos;

Responder a mudanças mais que seguir um plano.

Ou seja, mesmo havendo valor nos itens à direita, valorizamos mais os

itens à esquerda.6

“O Manifesto Ágil não rejeita os processos nem as ferramentas, a

documentação abrangente, a negociação de contratos ou o plano

preestabelecido, mas indica que eles têm importância secundária quando

comparados com indivíduos e interações, com software funcionando, com

colaboração com o cliente e com respostas rápidas a mudanças. A questão

não é a mudança em si, mesmo porque ela sempre ocorreu e ocorre de forma

frequente nos projetos. A questão é como receber, avaliar e responder a elas. ”

(PRIKLADNICKI, 2014, p. 1)

Com base o manifesto os especialistas definiram 12 princípios ágeis:

Nossa maior prioridade é satisfazer ao cliente com entrega contínua e

antecipada de software com valor agregado.

5 Os 17 autores signatários do Manifesto Ágil são: Kent Beck, Mike Beedle, Arie van Bennekum, Alistair

Cockburn, Ward Cunningham, Martin Fowler, James Grenning, Jim Highsmith, Andrew Hunt, Ron

Jeffries, Jon Kern, Brian Marick, Robert C. Martin, Steve Mellor, Ken Schwaber, Jeff Sutherland, Dave

Thomas.

6 12 Princípios ágeis. Disponível em: <http://www.manifestoagil.com.br/>. Acesso em: 9 jan. 2017

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Mudanças de requisitos são bem-vindas, mesmo tardiamente no

desenvolvimento. Os processos ágeis tiram vantagem das mudanças,

visando dar vantagem competitiva para o cliente.

Entregar software funcionando frequentemente, de poucas semanas a

poucos meses, com preferência para a escala menor de tempo.

Pessoa de negócios e desenvolvedores devem trabalhar diariamente em

conjunto por todo o projeto.

Construa projetos em torno de indivíduos motivados. Dê a eles o ambiente

e o suporte necessário e confie neles para realizar o trabalho.

O método mais eficiente e eficaz de transmitir informações para a equipe

e entre a equipe de desenvolvimento é a conversa frente a frente.

Software funcional é a medida primária de progresso.

Processos ágeis promovem um desenvolvimento sustentável. Os

patrocinadores, desenvolvedores e usuários devem ser capazes de

manter um ritmo constante sempre.

Contínua atenção à excelência técnica aumenta a agilidade.

Simplicidade – a arte de maximizar a quantidade de trabalho não realizado

– é essencial.

As melhores arquiteturas, os melhores requisitos e projetos emergem de

times auto-organizáveis.

Em intervalos regulares, o time reflete sobre como pode ser mais eficaz,

então refina e ajusta seu comportamento de acordo.7

Antes do surgimento dos Métodos Ágeis o parâmetro de sucesso para

projetos de software era definido pelo The Standish Group, instituição de âmbito

internacional que colhe estatística sobre andamento de projetos globalmente define o

conceito de projetos bem-sucedidos como:

7 Manifesto ágil. Disponível em: <http://www.manifestoagil.com.br/>. Acesso em: 9 jan. 2017

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“Aqueles finalizados dentro do prazo, dentro do orçamento e que contemplam

todas as funcionalidades originalmente especificadas; projetos desafiadores

são os que utilizaram um orçamento maior do que o previsto, finalizados fora

do prazo e que não contemplam todas as funcionalidades originalmente

especificadas; projetos que não tiveram sucesso são os que foram

cancelados em algum ponto do ciclo de vida desenvolvimento. ”

(PRIKLADNICKI, 2014, p. 2)

O surgimento dos Métodos Ágeis causou impacto na forma como as

empresas conduziam seus projetos, desde a negociação de contratos até a

gerenciamento das equipes. A mudança de paradigma do trabalho é acentuada, e

depois de 16 anos tem se mostrado como abordagem preferencial, independente da

forma como é aplicado.

A Engenharia de Software foi concebida na década de 1970 objetivando

mitigar a crise do software aplicando de forma sistemática e controlada princípios de

engenharia ao desenvolvimento de software complexos, que se caracteriza por um

conjunto de componentes abstratos de estruturas de dados e algoritmos

encapsulados na forma de procedimentos, funções, módulos, objetos, compondo a

arquitetura do software.

Nesse período a engenharia de software foi influenciada por processos de

manufatura, o que levou a uma padronização de processos.

Abrange todos os aspectos de produção de software, parte de uma

abordagem sistemática, usa técnicas de acordo com a natureza do problema, e

restrições impostas. Visa produção economicamente viável de software com

qualidade e confiabilidade. O desenvolvimento de um produto de software envolve

atividades como análise, design, implementação de código, testes e implantação,

documentação formal destinada a comunicação, serve-se de princípios, modelos e

métodos, técnicas e ferramentas, conta com uma equipe de especialistas, além de

zelar por custos e prazos previamente estabelecidos. A engenharia de sistemas é

mais abrangente, inclui hardware, software, informação, processo e pessoas, logo

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incorpora a própria engenharia de software. Normalmente a produção de software

parte de um entendimento da necessidade de um cliente qualquer, envolverá

planejamento, construção de código, testes e implantação, para execução de tais

atividade os profissionais envolvidos devem levar em consideração certas

formalidades, envolve capacidades de abstração, gerenciamento de mudanças,

modularização e generalização.

O processo de software guia por um conjunto coerente de práticas o

desenvolvimento ou manutenção de software através de um ciclo, atribuindo papéis,

definindo artefatos e atividades técnicas necessária para transformar os requisitos

levantados a partir de um problema específico em software.

Nessa época surge um método de desenvolvimento de software que se

notabilizou por sua característica sequencial e ficou conhecido como waterfall ou

cascata, o trabalho flui através das fases de análise, projeto, produção de código,

testes e implantação. Para passar de uma fase para outra é necessário terminar a

fase anterior, a codificação só inicia se o projeto estiver concluído, os testes só iniciam

depois que todo código foi escrito, depois de testado o software é disponibilizado para

o usuário final em um ambiente de produção, a partir de então ele será mantido, pela

introdução de outras funcionalidades ou correção de defeitos. O custo de retornar para

uma fase anterior, caso ela não tenha atendido os inputs da próxima fase, é alto. Além

disso trata-se de um modelo que não atende um contexto de negócios em mudança

constante.

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Figura 1 - Método Waterfall

Fonte: SITE ALTABEL.WORDPRESS.COM, 2017

É possível também traçarmos uma trajetória a partir das linguagens de

programação. Afinal ela compõe de forma significativa todo o esforço de projeto e

engenharia produzindo o software em si. É capaz de mostrar também a necessidade

crescente de atender a uma complexidade de tecnologias, cenários de negócios,

guindados pela mundialização e pela flexibilização imposta pelas reestruturações do

capitalismo. Não existe uma linearidade na história das linguagens de programação,

vários paradigmas conviveram por algum tempo, cada qual tentando resolver um

problema específico. A programação nos primórdios era realizada com código binário.

Foram criadas as linguagens de montagem (Assembly), as funções em código de

máquina são substituídas por mnemônicos, entretanto ainda se configurava como

baixo nível, ou seja, muito próxima da linguagem de máquina.

O próximo ciclo de tecnológico traz as linguagens procedurais. São as

primeiras em que podemos dizer serem de alto nível pois se aproximam da linguagem

humana. Trata-se de uma sequência de comandos que a máquina executará,

sequencialmente. Algumas linguagens se enquadram nessa classificação: C, COBOL,

PASCAL.

Em seguida os problemas são estruturados em funções, são como caixas que

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recebem um dado, fazem alguma operação e devolvem algum resultado.

Finalmente chegamos ao paradigma de orientação ao objeto, aproximando o

código escrito dos conceitos do mundo real, originou-se nos estudos da cognição,

influenciando a inteligência artificial. Permitiu também a reutilização de partes do

software em alta escala. Um objeto é um código com estrutura e comportamento, são

organizados em classes e hierarquicamente, através de troca de mensagens ações

são tomadas e fenômenos são representados. Os objetos e classes a partir das quais

são criados, representam pessoas, objetos, processos do mundo real, físico.

Como vimos os métodos ágeis emergem pouco tempo depois de já

consolidado o paradigma de orientação ao objeto, e surgem também em resposta

àqueles métodos mais tradicionais, considerados burocráticos e inadequados à

natureza da atividade. Inicia-se um embate entre processos e leves e pesados. Além

da disputa técnica, existe uma disputa de narrativas, pois os métodos tradicionais já

ocupam um mercado que é almejado pelas abordagens ágeis. A comparação entre

paradigmas pode ser descrita da seguinte forma (PRIKLADNICKI, 2014, p. 4):

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Tabela 1 - Comparação entre Paradigmas de Métodos

Tradicional Metodologias Ágeis

Pressupostos fundamentais Sistema totalmente

especificáveis, com

planejamento extensivo e

meticuloso.

Software adaptativo e de alta

qualidade, pode ser

desenvolvido por equipes

pequenas utilizando os

princípios da melhoria

contínua do projeto, orientado

a responder rapidamente as

mudanças.

Controle Orientado à processos. Orientado a pessoas.

Estilo de gerenciamento Comandar e controlar. Liderar e colaborar.

Gestão do conhecimento Explícito. Tácito.

Atribuição de papéis Individual, favorece a

especialização.

Times auto-organizáveis,

favorecem a troca de papéis.

Comunicação Formal. Informal.

Ciclo de projeto Guiado por tarefas ou

atividades.

Guiado por funcionalidades

do produto.

Modelo de desenvolvimento Ciclo de vida cascata ou

espiral.

Iterativo e incremental de

entregas.

Estrutura organizacional Mecânica (burocrática com

muita formalização)

Orgânica (flexível e com

incentivos a participação e

cooperação social.

Vivemos tempos de aceleração, de tecnologias e paradoxos. Lipovetsky (2015)

faz um diagnóstico do momento atual da civilização que é oposto a uma civilização

pesada, da disciplina árdua, dos desejos reprimidos, da prostração do eu, da opressão

da subjetividade, da submissão total a projetos da nação ou religiosos. O peso das

exigências morais era intolerável, mesmo com o iluminismo substituindo Deus pela

Razão nada mudou. Na revolução industrial, mesmo com todo avanço cientifico, só

se acrescentou o peso do trabalho, e depois mais tarde os dispositivos de controle

que começavam a proliferar. Lipovetsky (2015) entende que o cognitivo assume papel

preponderante na hipermodernidade, é ele que agrega valor na sociedade

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informacional, investir no conhecimento torna-se uma exigência. Se a leveza sempre

exerceu um papel na nossa cultura hoje ela é índice do real. Tudo tende a diminuir de

tamanho, ser mais leve, mais rápido. Entretanto o paradoxo parece se impor mais uma

vez, um certo quantum de leveza objetiva se reflete na vida como um peso intolerável,

parece ser uma nova utopia que traz no seu bojo uma intensidade que não cabe na

nossa subjetividade, a depressão e a ansiedade são pesados fardos que carregamos

quotidianamente. A leveza tem seu peso e seu preço, certamente falta a Lipovetsky

(2015) uma leitura marxista que permita compreender a crueldade com que o

capitalismo e o neoliberalismo perpetuam sua ideologia atualmente. Sem embargo,

sua leitura não é de todo equivocada, senão, vejamos.

Leve, fluido, flexível, móvel, líquido, são termos intercambiáveis, e buscados

com obsessão, tornou-se um imperativo, hoje é visto como algo positivo e desejado.

Tudo se desmaterializa diante da ditadura da inovação, da mudança avassaladora, da

inconstância.

Todo esse impacto econômico, social e cultural tem reflexos no mundo do

software, as empresas devem se adequar a essas novas exigências, e sendo o

software um elemento crucial de vantagem competitiva, seu processo de produção

deve ser orquestrado de tal forma a viabilizar produtos leves, customizados,

rapidamente, sob o risco de tornar-se obsoleto.

Quanto menores os ciclos de produção, mais intenso ele se torna em função

de cerimônias que devem ser realizadas e artefatos que devem ser produzidos, a

leveza no contexto da ideologia gerencialista, da velocidade e do controle, com suas

exigências cada vez mais irrealistas de rentabilidade e produtividade transformam a

leveza em um eufemismo da intensidade, a promessa de sustentabilidade fica apenas

no horizonte. A leveza experimentada no consumo não se aplica na produção imaterial.

Apesar de Lipovetsky não analisar com profundidade as questões

relacionadas ao impacto da leveza no trabalho imaterial, quando defende por exemplo

o trabalho home office como se isso fosse uma excelente solução para o trabalhador,

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sem levar em consideração a perniciosidade dessa modalidade de trabalho, deixa

entrever uma certa sombra em meio ao esplendor da fluidez que exalta:

“Será que os assalariados que tratam da informação vivem muito melhor seu

trabalho imaterial do que os operários do velho mundo industrial? As novas

condições da concorrência e os imperativos de rentabilidade estão,

certamente, na origem desses desconfortos, mas as tecnologias do digital

também têm sua parte na medida em que instauram a ditadura das respostas

imediatas, a impossibilidade de se distanciar, uma pressão temporal

permanente, o sentimento de viver “enterrado no trabalho”. Em toda parte,

as grandes empresas pedem para reduzir os prazos, fazer mais com menos:

uma implacável lógica de urgência invadiu a esfera do trabalho. Ela engendra

muito mais um homem hipertenso, despossuído do sentido de sua atividade,

do que um homem leve. À medida que desmaterializam o trabalho, as novas

tecnologias aumentam constantemente o peso da carga psicossocial

suportada pelo assalariado. O imaterial digital é menos mensageiro de

existência nômade do que de vida em fluxo, em “zero de atraso”.

“ (LIPOVETSKY, 2015, p.130)

O que direciona o método ágil são novos modelos de comportamento e

atitude, uma nova maneira de ver, pensar, sentir e agir, uma nova subjetividade.

Apesar de todos os métodos ágeis definirem algumas práticas, cada Método Ágil

define suas próprias práticas, mas todos partilham dos valores e princípios postulados

pelo Manifesto Ágil.

O fato do Manifesto colocar mais peso nos itens que se encontram à esquerda

se justifica pelo fato de engenharia de software até aquele momento ter colocado mais

ênfase nos itens da direita. Aqui podemos começar a entender a sutileza de um

pensamento que tenta compatibilizar extremos, adaptar, fazer coabitar propostas

antagônicas, modus operandi que ficará mais claro quando articularmos o

pensamento ágil com a ideologia gerencialista. Existe um reconhecimento de que a

engenharia de software é embrionária em relação ao conhecimento de outras áreas

da engenharia, o manifesto assume uma posição despretensiosa diante dos

processos já estabelecidos convidando a uma reflexão visando aprendizado.

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95

3.2 Análise do manifesto e princípios ágeis

Indivíduos e interação mais que processos e ferramentas

Atualmente é praticamente impossível pensar em desenvolvimento de

software sem considerar o uso de ferramentas e processos, mas o manifesto alerta

para o fato de colocarmos ênfase na comunicação, pois tornou-se uma atividade muito

burocrática, esboços e modelos feitos de maneira colaborativa valem mais do que

documentos formais. Não obstante as ferramentas digitais cumprem um papel de

controle sobre as atividades de desenvolvimento de software. O evangelizador João

faz uma observação interessante sobre este valor do manifesto ágil:

“Quando você diz que pessoas e relações são mais importantes que

processos e ferramentas, o que está se dizendo na verdade é que pessoas,

processos e ferramentas incríveis podem gerar produtos, serviços e negócios

incríveis. Essa é uma dimensão que está se perdendo, o ágil hoje está se

assumindo a posição que os processos mais tradicionais e prescritivos tinham

no passado, pelo excesso de processos, frameworks e ferramentas” (JOÃO,

2017)

Software em funcionamento mais que documentação abrangente.

Entende-se aqui o excesso de documentação como desperdício, ao longo do

tempo foram criados papéis cujo o objetivo principal era documentar, principalmente

por medo de que esse saber concentre-se exclusivamente na cabeça dos

desenvolvedores, o cenário que temos hoje é uma documentação excessiva, que

nunca é consultada ou atualizada. Isso acabou valorizando mais a documentação

extensa do que software com qualidade de produção, a ponto de cronogramas

apresentarem um percentual de conclusão de oitenta por cento sem uma linha de

código escrita.

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Colaboração com o cliente mais que negociação de contratos.

Se o desenvolvimento de software é um processo de aprendizado, fica difícil

definir algo previamente que só se conhece fazendo. Porém devido à falta de

confiança entre clientes e fornecedores, o contrato passou a regular essas relações

com sérios prejuízos para ambas as partes. De um lado tenta-se conter o escopo,

para que não ultrapasse o custo contratado, de outro tenta-se deixar aberturas para

incluir mudanças que surjam no meio do caminho e sejam incorporados pelo preço já

contratado. Os métodos ágeis sugerem um trabalho mais próximo com o cliente

construindo colaboração e confiança, para além de um contrato qualquer.

Responder a mudanças mais que seguir um plano

Aprendizado e mudança são os lados de uma mesma moeda. Inclusive

somente dessa forma a solução fica muito aderente às necessidades, e se alcança a

tão propalada vantagem competitiva. Por este motivo as mudanças devem ser

tratadas de uma forma distinta, e acolhidas se de fato agregam valor ao produto. Os

planejamentos extensos estão fadados ao fracasso em um ambiente onde impera a

instabilidade de tecnologias, a velocidade de mudança dos negócios, e o turn-over

alto. Os métodos ágeis preconizam um planejamento menor e mais frequente visando

adaptar-se a essa instabilidade.

Até aqui podemos observar o quanto o Manifesto Ágil é vago nas suas

proposições, o que dará margem como veremos adiante a muitas adequações,

adaptações dentro do universo corporativo. Os princípios ágeis foram pensados a

partir do Manifesto, suas proposições não são menos vagas, porém abrangem outros

aspectos do processo de trabalho. Sobre os princípios serão construídas as práticas.

O Manifesto, os Princípios e Valores servem de base para definir, na opinião de toda

a comunidade, inclusive evangelizadores, aquilo que é conhecido como “Mindset Ágil”.

Farei uma análise dos princípios ágeis com base em observações realizadas ao

longo de muitos anos dedicado a implantação de métodos ágeis nas empresas, os

princípios permeiam as narrativas dos evangelizadores que serão analisados mais adiante.

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1. Nossa maior prioridade é satisfazer ao cliente com entregas contínuas

e adiantada de software com valor agregado. Nesse princípio começamos a

perceber como entram no jogo as contradições. Como vimos houve uma valorização

excessiva da documentação e dos controles em detrimento da produção de software.

Some-se a isso a percepção de que os trabalhadores técnicos envolvidos na

construção do software sentem uma compulsão por fazer as coisas de uma forma

bem-feita utilizando a melhor tecnologia possível em detrimento daquilo que o cliente

precisa em tempo hábil, na medida certa.

2. Mudanças nos requisitos são bem-vindas, mesmo tardiamente no

desenvolvimento. Os processos ágeis tiram vantagem das mudanças, visando à

vantagem competitiva para o cliente. Esse princípio comprova que os métodos ágeis

surgem em uma época em que a economia mundial chega em um patamar de

aceleração incompatibilizado com a forma tradicional de construir software, as

demandas exigem uma produção mais rápida e uma disponibilização para o mercado

evitando a sua obsolescência. Tradicionalmente clientes e fornecedores se protegiam

por questões de custos a respeito do escopo a ser produzido, por um lado requisitos

que não serviam para nada, por outras travas contratuais para evitar mudanças. Com

isso, mudanças de requisitos passam a ser tratadas como algo natural. Para fazer

frente a nova realidade os métodos ágeis dispõe de técnicas e ferramentas, o

problema é que a organização como um todo dificilmente está preparada para atender

esse novo cenário, a organização sendo orientada por eficiência e custos não realiza

os investimentos necessários. Normalmente o ônus dessa situação é sentido pelas

equipes de desenvolvimento, que passam por momentos de frustração e ansiedade

quando não conseguem atingir as metas com as quais se comprometeram. De

qualquer forma os clientes se beneficiam do potencial competitivo da adaptabilidade

a novos cenários de mercado.

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3. Entregar frequentemente software funcionando, de poucas semanas

a poucos meses, com preferência à menor escala de tempo. Esse princípio faz

uma referência explícita ao anterior, e acrescenta um elemento novo: time-box. Trata-

se de uma forma de gerenciar o tempo cujo o objetivo é lidar com a complexidade,

manter o foco, produzir ritmo e permitir que se verifique de tempos em tempos a

construção de software. Seja o time-box fixo como propõe o método ágil Scrum, ou o

time-box relativo como propõe o método ágil Kanban, deixa claro que o longo prazo

não existe mais, e que a linearidade do tempo se dissipa. Nada mais tem estabilidade,

seja o trabalho ou as relações pessoais, a variação e as mudanças de equipes,

cenários, problemas a serem resolvidos, projetos a serem executados, demandas de

mercado que emergem de um dia para outro, as transações pontuais devem se

encaixar nesse tempo fragmentado, bem representado pelo conceito do time-box.

Relações sociais estáveis, leais e fidedignas não se constroem ou não se mantém

nesses retalhos de tempo. Uma falsa ideia de liberdade que a flexibilização traz no

seu bojo promove uma corrosão do caráter, pulverizando laços sociais e valores,

pilares importantes para garantir a estabilidade da personalidade, que dão um sentido

de permanência para o “eu”. Esse “eu” que se fragmenta precisa de um tempo

igualmente fragmentado para se adaptar ao oceano de incertezas que se abate sobre

ele. A comprovação da sua competência se dá nesse ritmo imposto por esse

fatiamento do tempo, os ciclos ditam um aparente recomeço, como diria Gilles

Deleuze, na sociedade do controle nunca se termina nada, em contraposição à

sociedade disciplinar que não se parava de recomeçar.

Exacerbação da rotina se dá pelas cerimônias propostas pelos métodos ágeis,

que são reuniões que se repetem segundo os princípios daquilo que se convencionou

chamar de gestão empírica, baseada em ciclos de planejamento, execução,

verificação e consolidação (PDCA), permeado por pontos de inspeção, coleta de

feedback e adaptação.

Para Richard Sennett (1999, p. 10) o caráter é “o valor ético que atribuímos

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aos nossos desejos e as nossas relações com os outros, ou se preferirmos, são os

traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os

outros nos valorizem”. Diante de um contexto de experiências fragmentadas,

nenhuma narrativa coletiva se sustenta. A utilização das caixas de tempo é a

fragmentação levada às últimas consequências. Para além da fragmentação podemos

falar de um esfacelamento do caráter.

As equipes ágeis funcionam como ilhas de produção especializada que

atendem a um backlog priorizado de demandas, de um produto específico, e que

nunca tem fim. Para o trabalhador se apresentam duas alternativas, aceitar o risco

imposto por esse ambiente de incertezas e extrema competitividade, ou aceitar o

fracasso, não é sem propósito que um dos valores ágeis é a coragem.

Em termos de precarização esse novo paradigma laboral não deixa nada a

desejar para outros modelos de produção em épocas anteriores, embora seja uma

precarização acolhida pelo trabalhador por intermédio do discurso do empreendedor

de si, da responsabilização, de uma autonomia controlada. Richard Sennett salienta

bem o caráter dessa fase atual do capitalismo:

“Quem precisa de mim, em um regime onde as relações entre as pessoas no

trabalho são superficiais e descartáveis e os laços de lealdade, confiança e

compromisso mútuo se afrouxam em decorrência das experiências de curto

prazo? ” (SENNETT, 1999, p. 164).

A descartabilidade das pessoas em voga é construída na base da indiferença

disseminada pelo sistema, tratando os esforços dos trabalhadores como mercadorias

e estabelecendo contextos de baixíssima confiança, de forma que a indiferença e a

desconfiança passam a ser atribuídas ao próprio caráter das pessoas, pois a empresa

passa a ser o único caminho para o sucesso segundo uma ideologia gerencialista que

ameniza a crueldade do sistema.

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“A corrosão dos laços sociais traduz-se pelo questionamento da

generosidade, da fidelidade, da lealdade, da solidariedade, de tudo o que faz

parte da reciprocidade social e simbólica nos locais de trabalho. Como a

principal qualidade que se espera do indivíduo contemporâneo é a

mobilidade, a tendência ao desapego, e à indiferença que dele resulta, isso

acaba contrariando os esforços para exaltar o “espírito de equipe” e fortalecer

a “comunidade da empresa”. ” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 366)

Essa importante ferramenta para impor disciplina será mais discutida adiante

a partir da fala de evangelizadores. De qualquer forma a disciplina é exacerbada e

está em sintonia com uma nova sociabilidade requerida pelo trabalho flexível, o

indivíduo é convidado a gerenciar riscos em um contexto econômico instável, em

mudança constante, imerso na incerteza, hipercompetitivo, reforçando a crença de

que a resolução de problemas se assenta no próprio indivíduo desconsiderando

questões complexas e existenciais arraigadas em um cenário social, histórico e

político. A disciplina está atrelada a construção desse empreendedor de si, sobre os

ombros do qual se deposita todas as responsabilidades pelo seu sucesso e

principalmente pelo seu fracasso. Sem disciplina não seria possível atingir níveis de

empregabilidade e empreendedorismo que esse novo ethos imposto pelo

neoliberalismo requisita.

4. Pessoas de negócio e desenvolvedores devem trabalhar diariamente

em conjunto por todo o projeto. Desnecessário afirmar como esse princípio se liga

aos anteriores. Aqui ressalta-se a importância de os clientes participar não só da

definição do problema, como também da definição da solução que será construída

pela equipe de desenvolvimento. Em empresas grandes o impacto disso é alto, pois

além dos silos de informação e poder que existe nas empresas, a área de negócios

não parece dispor de tempo suficiente para participar ativamente da construção do

software.

5. Construa projetos em torno de indivíduos motivados. Dê a eles o

ambiente e o suporte necessários e confie neles para realizar o trabalho. Aqui temos

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mais uma contradição evidente, a empresa reforça a ideia do trabalho individual, e ao

mesmo tempo orienta as equipes ágeis a trabalhar de forma auto-gerenciadas. A auto-

gestão requisita autonomia, comunicação mais direta e constante, alto nível de

comprometimento, foco na entrega de software com qualidade e valor agregado, ou

seja, rentabilidade. Veremos adiante à luz da teoria da ideologia gerencialista e do

depoimento de evangelizadores, que na prática quotidiana das empresas existe uma

autonomia controlada, seja por uma falsa percepção de anarquia que esse modelo

traz, seja pelas relações de poder estabelecidas, apesar da gestão visual o grau de

falta de confiança e de segurança psicológica não permite que a auto-gestão aconteça,

de qualquer forma o discurso tem utilidade no que diz respeito à conquista de adesão.

6. O método mais eficiente e eficaz de transmitir informação para a

equipe e entre a equipe de desenvolvimento é a conversa frente a frente. Nesse

princípio encontramos mais um paradoxo. É notório que a tecnologia tem possibilitado

formas diversas e alternativas de comunicação. Isso se deu também por uma

necessidade da flexibilização e da mobilidade que passou a ser exigida dos

trabalhadores. A qualidade da comunicação não é a mesma que a presencial por

causa da comunicação não-verbal que se perde. A empresa continua estimulando o

uso de recursos eletrônicos para comunicação por um lado, por outro com a

introdução dos métodos ágeis nas empresas, a necessidade de comunicação

presencial aumenta exponencialmente, o resultado disso é overhead de comunicação,

originando ou intensificando distúrbios psíquicos como a ansiedade.

7. Software funcional é a medida primária de progresso. Interessante

observar o esforço para conter a burocracia e os processos teoricamente

determinísticos e controláveis. Esse princípio faz uma referência direta a todos os

outros que focam na rentabilidade. A burocracia e o controle ocultam uma falta de

confiança generalizada, mas não explicitada, o que torna difícil combatê-la, mais uma

vez fica evidente a sobrecarga da quantidade de normas e procedimentos a se cumprir.

O objetivo da gestão é fazer cooperar duas engrenagens, a organizacional e

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a psíquica, cria-se uma espécie de armadilha de paradoxo onde há um jogo entre

angústia e satisfação. O indivíduo fica dependente desse processo que estimula a

autonomia e a liberdade, o poder de contestação fica enfraquecido, pois levaria a

contestar a si próprio, devido ao engajamento. A sociedade do controle desenvolveu

mecanismos sutis para controlar o indivíduo a partir da sua subjetividade, que induz

cada um a exercer sua autonomia, liberdade e criatividade em nome de um poder

próprio que reforça a submissão e o conformismo. Uma mescla perfeita de alienação

e apologia da subjetividade, Gaulejac (2015, p.127) sugere uma “alienação à segunda

potência”, pois é o próprio sujeito seu principal agente. Analisaremos adiante a mesma

questão, com relação à auto-organização, à luz do conceito de engajamento subjetivo

elaborado por Philippe Zarifian a partir do referencial teórico de Gilles Deleuze.

8. Os processos ágeis promovem desenvolvimento sustentável. Esse é

um dos pontos mais críticos, com tantas obrigações, burocracia, controles e

consequente sobrecarga de tarefas torna-se impossível manter um ritmo sustentável,

sobra pouco tempo para fazer aquilo que de fato precisa ser feito. O foco em eficiência

e rentabilidade que orientam a empresa a ocupar cem por cento do tempo dos

trabalhadores, não deixa tempo para outras atividades preconizadas pelos métodos

ágeis como melhoria contínua e da gestão do trabalho da própria equipe, que passa

a ser uma incumbência sua também. O desenvolvimento de software por ser uma

atividade imaterial, cognitiva e afetiva, exige grande concentração e criatividade,

porém impossibilitadas pelo consumo do tempo em outras atividades e pela pressão

de fazer cada vez mais. Ao definir o método ágil Mateus também demonstra um certo

desconforto com o rumo tomado pelo movimento depois de 15 anos:

“Ajuda as empresas e equipes a acelerar o processo de feedback, a maioria

coloca como ponto central a geração de valor, que é extremamente

importante, mantenho-me fiel a motivação de origem, a consequência é que

teríamos redução de desperdício, mais valor agregado, antecipação de

investimentos, redução de riscos. Ciclos curtos, redução do path de

comunicação, tudo isso está ligado à aceleração de feedback e

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aprendizagem. Esse processo corre um risco tremendo hoje por conta do

imediatismo, mais velocidade que ritmo, isso se traduz em trabalho não

sustentável, o que esperar se o próprio criador do Scrum criou um livro cujo

o título é “Fazer o dobro na metade do tempo”? ” (MATEUS, 2017)

O mundo do trabalho nas últimas décadas tem sido palco de um processo de

intensificação laboral. Qualquer trabalho apresenta um certo grau de intensidade, é

condição intrínseca de qualquer trabalho, o trabalho transforma a natureza usando

meios e instrumentos seguindo um projeto, quando ele é executado há um dispêndio

de energia física e psíquica. Intensidade se refere ao grau de dispêndio dessa energia.

Uma atividade concreta envolve capacidades físicas, cognitivas e afetivas do

trabalhador. Também entram na conta da intensificação as relações de cooperação

com outros trabalhadores, e relações societais. Se há mais gasto de energia, há

intensificação. Se os resultados são maiores em termos quantitativos ou qualitativos

é índice de maior gasto de energia, logo a alteração da intensidade eleva os resultados,

entretanto nem sempre isso ocorre, o desgaste físico, emocional e cognitivo no limite

leva a uma inevitável queda de desempenho. Outro fator significativo é o tipo de

vínculo ou subordinação entre aquele que trabalha e o agente que controla o trabalho:

“O grau de intensidade resulta de uma disputa, de um conflito social que opõe

o interesse dos trabalhadores aos empregadores. Não é o indivíduo

trabalhador quem decide autonomamente suas condições de trabalho e

estabelece o grau de empenho pessoal com a atividade. O ato de compra e

venda da força de trabalho confere ao comprador poder sobre como será

utilizada essa mercadoria. As empresas e os administradores pautam

determinações inarredáveis quanto ao como deve ser realizada determinada

tarefa e consequentemente qual o grau de intensidade requerido. “ (ROSSO,

2008, p. 24)

Nessa relação de poder há resistência e padrões de intensidade que são

assumidos como referência pelo trabalhador, através dos quais dosa a intensidade,

mas não lhe garante o controle, e por esse motivo a intensidade é objeto de disputa.

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Nos métodos ágeis existe um conceito de trabalho energizado e ritmo sustentável,

preconizada pelo Extreme Programming, e também do respeito pela capacidade

produtiva, preconizada pelo Lean Thinking, além disso nos processos de

planejamento é instituído que a equipe estime as demandas que precisam ser

atendidas, e que no início de cada ciclo produtivo, chamado de iteração ou Sprint,

determinado por um time-box específico, escolha os itens que na sua percepção tem

condições para serem produzidos nesse ciclo.

Os resultados da implantação dessas práticas são distintos em empresas do

tipo Startup e grandes corporações. No primeiro, nas quais o grau de envolvimento

dos desenvolvedores no processo de gestão é consideravelmente maior, existe um

outro tipo de cooptação da subjetividade. No segundo tipo uma camada de gestão se

sobrepõe ao processo, trabalhando para subverter essas práticas, e conquistando a

anuência mais por pressão do que por uma pseudoparticipação, ou uma autonomia

fortemente controlada. Em qualquer caso a intensificação é uma realidade que não

dispensa as estratégias de ambos os lados, de um a resistência para dosar o ritmo e

do outro a coerção para acentuá-lo.

Para destrinçar o imbróglio quando tratamos de intensidade, justifica-se

distingui-lo da produtividade, dado que este conceito oriundo da economia subsumi o

de intensidade, sem fazer-lhe a devida distinção. Um trabalho é produtivo quando o

resultado apurado entre dois tempos é maior do que a medição inicial. Esse resultado

pode ser obtido de diversas maneiras. Quando há uma alteração no meio material

denominamos aumento de produtividade, se há maior desgaste ou envolvimento por

parte do trabalhador, decorrente ou não de tecnologia, denominamos aumento de

intensidade.

No caso da mudança organizacional podemos entender a intensificação da

mesma forma, depende do consumo de energia em um sentido mais amplo, ou seja,

físico, emocional e cognitivo. Por exemplo racionalização de processos altamente

burocratizados aumenta a produtividade e não a intensidade. Normalmente os

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processos sofrem alterações para aumentar a produtividade, mas também visam

aumentar o envolvimento do trabalhador levando a uma intensificação.

Na atual fase do capitalismo as atividades de serviços predominam sobre o

trabalho industrial, esse por sua vez também sofre influências de componentes

imateriais, logo é mister avaliar como o trabalho imaterial é afetado por práticas

intensificadoras.

“Tanto no trabalho material, físico, quanto no imaterial, o trabalhador faz uso

de outras faculdades além se sua energia física. Faz uso de sua inteligência,

de sua capacidade de concepção, de criação, de análise, de lógica, emprega

os componentes de afetividade ao relacionar-se com as pessoas, sejam os

colegas de trabalho, os dirigentes das empresas e dos serviços estatais, os

clientes. Utiliza as experiências adquiridas anteriormente no trabalho, sejam

em termos relacionais e grupais, sejam em termos de habilidades individuais

herdadas gerações após gerações ou aprendidas nos processos educativos.

“ (ROSSO, 2008, p. 30)

Da Revolução Industrial aos dias de hoje por consequência da divisão do

trabalho e do emprego das tecnologias de informação e comunicação o espaço

ocupado pelo trabalho imaterial expandiu muito, exigindo mais da capacidade de

conhecimento, comunicação, emoção, do que em outras épocas.

A Toyota e seu método de produção exerceu forte influência sobre os

precursores dos métodos ágeis, seja na ênfase dada as capacidades cognitivas do

trabalhador, seja no incentivo à liberdade e autonomia para controlar defeitos e evitar

perdas, no uso da criatividade em benefício da empresa, estimulando as capacidades

de socialização e relacionamento cooperativo.

Outra problemática que se impõe é a dimensão do valor perante a

imaterialidade. A área de software, como tantas outras da esfera do trabalho imaterial,

concentra cada vez mais capital, isto posto, a competição por resultados, eficiência e

produtividade são cada vez maiores, logo é alvo de um processo inigualável de

intensificação. Aqui a teoria do valor não encontra um solo estável para se estabelecer,

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a reflexão do valor diante da cooperação, dos afetos, das relações com os outros

indivíduos, encontra limites muito claros, pois considera a dimensão de tempo do

trabalho por meio da fórmula do tempo médio socialmente necessário:

“Um pesquisador faz uma descoberta e o valor dessa descoberta pode ser

infinito ou nenhum. Infinito se a descoberta pode ser comodificada,

mercantilizada, transformada em mercadoria. O valor do trabalho do

pesquisador não é representado pelo tempo médio socialmente necessário.

A faísca cerebral e a fogueira mental que conduziram à descoberta são de

natureza distinta do tempo médio e isso lhe confere um potencial infinito de

valor. ” (ROSSO, 2008, p. 34)

A pesquisa não se transforma em mercadoria rapidamente, ao pesquisador

restam direitos autorais ou de marca registrada. O trabalho imaterial está cada vez

mais presente, e a métrica do tempo do trabalho socialmente necessário não se aplica

a essas atividades, é crítico incorporar dimensões qualitativas como uso de

inteligência, afetos, criatividade, relações sociais, que vão além do tempo médio

socialmente necessário. Ademais as tecnologias de comunicação, computadores,

celulares, software de todo tipo, aplicados ao trabalho romperam com a barreira do

tempo do trabalho e do não-trabalho.

“A tese da sociedade da inteligência tinha como pano de fundo desvelar uma

sociedade que aos poucos fosse se liberando do trabalho e conduzida para

o campo das atividades emancipatórias que são o reino da inteligência e da

liberdade. O problema com essa interpretação é que não é isso que está

ocorrendo na sociedade contemporânea. “ (ROSSO, 2008, p. 41)

Nas décadas entre 1950 e 1970 surgiram algumas visões utópicas a respeito

da emancipação do trabalho em relação ao capital, ideias constantemente citadas por

alguns evangelizadores ágeis, como sociedade do conhecimento e da informação,

gurus como Peter Drucker se notabilizaram por preconizar a ideia de que o mundo se

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desloca inelutavelmente para uma emancipação do trabalho intelectual, imaterial. O

que acontece na prática, e sustentado por muitas pesquisas, é que o trabalho imaterial

sofre impacto de outras estratégias de intensificação, implicando em uma série de

novos problemas de saúde, inclusive na esfera do psicológico e do psiquiátrico.

Tal utopia está muito presente no discurso dos evangelizadores ágeis que

anunciaram no alto do seu entusiasmo, e ainda continuam afirmando com menos vigor,

uma transformação edênica do mundo do trabalho.

Não é objeto desse trabalho realizar exaustiva análise da Teoria do Valor ou

analisar a história da intensificação no mundo do trabalho, entretanto acho importante

destacar o processo de intensificação a partir da última reestruturação produtiva

marcada por exigências de velocidade, agilidade, ritmo, polivalência, versatilidade,

flexibilidade, acúmulo de tarefas e busca incessante por resultados.

Vivemos uma revolução tecnológica significativa, cujos os contornos e

impactos ainda não conseguimos compreender na sua totalidade. O que podemos

constatar é uma intensificação do trabalho crescente, porque leva a um envolvimento

visceral do indivíduo, exigindo destes mais resultados no mesmo espaço de tempo,

redundando em aumento da exploração do trabalho.

No segmento de software são postas em prática duas estratégias de

intensificação, a constante transformação tecnológica e a reorganização do trabalho,

esta última umbilicalmente ligada aos métodos ágeis.

O novo paradigma de gestão da força de trabalho já estava pronto e sendo

utilizado pela Toyota há muito tempo quando o mercado a ele aderiu. Partindo de uma

crítica ao sistema fordista de massa, que não mais se adequava a um mundo com

baixo crescimento econômico e com restrições de demanda. A crítica maior caia

sobre a noção de desperdício, de perda. Entre as perdas mais significativas podemos

citar: a superprodução, os tempos de espera, os transportes desnecessários, os

processos de fabricação, os estoques não vendidos, as idas e vindas perdidas, os

defeitos de produção, a rigidez da especialização dos trabalhadores, trabalho que não

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agrega valor, a resposta que a Toyota formulou para essas questões nos ajuda a

interpretar os mecanismos de intensificação.

Proponho analisar as soluções dadas, à luz da influência desse sistema nos

processos de desenvolvimento de software, fazendo uma leitura das principais

características já mencionadas, implícitas aos métodos ágeis.

A superprodução equivale a uma produção de software que abrange muitas

funcionalidades que sequer são utilizadas pelo usuário, ou que perdem seu valor

devido ao tempo que levam para ser produzidas, a solução dada sugere que o

tamanho dos lotes de requisitos, que são os insumos para a produção de software,

seja menor, a fim de manter o foco no que agrega mais valor de negócio e

disponibilizar a solução mais rapidamente. Os tempos de espera diz respeito aos

gargalos gerados pela cadeia de valor de produção, formada pelas diversas atividades

necessárias a produção de software, a solução dada sugere a diminuição do tempo

para execução dessas atividades, e nivelamento do número de itens de acordo com

a capacidade produtiva, entre as atividades para agilizar o fluxo. Os transportes

desnecessários dizem respeito a quantidade de atividades da cadeia de valor, que

deve ser reduzida, evitando a perda ou má interpretação de artefatos que transitam

entre essas fronteiras. Os defeitos de produção dizem respeito a problemas

encontrados no software e que são resolvidos tardiamente gerando um retrabalho

desnecessário, a solução é aderir a uma qualidade em tempo de produção

significando que os testes devem ser realizados na medida em que o software é

escrito. A quantidade de pessoas envolvidas no processo é resolvida com o conceito

de equipes reduzidas e enxutas, assim como a especialização excessiva, com

equipes multidisciplinares ou polivalentes, cujos membros apesar de possuir uma

especialização são estimulados a conhecer outras tecnologias, expresso pelos termos

técnicos “Profissional T-SHAPE” ou “Profissional FULL-STACK”. A automação cada

vez mais aplicada nesse ambiente produtivo, induz o desenvolvedor a se envolver

mais com questões de negócios, de gestão do processo, e acentuar a velocidade do

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109

fluxo de produção.

Todo esse contexto produtivo indica uma variação, nos períodos de maior

demanda a equipe trabalha de forma mais intensa, levando a mesma a uma

reconfiguração constante com contratações e dispensas, e muitas vezes recorrendo

a horas-extras trabalho, via de regra negociadas como banco de horas, ou

incorporadas nas horas de não-trabalho. Em tempos de não variação de demanda a

intensificação se dá pelo combate ao desperdício, aumentando a eficiência, e por

consequência a intensidade, não há mais tempo de trabalho morto. A noção de slack,

de folga para promover melhoria contínua preenchem essas lacunas. A polivalência

também implica em intensificação pois requer esforço adicional, cognitivo, afetivo, de

concentração para aprender outras tecnologias e tarefas.

O kanban também é considerado um dos pilares do Sistema Toyota de

Produção, sua origem está em um pedaço de papel que fornecia informações para

que o operário soubesse o que produzir, e para onde encaminhar a produção. Nos

processos ágeis os dispositivos visuais, os radiadores de informações também são

importantes porque permite controlar a produção e indicar problemas, intensificando

o trabalho quando necessário, a partir do status diário que se obtém visualmente no

ambiente de trabalho, normalmente o kanban é elaborado em uma parede, janela ou

quadro branco. Ele cria fluxos de informação que vão na direção da equipe, e

também daqueles que exercem o controle sobre o que e como está sendo produzido.

O Kanban exerce um controle sobre desempenho individual e da equipe, de forma

que o trabalho seja conduzido no ritmo, velocidade e padrão definidos pela empresa,

e não pela equipe, se constituindo na principal ferramenta de intensificação.

9. Contínua atenção à excelência técnica e bom design aumenta a

agilidade. A qualidade de código garante entre outras coisas, ambiente sustentável

de alta produtividade, a entrega contínua de código e a agregação constante de valor,

elimina a necessidade de documentação exaustiva, reduz o retrabalho e facilita a

tomada rápida de decisões. A questão é a quantidade de tempo que se tem para

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atingir esse objetivo, na prática as relações entre custos e qualidade são muito

paradoxais.

O evangelizador Tomé faz uma observação sobre a como a qualidade deveria

ser tratada, o discurso da qualidade não se efetiva por questões de custo,

rentabilidade e produtividade, ainda assim o trabalhador é responsabilizado pela sua

aplicação:

“É a qualitividade, falta nas implementações da maioria dos processos ágeis,

com o passar do tempo a complexidade vai aumentando, e a produtividade

da equipe caindo, é inevitável por conta do acumulo de complexidade, a

equipe precisa ter um tempo alocado em torno de 20 ou 40 % do tempo para

investir em qualitividade, em qualidade para ganhar produtividade,

normalmente digo para os times fazerem o que quiserem para aumentar sua

própria produtividade, pode ser aumentar cobertura de teste, refatorar,

automatizar o processo de build, estudar uma nova lib. É preciso ter tempo

para afiar o machado, os gestores não confiam nas equipes para fazer isso,

não alocam tempo para isso pela incerteza do resultado. Mas não existe outro

caminho para as equipes se tornarem referência, a complexidade vai

aumentando a ponto de jogar tudo fora. ” (TOMÉ, 2017)

10. Simplicidade – a arte de maximizar a quantidade de trabalho não

realizado – é essencial. O que se quer dizer aqui é manter o foco no que tem valor

de negócio e proporcionar vantagem competitiva ao seu cliente. Reduzir desperdícios

e eliminar o que não é importante. A complexidade e os defeitos aumentam na

proporção direta da quantidade de código produzido. Em grandes corporações devido

a quantidade de tecnologias e exigências arquiteturais, esse princípio torna-se

bastante utópico, embora seja viável em outros contextos.

11. As melhores arquiteturas, requisitos e design emergem de times

auto-organizáveis. Aqui mais uma vez nos deparamos com a polêmica questão da

auto-organização ou auto-gestão. Acreditou-se por muito tempo que a incerteza

poderia ser controlada por aparatos de gestão de projetos, que o gerente de projetos

presciente poderia dominar todos os riscos e evitar impactos nos projetos.

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Entretanto o ambiente de complexidade, incertezas e de mudanças ininterruptas

requisita outra abordagem, mais baseada na experimentação e no feedback. Uma

gestão mais empírica que prescritiva. Para tanto é necessário ter lideres capacitados,

porém é necessário também que se abra mão do poder gerencialista, e aqui começam

os problemas.

12. Em intervalos regulares, o time reflete sobre como se tornar mais

eficaz e então refina e ajusta seu comportamento de acordo. Não existe nenhum

processo de desenvolvimento de software maduro o suficiente que possa servir de

modelo, o mito da busca do processo perfeito permeia os ambientes de tecnologia.

Na prática o que pode garantir uma certa maturidade é a melhoria contínua, que

também é bastante difícil de implementar em empresas que visam em primeiro lugar

eficiência e rentabilidade máximas. Melhoria contínua requer esforço, tempo. A

responsabilidade recaí sobre as costas da equipe de desenvolvimento, que sente

frustração por elaborar planos de ação de melhoria contínua e não poder executá-los,

ou quando percebe que existem problemas corporativos que não são tratados da

mesma forma e que afetam a equipe que nada pode fazer a respeito. A maioria das

empresas focadas em rentabilidade e eficiência tratam a melhoria continua de uma

forma banal.

3.3 Principais métodos ágeis

Importante salientar que os métodos ágeis fazem uma referência explicita ao

manifesto e princípios ágeis analisados anteriormente, expandindo sua aplicação para

as práticas cotidianas de trabalho.

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3.3.1 Scrum

O Scrum é um framework ágil que auxilia no gerenciamento de projetos

complexos e no desenvolvimento de produtos. Ele evidencia problemas através de

ciclos curtos de melhoria (PDCA), por meio de inspeções adaptações e feedback. São

pilares principais são a transparência e a colaboração. É conhecido como um

framework que prescreve um conjunto de práticas leves e objetivas, muito utilizadas

na área de desenvolvimento de software. As práticas do Scrum também podem ser

utilizadas para projetos de outra natureza, desde que possuam certo grau de

complexidade, pois só assim suas práticas de inspeção e adaptação fazem sentido.

Já foram publicados casos de sucesso da aplicação do Scrum em projetos de áreas

variadas, como marketing, produção, implantações estruturais, escrita de artigos e

livros, e até mesmo para o trabalho estratégico da gestão organizacional.

O Scrum tem por princípio um processo iterativo e incremental para o

desenvolvimento, focando na adaptabilidade. Ele aborda problemas como a variação

de requisitos e imprevisibilidade, que são peculiaridades da produção de software. Um

dos aspectos mais importantes do Scrum é a adaptação a mudanças, é dada uma

prioridade às funcionalidades que agregam mais valor. As variáveis técnicas e de

ambiente de um projeto de software mudam muito trazendo imprevisibilidade para o

processo.

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Figura 2 - Scrum Framework

Fonte: SITE SCRUM.ORG, 2017

O processo começa com uma fase de planejamento, a fase de Sprint segue o

modelo do ciclo PDCA, no final da Sprint é feita uma demonstração para o cliente

(Review) para obtenção de feedback, e em seguida uma reunião de retrospectiva para

melhorar o processo. As entregas podem variar para acompanhar as necessidades

do negócio. Todo o trabalho será conduzido por ciclos chamado de Sprints. Os

requisitos priorizados ficam registrados no Backlog do produto. Os requisitos com

valor de negócio mais alto recebem uma prioridade mais alta. Ao final de cada Sprint,

um conjunto de funcionalidades prontas é entregue.

O Scrum emprega uma gestão empírica, considerando que existe uma

possibilidade de o problema não ter o seu entendimento esgotado na análise, e que

na medida em que é construído os requisitos mudam, é preciso ter flexibilidade para

atender os desafios que emergem.

Entre as suas principais características, podem-se citar:

As equipes pequenas e multidisciplinares que trabalham de modo

colaborativo para produzir software de forma incrementais em iterações curtas;

As equipes se auto-organizam para realizar o trabalho requerido nas Sprints

são necessárias uma responsabilidade compartilhada e uma liderança situacional.

O Scrummaster é um papel responsável por disseminar o processo ágil pela

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empresa, facilitar as cerimônias e remover impedimentos para que o trabalho da

equipe flua, a comunicação e cooperação entre as pessoas se intensificam.

Origem

Em 1986, Takeuchi e Nonaka publicaram na HBR (Harvard Business Review)

um artigo no qual comparavam equipes de alto desempenho e multidisciplinares com

a formação Scrum existente nas equipes de rugby. Eles descobriram que equipes

pequenas e multidisciplinares produziam os melhores resultados.

Jeff Sutherland e outros implementaram o Scrum na empresa Easel

Corporation em 1993, incorporando os estilos de gestão preconizados por Takeuchi e

Nonaka, em 1995 Jeff Sutherland e Ken Schwaber formalizaram o processo para a

indústria mundial de software no primeiro artigo publicado sobre Scrum na conferência

OOPSLA (Programação Orientada ao Objeto).

O Scrum integra conceitos de Lean, desenvolvimento iterativo e incremental,

teoria das restrições, teoria dos sistemas adaptativos e complexos e dos estudos

sobre gestão de conhecimento de Takeuchi e Nonaka.

O Scrum foi pensando para lidar com resolução de problemas complexos em

ambientes imprevisíveis, por conta das dinâmicas dos mercados.

Papéis

Dono do produto (Product Owner): É o responsável por gerenciar o Backlog

do produto, garantir o retorno sobre o investimento, definir a visão do produto,

gerenciar a entrada de novos requisitos e definir a sua ordem, gerenciar o plano de

releases, gerenciar orçamentos e riscos do produto ou projeto e aceitar ou rejeitar o

que será entregue ao final de cada iteração. Ou seja, ele é o responsável por gerenciar

o produto de forma a assegurar o valor do trabalho executado pelas equipes de

desenvolvimento. O sucesso do produto está relacionado à sua capacidade de

compreender as necessidades do negócio e do mercado, de forma que o Backlog do

produto reflita a importância de seus itens, e de transmitir essas informações ao

restante da equipe.

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Equipe de desenvolvimento: Responsável por desenvolver incrementos do

produto, segundo a definição de pronto, entregando-os ao final de cada iteração,

também é responsável pela estimativa quanto ao tamanho dos itens do Backlog do

produto a serem desenvolvidos e por estar de acordo com a meta da Sprint. A equipe

deve contemplar as especialidades necessárias à execução do trabalho, diferentes

pontos de vista e opiniões e experiências promovem a criatividade na transformação de

um requisito em incremento de produto. Deve ser auto-organizada dentro do contexto

técnico e da Sprint, ninguém os orienta nessa transformação, possuem

responsabilidade e autoridade sobre o trabalho, a equipe realiza o microgerenciamento

sobre si mesma, andamento e distribuição das tarefas, qualidade, prazo, etc.

Scrummaster: É a pessoa que mais conhece o Scrum, ele é responsável por

orientar o dono do produto, garantir que as regras estão sendo cumpridas e os valores

seguidos. Facilita as cerimônias, ajuda a remover os impedimentos, sem recorrer a

autoridade. Ele não exerce papel ativo na engenharia de software, usa técnicas de

facilitação para que os problemas e as soluções se tornem claros.

Artefatos do Scrum

Backlog do produto: É uma lista ordenada criada pela equipe Scrum; só o

Product Owner pode mantê-la. O formato mais comum dos itens é a história de usuário

cujo modelo especifica quem está pedindo, o que está pedindo e qual valor de negócio

agregado a esse item, os itens mais importantes ficam no topo e tem um detalhamento

maior. Esses itens são itens de negócios que junto com outros formam grandes blocos

de funcionalidades. Também cotem itens não funcionais como questões sobre

arquitetura tecnológica utilizada ou questões sobre segurança, tempos de respostas,

etc.

Backlog Sprint: É um conjunto de itens selecionados para serem

implementados durante a Sprint, ele tem uma meta a ser atingida, e as tarefas técnicas

necessárias para implementar os itens de negocio

Incremento de produto: Ao final da Sprint a equipe entrega um incremento

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do produto de acordo com as cartas de qualidade DOD (Definition of Done) e DOR

(Definition of Ready), ambas definem exigências com relação à regras, atividades e

artefatos que devem ser atendidos para a entrega ser considerada realizada.

Outros artefatos: O Scrum recomenda a utilização de outros artefatos como

os gráficos de acompanhamento das atividades (burn-down, entre outros) e o próprio

quadro kanban, que permite fazer uma gestão visual do trabalho em curso.

Figura 3 - Quadro Kanban

Fonte: SITE ZAPIER.COM, 2017

Cerimonias do Scrum

São eventos de duração fixa (time-boxed) realizados em intervalos regulares,

implementando a gestão empírica – inspeção-feedback- adaptação.

Sprint: É um ciclo completo de desenvolvimento de duração fixa executado

de forma iterativa e incremental. Uma Sprint tem uma duração média de 1 a 5

semanas. O escopo pode sofrer uma negociação constante, mas o que está

relacionado com a meta da Sprint não pode ser modificado.

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Planning: Sessão de planejamento no início de cada Sprint, para planejar o

trabalho daquele ciclo, a duração varia conforme o tamanho da Sprint. A reunião é

separada em duas: o que vamos entregar no final e como será construído. Na primeira

parte a equipe faz uma previsão das funcionalidades que serão desenvolvidas, o

Product Owner pode ajudar, mas não pode interferir, depois de escolher a equipe

define uma meta que guiará o trabalho. Na segunda parte decompõe cada item em

tarefas técnicas de um dia ou menos.

Scrum diária: Reunião de 15 minutos na frente do kanban onde cada membro

diz o que fez desde a última reunião, o que fara até a próxima e se tem algum

impedimento. Reunião tática diária para sincronizar o trabalho entre membros, não se

trata de uma reunião de prestação de contas, é uma reunião colaborativa para

acompanhar o trabalho da Sprint.

Figura 4 - Reunião Diária

Fonte: SITE KANBANTOOL.COM, 2017

Revisão da Sprint: É uma cerimônia que é realizada ao final da Sprint. A área

de negócios interessada no produto deve participar da cerimônia, além da equipe

Scrum. O maior objetivo dessa cerimônia é coletar o feedback sobre o que foi

produzido para eventuais melhorias no próximo ciclo. O Product Owner aprova ou não

as entregas da Sprint, de acordo com a meta acordada com a equipe, a equipe faz

uma apresentação, inicia um debate com os presentes, e atualiza os artefatos para

determinar o progresso atual do projeto.

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Retrospectiva: Cerimônia que ocorre depois da revisão, participam todos os

membros da equipe, e o foco é o aprimoramento do processo de trabalho, interação

entre o membros, práticas e ferramentas utilizadas, identificam-se problemas e cria-

se um plano de ações visando melhoria.

Hoje, o Scrum, é o método ágil mais empregado no mercado nacional,

movimentando um mercado de certificações, capacitações e consultorias muito

grande. Pelo aspecto gerencial de sua abordagem, sua introdução permitiu a

aceitação, principalmente por parte de grandes empresas, das abordagens ágeis.

3.3.2 Extreme Programming (XP)

O XP foi criado por Kent Beck a partir de um projeto na indústria automobilista

Chrysler. Tratava-se de um sistema de folha de pagamento, com histórico de

problemas de custos e prazos estourados. O XP é fortemente baseado em

colaboração e na confiança nas equipes de desenvolvimento, preconiza um conjunto

de práticas de engenharia de software bastante específicas. As práticas visam agregar

valor e zelam pela qualidade do código escrito.

Valores

Poderíamos dizer que os valores são o coração dos métodos ágeis, não são

muito tangíveis mas guiam todas as práticas.

A comunicação é o primeiro valor, os desenvolvedores devem ir além do

código, precisam cada vez mais entender de pessoas. A atividade em si de

desenvolvimento requer bastante comunicação com usuários e clientes, além de

disseminar conhecimento.

A simplicidade seria o segundo valor, arquiteturas, modelagens e estilos de

codificação mais simples, são mais fáceis de serem codificadas e mantidas. A ideia é

adicionar requisitos na medida em que se fazem necessários, reduzindo assim a

possibilidade de defeitos.

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A coragem é o terceiro valor, inovação, empreender mudanças, aceitar as

próprias vulnerabilidades, comprometimento, dizer o que pensa e assumir as próprias

deficiências requerem coragem.

O feedback é o quarto valor, se traduz pela avaliação por parte do cliente

principalmente sobre uma parte da entrega, se atende as necessidades ou precisa de

ajustes, além disso o feedback entre os membros do time é fundamental.

O respeito é o quinto valor, dá sustentação para todos os outros valores,

dificuldades são consideradas oportunidades de melhoria, respeito pela capacidade

produtiva, pelas singularidades das pessoas.

Equipe

A equipe de XP deve reunir todas as pessoas com as habilidades necessárias

para fazer frente aos desafios do projeto ou produto: programadores, designers,

analistas, testadores, clientes, executivos. Entretanto alguns papéis são fundamentais

para garantir o sucesso da equipe.

O coach é o especialista no processo, alerta sobre os desvios dos valores ou

práticas, não pressiona a equipe por entregas, é um papel que pode ser exercido por

um desenvolvedor experiente.

O tracker coleta e divulga informações sobre o projeto, com a finalidade de

descobrir oportunidades de melhoria, dissemina a informação com radiadores nas

paredes. Deve se ater a um pequeno conjunto de métricas.

Os clientes são os conhecedores das regras de negócio, das prioridades, das

necessidades a serem atendidas. É importante a proximidade dos clientes da equipe

de desenvolvedores, pois as dúvidas surgem a cada instante, caso isso não ocorra, o

desenvolvedor assume o risco de tomar decisões de implementação que caberiam ao

cliente, ou ainda, aguardar disponibilidade do cliente para dirimir as dúvidas.

Documentação

A interação e comunicação intensa entre indivíduos é preferida em detrimento

de documentação extensa. Os requisitos são instáveis e manter documentação

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atualizada é custoso, além do que um documento sempre está dependente de

interpretação. Código simples e bem escrito, critérios de aceite e testes automatizados,

são em si uma boa documentação. Se alguma documentação for necessária deve-se

submeter a sua elaboração ao princípio do valor agregado.

Os cartões de história são formas de descrever as necessidades e desejos

dos clientes, eles guiam o trabalho da equipe e são índices para incentivar o

detalhamento. As metáforas seriam termos específicos para explicar de forma

intuitiva a concepção do produto ou projeto.

Princípios

Os princípios transformam os valores em práticas, eles estão interligados

entre si, o XP possui quatorze princípios:

Humanidade: A produção de software depende dos desenvolvedores. É

importante levar em conta que suas necessidades individuais devem ser respeitadas

e balanceadas com os interesses de negócio e as necessidades da equipe.

Economia: A equipe deve conhecer as necessidades de negócio e definir

prioridades que agreguem o máximo de valor no menor intervalo de tempo,

flexibilidade para reagir a mudanças com rapidez é importante para acompanhar

revisões nas prioridades de negócio.

Melhoria: Melhorias devem ser implementadas constantemente. Primeiro,

busque uma solução simples: isso satisfará o princípio da economia e ajudará a

equipe a melhorar seu entendimento do problema, depois busque uma solução

elegante e por último uma solução ótima, sendo que está terá um custo e um prazo

mais elevado.

Benefício mútuo: As atividades devem sempre trazer benefícios para os

envolvidos. Deve-se privilegiar práticas que trazem compreensão e confiabilidade, não

é o caso de documentos ou planejamento extenso.

Semelhança: Boas soluções devem poder ser aplicadas novamente, inclusive

em outros contextos e escalas

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Diversidade: A equipe deve reunir muitas habilidades, opiniões e pontos de

vista para aumentar sua flexibilidade e conseguir várias perspectivas que ajudarão a

encontrar a melhor abordagem para cada situação.

Passos pequenos: Entregas de tamanho pequeno para que seja possível

manter a qualidade.

Reflexão: Periodicamente a equipe deve refletir sobre o seu próprio trabalho.

Fluxo: O ritmo do trabalho deve ser sustentável ao longo do tempo, a

quantidade de entrega deve se manter estável.

Oportunidade: Mudanças e problemas são vistos como oportunidade de

melhoria.

Redundância: Encontrar maneiras de assegurar qualidade, reduzir riscos,

aumentar aprendizado e diminuir a concentração de conhecimento.

Falha: A equipe deve ter coragem de experimentar alternativas quando a

solução não está clara.

Qualidade: Qualidade não é negociável, tempo e escopo devem ser

ajustados à qualidade.

Aceitação de responsabilidade: As responsabilidades são aceitas e não

impostas. Cada membro da equipe deve estar comprometido e disposto a colaborar

da melhor forma possível com a equipe.

O ciclo de projeto

É bem parecido com o ciclo do Scrum, com fase de exploração, jogo de

planejamento sempre com pequenos ciclos iterativos e incrementais, com pontos de

inspeção e adaptação. O que diferencia bastante as duas abordagens são as práticas

de engenharia de software preconizadas pelo XP, tais como: testes automatizados,

refatorações, programação em par, padronização de código, propriedade coletiva de

código, repositório de código, integração contínua, build ágil. As práticas estão

interligadas entre si e fazem referência direta aos princípios, que as ligam aos

valores. Além disso o ambiente deve privilegiar a colaboração e incentivar o uso da

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gestão visual através de kanban e radiadores de informação.

Importante dizer que o XP foi o primeiro método ágil a ficar conhecido no Brasil,

principalmente no meio acadêmico, sua aceitação foi baixa, porque era visto como

algo “subversivo” porque conferia muito poder aos desenvolvedores, sendo rejeitado

por gerentes de projetos e líderes em geral. Os processos ágeis começaram a ter mais

aceitação com a chegada do Scrum, embora a semelhança seja muito grande, a

narrativa de controle e gestão que envolveu a introdução do Scrum no Brasil foi

acentuada. Hoje o Scrum se combina com práticas de engenharia de software do XP

para prover mais qualidade, produtividade, eficácia e eficiência na produção.

3.3.3 Lean

O Lean tem suas raízes na indústria de tecelagem japonesa no fim do século

XIX. Diante da situação improdutiva na indústria da tecelagem, devido a muita

intervenção humana, acarretando paradas, perda de qualidade, e de produtividade.

Sakichi Toyoda cria a primeira máquina de tear elétrica em 1896, de alta velocidade e

menos suscetível a paradas. A máquina ao primeiro sinal de defeito parava, dessa

forma um só trabalhador conseguia monitorar dezenas de máquinas. Tudo isso

redunda em redução de custos e aumento de qualidade, transformando o Japão em

um expoente no ramo.

O método caracteriza-se pela entrega de valor agregado crescente, com

menos esforço (importante frisar, com drástica redução de mão-de-obra). Da

influência da cultura japonesa destaca-se a responsabilidade e disciplina.

Automação com toque humano, Jidoka, é uma palavra que suaviza a

articulação entre trabalhador e máquina. Nos métodos ágeis existe uma iniciativa para

automatizar atividades repetitivas, eliminando variação de resultados e reduzindo

tempos, como testes, deploy e criação de ambientes.

Encontrar problemas tardiamente eleva custo de produção e a frustração da

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experiência de quem usa o produto. A automatização se faz necessária pois o tempo

para testar é exíguo. Vale lembrar que os princípios e práticas se referenciam

mutualmente, aqui existe uma clara referência às técnicas de engenharia ágil do XP.

Quando temos testes escritos e compilação automatizados temos feedback

praticamente imediato de possíveis efeitos colaterais indesejáveis.

Na década de 1920, Kiichiro Toyoda viaja pelo mundo e toma contato com a

indústria automotiva, retorna certo de que não existe outro caminho a não ser investir

na produção de carros. Assim a família Toyoda abandona o ramo de tecelagem e

ingressa na indústria automotiva, produzindo o primeiro carro em 1936. Inspiraram-se

no modelo de produção em massa de Ford, e na forma como os supermercados

americanos funcionavam, recolocando produtos nas gondolas assim que eram

consumidos, traduzindo-se em baixos estoques. Assim nasceu o conceito de just-in-

time, ou sistema de produção puxada, consistindo em reduzir desperdícios,

produzindo o que é necessário, no tempo certo e na quantidade certa.

O poka-yoke é outro conceito que significa criar mecanismo para evitar erros.

Em software isso equivale a criar interfaces que possuam mecanismos que de

prevenção de erros, e mais uma vez as práticas do XP são uma referência importante,

como a programação em par e a revisão de código, o resultado é a produção de um

código de alta qualidade. O custo da correção de um erro descoberto no software

cresce exponencialmente em relação ao tempo que se passou desde que foi criado.

Para que o erro não aconteça mais, as pessoas precisam parar e refletir sobre suas

causas, raízes e consequências. Aqui são utilizadas técnicas como diagrama de

Ishikawa e os cinco porquês. Todos têm permissão para parar a produção e corrigir o

erro, mesmo que isso ocorra muitas vezes por dia, vale mais a pena corrigir o

problema nesse momento. O Andon é um sinalizador que mostra a todos que existe

um problema, pode ser um dispositivo visual qualquer associado a um mecanismo de

mensagens, por exemplo.

No sistema Toyota, cada processo na cadeia de geração de valor é cliente do

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anterior, esse é o sistema puxado, implementado com o uso do kanban, sistema de

controle visual baseado em cartões que contém as informações necessárias para

produção sempre em uma quantidade especifica, evitando desperdícios e estoques.

No caso do software isso equivaleria a uma acumulo de requisitos a serem produzidos

parados em algum ponto da cadeia, criando os gargalos. Todo esse processo requer

colaboração intensa das pessoas. Devido à resistência por parte dos trabalhadores, o

presidente descia ao chão de fábrica para apoiar os trabalhadores, além disso a

Toyota considerava a capacitação e a liderança fundamentais para que o sistema

funcionasse como um todo. Todos esses elementos formavam o Sistema Toyota de

Produção, que ganhou expressão global a partir de 1973.

Esse sistema buscava a perfeita integração entre pessoas, processos e

ferramentas. E podemos traduzir a influência que exerceu sobre a produção de

software a partir de alguns princípios.

Princípios

Fluxo constante de entrega para o cliente: orquestração de um ambiente

complexo para entrega de valor agregado, que vai da área de negócio, passando pela

produção de software, à infraestrutura.

Privilegiar o aprendizado da organização: isso implica em aporte constante

de conhecimento, além de incentivar a criação de conhecimento de forma colaborativa.

Cultura de melhoria continua: desenvolver pensamento crítico para produzir

melhorias constantemente.

Eliminar desperdícios: pertinácia na remoção de todo e qualquer

desperdício na cadeia de produção de valor.

No que diz respeito à liderança temos dois grandes modelos, o de comando-

controle, e o de auto-organização, no Lean as pessoas estão no centro do processo,

o Lean preconiza a formação de equipes que possam dar conta de toda a cadeia de

geração de valor, portanto equipes multidisciplinares. O engenheiro chefe é a posição

mais importante, porque conhece bem o produto e se preocupa com questões de

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negócio, e nesse caso assemelha-se ao Product Owner do Scrum, e também dá a

última palavra sobre questões técnicas. A experiência do cliente é valorizada e

coletada ao longo de toda a cadeia de produção de valor. O engenheiro chefe

coordena o trabalho de diversas equipes envolvidas na produção. Já foi considerado

por alguns como um “ditador benevolente”. Dá direcionamento técnico, estimula e

inovação, ele vê os trabalhadores como trabalhadores do conhecimento, que se

apropriam com orgulho daquilo que estão construindo.

A ideia que se disseminou pela produção de software foi essa: criação de

produtos com alto grau de assertividade, alto padrão de qualidade, equipes completas

de forma sustentável e visando melhoria continua.

Outra figura importante nesse contexto é o do líder de competências, que

exerce um papel de capacitação e mentoring, seu foco é prover o aprendizado

continuo, estimular a busca obsessiva por melhoria, agir sobre a cultura da empresa

para quebrar paradigmas, é responsável por criar as competências necessárias ao

longo da cadeia de produção, lembrando vagamente o papel de Scrummaster do

Scrum.

As pessoas devem se comportar no sentido de fortalecer a comunicação e

a colaboração. As equipes devem ter todas as competências necessárias para

transformar um conceito em produto, assim como os seus membros devem buscar

serem generalistas, ainda que sejam especialistas em alguma área, devem também

ser responsáveis por saber o que fazer e como fazer, pois o sistema é puxado, e

não existe alguém que atribua tarefas ou verifique o andamento de tais tarefas. Todos

os níveis da organização têm autonomia para tomar decisões, o que significa entre

outras coisas, reduzir desperdícios, a informação percorre um caminho acidentado,

perde qualidade, é distorcida, consome tempo.

Tipos de desperdício

Para que valor seja entregue de forma continua é necessário eliminar o

desperdício da cadeia de produção de valor.

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126

Muda: atividades realizadas que não agregam valor para o cliente, exemplos

são documentos, reuniões, escrever e-mails, entre outros.

Muri: está relacionado à sobrecarga de processo. O pensamento da eficiência

absoluta está relacionado com o uso da capacidade de 100% das pessoas, o que leva

a intensificação do trabalho e condições de trabalho não sustentáveis. Se não houver

um slack, uma folga, não será possível tratar a variação que surge daquilo que está

sendo produzido. Se o trabalho não é sustentável, não sobra tempo sequer energia

para aprendizado e inovação. Respeitar a capacidade produtiva requer uma nivelação,

diminuindo a variação dos lotes de coisas que entram na produção, as demandas, no

caso do software os requisitos, na Toyota isso é conhecido por Heijunka. Se você

cadenciar o que entra no sistema é possível ter mais estabilidade e previsibilidade,

reduzindo a incerteza no planejamento. Portanto, para alcançar tais objetivos a

colaboração, a disciplina e a responsabilidade são necessárias.

Mura: refere-se a defeitos. No caso do software, mais uma vez as práticas do

XP são requeridas, desenvolvimento orientado por testes (TDD), programação em par,

testes e compilação automatizados, refatoração, simplicidade, arquitetura emergente.

3.3.4 Kanban

O kanban parte da premissa de que a imposição de um método, processo,

modelo de trabalho para uma empresa que tem um contexto muito especifico está

fadado ao fracasso. São muitas as especificidades: níveis de maturidade divergentes,

limites de orçamento, natureza dos riscos, culturas heterogêneas, mercados com

características únicas. O que há em comum é o trabalho do conhecimento, e a

necessidade de gerar valor.

O ponto de partida do Kanban é elaborar um mapa do contexto atual, das

características do trabalho como é realizado hoje. Essa representação é feita por um

quadro kanban, um dispositivo visual, a partir do qual se cria uma realidade

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compartilhada para todos. Os problemas, impedimentos, gargalos emergem

visualmente, a partir dessa realidade atual se caminha em direção de uma realidade

desejada, o quadro se modifica à medida que entendemos a necessidade, trata-se,

portanto, de um sistema evolucionário e não revolucionário. Esse método, o

Kanban, surgiu depois que o Scrum e o XP já eram utilizados no mercado, antes o

kanban designava tão somente um dispositivo visual, a partir de 2007 passou a ser

visto como metodologia.

Houve uma aproximação da teoria das restrições, baseada no conceito de

tambor-pulmão-corda. O modelo do Kanban segue uma ideia de mudanças

incrementais visando uma transformação cultural da empresa, o caminho é o da

otimização e não da substituição, consequentemente a resistência para adoção será

menor. Transformações rápidas e radicais tem problemas sérios de viabilidade, tanto

no que diz respeito às pessoas, que tem que se adaptar a novos contextos enquanto

resolvem problemas do quotidiano, e problemas de ordem econômica. A gestão visual

é fundamental nessa abordagem, a partir dela a equipe toma decisões. Alguns pré-

requisitos devem ser atendidos: instalações físicas que possibilite o uso de quadros,

volume de trabalho significativo que muda de status constantemente, motivação para

colaborar e adotar uma transparência no processo de trabalho, a equipe deve

desenhar o seu processo de trabalho. É um método pouco prescritivo, não impõe a

execução de papéis, artefatos ou cerimonias, é nisso que reside seu ponto forte,

reduzir a resistência, embora na prática exista uma composição com outros métodos

ágeis.

O primeiro passo é compreender a característica das demandas, em segundo

lugar o fluxo de valor, e por último refletir essa realidade em um quadro kanban.

Todas as situações são representadas no mapa, portanto este precisa ter uma riqueza

de detalhes expressos em cores e cartões de tamanho diferentes, e outros elementos

visuais. Um ponto crítico é a definição do nível ideal de granularidade das demandas,

influenciando a cadência de entregas e ritmo da equipe, ao percorrer o fluxo da cadeia

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de valor, os itens de trabalho passarão por ciclos sucessivos de expansão e contração,

e no final consolidados para seguir o fluxo de produção. Outra prática do Kanban é

limitar a quantidade de trabalho que pode estar em determinado ponto do fluxo de

valor (WIP – work in progress), uma vez o limite atingido, nenhum item avança até o

gargalo ser resolvido. As pessoas são obrigadas a atuarem do ponto de gargalo, pois

não tem sentido o processo anterior àquele que apresentou o gargalo continuar

produzindo, encontra-se um ritmo de acordo com a capacidade produtiva quando você

externaliza e trata as restrições. Os slacks ou folgas surgem a partir dos gargalhos.

Pare de começar e comece a terminar esse é o axioma do Kanban. Os limites são

estabelecidos com base na intuição. Os buffers são áreas intermediárias que

garantem que a parte do processo mais lenta tenha um estoque de itens mínimo para

puxar. Itens que apresentam problemas no fluxo e precisam voltar para operações

anteriores, podem ser sinalizados com indicadores de stop-the-line, técnica

desenvolvida no Lean para criar um senso de urgência para resolução de problemas,

requerendo uma ação imediata, porque interrompe o fluxo. As regras de auto-

organização e colaboração são definidas pela própria equipe. Cada membro puxa um

item para trabalhar, não existe delegação, os itens não são empurrados para os

membros. Cada vez que se posiciona na frente do kanban para começar algo novo, é

necessário se perguntar se para fazer o trabalho fluir não seria mais interessante atuar

em algum gargalo, é um olhar mais sistêmico do que individual. O líder nesse contexto

vai participar da definição de regras e atuar somente nas restrições.

Para facilitar a auto-organização preconiza-se uma reunião diária ou frequente

na frente do quadro, é um momento de planejamento tático da equipe, cria-se

realidade compartilhada, sincronização de todos os trabalhos em execução. Os

eventos ocorrem de acordo com uma cadência definida pela equipe. O Scrum utiliza

o conceito de time-box para prover cadência, as cerimônias como revisão e

retrospectiva podem acontecer de acordo com um gatilho, de acordo com um certo

número de itens em alguma fila do kanban. No Scrum a unidade de trabalho é a

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história de usuário, no Kanban é um incremento de valor de negócio (BVI). Não é

dimensionado para caber em uma unidade de tempo, embora a sua granularidade

seja controlada, cada cerimônia tem sua própria cadência, é desacoplada das

entregas. Por exemplo, se cinco itens chegam na fila de “testado”, é realizada uma

apresentação (reunião de revisão) para o cliente para obter feedback do que foi

construído até aquele momento. No Scrum a reunião de revisão sempre acontece no

final da Sprint determinada por um time-box.

O Kanban pode ser aplicado em uma variedade grande de negócios e

contextos, como por exemplo agências de publicidade, qualquer atividade que envolva

“trabalhadores do conhecimento”, portanto é possível expandir a agilidade para

todas as células das empresas, bastando para isso estar relacionada de alguma

forma a cadeia de valor. Em áreas onde a imprevisibilidade é muito grande e a

urgência e severidade priorizam as demandas ao invés de valor agregado, o Kanban

funciona muito bem. De qualquer forma visibilidade, fluxo de valor, WIP limitado,

sistema puxado, colaboração, balancear capacidade produtiva e demandas, tem o

potencial para transformar ambientes de trabalho sem muita resistência. As filas de

demandas (Backlog) são grandes e a priorização (classificação por importância ou

urgência) inconstante.

A melhoria continua é a espinhal dorsal do método Kanban, adequar o

trabalho à capacidade produtiva, visualizar o processo, melhorar a colaboração,

remover gargalos e impedimentos, elaborar estratégias e políticas de trabalho

adequadas. A abordagem sistêmica leva a um constante debate sobre melhoria, e

coloca a tônica do trabalho sobre as pessoas que são os verdadeiros agentes

da mudança.

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CAPÍTULO 4 - EVANGELIZADORES

Conceituamos e detalhamos a atuação dos evangelizadores, que assumem

um papel central na pesquisa pelo protagonismo assumido diante do movimento ágil,

e cujas narrativas são fundamentais para o entendimento do problema proposto.

Descrevemos em detalhes o planejamento e execução das entrevistas, relatando os

percalços e soluções encontradas. Estão organizadas em três blocos, o primeiro

abrange questões relacionadas à adesão dos evangelizadores ao movimento ágil, a

definição do que seria o método ágil na visão de cada um, as percepções sobre a

trajetória do movimento no Brasil e sua contribuição pessoal. No segundo bloco de

entrevistas, analisamos o impacto de algumas práticas ágeis. No terceiro bloco

discutimos sobre a adesão das empresas aos métodos ágeis, como os

evangelizadores enxergam essa adoção na atualidade, destacando as contradições,

dificuldades, soluções que emergem das narrativas.

4.1 Planejamento e execução das entrevistas

No âmbito desse trabalho chamo de evangelizadores aqueles profissionais

que em um dado momento se filiam ao movimento ágil e passam a divulgá-lo por

intermédio de comunidades virtuais, listas de discussões, eventos, consultoria e

treinamentos. É notória a proximidade dos evangelizadores com os Gurus que

fundaram o movimento ágil, a comunicação é intensa e a participação em eventos

internacionais torna-se rotina. É marcante o fato de que todos eles vieram de um

contexto de desenvolvimento mais tradicional, alguns relatam caos, outros, excessos

de burocracia, atuando em pequenos clientes ou pequenas demandas, e metade do

público entrevistado não possui curso superior.

As entrevistas revelam vários aspectos sobre a forma como os

evangelizadores se posicionam diante do movimento ágil que aspira a criação de um

mercado muito específico. Os codinomes utilizados aqui foram deliberadamente

inspirados em apóstolos cristãos.

Havia planejado inicialmente entrevistar dez evangelizadores, consegui

executar a entrevista com sete, dos três não entrevistados, um disponibilizava de

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apenas quinze minutos, tempo insuficiente para realizar a entrevista e os outros dois

alegaram não mais atuarem na área. O critério de escolha foi o de participação no

movimento desde o seu início, a forma de abordagem foi facilitada pelo fato de que

todos eles fazem parte da rede de contatos pessoais do pesquisador, que atua no

movimento ágil há doze anos

As entrevistas foram todas realizadas remotamente utilizando ferramentas

como o hangout da Google ou o Appear-in, sendo que três delas os entrevistados

encontravam-se em outro país, outros três estavam em outros estados do Brasil, e um

participou da entrevista de forma assíncrona via whatsapp, ou seja, ao longo de um

dia eu enviava as perguntas as quais ele respondia, eventualmente fazia algum

questionamento a partir da resposta dada.

As entrevistas com os evangelizados, que se subdividiram em sete agile

coaches e sete desenvolvedores, foram todas realizadas presencialmente. As

entrevistas com os agile coaches foram facilitadas pelo fato deles também fazerem

parte da rede de contatos pessoais do pesquisador. Inicialmente havia previsto

realizar dois grupos focais com os desenvolvedores, mas as dificuldades técnicas

inviabilizaram essa estratégia, levando-me a realizar entrevistas semiestruturadas.

Mesmo aplicando a técnica da bola de neve, foi muito difícil realizar os agendamentos,

a alegação principal era a falta de tempo. Algumas foram realizadas nos intervalos de

trânsito de um destino para outro, em ambientes agitados, o que dificultou um pouco

a concentração e prejudicou a gravação.

Todas as entrevistas foram transcritas gerando centenas de páginas.

As entrevistas semiestruturadas, com duração média de duas horas, foram

subdivididas em três blocos: o primeiro abrangia questões relacionadas à adesão ao

processo, definição do que é o método ágil, trajetória do método no Brasil e

contribuição para o movimento. O segundo abrangia questões relacionadas à

aderência do processo nas empresas, sustentação da iniciativa ágil ao longo do tempo,

mudanças do método quando implantado em grandes empresas. Terceiro bloco

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abrangia questões relacionadas ao impacto de diversas práticas nas pessoas como:

time-box, gestão visual, melhoria contínua, auto-organização, quais empecilhos as

pessoas encontram para utilizar o método, porque rejeitam ou aderem.

Devido a exiguidade do tempo estruturei a pesquisa para focar apenas nos

evangelizadores, pois a análise mostrou-se complexa e ensejava a utilização de

outros aportes teóricos não previstos. A solução foi apreciar o material coletado sobre

os evangelizados em futuros artigos, dando assim continuidade à pesquisa. Conclui

também que as perguntas feitas aos desenvolvedores devem ser reformuladas para

um melhor entendimento dos processos de subjetivação. Entre evangelizadores e

evangelizados identifiquei um terceiro grupo que foram identificados como agile

coaches, e que também requerem um aporte teórico específico, pois compartilham de

características dos dois grupos.

Para conduzir uma investigação em campo com os sete desenvolvedores

entrevistados foi escolhida a técnica bola de neve, não se trata de uma forma de

amostra estocástica, a dinâmica consiste em escolher os participantes principais,

designados como sementes, com potencial de relacionamento e conhecimento da

área de pesquisa, com trânsito na comunidade objetivo da pesquisa, esses indicaram

outros participantes e assim por diante, até chegarmos em um ponto de saturação,

que é atingindo quando as narrativas se repetem não trazendo mais nenhum elemento

novo. A dinâmica dessa técnica de amostragem estabelece um recrutamento em rede,

o fato de que as sementes tenham destacada atuação no seu meio, pode ser um fator

que apresenta vantagens e desvantagens, no âmbito dessa pesquisa se apresentou

como vantagem. No caso da pesquisa os atores que possuem informações relevantes

são os profissionais mais experientes em métodos ágeis, nesse caso trata-se de

amostragens intencionais, destaca-se também a possibilidade de encontrar perfis

diversos sócio, econômicos, culturais e técnicos.

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4.2 Trajetória dos métodos ágeis no Brasil

Constatamos que há uma discordância dos rumos tomados pelo movimento

hoje, alguns aproximam o movimento ágil dos gurus da administração, João afirma

que:

“Ágil não tem nada de novo, se aproxima de conceitos e princípios que gurus

da gestão como Peter Drucker, Jim Colins, Kenneth Blanchard e Spencer

Johnson, o que tem de diferente é que os agilistas levaram à sério esse

conhecimento, esse ensinamento e tiveram disciplina em executar. Os gurus

da administração não conseguiram criar uma comunidade, uma igreja,

uma religião. Na medida em que os métodos ágeis conseguem criar uma

religião, a coisa fica muito forte” (JOÃO, 2017)

Pedro também aproxima o surgimento dos métodos ágeis de conceitos

criados por gurus da administração, nesse caso Peter Drucker que cunhou a

expressão trabalhador do conhecimento, desqualificando um jeito de trabalhar que já

não funciona por não considerar a incerteza:

“Na essência é uma reavaliação do que significa trabalhar com projetos na

era do conhecimento, na qual o desenvolvimento de software está inserido.

Você tem que descobrir qual é a coisa que tem que ser feita enquanto você

faz, ao invés de ter isso pré-definido, essa e a grande base do ágil. Antes o

que você fazia era definir um jeito de fazer as coisas e perseguir esse jeito

durante a execução do projeto, estabelecer uma certa conformidade com a

maneira de fazer, e trabalhar para aumentar a eficiência dessa maneira de

fazer, mas isso mata o processo de descoberta, que é a essência de um

trabalho do conhecimento, e é ruim lidar com o risco da incerteza embutida

nisso, os processos ágeis vieram com um modelo de gestão mais apropriado

para um ambiente onde você está sem saber exatamente o que precisa ser

feito, porque será definido ao fazer. Permite uma adaptação melhor ao

objetivo final que se quer chegar, a maneira mais tradicional se adequa bem

à trabalhos repetitivos, mas um novo terreno requer um novo modelo”

(PEDRO, 2017)

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Para Lucas os processos ágeis sofreram significativa influência da Toyota:

“Poderíamos falar do manifesto ágil que resume isso bem, mas falando de

uma maneira mais pessoal seria diminuir os ciclos de feedback, antes de

trabalhar com os métodos ágeis tínhamos ciclos longos de entrega [...] O

segundo ponto foi trazer responsabilidade para as pessoas que fazem parte

de uma equipe, de melhorar o próprio trabalho, influência do lean e do TPS

(sistema Toyota de produção) do kaizen, de pequenas melhorias que fazem

diferença, trazer essa mentalidade faz diferença muito grande para uma

equipe descobrir as práticas que eles precisam, para conseguir ter mais

sucesso no trabalho e prevenir defeitos. Outro ponto seria o foco constante

para agregar valor para o cliente, antes era evitar que o cliente não mudasse

de opinião, o fornecedor procurava se proteger por um contrato, a agilidade

traz o cliente para o centro do processo. ” (LUCAS, 2017)

Lucas ainda acrescenta a influência das empresas do vale do silício, e de

como isso trouxe credibilidade para o movimento:

“As empresas startups foram chegando, as grandes empresas do vale do

silício declarando-se agilistas, isso trouxe credibilidade, hoje as empresas

que trabalham de uma forma tradicional é que estão atrasadas. A agilidade

conquistou isso com eventos, com uma comunidade forte. ” (LUCAS, 2017)

Os evangelizadores relatam suas percepções desde que os métodos ágeis

chegaram no Brasil, apontando a necessidade de flexibilização e adaptação para

ganhar mercado, Mateus assevera que:

“No início era muita teoria e pouca prática, depois com a proximidade do

mundo real, começou-se a ter uma ideia de flexibilizar um pouco mais, e fazer

do jeito que poderia funcionar na empresa, a realidade de mercado é que

cada empresa tem seu jeito de trabalhar, todas elas estão mesmo que

indiretamente, mesmo que erroneamente, se apropriam do processo e se

adaptam, no ágil o desprendimento com a teoria veio mais rápido do que com

outros métodos, o Scrum guide e outras literaturas afirmam algumas coisas,

mas a maioria das empresas não estão muito aí para isso, se apropriam do

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método, e criam com sua própria cara. A aplicabilidade para Startups e

Fintechs é diferente do que para empresas grandes, e mesmo entre as

grandes existem muitas variações. " (MATEUS, 2017)

João relata como o processo era visto como algo sem fundamento algum, até

se transformar em uma referência em termos de processo de trabalho, critica o fato

do processo ter se massificado e perdido qualidade, e como os métodos ágeis podem

vir a se tornar referência para a gestão no século XXI:

“A principal é que no início era coisa de amador, de maluco, usávamos

técnicas de guerrilha. Hoje tornou-se objeto de desejo, todo mundo quer, não

sabe como funciona, e tem a impressão de que se não fizer vai perder

mercado [...] O que era rechaçado agora é adorado. O segundo ponto é que

o nível operacional do ágil virou commodity, só que não é bem feito, a

empresa diz fazer ágil, quando você vai ver é comando--controle ágil. Há

crescimento exacerbado, há comoditização no nível da execução, do delivery.

Há disputas entre métodos, entre comunidades [...] hoje você tem que

desenvolver as pessoas e horizontalizar a organização. Os métodos ágeis,

pensamento ágil, é a diretriz que os novos modelos de gestão do século XXI

deveriam adotar. (JOÃO, 2017)

A exemplo de João, Paulo lamenta a perda de qualidade com a massificação,

e ressalta o fato de como os métodos ágeis, que começaram com uma proposta de

melhorar a produção de software, foram além disso, lamenta também a tentativa de

escalar o processo com inevitável perda da essência da proposta original:

“É o efeito meme das coisas, existe uma geração de Scrummaster que estão

fazendo ágil em ambientes ágeis, aprenderam a fazer ágil, mas de um jeito

torto, microgerenciam a equipe, e servem de proxy entre equipe e Product

Owner. O que mudou tem muito a ver com a resposta do que é ser ágil, no

começo era ligado à tecnologia e software, mas quando o ágil entrou nas

grandes empresas assumiu um outro formato, no ágil de raiz, quando foi

pensado a partir do contrato do Manifesto Ágil, os agilistas não imaginavam

que o ágil chegaria onde chegou, hoje você tem empresas com 1.000

pessoas usando ágil, e ele não foi pensado para isso, hoje o ágil assumiu

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diferentes formatos, de forma que se torna difícil dizer o que é ágil realmente,

do ponto de vista do comportamento, do processo. Tentou absorver mais as

dores, a forma do mundo corporativo pensar, e disso nasceu um mutante que

estamos tentando compreender” (PAULO, 2017)

Talvez os frameworks que surgiram para escalar o processo, como o SAFe,

fortemente protagonizado pela IBM, cumprem o papel de adaptar o método ágil ao

discurso gerencialista, perdendo seu caráter mais humano e social.

Aqui Tiago relata a trajetória dos métodos ágeis, de como ganhou o mercado

pelas empresas digitais, da adoção de estratégias para vender a agilidade como algo

viável e inevitável:

“Primeiro aderiram as empresas que prestavam serviços para corporações globais,

os chamados Early Adopters8, depois seguiram as empresas de internet como IG,

Globo e depois a mídia mais tradicional e algumas empresas de pacotes software.

A adoção passa por várias etapas, cada grupo adere por vários motivos, primeiro

aderem os desenvolvedores, depois os gerentes de projetos mais tradicionais e

depois o pessoal de métodos. É um processo muito dialético, na minha estratégia

de evangelização adotei muito a demonização dos métodos tradicionais. O que eu

fiz foi construir um discurso focado em tentar encontrar duas ou três crenças que

faziam com que os envolvidos valorizassem um conjunto de ideias. Projetei uma

palestra para mostrar isso, para hackear o Mindset desses caras que impediam a

entrada do ágil nas empresas. [...] também li Maquiavel que diz que uma nova

ordem é uma das coisas de maior risco, porque o status quo não quer, e os que

querem tem muito a perder. [...] Assisti umas oito vezes o documentário do Al Gore

“Uma verdade inconveniente”, não concordo com ele, mas produzi meu discurso

assim, deixar os opositores acossados e com vergonha. [...]. Escrevi um artigo cujo

título era “Você é um recurso ou uma pessoa? ”, tentava encontrar os agentes de

mudança para treiná-los e inspirá-los. No início as pessoas diziam que era

impossível o ágil tornar-se Main Stream, agora entram os late Adopters9, e aí a

essência se perde. Estamos entrando numa era de disrupção contínua, as

empresas terão que ser ágeis para sobreviver. ” (TIAGO, 2017)

8 São os segundos a aderir um produto, uma ideia, um processo, depois dos inovadores.

9 Adotam um produto, uma ideia, um processo, depois dos Early Adopters.

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A reestruturação produtiva enseja duas grandes mudanças, a da base técnica

de produção, e a formação/qualificação do trabalhador adequado a esse novo

contexto, sempre em busca de mais eficiência e eficácia, e novos controles também

adequados a nova realidade. A produção flexível requisitou novos conhecimentos e

competências. Novas organizações de trabalho são garantidas por processos

pedagógicos, como é o caso da autoajuda, formar indivíduos que se autogovernem

sem entrar em conflito com a sociedade, educação para o consenso, com forte

compromisso de se adaptar mudanças, visando uma produtividade sempre crescente.

A autoajuda inspira novos paradigmas, impingi modelos, estabelece novas

regras de sociabilidade, conduz a aceitação de valores, enfim uma nova subjetividade,

que contempla modos de estar no mundo, de pensar, de sentir e agir desintegrando a

vida comunitária e acentuando o individualismo. A exemplaridade é o recurso mais

utilizado, pessoas bem-sucedidas, modelos de empregabilidade, de

empreendedorismo, posição social conquistada com base exclusivamente na ação

individual. Busca-se com a autoajuda transpor obstáculos receitas aparentemente

empíricas, racionais, pragmáticas para resolver qualquer problema, de existenciais à

financeiros.

O apelo à adaptabilidade é constante como forma de fazer frente a contextos

laborais, sociais e econômicos instáveis. Alguns termos são muito utilizados por

evangelizadores dos métodos ágeis como: flexibilidade, polivalência, maestria,

autonomia, transparência, colaboração, empreendedorismo, vontade de inovar,

capacidade de se comunicar e de dar e receber feedback, coragem, a todo momento

esse discurso tangencia os preceitos da autoajuda. Saber resolver problemas

combinando recursos diversos, focar no aprendizado, se engajar às demandas da

empresa.

Vivemos uma época de novo paradigma produtivo, tornou-se necessário forjar

um novo discurso para essa nova matriz ideológica, na qual a flexibilidade, a

competitividade e o individualismo ocupam uma posição de destaque. O

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desemprego passou a ser visto como ato voluntário, levando a uma responsabilização

sem precedentes do trabalhador. O aumento da complexidade na atividade laboral

ensejou também uma valorização dos chamados soft-skills em relação à qualificação

técnica, compreende habilidades e comportamentos abstratos tais como: pensamento

crítico, criatividade, capacidade de comunicação, auto-organização, negociação,

inteligência emocional, resolução de problemas complexos, tomada de decisão,

flexibilidade cognitiva, orientação para servir, colaboração, polivalência, resistir a

pressões, entre outras. No discurso de gestão fala-se do CHA, que significa

conhecimento, habilidade e atitude. É preconizado o trabalho em equipe, a pró-

atividade, a disposição para os desafios e para lidar com mudanças.

O contexto de flexibilização, competividade, aumento de eficiência e eficácia,

da rentabilidade faz convergir os discursos de empresários, gestores, gurus da

autoajuda e do movimento ágil. Para uns significa sobrevivência, para outra

intensificação. A pedagogia agilista aproxima-se muito da pedagogia toyotista, que

exerceu forte influência sobre o movimento ágil, nota-se:

“A facilidade com que a pedagogia toyotista se apropria, sempre do ponto de

vista do capital, de concepções elaboradas pela pedagogia socialista, e com

isso estabelece uma ambiguidade nos discursos e nas práticas pedagógicas

[...] isso tem levado muitos a imaginar que, a partir das novas demandas do

capital no regime de acumulação flexível, as políticas e propostas

pedagógicas de fato passaram a contemplar os interesses dos que vivem do

trabalho, do ponto de vista da democratização”. (KUENZER, 2002b, p.78

apud TURMINA, 2014, p. 200)

Toda essa pedagogia tem um triplo papel, é um lenitivo para a violência a qual

as subjetividades são submetidas, oculta as contradições do sistema capitalista, e

consolida crenças e valores da ideologia neoliberal visando integração a uma nova

sociabilidade.

Importante observar também como o movimento antes de mais nada era uma

grande oportunidade de negócio, sua faceta mais ideológica estava sempre presente,

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entretanto era colocada em segundo plano quando a estratégia era ganhar mercado,

isso fica claro com o relato de Mateus:

“Eu era o único ou mais inclinado a fazer o link do ágil com o mundo

corporativo real. A gente tinha uma comunidade radical que entendia bem de

tudo, mas quando sentava na frente de um CIO10 para falar, o CIO dava

risada, porque era um discurso radical. A galera que era radical, está com um

discurso diferente hoje, de falar com o CIO o que ele quer ouvir. Apanhei

muito, fui considerado um traidor do movimento, quando me tornei um CST11,

quando comecei a falar de certificação e a representar a Scrum Alliance12 no

Brasil. Todo mundo dizia que a certificação não vale para nada, é um mercado,

e que a Scrum Alliance era o PMI13 do Scrum! Mas eu achava que era um

jeito das empresas ouvirem o movimento, sempre me esforcei para que meus

treinamentos fossem além da certificação, mesmo que o objetivo da pessoa

fosse esse, garantir que a pessoa saísse picada pelo vírus, atraída pela causa.

Eu era o único que me aventurava a dar palestras no PMI, colocar terno e

gravata, conversar com executivos, isso foi muito importante para o Agile

estar no nível que está no Brasil. [...]. Se você não fala a língua do mercado,

as grandes empresas não querem ouvir, hoje todo mundo naquela época está

fazendo o que eu comecei a fazer. Todo mundo percebeu que deveríamos

nos manter fiéis aos conceitos, mas buscar aproximação com o mundo

corporativo. [...]. Tudo que você faz tem efeito colateral, se foi mais ou menos,

se compensou ou não, depende de onde se queria chegar, na época nós

queríamos divulgar o método ágil, e chegar no Main Stream14, e para chegar

lá algumas coisas são necessárias, em retrospectiva, o PMI se tornou mais

parecido com o Ágil e não o contrário. Será que isso teria acontecido se

continuássemos a fazer piquete na frente das empresas e a chamar gerente

de projeto de babaca? [...] Primeiro conseguimos vender o discurso para os

coordenadores e líderes de área, depois para gerentes de projeto, essa foi

uma barreira importante a ser transposta, mas hoje o maior desafio é o

pessoal que está na governança e no compliance, e também no C-Level15,

para que comprem o ágil de verdade, não o ágil Fake. Na história da gestão

quando você faz um movimento para ganhar escala, para influenciar pessoas,

10 CIO significa Chief Information Office, normalmente a autoridade maior da tecnologia na empresa.

11 Uma certificação que permite que o instrutor ministre cursos oficiais pela Scrum Alliance.

12 Empresa fundada pelos criadores do Scrum para divulgar o método mundialmente.

13 Instituto que divulga a gestão de projetos e o seu guia principal o PMBOK

14 Conceito que expressa tendência, ou moda principal/dominante, corrente principal

15 Equivale ao nível de diretoria, alto escalão da empresa.

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você quebra coisas pelo caminho. No início do ágil tínhamos duas opções,

uma era formar uma sociedade alternativa em retiro, e esperar que o mercado

ouvisse o recado, a outra era ir para cima do mercado corporativo. ” (MATEUS,

2017)

Pedro diz como é importante manter o método como uma referência aberta,

que facilita a adaptação:

“Foi de 2012 para cá que descobri que não temos que trabalhar com os

métodos em si, não temos mais o que falar de Scrum, Lean ou XP ... Já se

falou tudo, os métodos viraram referência, quando você instancia16 o método

para um projeto você percebe que não é uma simples adoção, você tem que

construir, a maioria adota a postura “Como eu faço o ágil?”, não é uma postura

do tipo “como eu resolvo o problema?”, é uma postura de conformidade,

precisa que alguém diga o que está fazendo de errado porque o método deve

estar certo. A postura correta é ir além dos métodos e olha-los como

referência, e assumir uma postura de designer, ou seja, eu estou fazendo

design de um sistema de trabalho, e as pessoas não querem fazer essa

transição, querem o conforto da conformidade, no momento em que a coisa

para de funcionar há uma negação sobre a postura que deve ser tomada. As

pessoas acabam se rendendo à mediocridade. Há necessidade de

conscientizar as pessoas sobre essa mudança, eis minha contribuição, ela é

necessária se você quiser sair da zona de conforto e resolver problemas que

você não consegue, o que eu tenho tentado fazer ultimamente é fazer essa

transformação de mentalidade, esse Mindset das pessoas, para que elas

entendam a relação com o trabalho, uma relação de design, de um sistema

de trabalho ao invés de uma busca de conforto com o método” (PEDRO, 2017)

Como já vimos nessa pesquisa, na ordem industrial as organizações eram

hierárquicas e piramidais e o poder se exercia conforme normas disciplinares. O

gerenciamento em linhas gerais pode ser visto como uma tecnologia política ou arte

de governar os homens e as coisas, dirigir e ordenar.

O modelo que rege as empresas hoje é policentrado, reticular, o modelo de

poder se exerce em uma coerção sutil, como se fosse uma adesão voluntária, os

16 Equivale a criar uma versão do método para uma situação especifica, customiza-lo.

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indivíduos são submetidos a injunções paradoxais.

Diante do sistema disciplinar a gestão gerencialista apresenta-se como um

progresso, indivíduos desejam ser reconhecidos, é o primado da adesão e da

mobilização psíquica a serviço da empresa. Há um comprometimento subjetivo e

afetivo. Uma canalização das pulsões. Para os evangelizadores do movimento ágil

esse é um dos principais ganhos, que ao adotar os métodos ágeis:

“Essas práticas devem ser levadas para muito além da área de

desenvolvimento de software numa organização, tenho conversando com

empresas e sempre sugiro a prática de que o trabalho deve ser melhorado

pelo próprio trabalhador e não por alguém que o coordena. É um dos grandes

marcos do Mindset lean, isso faz muita diferença, você está colocando a

mente de tudo mundo para pensar como o trabalho pode ser melhor, mais

rápido, gerar resultados melhores, os programadores têm como automatizar

o próprio trabalho, remover trabalho manual, perda de produtividade. A

cultura de feedback é sensacional, o face-to-face, você diz para o colega o

que ele faz de legal e aquilo que ele pode melhorar, você consegue criar

cultura de transparência, assumir que não são perfeitos, que nosso ego não

pode falar mais alto! ” (LUCAS, 2017)

O poder gerencialista visa transformar essa energia vital e libidinal em força

de trabalho, trata-se de uma economia do desejo, que se utiliza da sedução e do

reconhecimento, o trabalho passa a ser uma experiência convidativa, excitante. Toda

a responsabilidade por desenvolver competências fica por conta do indivíduo, cada

qual deve buscar atingir os seus objetivos com entusiasmo. O desejo é requisitado o

tempo todo. Ao contrário do regime disciplinar a vigilância agora é nos processos de

comunicação, esse sim, constantemente inspecionado e adaptado para atender os

objetivos da corporação. Você deve medir as palavras, calibrar o discurso, e recai

principalmente sobre os resultados, que deve ser mostrado e explicado, a autonomia

do fazer se contrapõe ao controle severo sobre os resultados.

O Sistema gerencialista rompeu com o modelo do sistema disciplinar,

ancorado na submissão total à uma hierarquia, não se trata mais de cumprir ordens,

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143

mas realizar projetos, a vigilância ostensiva e hierárquica foi substituída pela

autonomia controlada.

Com relação ao tempo, busca-se um engajamento total, a rentabilidade

almejada já não cabe no tempo de trabalho regulamentado, não há possibilidade de

canalização das potencialidades subjetivas sem a captura do tempo total, existencial,

criou-se uma porosidade entre o tempo do trabalho e do não-trabalho. As tecnologias

de comunicação concorreram para transformar todos os tempos perdidos em frações

de tempo que são utilizados para resolver qualquer problema não importando onde

você esteja, o tempo de trabalho torna-se ilimitado, a mídia e a literatura especializada

em negócios criam todos os dias mil fórmulas para que cada um gerencie melhor o

seu tempo, estar conectado é uma exigência. O nível de tarefas executadas de forma

paralela em um único dia beira a insanidade. O ciclo de PDCA17 é uma constante não

só para a equipe como processo de trabalho, mas também para as atividades

individuais, ele se repete muitas vezes em um dia de trabalho. Os processos ágeis

preconizam a utilização de time-box, caixas de tempo limitadas para resolver alguma

coisa, pode ser uma reunião ou uma parte de um software que precisa ser produzido,

a justificativa é colocar um limite para tratar assunto complexo de forma que ao

executar um ciclo PDCA você possa obter feedback e melhorar, além de garantir o

foco e a atenção, acontece que na prática parece que muitas fatias ou caixas de tempo

se sobrepõe, não é possível transformar o tempo em uma espécie de fractal18, por

questões óbvias de limitação física, apesar da ilusão de ubiquidade criada pela

tecnologia. Cria-se uma série de mecanismos para priorizar, evitar interrupções,

entretanto a intensificação é inevitável, e a responsabilidade de adequar demandas e

tempo recaí sobre o indivíduo.

17 Planejar, fazer, verificar, sintetizar

18 Estrutura geométrica complexa cujas propriedades, em geral, repetem-se em qualquer escala.

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4.3 Análise do impacto de algumas práticas ágeis

4.3.1 Time-box

Os métodos ágeis preconizam o fatiamento do tempo em frações chamadas

de time-box, de uma forma geral é uma prática vista de forma positiva porque ajuda a

organizar o trabalho, reforça o foco, cria senso de urgência exercendo pressão sobre

as pessoas, como vemos nas respostas dos evangelizadores sobre o impacto do time-

box sobre os indivíduos:

“Tem um impacto positivo, criando pressão no sentido que afeta as pessoas

para que façam mais em menos tempo, ajuda a ter mais foco, time-box dos

ciclos, iteração, Sprints, mas também das reuniões. Garantir que o tempo seja

utilizado com inteligência, a reunião vai custar menos para a organização, e

para o time em geral, e gerar resultados mais eficientes”. (LUCAS, 2017)

Chamo a atenção para o “fazer mais em menos tempo”, percebemos como as

caixas de tempo são utilizadas para intensificar o trabalho.

“O efeito do time-box remonta à escassez, não tenho todo tempo do mundo

para fazer isso, tenho uma fatia de tempo, tenho que descobrir o que é mais

importante, e o que cabe, vai me ajudar a ter uma vantagem competitiva maior,

a pressão para fazer um trabalho mais assertivo, com pontos de

verificação o sistema se autorregula” (PAULO, 2017)

O fato de não ter “todo tempo do mundo” coloca sobre as costas da equipe e

das pessoas uma responsabilidade total sobre o que fazer, descobrir o que agrega

mais valor, enfim responsabilidade sobre o sucesso dessa atividade específica.

“Há frustração de não entregar, incentiva-se a entregar mais, o time vai querer

jogar melhor cada vez mais, baseado nos pontos entregues na última Sprint.

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Depende de como você coloca o processo, se o time se vê numa situação de

fazer promessas muito duras, o time vai se defender, vai inflacionar os pontos,

você está criando um risco. Não quero que o time me prometa nada, querer

ver a performance do time hoje e o que podemos fazer para, melhorar isso, e

não planning contínuo. O problema do kanban com gestão de filas é não ter

nenhuma meta, só fluxo contínuo, e as pessoas gostam de desafios,

adrenalina, ver o pessoal correndo no final da Sprint é legal, as pessoas

ficam viciadas em sucesso. “ (TIAGO, 2017)

Nessa narrativa podemos ver como se trata de levar a equipe e as pessoas

ao limite, a frustração é aceitável desde que motive o time a fazer mais, aqui não

importa as consequências subjetivas, como a ansiedade que se torna uma constante,

fica evidente a contenda que existe entre métodos que defendem a utilização do time-

box fixo, como o Scrum, e métodos que preconizam a utilização de time-box relativo,

como o Kanban, ou seja, existe um time-box não muito rígido que pode ser um pouco

expandido conforme a necessidade do que está em produção, entretanto o efeito

psicológico nos dois casos parece o mesmo.

“Combate a síndrome do estudante, o perfeccionismo, a procrastinação, a

multitarefa, traz senso de urgência, o dia do prazo é todo dia, permite fazer

correção de curso antecipado, leva a intensificação do trabalho, é mais

compensador, mas tem que ser sustentável. ” (TOMÉ, 2017)

Tomé salienta as qualidades do time-box, mas alerta ingenuamente, quero

crer, sobre a sustentabilidade dessa prática, ou seja, ela deve ser usada desde que

intercalada com tempos de descanso, recuperação, como se isso fosse possível em

organizações pautadas pelo uso eficiente dos “recursos humanos”.

Mateus argumenta que se a equipe tiver maturidade suficiente, disciplina, o

time-box não é requerido como prática, pode até atrapalhar:

“Aumenta a capacidade de organização das pessoas, e cria um sentido de

urgência, o impacto pode ser positivo, dependendo do contexto de negócio.

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Em algum momento o time-box vai desaparecer, foi importante para todas as

conquistas do movimento ágil, é importante ainda hoje porque as pessoas

não sabem organizar seu próprio trabalho, foram sempre gerenciadas,

comandadas, não conseguem fazer gestão de tempo decente, não

conheciam sua velocidade, sua capacidade de trabalho, não tinham sentido

de urgência, já que os períodos de projetos eram grandes, a procrastinação

sempre deixa tudo para depois, como medida disciplinar era e ainda é

importante na maioria dos casos, imagina que você já tem disciplina, que já

tem autoconhecimento do seu ritmo de trabalho e a fluidez é tamanha que

você já consegue entregar numa velocidade maior, nesse caso o time-

box se torna uma burocracia. (MATEUS, 2017)

Pedro considera que os fatores positivos são importantes, principalmente

porque possibilita um ciclo de inspeção-feedback-adaptação, mantra da melhoria

continua, mas limita a entrega de valor de negócio quando time-box é fixo:

“Sobre as pessoas não sei, sei sobre o modelo de gestão. Tem lados positivos

e negativos, é contextual, os lados positivos, você quer ter um ritmo de

interrupção do processo produtivo para reavaliar o propósito, que seria a

cerimônia de Review do Scrum. O lado ruim é que se tenta usar o time-box

como única maneira de fazer, por vários motivos que é o jeito que se faz, o

time-box tem um problema sério, ele não adere (o fixo) às metas de negócio,

a meta que se deve perseguir para incrementar o valor de negócio no projeto,

não se adere porque está preso no tempo, então você estabelece uma meta

e depois essa meta, como você não consegue encaixar no tempo do time-

box, você acaba reduzindo ou esticando o escopo. ” (PEDRO, 2017)

Essa narrativa me lembra o mito grego de Procusto, que conta a história de

um homem que obrigava os seus hóspedes a caber perfeitamente na sua cama, ora

esticando-os ora amputando-lhes os membros, penso que não se trata de fazer caber

a demanda em uma caixa de tempo, mais do que requisitos o que são esticadas e

amputadas são as subjetividades, que fica sempre com um sentimento de

inadequação.

Embora haja uma crença de que o trabalho pode ser sustentável, raramente

toda carga de trabalho cabe em um time-box, se levarmos em conta todos os controles,

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reuniões, atividades relacionadas à auto-gestão, levando a uma inevitável

intensificação do trabalho.

Não existe mais linearidade no trato com o tempo, é preciso acolher a urgência

e o aleatório. Mobilizado pelo sucesso o profissional não é instado de forma autoritária

a abrir mão de seu tempo pessoal, aceita tacitamente.

A modelagem de comportamentos se dá pela introjeção de valores e

princípios, mecanismo utilizado tanto pelo discurso gerencialista como pelo discurso

dos métodos ágeis. Dessa forma, pragmatismo e empirismo, a exigência permanente

de atender a todos os stakeholders19, o primado dos resultados financeiros e a entrega

de valor agregado em ciclos curtos, a exemplaridade das atitudes e o líder coach,

facilitador, busca-se uma adesão livre e espontânea aos objetivos da empresa, uma

identificação total que inspire orgulho. Cabe a empresa enaltecer o trabalho em equipe

e exaltar a qualidade.

4.3.2 Auto-organização

Nos métodos ágeis existe o conceito de auto-gestão ou auto-organização que

vale tanto para o indivíduo como para a equipe, e se caracteriza por:

Não existe alguém que distribua as tarefas.

Tem autonomia para decidir o que fazer e como entregar.

Mantem o foco no ciclo de trabalho atual.

É facilitada quando a equipe é pequena.

Busca transcender os seus limites.

Busca um ritmo.

19 Significa público estratégico e descreve uma pessoa ou grupo que tem interesse em uma empresa,

negócio ou indústria, podendo ou não ter feito um investimento neles. Em inglês stake significa

interesse, participação, risco. Holder significa aquele que possui.

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Partilha responsabilidade e estimula cooperação.

Desenvolve competências por pressão do grupo.

Cria ambiente seguro para o aprendizado.

O foco deve ser resolver problemas de negócio.

Para Deleuze as sociedades da disciplina são efêmeras, surge no século XIX,

aos poucos vai cedendo lugar para as sociedades de controle, que operam em

espaços abertos sem duração determinada, por intermédio de controle flexíveis e que

funcionam a uma velocidade vertiginosa. Controles que não funcionam mais como

moldes, mas por modulações, ou um molde que se adapta à situação do momento. A

fábrica conhecia um salário e benefícios codificados, na empresa hoje o salário é

índice da modulação realizada por avaliações continuas, o sentimento de instabilidade

é permanente.

O trabalhador na fábrica recomeçava um trabalho continuamente, na empresa

nunca se termina nada, porque as mudanças são constantes, tudo é reconfigurado e

modulado, o trabalho, as metas, os propósitos, o aprendizado. O engajamento se

configura ao mesmo tempo como o cerne de um controle por dominação e como uma

fonte de possibilidades de emancipação, de autonomia.

A modulação do uso de tempo se dá pela tecnologia que opera em regime de

24x7, seja um computador, um celular ou um tablet, o trabalho se libera das cargas

horárias rígidas, torna-se modulável de acordo com a intensidade desejada.

Os espaços são alargados pelo mesmo motivo, a tecnologia que permite uma

mobilidade cada vez maior, é possível trabalhar em qualquer lugar, tornando o espaço

também modulável.

A modulação se dá também pelos requisitos, que são insumos para a

produção de software, pelas funcionalidades a serem construídas que ditam ritmos,

velocidades, energia empenhada, de acordo com a granularidade, a data, a

quantidade. Esses requisitos são constantemente priorizados em uma lista conhecida

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por Product Backlog de acordo com as estratégias da empresa, interessante observar

como grande parte dos princípios ágeis fazem menção às entregas.

OKR é um instrumento de planejamento que vem ganhando popularidade

Brasil. OKR significa Objectives and Key Results, é um framework para estabelecer

metas utilizadas pelas grandes empresas digitais atualmente, constrói engajamento

a partir de metas quantificáveis e dinâmicas, podem ser definidas e revistas a cada

três, quatro ou seis meses, dependendo de como a empresa está estruturada para

acompanhar o processo. OKR promove alinhamento e cadência, é importante que

todos os envolvidos estejam focados nas mesmas prioridades e dentro do mesmo

ritmo.

Os princípios que norteiam a implementação de OKR aproximam muito das

abordagens ágeis, seja pela simplicidade, clareza e leveza; seja peos ciclos curtos

e sua dinamicidade que permitem realizar adaptação às mudanças que surgem; seja

pela colaboração porque envolve negócios e tecnologia em torno do mesmo

propósito, engaja a alta gestão, a gestão média e a produção que criam seus OKR’s

táticos de ciclo mais curto alinhados com o OKR estratégico que tem um ciclo mais

longo.

O OKR é uma ferramenta de transformação cultural que ajuda as equipes

que buscam alto desempenho, pois privilegia foco e disciplina. Os valores que guiam

o OKR são muito próximos dos mesmos valores que guiam os métodos ágeis: a

transparência, os OKR’s estão disponíveis para todos; foco, a definição de poucos

OKR’s; disciplina, os OKR’s fazem parte do cotidiano e exigem um acompanhamento

constante que pode ser feito nas cerimônias ágeis. O OKR promove a busca por metas

ambiciosas, e faz isso lançando mão de duas estratégias: revisão de metas que tira

as equipes da zona de conforto, ou seja, se as metas se mostram fáceis demais,

elas “são esticadas”. Desacoplar metas dos salários e bônus, para que a equipe

busque metas mais elevadas e ambiciosas. Essas estratégias requerem mais

maturidade organizacional, podem ser implementadas ao longo do processo.

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O OKR consegue estabelecer um fio condutor entre a alta gestão e a

produção, passando por todos os níveis organizacionais, são vagos, pois as pessoas

precisam se adaptar e gerir suas atividades de forma auto-organizada para atender

aos objetivos estratégicos, e dessa forma o OKR permite uma modulação de

subjetividades, deixando claro o que se pretende como portfólio de produtos, ao

mesmo tempo abrindo espaço para que as pessoas se apropriem desses objetivos,

criando os seus próprios objetivos alinhados aos corporativos, todos os requisitos e

funcionalidades gravitaram em torno desses objetivos estratégicos e táticos.

É o trabalhador que de forma “auto-organizada” inicia a suas atividades,

modula sua carga de trabalho, o que pressupõe compromisso, ou como se diz

“ownership”, um sentimento de propriedade do trabalho, como se fosse dono do

negócio, essa é a modulação do engajamento subjetivo.

Não há ninguém que lhe diga o que fazer e quando fazer, embora exista uma

vigilância por parte dos papeis de liderança exercidos. No caso do método ágil esse

papel é exercido de certa forma pelo Scrummaster ou pelo Product Owner, mas nada

disso dispensa a pressão por pares, ou seja, a vigilância dos próprios colegas. Além

disso existe a kanban, dispositivo visual que reflete o status do trabalho atual, ou

ferramentas eletrônicas que acompanham o fluxo do trabalho.

“Em contrapartida, ganha novo alcance uma tradicional forma de controle do

trabalho: por objetivos e resultados. O que é novo não é esse controle em si,

mas sua junção com as diferentes facetas da modulação. Isso se exprime em

uma coisa simples (que com frequência é das mais potentes): o assalariado

deve prestar contas regularmente dos seus resultados, e os objetivos que lhe

são atribuídos podem ser rapidamente reatualizados. O indivíduo circula "ao

ar livre", mas um feixe o retém e orienta — o feixe das transmissões de

informação e de comunicação, o qual é consideravelmente potencializado

pelas conexões entre sistema portátil de tratamento de informação, telefonia

móvel e acesso à internet. ” (ZARIFIAN, 2002, p. 27)

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No método ágil essas verificações e atualizações se dão dentro do ciclo

PDCA, composto por diversas cerimonias ou reuniões, cujo objetivo é implementar a

gestão empírica baseada na tríade inspeção-feedback-adaptação.

Se a tecnologia por um lado facilita e amplia o controle, por outro possibilita

uma autonomia e uma emancipação. A mesma tecnologia possibilita acesso à

conhecimentos que ampliam as possibilidades laborais. Quando a tecnologia não

funciona bem, ou se há restrições na utilização, o trabalhador verá isso como

retrocesso de liberdade. O uso da tecnologia para resolver problemas mais

rapidamente traz uma satisfação. Por outro lado, o tempo ganho através desse

recurso é utilizado de maneira intensiva para atender a outras demandas. Trata-se,

pois, de intensificação, não é o bem-estar do trabalhador que vem em primeiro lugar,

mas a eficiência, a produtividade e a rentabilidade, o que torna os benefícios

tecnológicos para o indivíduo, na maioria das vezes impalpável. A visão de Zarifian

nesse caso é mais otimista no sentido de que as tecnologias de certa forma:

“Conferem ao indivíduo um poder de auto-organização de seu tempo e de

seu espaço que responde a uma expectativa crescente na organização da

vida social. Além disso, constata-se, para grande desespero de algumas

hierarquias, que a modulação pode ser parcialmente transgredida: atividades

ditas "pessoais" vêm se inserir nos horários legais de trabalho e o uso das

ferramentas de informática é "deturpado"”. (ZARIFIAN, 2002, p. 29)

A tecnologia seria uma espécie de Jano, deus grego das mudanças e

transições, tem poder sobre todos os começos, e tem duas faces, uma voltada para

frente e outra para trás, uma face coopta atividade subjetiva do trabalhador, sob uma

forma de relação de dominação, e outra face a do sentido pessoal e coletivo dado à

ação social, sob uma forma de relação de emancipação. É inexequível segregar uma

face da outra.

Para Tomé a auto-gestão assume matizes um tanto quanto utópicas, e,

portanto, difícil de se concretizar, ainda que seja em empresas onde não haja

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hierarquia rígida:

“Estamos bem longe do autogerenciamento, sempre acaba surgindo uma

hierarquia tácita, até nas empresas mais flats, os caras mais velhos,

experientes assumem uma certa liderança, e muita gente não tem motivação

para se auto-gerenciar. ” (TOMÉ, 2017)

Pedro afirma que a auto-gestão deve estar atrelada aos interesses maiores

da organização, evitando os extremos, de um lado um comando-controle absoluto e

de outro o caos sem liderança alguma, afirma também que a auto-organização deve

buscar uma liderança situacional, onde todos em determinado momento venham a

exercê-la, de acordo com a natureza do problema a ser resolvido:

“A resposta é semelhante a resposta que eu dei sobre o problema que se

quer resolver, autogerenciamento não é a meta em si, uma empresa não se

torna melhor se for auto-gerenciada. Não é algo a se perseguir, em alguns

casos funciona bem. Qual o benefício de se ter auto-gestão? Se você tem um

benefício que se conecta com o que você tem beleza, se não, não ... Ou você

tem uma liderança coordenando ativamente o trabalho, o complicado ai são

os extremos, caos, você não tem liderança, no outro extremo comando-

controle absoluto, microgerenciamento, a equipe só faz o que o gerente quer,

não tem nenhuma liberdade, o caminho do meio é melhor, existe valor na

liderança, confundimos a experiência de uma liderança ruim, ineficaz, com

não ter nenhuma, as vezes a solução é ter uma liderança melhor... Definição

de liderança: é aquele para quem você olha quando não sabe o que fazer! A

liderança emerge dependendo da situação, é situacional, contextual. Por

exemplo, estou com problema de deploy, alguém da equipe que conhece bem

o assunto lidera isso... A parte boa da auto-organização é distribuir a

responsabilidade para o grupo e não a centralizar. ” (PEDRO, 2017)

Na visão de Paulo a estrutura e práticas de gestão da empresa devem

conviver pacificamente com as iniciativas auto-organização ágeis, afirma que a auto-

organização deve estar atrelada aos interesses maiores da organização, evitando os

extremos, mas de alguma forma sugere uma espécie de autonomia controlada:

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“Se o gestor é responsável por tudo o que acontece na empresa, está a par

de todos os detalhes. A auto-gestão questiona isso, hoje nas empresas existe

uma dificuldade de conciliar essas duas coisas, a maneira de pensar dos

gestores e a auto-gestão não são excludentes, dá para coabitar, a sensação

de caos da auto-gestão traz um desconforto, mas funciona se bem conduzido.

O time tem responsabilidade sobre a gestão também, no ágil. Na prática ser

gerenciado é confortável, a culpa não é minha se tal coisa não der certo, não

desenvolve o senso de ownership, leva a perda de energia, de motivação,

beira a mediocridade, deixa de inovar, empreender. ” (PAULO, 2017)

João afirma que no futuro será inevitável aderir a auto-gestão, pois a gerência

média desapareceria com a automatização de decisões, afirma também que as

pessoas não são formadas para agir de forma auto-organizada:

“Vamos fazer computadores poderosos e tomar decisões baseadas em big

data, usando inteligência artificial, algoritmos, sai na HBR, é mais assertivo

do que seres humanos decidindo... o que sobra para o ser humano? Liderar!

Com o crescimento da IA o middle management vai desaparecer!

Precisaremos de líderes verdadeiros que criam ambientes para que equipes

auto-gerenciadas emerjam, a própria universidade não treina para a auto-

organização, foca no individualismo, aí o que cara vai para a empresa que

cobra trabalho em equipe e colaboração. ” (JOÃO, 2017)

Tiago reconhece que é um problema introduzir essa ideia que, diga-se, é uma

das pedras angulares dos métodos ágeis, por causa da perda de poder dos gestores,

que não foram educados para assumir esse papel, e que em último caso precisariam

de coaching para se enquadrar nesse papel de liderança definido pelos métodos ágeis:

“Acho conflitivo, talvez esse seja o maior problema para introduzir o ágil, os

gestores perdem muito com a auto-gestão, não estão preocupados em criar

ambientes, as pessoas não foram educadas para exercer esse papel [...] não

tem motivação e a identidade é incompatível com isso [...] falta coaching. ”

(TIAGO, 2017)

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Mateus afirma que a dificuldade em fazer funcionar a auto-organização é a

falta de confiança de que as pessoas podem executar as suas atividades da melhor

forma possível:

“Desconexão grande, o jeito como o gerenciamento é aplicado hoje nas

organizações, vem de uma máxima de que as pessoas não querem fazer o

seu trabalho, ou elas não sabem fazer direito, ou são preguiçosas, o papel de

liderança está concentrado na parte burocrática, no comando-controle.

“ (MATEUS, 2017)

A busca pelo lucro está vinculada ao ideal, ninguém trabalha apenas para

pagar as contas no final do mês, busca-se um propósito maior, por esse motivo a

gestão gerencialista coloca ênfase na adesão, na mobilização, na responsabilidade,

o trabalho torna-se o locus privilegiado para a realização de todas as potencialidades

humanas.

Na narrativa de Lucas fica claro como ele encarna com riqueza de detalhes o

discurso neoliberal e do empreendedorismo de si:

“Acho que isso impera cada vez mais nas organizações, a ideia das pessoas

se auto organizarem, a ideia das pessoas autodisciplinadas, a ideia do

gerente de um, intra-empreendedorismo, pessoas que trabalham com um

propósito, com uma missão, que entendem seu objetivo, e que farão o que

tiver que fazer para fazer o seu trabalho da melhor forma possível, sem a

necessidade de ter alguém cobrando, supervisionando. Não tem ninguém

para supervisionar, você apresenta os seus resultados, você atinge os seus

objetivos junto com o time, e seu time todo está preocupado, seu time vai te

ajudar, se você não for auto-organizado você não se adapta, é o seu próprio

time que te demite, as contratações são feitas pelo time, as demissões

também. O fato de ter alguém que te controle para ver se você atinge os

objetivos está mudando. As pessoas não recebem mais o que devem fazer,

elas recebem a coisa mais em alto nível, objetivos, seu papel é resolver isso,

como você vai resolver, você vai buscar a solução. Essa abordagem divide

os profissionais, em gente que não consegue ter essa criatividade,

autodisciplina, tem gente que não consegue ser executor. As pessoas

precisam ter essa liberdade, essa autonomia, e exercer essa criatividade,

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para trazer a individualidade, e aquilo que elas podem trazer no início do

trabalho que estão realizando, então acredito nessa mudança de abordagem

da liderança nas organizações, para líderes que apresentam um caminho ao

invés de cobrar desempenho das pessoas. Não que as pessoas não tenham

que performar bem, dar o seu melhor no seu dia a dia de trabalho, não

significa que não possa existir momentos de descontração, que não podem

dar risada, se divertir, o trabalho tem que ser agradável, você passa mais

tempo nele do que com a família. Isso não significa que não tenha que ter

pressão para entregar resultados. ” (LUCAS, 2017)

Em tempos neoliberais a empresa se torna a célula que compõe o tecido

social, requerendo por sua vez uma subjetividade aderente a tal realidade. Adjetivos

não faltam a esse novo homem impreciso, flexível, precário, fluido, sem gravidade,

calculador, competitivo.

“Se existe um novo sujeito, ele deve ser distinguido nas práticas discursivas

e institucionais que, no fim do século XX, engendraram a figura do homem-

empresa ou do “sujeito empresarial”, favorecendo a instauração de uma rede

se sansões, estímulos e comprometimentos que tem o efeito de produzir

funcionamentos psíquicos de um novo tipo. Alcançar o objetivo de reorganizar

completamente a sociedade, as empresas e as instituições pela multiplicação

e pela intensificação dos mecanismos, das relações e dos comportamentos

de mercado implica necessariamente um devir-outro dos sujeitos. “ (DARDOT;

LAVAL, 2016, p. 325)

As relações mercantis, que se constitui em um dos muitos panos de fundo

para esse contexto, sempre operaram uma redução antropológica, um rompimento

dos vínculos humanos, fato já constatado por pensadores como Marx, Weber e

Polanyi. O neoliberalismo opera uma redução antropológica brutal.

Para a produção desse novo sujeito, diversas técnicas serão utilizadas,

entretanto nenhuma delas passa pela coerção, mas de uma subjetividade moldada

para cumprir as atividades que lhe foram destinadas, como “fator humano, ativo,

engajado, plenamente ciente de suas responsabilidades pronto para entregar-se de

corpo e alma a atividade profissional. Esse projeto de si passa pelo desejo, pela

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vontade de realizar-se integralmente, o propósito é suscitar nesse novo sujeito objeto

de um novo poder, a sensação de que trabalha para uma empresa como se

trabalhasse para si mesmo. Trabalhando incansavelmente tem a sensação de que

esse desejo brota de sua alma, técnicas refinadas de motivação e estimulo entram em

jogo aqui para que se alcance esse objetivo.

Esse novo sujeito deve se conduzir de forma competitiva, assumir todos os

riscos e eventualmente o fracasso de suas ações, visar uma melhoria continua dos

resultados:

“Do sujeito ao Estado, passando pela empresa, um mesmo discurso permite

articular uma definição do homem pela maneira como ele quer ser “bem-

sucedido”, assim como pelo modo como deve ser “guiado”, “estimulado”,

“formado”, “empoderado” para cumprir seus “objetivos””. (DARDOT; LAVAL,

2016, p. 327)

O modelo da empresa é construído pela mídia, por instituições educacionais,

e também pelo departamento de recursos humanos, formando uma rede inextrincável

de conceitos, um caldo cultural do qual ninguém ousa escapar, sob pena de não atingir

a realização pessoal, bem-estar, prosperidade e sucesso, os propósitos parecem

humanistas para que se estabeleça uma nova tecnologia de poder de forma sutil, cujo

o resultado é a transformação do ser humano em mercadoria.

A singularidade da ideologia gerencialista está em formar sujeitos “resilientes”,

uma subjetividade estoica que suporte todas as adversidades, só reforçadas pelo

comportamento desse novo sujeito competitivo, guiado pela ânsia de auto-realização,

de forma que se adapte a qualquer contexto imposto pela empresa. Essa mesma

ideologia que se desenvolveu ao longo dos anos de 1990 criticou severamente a

burocracia, as hierarquias para romper com o modelo antigo. Por outro lado, e isso

pode ser constatado na narrativa de alguns evangelizadores, a apologia da incerteza,

da complexidade, da flexibilidade, é abundante em promessas proporcionando uma

adesão ainda maior ao modelo.

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Aqui cabe salientar o discurso presente nas comunidades ágeis, como a

empresa ideal é o locus de todas as inovações, mudanças, adaptações contínuas por

causa das variações das demandas, da busca pela qualidade total, desta forma

impõe-se ao sujeito um trabalho interior constante:

“Ele deve cuidar constantemente para ser mais eficaz possível, mostra-se

inteiramente envolvido no trabalho, aperfeiçoar-se por uma aprendizagem

contínua, aceitar a grande flexibilidade exigida pelas mudanças incessantes

impostas pelo mercado. Especialista de si mesmo, empregador de si mesmo,

inventor de si mesmo: a racionalidade neoliberal impele o eu a agir sobre si

mesmo para fortalecer-se e, assim, sobreviver na competição. ” (DARDOT;

LAVAL, 2016, p. 330)

As inúmeras técnicas de gestão que objetivam controlar e avaliar

constantemente o engajamento subjetivo dos trabalhadores estão cada vez mais

presentes nas empresas, e se expressam em painéis com métricas consolidadas a

partir de diversas fontes alimentadas pelos próprios trabalhadores, como é o caso das

matrizes de maturidades. Se os resultados são bons distribuem-se prêmios

motivacionais como troféus e outros artefatos, se resultados não são satisfatórios as

sanções devem repercutir na carreira, no salário e as vezes resulta em demissão

sumária.

A empresa se torna um modelo que deve ser adotado, porque passa a

mensagem de uma eficácia em produzir melhorias, a empresa como modelo de uma

nova ética é a ponte entre o governo de si e o governo das sociedades, um ethos da

vigilância sobre si, corroborados pelas técnicas de avaliação. Aqui a autoajuda,

presente desde os primórdios do liberalismo, cumpre um papel fundamental, respalda

a ideia de que cada indivíduo pode ter pleno domínio da vida, gerenciá-la como quiser,

dar vazão aos seus desejos, para tanto basta saber elaborar a estratégia adequada.

É um modo de governo livre, não prescritivo, baseado em valores e princípios, como

a pró-atividade, a responsabilidade pessoal, a vontade de melhorar e crescer. Esse

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trabalhar para si mesmo vai muito além do ambiente de trabalho, estende-se a todos

os setores da vida, melhorando resultados e desempenhos de forma continua. O

carro-chefe do sucesso é sempre a empresa, a nova ética do trabalho é ponto de

conexão entre os objetivos de excelência corporativos e os anseios pessoais. É como

se o contrato entre empresas de si mesmo e as corporações fosse absolutamente

simétrico.

O sujeito autônomo opera sobre si mesmo, de forma que ele:

“Aprenderá por si mesmo a desenvolver “estratégias de vida” para aumentar

seu capital humano e valorizá-lo da melhor maneira. “A criação e o

desenvolvimento de si mesmo” são uma “atitude social” que deve ser

adquirida, um “modo de agir” que deve ser desenvolvido, “para enfrentar a

tripla necessidade do posicionamento da identidade, do desenvolvimento de

seu próprio capital humano e da gestão de um portfólio de atividade”.

(DARDOT; LAVAL, 2016, p. 337)

A atitude empresarial não se conquista sem a ajuda de especialistas em

“estratégias de vida”, especialistas em empresa de si mesmo, que divulgam as suas

fórmulas de sucesso em livros, eventos presenciais, cursos, eventos midiáticos.

Dessa forma o empreendedor de si vai construindo sua caixa de ferramentas para o

sucesso: como manter se manter empregado, como enriquecer, como emagrecer,

como falar em público, como empreender melhor, como se comunicar melhor.

Divulgam-se técnicas de inteligência emocional, ferramentas de análise de

personalidade, com o objetivo de se autoconhecer para aproveitar melhor as

oportunidades que surgem, mas também expandir esse comportamento para todas

as áreas de vida.

O discurso gerencial preconiza o uso de diversas técnicas, tais como o

coaching, a programação neurolinguística, procedimentos ligados a uma escola ou

guru, visando um melhor domínio de si, das emoções e das relações, tornar o “eu”

mais resiliente. Todos esses saberes se apresentam com um fundo psicológico, cujo

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discurso tem caráter empírico e racional, conferindo-lhe legitimidade. Cada técnica

possui instrumentos e um modus operandi próprio que deve ser utilizado

prioritariamente na empresa, mas cabe em qualquer outra situação na vida, técnicas

que visam a conduta de si e dos outros.

Nos métodos ágeis, seja pela narrativa dos evangelizadores, seja pelo próprio

mercado, essas técnicas se mesclam com as práticas dos métodos, e passam a

operar como apoio para que se incorpore os valores e princípios ágeis, ou para

adequar as identidades aos papéis que devem ser exercidos.

Entram em cena técnicas de meditação, mais recentemente mindfullness,

além de teorias das mais diversas naturezas como complexidade e caos, preparando

as mentes para atuar em contextos de incerteza. O que importa é o domínio dos

estados do “eu”, dos mecanismos de comunicação, das engrenagens das emoções,

aprender a se sincronizar com as situações e pessoas, para se atingir a eficácia

máxima, estimular a responsabilidade e a autoestima. A campo privilegiado para

aplicação dessas técnicas de governamentalidade é a empresa, cuja a possibilidade

de lucro e sucesso é percebida como constante, a transparência e a comunicação são

fundamentais para a produtividade.

No contexto empresarial atual a mudança e a adaptação são condições

essenciais de sobrevivência, e por esse motivo essas técnicas apresentam-se como

ferramentas ideais para a condução dos indivíduos, pois garante melhorar a liderança

e colocar os indivíduos na direção de um objetivo, uma missão ou visão comuns.

Cabe aos “gerentes da alma”, expressão lacaniana, instituir uma nova forma

de governo cujo objetivo é conduzir os sujeitos para que assumam um comportamento

e uma subjetividade específicos no trabalho. Todo indivíduo é um gerente em potencial,

e seu papel é resolver problemas.

“O domínio de si mesmo e das relações comunicacionais aparece como

contrapartida de uma situação global que ninguém consegue mais controlar.

Se não há mais domínio global dos processos econômicos e tecnológicos, o

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comportamento dos indivíduos não é mais programável, não é mais

descritível e prescritível. O domínio de si mesmo coloca-se como uma

espécie de compensação ao domínio impossível do mundo. O indivíduo é o

melhor, senão o único “integrador” da complexidade e o melhor ator da

incerteza”. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 342)

Não devemos perder de vista que a entidade de referência sempre é a

empresa que busca de maneira continua a produtividade, a eficiência, a rentabilidade,

o lucro. A melhoria do indivíduo fica subordinada a esse contexto, que ao mesmo

tempo que o produz, é legitimado pelas suas ações, um microcosmos em harmonia

com a empresa e o mercado, pois ser “”aberto”, “síncrono”, “positivo”, “empático”,

“cooperativo”, não é para a felicidade dele, mas sobretudo e em primeiro lugar para

obter do “colaborador” o desempenho que se espera dele”. (DARDOT; LAVAL, 2016,

p. 344).

Trata-se de gerir as subjetividades, como se ao aplicar conhecimentos da

psicologia, da ética e de outras áreas não se visasse outra coisa que a melhoria do

ser humano integralmente, entretanto são os interesses da empresa que estão em

jogo.

Essa adaptação das personalidades às expectativas da organização se dá

desde a seleção, através de testes e entrevistas. Depois as avaliações e formações

internas continuaram avaliando o alinhamento sempre levando em consideração

resultados, mas principalmente a motivação, a vontade de se mobilizar em direção

aos objetivos corporativos. Aqueles que tem apetite pelo desempenho e a capacidade

de lidar com um contexto paradoxal, a qualidade deve ser total desde que não reduza

a rentabilidade, deve-se trabalhar em equipe, porém o desempenho individual é

constantemente exaltado. Por conta disso a violência na empresa hipermoderna é

psíquica, não tem a ver com a repressão como no sistema disciplinar, mas com

paradoxo, ser autónomo em um contexto coercitivo, ser criativo quando se exige

extrema racionalidade. A mobilização é intensa, e no horizonte está o sucesso e um

desejo de onipotência. O que regulava a relação de trabalho era um contrato muito

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claro, hoje o que regula é uma imposição paradoxal. O processo de identificação

crescente com a empresa faz a autonomia perder sua razão de ser, com o tempo

aquilo que seria uma estratégia onde todos ganham revela-se como uma dupla perda,

uma perda subjetiva e a perda do emprego, pois com o baixo rendimento o indivíduo

não interessa mais a empresa. A perversidade está em fazer o indivíduo se dobrar

sobre o próprio desejo, de cooptar a maquinaria psíquica e coloca-la à mercê do

funcionamento da máquina organizacional:

“O compromisso do assalariado é sem fim, a partir do momento em que ele

projeta seu próprio ideal sobre a empresa. O compromisso da empresa é

apenas parcial, pois ela condiciona a manutenção do emprego aos

desempenhos de cada agente, sem levar em conta de que esses

desempenhos dependem do conjunto. Cabe a cada um dar provas de sua

utilidade, de sua produtividade e de sua rentabilidade. “ (GAULEJAC, 2015,

p. 122)

Não existe mais qualquer possibilidade de empresa apresentar um quadro

estável ao qual se possa aderir, o que se pede é flexibilidade e adaptação à incerteza,

trata-se de uma autonomia controlada. A organização reticular funciona com base na

flexibilidade e mobilidade, em um sistema de comunicação informal, visual, interativo

e policentrado, de uma governança por meio de regras que se caracteriza pela

discussão e negociação, o enquadramento se dá pela apuração dos resultados, é

nesse contexto que se exerce o poder. A contestação desse sistema torna-se

particularmente difícil porque envolve o indivíduo em uma teia de paradoxos. Essa

fronteira entre a incerteza e a burocracia fica evidente na narrativa de Paulo:

“Fazer com que a gente assuma a nossa incapacidade de prever o futuro,

assumir que vamos errar e aprender, e quanto menor o ciclo de aprendizado

melhor, é necessário reforçar o feedback mais rápido, o ágil propõe trabalhar

com lotes menores de coisas, fatias de tempos menores, a quantidade de

planejamento da forma tradicional de se trabalhar visava domínio de distância

e profundidade, no ágil escolhemos ter uma big picture de baixa resolução,

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não olhar tão longe nem com tantos detalhes, as pessoas resistem aos

experimentos, porque querem saber de tudo, tentam planejar tudo, acertar de

primeira, preferem cortar a árvore de uma só vez ao invés de parar para afiar

o machado. Inicialmente todos gostam do ágil, mas quando se deparam com

a premissa de que os ambientes são complexos, começam a se perguntar

sobre escopo, planejamento, previsibilidade. Resistem a viver no caos

controlado, a burocracia traz conforto. ” (PAULO, 2017)

Há ao mesmo tempo alienação, porque o indivíduo é governado a partir do

interior por forças estranhas a ele próprio, e exaltação da subjetividade, você é incitado

a ser autónomo, criativo para no final das contas reforçar sua dependência e

conformismo. Difícil contestar algo que opera dentro de si, porque leva à contestação

de si mesmo.

4.3.3 Gestão visual

Outro aspecto dos métodos ágeis que contribui para o entendimento de uma

aproximação com a sociedade de controle é regime de visibilidade imposto pela

gestão visual, concretizada pela utilização de kanban, e outros radiadores de

informações, na área de trabalho.

O debate sobre a transparência tem sido uma constante nos dias atuais, seja

no âmbito da política, das redes sociais ou no ambiente coorporativo. A comunicação

deve ser ubíqua, as coisas tornam-se transparentes quando:

“Abandonam toda a negatividade, quando se alisam e aplanam, quando se

inserem sem resistência na corrente lisa do capital, da comunicação e da

informação. As ações tornam-se transparentes quando se tornam

operacionais, submetendo-se aos processos do cálculo, da direção e do

controle. ” (HAN, 2014, p. 11)

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O tempo transparente transforma-se em um eterno presente, tempo

desprovido de destino, um futuro otimizado por fatias de tempos já comprometidas,

um tempo asséptico porque desprovido de toda dramaturgia, de todo sentido.

Desnudado de suas dimensões mais humanas perdem sua singularidade para a

dimensão econômica, que torna tudo comparável descaracterizado de singularidade,

“O sistema social submete hoje todos os seus processos a uma coação de

transparência que visa torna-los operacionais e acelerá-los. ” (HAN, 2014, p. 12)

A linguagem não pode ser ambígua, depreende-se disso a necessidade do

discurso único, a transparência tem que eliminar o estranho, nesse caso a velocidade

da comunicação será irrestrita, o estranhamento, a resistência do diferente incomoda

o sistema que se pretende uniforme, a uniformidade também facilita o controle. Os

dispositivos visuais nas empresas, kanban, tendem a ser uniformizados, e se não

forem, painéis e ferramentas eletrônicas são criadas posteriormente para forçar a

uniformização e a coleta de dados de produtividade e qualidade. Fala-se em métodos

ágeis na necessidade do consenso, do debate, das intersubjetividades, mas não há

tempo hábil para isso, a gestão visual teria o objetivo principal criar uma realidade

compartilhada, compartilhar visões, mas gestão visual mais uniformiza do que ressalta

as divergências. A ideia é tornar os indivíduos parte funcional de um sistema, uma

simples engrenagem de uma máquina. Trata-se de uma violência, pois:

“A alma humana tem necessidade, sem dúvida, de esferas nas quais possa

estar em si mesma sem o olhar do outro. Há uma impermeabilidade que lhe

é inerente. Uma iluminação total queimá-la-ia e seria causa de uma forma

especial síndrome psíquica de Burnout. Só a máquina é transparente. A

espontaneidade, o que é do registro de um acontecer e a liberdade, traços

que constituem a vida em geral, nada comportam de transparência”. (HAN,

2014, p. 16)

A transparência tem valor se acompanhada de liberdade e autonomia.

Segundo uma visão da psicanálise o homem não é transparente sequer para si

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mesmo, o inconsciente deseja sem limites, e o “eu” nega aquilo que o inconsciente

afirma, o que inviabiliza a transparência interpessoal. A falta de transparência mantém

a relação viva, a violência da transparência imposta está em não respeitar uma

alteridade que não pode ser eliminada. Todos os recônditos da circunspeção são

dilacerados e expostos para serem explorados, a transparência tem muitos limites,

mas é vendida como algo ilimitada. Uma certa distância psicológica se faz necessária,

nem tudo pode ser integrado à velocidade do capital, da comunicação e da informação.

Mais informação não leva necessariamente a decisões melhores, a intuição

vai sempre além, tem sua própria lógica. Menos informação talvez produza algo a

mais. Como é possível exercer criatividade ou inovar se não há lacunas de informação

ou visão, o pensamento e a inspiração requerem um certo vazio, é uma negatividade

necessária. O pensamento degenerado transforma-se em puro cálculo. Mas a

transparência quer suprimir toda negatividade, na qual o espírito se detém lentamente,

para alcançar toda aceleração possível. A positividade exacerbada leva ao

esgotamento, à depressão. A transparência é positiva em sua essência, para evitar

que o sistema seja colocado em questão. Toda hiperatividade, hiperprodução e

hipercomunicação é obscena.

Aqui temos mais uma contradição, os métodos ágeis preconizam a execução

de práticas chamadas de cerimônias, são reuniões com um time-box e com um

objetivo definido. O termo cerimônia nos remete a algo que tem seu tempo e ritmo

próprio, mas só é possível acelerar um processo que seja aditivo, e não narrativo. A

exigência de transparência faz com que os as cerimônias e rituais sejam eliminados

pois não podem se tornar operacionais, são obstáculos à aceleração dos ciclos de

informação, comunicação e produção. Tais cerimônias, nome impróprio por sinal, são

desprovidas de narrativas, são cenicamente pobres, só contam, tornam-se um objeto

de gestão, essa transparência inexorável é que a caracteriza como obscena. Ocorre

um empobrecimento semântico, pela falta da narratividade. A transparência imposta

rompe com todos os limites, que é a zona da insegurança, da transformação, da

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confiança. Narrativa difere de acumulação de dados, fatos, e outros resíduos, “destrói

o aroma do tempo”. (HAN, 2014, p. 50).

“O tempo torna-se aditivo, vazio de toda narratividade. Os átomos não

desprendem aroma. É necessária uma atração figurativa, uma gravidade

narrativa, que os una pela primeira vez como moléculas aromáticas. Só as

configurações complexas, narrativas, exalam aroma. ” (HAN, 2014, p. 52)

A narrativa não cabe no tempo produtivo, nem se estabelece por intermédio

da gestão visual. Nas diversas narrativas que veremos a seguir nota-se diversos

pontos já analisados com relação à ideologia neoliberal e gerencialista, João

reconhece que o impacto da gestão visual é alto, mas que pode ser amenizado se

você contratar as pessoas certas e estabelecer um convívio pacífico e familiar, e por

fim ele mesmo reconhece a utopia que propõe:

“É muito alto, ciclos curtos, inspeção e adaptação, todos os problemas vem à

tona, principalmente falta de conhecimento, habilidade, atitude, estado

emocional, acredito na transparência radical, para isso você tem que criar um

ambiente seguro, se não as pessoas terão medo. Começa por trazer as

pessoas certas, saber contratar as pessoas por sua atitude, crenças e valores,

esperamos que haja respeito! É uma família! Respeito humano. O segundo

ponto é a liderança, o líder vai ter que suportar essas crenças e valores, não

acredito em auto-organização sem liderança, são formadores de opinião,

influenciadores, precisam ser exemplo, se não foram demita-os, humildade

para ensinar e aprender, respeito, alguns dizem que isso é utópico. ” (JOÃO,

2017)

Mateus acredita que seja possível se adequar à gestão visual depois de um

tempo de “educação”, e de que é possível criar um ambiente de segurança psicológica:

“No início causa incomodo grande, porque as pessoas não estão

acostumadas a expor o seu trabalho, nas atividade diárias, não estão

acostumadas com as outras pessoas vendo e dando opinião, isso incomoda,

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parece ser um julgamento, mas vai educando as pessoas a entender e aceitar

a opinião alheia, você consegue assim fazer o seu melhor, há um incomodo

muito grande, mas as pessoas aderem depois de um período de rejeição, no

início dá uma sensação de vulnerabilidade um sentimento de insegurança, as

pessoas não sabem se fazem o trabalho bem ou mal, se é competente ou

não, tem relação com a liderança e o tipo de ambiente da empresa.”

(MATEUS, 2017)

Tiago afirma que criar constrangimento entre pares é uma prática saudável, e

que para evitar excessos você depende de gestores:

“É constrangedor, criar constrangimento entre pares de alguma forma é uma

coisa que bem usado pode ser positivo. Bom uso e mal-uso? Aí é foda [...]

encontrar equilíbrio nisso, tem que monitorar, o agile coach, os gestores

devem estar atentos, monitorar o humor, a percepção de valor, estão

gostando de trabalhar aqui? Temos tempo para afiar o machado? Em uma

empresa implantamos o dia da semana dedicado à melhoria, a produtividade

melhorou os outros quatro dias. São coisas que fogem do

planejamento“ (TIAGO, 2017)

Paulo afirma que expor as suas vulnerabilidades é bom, como se as pessoas

mesmo em ambientes com extrema segurança psicológica expusessem suas vísceras,

mas indica um caminho por onde as subjetividades são moldadas:

“Questão bem crítica, difícil quantificar, tangibilizar, existe sim um impacto

porque você se expõe, mas o time, o ambiente, terão visibilidade maior e

inclusive das vulnerabilidades, da forma como você pensa, suas crenças,

como você se sente, através dessa visibilidade, dessa transparência, você

consegue causar melhoria, isso convida ou expele as pessoas, medo de

expor suas vulnerabilidades. O autor das 5 disfunções de um time, o

verdadeiro team member é aquele disposto a estar pelado na frente dos

outros, não ter restrição, confiar, não estar na defensiva. O ágil ajuda a

desnudar, evidenciar fragilidades. O que fazer? É o processo empírico, de

aprendizado, vai doer, vai incomodar, você não vai saber fazer isso, ao longo

do tempo você itera várias vezes e isso vai se tornando natural. ” (PAULO,

2017)

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Lucas concorda que o impacto seja alto, mas aposta que é a melhor forma de

conseguir engajamento, que se feito de forma correta não se transformará em

ferramenta de controle, como se isso de fato fosse possível:

“É bastante alto, feito da maneira correta conseguimos enxergar claramente

o que cada um está fazendo. O processo mais tradicional tinha a figura do

gerente de projeto, agora todas as pessoas são incentivadas a acompanhar

o meu trabalho, não por desconfiança, mas porque faço algo importante,

relevante para a organização, algo que alguém pode ajudar, dar feedback,

então começamos a criar visibilidade, transparência naquilo que cada um

está fazendo, isso pode incomodar, você começa a montar métricas como

lead time, tempo de fila, são coisas que podem expor ineficiência do processo,

isso pode trazer desconforto grande, medo de ser visto como improdutivo. De

um ponto de vista sistêmico quando algo não vai bem não procuramos nas

pessoas, mas nos processos, vai melhorando o processo, não buscamos

culpados, buscamos entender os problemas dos processos, para que o

processo seja mais eficaz e eficiente. Com um Mindset correto, com o

contexto correto, será visto como correta essa prática, mas corre o risco de

descambar para a desconfiança e o controle. ” (LUCAS, 2017)

Pedro não vê impacto negativo, e concorda que a pressão de pares leva a

maior eficiência, por constrangimento subjetivo e não por imposição de um chefe:

“Não vejo impacto negativo, se o ambiente for muito controlado e as pessoas

cobradas individualmente pelo seu trabalho, talvez gere algum tipo de

problema, em geral a exposição é positiva, ajuda a sair da zona de conforto,

é um feedback, mas tem o receio de constrangimento, se você não tem uma

interação muito social do resultado do seu trabalho a sua referência é você

mesmo, se um trabalho que deveria levar um dia leva 3 ou 4 dias para fazer,

e seu chefe nunca reclamou, da próxima vez você vai fazer em 6 ou 8 dias, e

vai aumentar cada vez mais, mas se você está prestando contas para um

grupo social, que te avalia socialmente, você terá mais dificuldade de se

colocar ineficiente para o grupo, é uma forma de manter as pessoas

produtivas. Não é bom para a pessoas se esconder atrás da ineficiência. ”

(PEDRO, 2017)

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O paradoxo fica bem claro quando se analisa o papel do gestor, que vive

diariamente o dilema da contradição entre capital e trabalho.

Identifica-se com a exigência do lucro e ao mesmo tempo vive as agruras da

imprevisibilidade da carreira, a pressão, a competição selvagem, o gerenciamento

garante pela combinação de diversos elementos a sobrevivência da empresa. É a cola

entre capital, tecnologia, trabalho, regras, procedimentos, seu papel é amenizar as

contradições ou agudizá-las, dependendo do momento, das diretrizes corporativas,

das metas dos acionistas.

Cada período histórico atribui um papel específico ao gestor, que precisa

compatibilizar a exigência de lucro, com a adaptação ao mercado, e a melhoria das

condições de trabalho. Assim foi o período Fordista que se estendeu por 30 anos, ao

final dos anos 1970, esse sistema sócio-político-econômico encontra o seu ocaso.

Com a mundialização e a financeirização acentuada, fase neoliberal do capitalismo,

as empresas transnacionais passam a ocupar uma posição de hegemonia, antes

ocupada pelo Estado, as relações entre capital e trabalho não serão as mesmas,

assim também o papel dos gestores será o de provar para os acionistas que vale mais

à pena investir na empresa do que aplicar no mercado financeiro, situação bem

propícia para flexibilizar as relações de trabalho e os direitos trabalhistas, para colocar

a redução de custos e a busca frenética por eficiência na ordem do dia.

De forma que ao final do século XX temos a seguinte situação:

“As lógicas de produção estão cada vez mais submetidas às pressões das

lógicas financeiras. A economia financeira substitui a economia industrial. O

peso dos mercados e sua mundialização põe de novo em questão os modos

de regulação econômica até então dominados pelo Estado/Nação. A

desterritorialização do capital explode os ferrolhos que permitiam controlar

sua circulação e de limitar efeitos especulativos. A fusão das

telecomunicações com a informática instaura a ditadura do “tempo real e a

imediatidade das respostas às exigências dos mercados financeiros.

“ (GAULEJAC, 2015, p. 45)

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Quando as relações entre capital e trabalho são reconfiguradas na esfera

macro, reconfiguram-se as relações de poder dentro da empresa, as relações

humanas e sociais passam a ser de responsabilidade dos Recursos Humanos da

empresa, cuja missão é flexibilizar o máximo possível a mão-de-obra para atender às

exigências do mercado. Com a concorrência acirrada, as respostas devem ser rápidas,

promovendo encurtamento de prazos, aceleração do ritmo de trabalho,

responsabilização do trabalhador pela sua trajetória profissional, trata-se de fazer

mais com menos:

“O conjunto das funções da empresa está subordinado à lógica financeira

pelo viés de técnicas de gestão que levam os agentes a interiorizar a

exigência de rentabilidade. Cada equipe, cada serviço, cada departamento,

cada estabelecimento tem objetivos a atingir, cuja medida, cada vez mais

frequente é, por vezes, efetuada em tempo real. A obrigação de resultados,

medida conforme o metro da rentabilidade de cada um, deve ser assumida

por cada elemento do sistema. “ (GAULEJAC, 2015, p. 48)

Existe uma aura de pragmatismo em torno do que se entende por gestão, o

que afasta qualquer associação ideológica, toma como partida a ação eficaz, seria

uma metalinguagem que exerce influência sobre todos aqueles que estão dentro do

universo corporativo. As grandes autoridades no assunto, os gurus da gestão,

prescrevem soluções um misto de ciência, autoajuda e ideologia gerencialista, a

ciência analisa e procura compreender o problema, o discurso de autoajuda remove

o pensamento crítico e a ideologia coloca tudo isso a serviço de um poder estabelecido.

Seria uma insanidade ir contra uma melhor utilização e organização dos recursos de

qualquer instituição, o que confere à gestão enquanto ciência uma certa isenção,

normalmente se coloca em um campo multidisciplinar dada a complexidade crescente

das interações entre humanos e tecnologia, em planos tão distintos como a economia,

a política, o social, a cultura. A gestão é levada à uma especialização extrema, pois a

prática é o caminho para o funcionamento e a perpetuação da instituição empresa, o

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170

saber prático modela comportamentos nas áreas financeira, comercial, contábil,

recursos humanos e tantas outras. Cada vez mais os indivíduos olham para o mundo

através das lentes da gestão, trata-se de um sistema de interpretação e de uma escala

axiológica muito específica, tornando cada vez mais difícil distinguir o que seja ciência

ou ideologia nesse caso. As revistas de gestão na sua maioria são estadunidenses,

assim como os autores dos seus artigos, o que leva esse híbrido de ciência e ideologia

a uma posição hegemónica, e não deixa ser um instrumento geopolítico.

Um bom exemplo disso é o Movimento Ágil no Brasil, que nasce a partir da

iniciativa de alguns profissionais de tecnologia, que se filiam aos “gurus” do Movimento,

que são todos estadunidenses. O que vemos é uma verdadeira cadeia de transmissão

de conhecimento, os “evangelizadores” nacionais constituem o seu próprio mercado

de consultoria, legitimados pelos pais fundadores do movimento, atuam de forma a

criar um exército de multiplicadores, que irão disseminar essas ideias dentro das

empresas. O foco da educação em gestão é levar a eficácia e principalmente a

eficiência aos píncaros, não vem ao caso entender as relações de poder.

“A serviço do poder gerencialista, a ideologia gerencialista se funda sobre

certo número de pressupostos, de postulados, de crenças, de hipóteses e de

métodos, dos quais convém verificar a validez. O paradigma objetivista dá um

verniz de cientificidade à “ciência gerencial”. Ele se declina segundo quatro

princípios que descrevem a empresa como um universo funcional, a partir de

procedimentos construídos sobre o modelo experimental, dominado por uma

concepção utilitarista da ação e de uma visão economicista do humano.

“ (GAULEJAC, 2015, p. 70)

O que não pode ser mensurado não existe, o homo economicus se pauta por

esse princípio, cria o mundo da previsibilidade, da otimização, do cálculo, o que se

descortina no horizonte é a possibilidade de uma existência programada, asséptica.

Os registros do subjetivo, do imaginário, do emocional não subsistem.

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171

“O homo economicus pode ser assimilado a um monstro antropológico

habitado por uma suposta racionalidade que reduz todos os problemas da

existência humana a um cálculo. Essa ficção autoriza certos pesquisadores

a não mais se preocupar com a observação concreta da condição humana

para se evadir no universo abstrato das equações matemáticas.

“ (GAULEJAC, 2015, p. 71)

Uma segunda questão que se coloca nesse mundo da gestão é a confusão

entre razão e racionalidade, ponto muito explorado pelo discurso de autoajuda

utilizado nas relações de trabalho, como veremos adiante. A racionalização tem duas

facetas, a primeira que visa o esclarecimento, mas também pode servir para se

proteger daquilo que incomoda, uma vez estabelecida uma certa lógica, deixará de

fora aquilo que não tem aderência, portanto a racionalização é instrumentalizada pelo

poder para ceder aos ditames da eficiência, enquanto a razão é o caminho para o

conhecimento, para entender o sentido das coisas. A experiência de cada um, rica em

contextos, situações das mais diversas, com suas dores e descobertas, seus conflitos

e acordos, só pode ser compreendida pelo uso da razão (Gaulejac, 2015).

A empresa é vista como um todo, cuja as unidades que a compõe contribuem

para o seu perfeito funcionamento, parte de um comportamento dado como normal

para se identificar desvios, disfunções, conflitos não aderentes ao padrão ideal. Existe

uma dependência mutua entre a parte e o todo. O problema é que esse ideal nunca

está em discussão, é tacitamente aceito, a ciência da gestão se constrói sobre esse

paradigma funcionalista, a partir do qual são erigidos modelos, parâmetros, ciclos e

indicadores. Trata-se mais de adaptar do que compreender, mais normatizar do que

explicar. Os indivíduos devem ser moldados se adaptando as expectativas de um

ambiente que se funda em uma normalidade nunca questionada. O padrão ideal é

estabelecido pelo poder através de normas que submete o exame da conduta dos

agentes sociais aos mecanismos de adaptação.

Vale salientar a importância desses mecanismos de adaptação, pois é

amplamente utilizado no discurso ágil, principalmente quando se trata de adaptar os

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princípios, valores e práticas ágeis à cultura da empresa. Paulo fala sobre a dificuldade

de adaptar o processo à cultura da empresa e qual o caminho que essa adaptação

deve seguir, fazer conviver método ágil e ideologia gerencialista:

“Pouca aderência, no que tange a compatibilidade entre o que o processo

propõe e a cultura da empresa em geral, tem muita fricção no processo de

mudança, é um salto muito grande, as pessoas tem que abandonar muitos

modelos e crenças mentais antigas. Como vou controlar o budget se não

estou certo de quanto vou gastar no desenvolvimento? As coisas não se

encaixam bem, só tem um jeito de fazer isso, um dos lados tem que ceder,

arregaçar, como tentar colocar uma peça redonda em um buraco quadrado.

O outro jeito é adaptar, criar adaptadores, fazer com que os Mindsets

coabitem, mas o resultado é incerto. ” (PAULO, 2017)

4.3.4 Especialista em métodos ágeis

A famosa “organização cientifica do trabalho” defendida por Taylor embora

obsoleta deixou suas raízes experimentais, do trabalhador como objeto de observação

e avaliação por experts, aqui podemos intercambiar o termo experimental por empírico,

também muito presente do discurso ágil, porém matizado pela equipe que trabalha de

forma auto gerenciada. Veremos como a melhoria contínua está assentada na ideia

de dissecar os problemas, ainda que de forma coletiva, para alcançar níveis de

qualidade e produtividade cada vez maiores. Existe um uso extensivo também da

teoria dos sistemas, cujos trabalhadores são elementos que interagem entre si, e com

o sistema formado pelas relações estabelecidas por todas as interações. Os experts

dominam a elaboração e aplicação do método, existe debate democrático sobre os

meios, mas jamais sobre os fins, existe abertura para discutir sobre o “como”, nunca

sobre o “porque”.

“A racionalidade instrumental consiste em pôr em ação uma panóplia

impressionante de métodos e de técnicas para medir a atividade humana,

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173

transformá-la em indicadores, calibrá-la em função de parâmetros precisos,

canalizá-la para responder às exigências de produtividade. “ (GAULEJAC,

2015, p. 76)

Os especialistas ágeis dotados de uma linguagem própria, de um saber,

mobilizam um poder que impõe:

“Uma modelação do real sob a forma de painéis de instrumentos, de

indicadores, de ratios etc., igualmente linguagens normativas que se impõe

aos atores da empresa. “ (GAULEJAC, 2015, p. 77)

O Expert é dotado de um poder que lhe é outorgado por algum tempo, quando

é um consultor seu discurso terá o espírito da recomendação, se for funcionário

exercerá os seus pontos de vista a partir do mais genuíno empirismo, munido de um

discurso de verdade, será seguido e raramente questionado, muitas vezes tratarão as

pessoas, objeto do exercício de seu conhecimento e experiência, como cobaias,

realizando medições, testando abordagens diversas, técnicas inovadoras, seu

objetivo é aparelhar as equipes de trabalho. Entretanto o compromisso com o poder

outorgado se sobrepõe a necessidade de dar conta das continuas mudanças pelas

quais atravessam qualquer coletivo humano, pode correr o risco de ser um

especialista na arte de mudar para manter certas coisas do jeito que estão. A gestão

traz no seu bojo uma certa disposição para negar o movimento dos agentes sociais,

históricos, tentando apreender uma realidade criada e recriada continuamente por

esses agentes, constituindo-se em mais uma contradição.

O papel do Agile Coach é fundamental hoje para as empresas que pretendem

realizar uma “transformação ágil”, na visão de Tiago esse profissional deveria atuar

em todas as áreas da empresa, e intervir nos hábitos das pessoas, na cultura da

empresa:

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“Atualmente o ágil otimiza só um silo da organização, é lamentável. Criar

hábitos corretos, criar um ambiente de transparência para as pessoas

entenderem qual é o jogo, devem jogar a partir disso, ajudar a jogar melhor.

Você cria impedância cultural nas bordas do processo, fica uma coisa mais

vertical que horizontal, parecendo que ágil é coisa de TI. O agile coach deve

atuar na cultura, nos hábitos das pessoas, cuidar para que o processo

funcione, gerir os conflitos nas bordas. Reforçar os hábitos, influenciar,

encontrar os Early Adopters da empresa, dar voz a eles para criar esse

movimento. ” (TIAGO, 2017)

Paulo concorda que para uma transição para o paradigma ágil a empresa

necessita contar o papel de especialista em transformação ágil, e que deve ser

tolerante, pois as resistências devem ser naturalizadas, atuando com perseverança

na “conversão de corações e mentes”:

“Resumidamente tem a ver com ajudar a fazer a transição para o ágil,

minimizar o atrito, existem vários desafios, vários problemas, vai ser difícil, a

mudança organizacional, ajudar as pessoas a trilharem esse caminho. É um

papel que está na confluência de forças antagônicas, quando o agile coach

encontra alguma resistência, tem que entender que a pessoa não faz isso por

maldade, é uma resposta natural, como uma defesa do corpo. O agile coach

convive com isso o tempo todo. ” (PAULO, 2017)

Lucas afirma que a importância do papel está em ser um agente de mudanças,

que ajuda a adaptar o processo e ao mesmo tempo manter fidelidade a seus princípios

e valores, por isso esse papel é crítico, paradoxal e muito problemático:

“É um agente de mudanças, ajudar a empresa a se manter fiel aos princípios

ágeis, ajudar as pessoas a descobrir como a agilidade faz sentido no contexto

de cada um. As empresas são diferentes umas das outras, empresas de

produtos, serviços, equipes de tamanhos diferentes, seria ingênuo pensar

que todas as empresas vão adotar agilidade da mesma forma. Quanto ao

método existe uma mescla de métodos, extreme programming, Scrum e lean.

Deve tangibilizar tudo isso levando em consideração o contexto da

organização. ” (LUCAS, 2017)

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175

Pedro enfatiza não gostar do nome que foi atribuído a esse papel, embora

reconheça a sua importância, como um consultor que traz outro ponto de vista, mas

corre o risco de transformar a agilidade em um objetivo e não em ferramenta para

resolver problemas de negócio:

“Ajudar o time no processo de transformação ágil em uma empresa que tem

vários times, acho isso ruim, visão estreita que precisa ser ampliada, acho o

nome ruim porque tem agile no nome e tem coach no nome. Entretanto essa

figura é necessária, ela existe, tem alguém que olhe de fora, sirva de apoio,

buscar uma prática, uma forma de olhar para o sistema de trabalho e enxergar

coisas que o time não vai enxergar, sugerir mudanças, ajudar o time a fazer

experimentações, ajudar o time a fazer medições [...] Agente de mudança

com visão estreita transforma o ágil em objetivo e não em ferramenta. ”

(PEDRO, 2017)

A maximização e otimização dos desempenhos individuais são perseguidas

vorazmente a fim de atingir graus de eficiências cada vez mais altos, a fim de garantir

a rentabilidade. O problema emerge somente se pode ser resolvido, qualquer

atividade de reflexão é considerada prescindível se não concorre para aumentar a

eficiência. Os indivíduos são valorizados na proporção direta desse ganho. Trata-se,

portanto, da expressão de um utilitarismo focado nas ações pessoais, desconsiderada

a preocupação e a motivação coletiva.

Autonomia e liberdade adquirem um valor desde que associadas a melhoria

de desempenho financeiro.

Um dos grandes ganhos preconizados pelos métodos ágeis é evidenciar as

fragilidades da organização, fica fácil entender porque tal iniciativa causa tanta dor, e

promove rejeições, quem aponta fragilidades e não apresenta uma solução é

considerado um subversivo, levando as pessoas a um estado de ansiedade ou inércia.

O que não é considerado útil não tem sentido, logo deve ser descartado.

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176

“A questão não é mais, então, produzir conhecimento em função de critérios

de verdade, mas segundo critérios de eficiência e de rentabilidade dos

objetivos fixados pelo sistema. É outro aspecto da racionalidade instrumental,

que tende a considerar como irracional tudo aquilo que não entra em sua

lógica. “ (GAULEJAC, 2015, p. 78)

Um último fundamento da ideologia gerencialista é o humano visto como um

fator da empresa, suscita toda uma problemática que deverá ser examinada pelo

departamento de recursos humanos. Aqui se dá a inversão entre o econômico e o

social. O homem produz a empresa, não o contrário, sendo o objetivo da empresa

enquanto construção social é contribuir para o bem-estar social, caso contrário só

contribui para a reificação do humano. Tratar o humano como coisa ou recurso da qual

se deve extrair a máxima produtividade como se fosse a engrenagem de uma máquina

é admitir que “a finalidade humana não é mais fazer sociedade, ou seja, produzir

ligação social, mas explorar recursos [...]” (GAULEJAC, 2015, p. 81).

Para Mateus os métodos ágeis trouxeram uma valorização do humano,

mesmo que não aplicando os métodos da maneira adequada, acredita na

possibilidade de uma real autonomia, e se diz satisfeito por presenciar as mudanças

no mercado ao longo dos anos:

“O lado humano que o ágil trouxe, melhores ambientes de trabalho, melhoria

na comunicação, tratar seres humanos como seres humanos, as empresas

são mais abertas, mais democráticas, isso tem influência dos métodos ágeis,

grande parte das organizações, mesmo fazendo isso de forma fake foram

influenciadas. As equipes têm mais voz, se olharmos para a teoria, realmente

grande parte do que pretendemos com o ágil fica no discurso, mesmo assim

comparando com 20 anos atrás, mesmo com que só no discurso já tem

comportamento diferente. ” (MATEUS, 2017)

O mecanismo utilizado pela ideologia gerencialista para prevalecer, fazer valer

seus preceitos e objetivos não passa pela coerção, mas pela conquista da adesão

voluntária, por um consentimento. A aura de atração criada pela oportunidade de

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progresso, o desejo de exercer sua autonomia empreendendo e o culto da qualidade

revela-se como irresistível. A qualidade principalmente enseja entusiasmo e mobiliza

nossas aspirações mais profundas.

Nos anos 1990 o discurso da qualidade proliferou e tornou-se uma força motriz

mobilizando a energia do trabalho para exceder as metas de desempenho

continuamente sem deixar transparecer que a verdadeira motivação era o lucro.

Vários programas de qualidade foram criados e amplamente difundidos, são mapas

que guiam as empresas no caminho que leva à perfeição, tida como prática

extraordinária de conduzir a empresa para obter os melhores resultados, superar e se

distinguir não abrange partilhar isso com outros, “exceto impelir todos os semelhantes

em um projeto de perpétua superação, em uma corrida na direção de um ideal mítico

inacessível”. (GAULEJAC, 2015, p. 87).

A ênfase no sucesso colocada nesses manuais de qualidade leva a uma

competição sem fim, busca-se um ideal de perfeição que acaba se tornando uma

condição para a sobrevivência de indivíduos e empresas, não é suficiente executar

bem o seu trabalho, a situação atual sempre pode ser melhorada.

O sucesso requisita comprometimento, de todos, e principalmente dos

gestores, se algo dá errado certamente é porque faltou empenho, essa é a razão.

Escolhe-se uma meta, um objetivo de alto nível de forma que a mobilização psíquica

do grupo seja facilmente engajada. Assim todos investem seu desejo e energia nesse

objetivo comum introjetado.

O progresso deve ser uma constante, o horizonte tênue da qualidade e do

sucesso se esvaecem logo que se tenta delimitá-los, não se render às lógicas do

progresso é cair no abismo escuro da estagnação. Entretanto, não existe progresso

infinito, nada se concebe sem um fim, assim como luz e sombra se co-determinam, o

progresso é indissociável do regresso, logo não é necessariamente bom. Daí a falta

de perspectiva histórica.

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O ideal dos manuais de qualidade é caminhar rumo ao infinito sem

contradições, é, portanto, na essência um discurso positivista.

Nos métodos ágeis a medida do progresso é inerente à gestão empírica, ciclos

contínuos de planejamento, execução, verificação e consolidação 20 , que se

retroalimenta com feedback oriundo de pontos específicos de inspeção e adaptação.

4.3.5 Melhoria contínua

A melhoria contínua é uma prática cara a todos os métodos ágeis, é o motor

principal que leva as equipes à excelência, entretanto não é uma prática isolada, ela

requer ritmo sustentável, requer auto-organização, portanto não deve ser imposta.

Sua aplicação é prejudicada em ambientes onde a eficiência guia as iniciativas, de

uma forma geral a ideologia gerencialista despreza essa prática por se tratar de uma

cerimônia na qual os indivíduos expõe as suas subjetividades, e tentam tecer uma

realidade compartilhada. A gestão prefere impor ferramentas de avaliação eletrônicas

e centralizadas, como a matriz de maturidade que é elaborada por um grupo próximo

a alta gestão da empresa. A retrospectiva é uma cerimônia que estimula a criatividade,

a colaboração, a autonomia, mas que perde a sua efetividade por falta do devido apoio.

Curiosamente a retrospectiva, que visa a melhoria contínua do sistema como um todo,

é vista com cautela pela empresa, porque necessariamente abre mão do seu controle.

Paulo associa a melhoria continua com evolução da espécie, não leva em

consideração que no contexto da empresa, a melhoria continua está umbilicalmente

ligada a meritocracia, a ideologia gerencialista, a ideia do empreendedor de si:

“Não vejo impacto negativo, de maneira geral, acho que o ser humano, na

média, busca por melhoria, não no sentido competitivo, parte de nossa

natureza, de homo sapiens, essa coisa de feedback, de visibilidade, tem alto

20 Conhecido com PDCA - Plan, Do, Check, Act

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retorno sobre o que você está fazendo. ” (PAULO, 2017)

Tiago associa a melhoria continua com a ideia da organização servidora, cuja

a existência se justifica pelo serviço ao cliente, não descarta a possibilidade de

frustração, entretanto coloca a frustração como parte do jogo, ou a falta de tempo para

promover ações em direção da melhoria contínua:

“O impacto é positivo, existem pessoas que procuram mais estabilidade, para

algumas gera mais estresse, entender melhor as características das pessoas,

no início elas se engajam, mas depois se confrontam com coisas que não

dependem delas, e que são potencialmente gargalos do ambiente e se

frustram. A organização não está melhorando na velocidade que eles estão

melhorando, de que vale meu empenho se os outros não estão engajados?!

Talvez também o estresse por não resolver problemas. Tudo se resume em

ter tempo e motivação para aplicar a melhoria, porque vou fazer isso? Tem

que ter uma narrativa, não trabalhamos para o gestor, para o diretor,

trabalhamos para o cliente, gosto dessa ideia da organização servidora”.

(TIAGO, 2017)

O fenômeno da avaliação se impõe de forma insidiosa, apesar da aparência

ética, dissimula um poderoso sistema de controle, de caráter avassalador e

opressivo. Figura como inevitável pois deita suas raízes no desenvolvimento

científico e tecnológico. Sua penetração na lógica operacional da sociedade é

profunda e inexorável. Se utiliza de uma linguagem neutra e universal, hierarquiza

pessoas e ações de acordo com seus critérios. Tenta enquadrar a vida social em

uma análise quantitativa qualquer. Ferramenta primeira da estimulação da

competitividade:

“Atende à lógica do capital, privilegiando o resultado, o desempenho, o êxito do

prazo exíguo e da resposta urgente e irrefletida, em detrimento do tempo e das

condições necessárias ao pensamento distanciado que exigem a construção

de um saber reflexivo e crítico sobre o mundo que nos cerca e ao trabalho

paciente do cuidado e da atenção às pessoas. ” (BALANDIER, 2015, p. 11)

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O Objetivo para além de submeter tudo ao quantitativo é estabelecer um

saber-poder, um saber superior a todos os outros, uma nova forma de governo, um

dispositivo de intervenção, de onde emanam os critérios soberanos.

Nunca se trata de uma avaliação técnica somente, mas um instrumento de

poder, que remete a uma gestão que visa a eficiência e a rentabilidade. O fenômeno

da avaliação causa profundo impacto na vida social e nos sujeitos, não é possível

avaliar as singularidades, o esmero, o trabalho intelectual.

“Avaliar atividades se transforma em avaliação das pessoas que as executa,

gerando novas formas de desconfiança, hipocrisia e rivalidades exacerbadas,

acentuando a individualização e a competitividade extremas. ” (BALANDIER,

2015, p. 12)

A reflexão das atividades laborais é substituída pela avaliação, que tem por

natureza deteriorar a convivência.

Para além da mensuração quantitativa dos problemas sociais, presenciamos

uma dominação exercida por computadores, apoiados em tecnologias como a big

data 21 , a inteligência artificial, learning machine 22 , algoritmos de toda espécie,

21 Refere-se a um grande conjunto de dados armazenados. Caracteriza-se por: velocidade, volume,

variedade, veracidade e valor. Termo amplamente utilizado na atualidade para nomear conjuntos de

dados muito grandes ou complexos, que os aplicativos de processamento de dados tradicionais ainda

não conseguem lidar. Disponível em:< https://pt.wikipedia.org/wiki/bigdata/>. Acesso em: 05 de ago.

2017.

22 O aprendizado automático ou aprendizado de máquina é um subcampo da ciência da computação

que evoluiu do estudo de reconhecimento de padrões e da teoria do aprendizado computacional em

inteligência artificial. Habilidade de aprender sem ser explicitamente programado. O aprendizado

automático explora o estudo e construção de algoritmos que podem aprender com seus erros e fazer

previsões sobre dados. Tais algoritmos operam construindo um modelo a partir de inputs amostrais a

fim de fazer previsões ou decisões guiadas pelos dados ao invés de simplesmente seguindo inflexíveis

e estáticas instruções programadas. Enquanto que na inteligência artificial existem dois tipos

de raciocínio (o indutivo, que extrai regras e padrões de grandes conjuntos de dados, e o dedutivo), o

aprendizado de máquina só se preocupa com o indutivo. Disponível em:<

https://pt.wikipedia.org/wiki/learningmachine/>. Acesso em: 05 de ago. 2017.

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possuindo uma aura de saber superior e infalível, a sociedade digital reforça o império

dos números.

“O número chega ao poder, tanto mais quanto o economismo contemporâneo

e o capitalismo financeiro na sua mobilidade excitam a concorrência, a busca

contínua do resultado máximo, a rapidez estratégica de utilização da

urgência. ” (BALANDIER, 2015, p. 15)

Uma espécie de mar ideológico circunda o arquipélago do humano, legitima o

poder, reforça as relações assimétricas. A cumplicidade com os avaliadores faz

esquecer que nem toda coisa social pode se transformar em mercadoria, existe um

limite para a reificação. Cabe perguntar se algo escapa ao fenômeno da avaliação, se

algo é de alguma forma inavaliável.

Podemos presumir que a filosofia da avalição é um potente instrumento de

legitimação de organizações. Não é somente uma técnica para corrigir ações, tem

forte apelo ideológico e se encaixa bem em todas as esferas da sociedade com a

ideologia neoliberal. Uma de seus principais engodos e tentar impor uma semelhança

a temas que não poderiam ser comparados, sendo, portanto, arbitrário em suas

proposições.

Trata-se de um novo instrumento de intervenção fundamentado em

indicadores, painéis, matrizes de maturidade, que podem ser aplicados a qualquer

organização, a crença geral é a de que o progresso, e seus adendos, produtividade,

eficiência, eficácia, não são possíveis sem avaliação, Martuccelli explicita 8 princípios

básicos:

“- Tudo é suscetível de ser medido e, no devido tempo, submetido a

avaliação, exercício que permite transformar debates ideológicos em casos

técnicos;

- Todo o mundo deve ser avaliado e posto em concorrência, o que caminha

no sentido de uma democratização;

- A avaliação, na medida em que se apoia em referências comuns, em uma

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forte credibilidade e em critérios técnicos irrepreensíveis, assegura uma

gestão mais transparente do poder;

- A avaliação como modo de gestão assegura a melhor utilização possível

dos recursos econômicos e humanos;

- A avaliação aumenta a eficácia porque permite fazer emergir, por

comparação, as boas práticas, o que possibilita, em seguida, declinar

recomendações mais ou menos universais;

- A avaliação motiva e implica continuamente tanto as organizações quanto

os indivíduos, porque visam melhorar de modo constante tendo em mira a

próxima avaliação;

- A avaliação, ao tornar o poder mais eficaz e transparente, é um poderoso

mecanismo de legitimação das organizações;

- A avaliação, ao tirar, graças à reatividade que ela assegura, as conclusões

dos limites das antigas formas de racionalização organizacional, inaugura

uma nova era na racionalização de nossas sociedades. ” (MARTUCCELLI,

Crítica da filosofia da avaliação in BALANDIER, 2015, p. 39)

Existem atividades que por causa de sua natureza ou por restrições técnicas

torna-se difícil mensurar. No caso do método ágil devido a opacidade e imaterialidade

das atividades que envolve muita comunicação, em reuniões corporativas, e-mails,

telefonemas e cerimônias do próprio método. Os objetivos as vezes se sobrepõe em

meio a tantas demandas, mesmo assim a ânsia de medir persiste, inclusive com

critérios que levam à perversão da avaliação, por serem essencialmente subjetivos e

não raramente embasados em propósitos políticos e metas pessoais.

Se tudo é avaliável, todos devem ser avaliados, aparentemente parece

democrático, entretanto se refletirmos, por exemplo, sobre as estratégias de avaliação

360 graus, verificaremos uma discrepância de avaliação entre chefes e subordinados,

a assimetria que se estabelece entre ambos impacta diretamente um possível plano

de ação, além do fato de que, para alguns a avaliação será constante, para outros

episódica. Não existe, pois, igualitarismo, nem redução de arbitrariedade. O fato do

julgamento ser baseado em expediente cognitivo, não elimina o fato de que criar um

indicador é realizar uma escolha política por omissão. A questão da transparência aqui

fica prejudicada a partir do momento que a formulação de indicadores não é colocada

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em debate. Os indicadores não levam em consideração o exercício do poder, que

opera na zona de incerteza. Os atores que transmitem informações de avaliação

relativas as suas práticas exercem controle sobre o que mostrar, cada qual produzirá

informação de acordo com seus interesses, não se trata de disciplina, mas de jogo

estratégico, que deve ser controlada, mas não extinta.

A avaliação tem um custo alto, pois exige alocação de tempo e investimento

cognitivo, as vezes de uma multidão. A avaliação está umbilicalmente ligada a

eficiência enquanto meta suprema da organização, por isso o esforço de avaliação

cresce exponencialmente e por consequência o custo. Prática que visa evitar

desperdícios é em si um desperdício.

A filosofia da avaliação compõe um vasto corpo de iniciativas neoliberais que

abrangem todos os tipos de instituição de forma global, pretende encontrar o melhor

caminho, estabelecer as melhores práticas, para que se possa aplicar em qualquer

contexto. Está no âmago daquilo que Negri chama de império. Não é possível

aprendizado mutuo quando esse mecanismo se baseia em poderes assimétricos, um

bom exemplo são os padrões de qualidade criados pela onda de qualidade total da

década de 1990, como ISO ou CMMI para desenvolvimento de software, entre outros.

As atividades são organizadas em função dos indicadores, que sugere um tipo de

colonização. A avaliação é normativa e performativa, deixa de ser um meio para se

tornar um fim. O objetivo de fundo é sempre a melhoria da organização, que oculta

um desejo de dominação. A avaliação ganha contornos mais perversos quando passa

para o nível do indivíduo:

A avaliação não é, então, apenas um aumento de mecanismos de controle; é

outra maneira de fazer aceitar as coações do trabalho, por parte do

assalariado, pelo viés da responsabilização. Seu escopo é fazer que o

indivíduo se sinta sempre e em tudo responsável, não apenas por tudo o que

faz (senso de responsabilidade) mas por tudo o que lhe acontece (princípio

da responsabilização). A responsabilização situa-se na raiz de uma exigência

generalizada de envolvimento forçado dos indivíduos e na base de uma

filosofia que os obriga a interiorizar, sob a forma de falha pessoal, a sua

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situação de exclusão e fracasso. No âmbito da filosofia da avaliação, as

desigualdades de resultados tornam-se um caso de fracasso pessoal.

(MARTUCCELLI, crítica da filosofia da avaliação p. 39 in BALANDIER, 2015)

A intensificação exige envolvimento total do trabalhador com a empresa, o que

exige, por sua vez um sistema de recompensas embasado na avaliação, que resultam

não raramente em injustiças e frustrações, pois as imposições de envolvimento

excedem em muito as exíguas recompensas. Além do que a meritocracia é colocada

em xeque pela arbitrariedade e pela bajulação. Outro agravante é a urgência insuflada

na vida social pelo próprio ethos capitalista que fazem com que os indivíduos exijam

cada vez mais rápido as recompensas prometidas. Devido a esse contexto o clima de

desconfiança aumenta, em pleno contraste com o discurso de solicitação de

comprometimento, levando via de regra à uma simulação generalizada. Se os

trabalhadores imergem no discurso imperativo do lucro, da eficiência e eficácia difusa,

com exceção de posições estratégicas e momentos críticos, o quotidiano se desdobra

de maneira mais flácida, pois existem nichos de ociosidade, a margem de ação de

cada um permite balancear a intensidade com momentos de lentidão. Os métodos

ágeis preconizam o ritmo sustentável, ainda que isso não seja incentivado pela

empresa, os atores criam estrategicamente vacúolos de morosidade por uma questão

de saúde física e psíquica.

Pedro avalia o impacto da melhoria continua sobre as pessoas afirmando que

se trata de uma obrigação, de encontrar sentido para as coisas que você faz, da

necessidade de ser uma prática sustentável, que raramente acontece na prática:

“Impacto é aumentar a autoestima e a significância do que é feito, você fica

mais no fluxo, tem o lance de você fazer o seu trabalho parte da sua obrigação,

a segunda parte da sua obrigação é fazer de uma forma que ele possa ser

feito melhor, no futuro, obrigação ética. Você expandir a melhoria continua

para todos os setores da sua vida. O problema é algo que você faz que

degenera ao longo do tempo, se ele ao longo do tempo se estabiliza, nesse

caso não preciso de melhoria continua. Fazer o trabalho e pensar em forma

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de fazer melhor, encontrar mais significado no que faz, de encontrar fluxo. A

folga tem um papel importante nisso, para a sustentabilidade também, além

do que precisa ter espaço para o imprevisível. ” (PEDRO, 2017)

Apesar de toda a nocividade da filosofia da avaliação, as sociedades aderem

com entusiasmo a ela. Não existe mais a ilusão do controle absoluto, mas a

reatividade é desejada em meio a um contexto de incerteza, fluido que se modifica a

todo momento, assim a adaptação é a palavra chave para fazer frente ao imprevisível,

o estoque zero, o Just-in-time, a luta constante contra o desperdício, a colaboração, a

transparência, a flexibilidade, a polivalência, todas essas características compõe uma

nova racionalidade. Um sistema eficiente que elimina todas as possibilidades de

ociosidade, errar rápido para certar rápido exige sistemas de avaliação ubíquos, para

além das subjetividades cooptadas.

João declara que a melhoria continua tem a ver com propósito, maestria e

autonomia, e que o poder de transformação da empresa está no indivíduo, é preciso

analisar até onde a gestão das empresas atualmente privilegia esse tipo de ambiente,

e como é possível compatibilizar isso com a busca por maior eficiência e produtividade

abrindo mão do controle e da intensificação do trabalho:

“Gosto da abordagem do Daniel Pink, motivação 3.0, pessoas são motivadas

por um ideal, um propósito, por maestria e autonomia, você gostaria de

transformar o ambiente onde o trabalho é executado? Você gostaria de

desenvolver as pessoas para trabalhar em empresas do século XXI? Ter

autonomia, gente que iria trabalhar de graça! Essa é a questão da inspeção,

adaptação e melhoria contínua, maestria e autonomia levam a melhoria

continua, quando você tem a competência para fazer essa transformação, é

movido pelo propósito de transformar o mundo, você se aprimora sozinho e

depois muda o mundo”. (JOÃO, 2017)

A avaliação seduz porque nutri uma crença coletiva de eficácia, um

sentimento de domínio, uma certa previsibilidade. É evidente que usando a

introspecção já modificamos várias vezes uma conduta pessoal, a associação da

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experiência pessoal com a experiência organizacional reforça a adesão a avaliação.

Ninguém questiona que todos devem prestar contas democraticamente, muito menos

a aspiração de ver seus próprios esforços reconhecidos, portanto essa aspiração

também reforça a adesão a avaliação. Estrategicamente trata-se do estabelecimento

de uma nova tecnocracia, por uma elite que não terá suas competências técnicas

questionadas.

Em tempos neoliberais assistimos a um profundo enfraquecimento dos

vínculos sociais. A relação com o tempo e o espaço foi subvertida pela velocidade e

aceleração tecnológica, todos os limites se romperam diante da desterritorialização

promovida pela globalização. Estamos além da disciplina e do controle, o controle

agora é contínuo, se faz presente em todas as esferas da vida, induzindo a falta de

confiança, uma suspeita difusa, de instituições e indivíduos, o tipo de personalidade

que se forja nesse contexto é de natureza fugaz, efêmera, submissa, dependente,

desconfiada. A prestação de contas é em tempo real, abrange tudo que se está

fazendo agora, é reduzir a prestação de contas ao ponto de não se perder tempo nem

rentabilidade, o que for imprevisível ou inédito não deve ser avaliado. Por isso talvez

uma das práticas mais bem vistas do método ágil seja a gestão visual, os radiadores

de informação.

“A avaliação incessante convertida em instrumento de controle contínuo, que

ignora, quando não despreza, o indivíduo isolado na sua singularidade,

decorre desta desconfiança e a reforça. Ela tenta reduzir a parte de

desconhecido reduzindo-a doravante ao número, à quantificação, à

linguagem formal do governo, sem conteúdo, sem substância em sociedades

nas quais os funcionamentos e as identidades são fragmentados, misturados,

múltiplos, instáveis, difusos e incertos. O valor, doravante cifrado, tende a ser

desprovido de conteúdo. “ (HAROCHE, O inavaliável em uma sociedade de

desconfiança p. 70 in BALANDIER, 2015)

A avaliação tem sempre um caráter subjetivo, entretanto invisível, fugidio,

oculta-se atrás de cálculos. O que a avaliação quer de fato é reduzir o campo da

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subjetividade dos avaliados para que seja possível modelar os comportamentos. A

subjetividade que requer margem de iniciativa e liberdade pode representar uma certa

insubmissão ou resistência, reside nisso a importância de suprimir o pensamento

crítico, visando alcançar mais eficácia, eficiência, adaptação, inovação. A adaptação

torna-se fio condutor porque suprime a dúvida, a hesitação, a recusa, a interioridade,

o inavaliável.

A mudança, o ritmo, contrasta com o ritmo pessoal, à engenhosidade,

habilidade de obter êxito, obsta o sentimento de continuidade, desqualifica o

pensamento, forja-se assim uma personalidade adaptável e flexível que se molda a

objetivos fixados previamente. Resistir a esse sistema equivaleria ao ostracismo,

entretanto se é impossível a resistência institucional, a resistência intelectual preserva

uma certa margem:

“Ela supõe a liberdade, a criatividade, a inventividade, a audácia exigida pela

atividade e experiência de pensar, implicando, ademais, a paciência diante

da ausência de eco, da indiferença encontrada por um trabalho de reflexão;

requer, enfim, a força de caráter, a determinação, a autoconfiança nas horas

de falta de reconhecimento. “ (HAROCHE, O inavaliável em uma sociedade

de desconfiança p. 84 in BALANDIER, 2015)

As injunções da produtividade intensa abreviaram o tempo de pensar, o

julgamento crítico, a avalição continua tende a privar o indivíduo de liberdade e

experiência interior. Mescla-se com o trabalho cognitivo momentos ociosos, hiatos,

morosidades, suspensões, divagações, distrações, diversões, uma diversidade de

momentos que compõe um trabalho invisível que se desdobra por um tempo e supõe

uma subjetividade. A singularidade resiste a qualquer sistema, Claudine Haroche

inspirada em Deleuze lembra que:

“Criar sempre foi algo mais que do que comunicar – hoje, convém acrescentar:

algo mais do que produzir. Seriam necessários, então, momentos de pausa,

de não funcionamento de silêncio, criar vacúolos de não comunicação,

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interruptores, para escapar ao controle” (HAROCHE, O inavaliável em uma

sociedade de desconfiança p. 88 in BALANDIER, 2015)

Tal afirmação corrobora em tese o que os métodos ágeis afirmam sobre a

necessidade de trabalho sustentável, slack, respeito da capacidade produtiva, e a

importância da cerimônia de retrospectiva, e também porque essas mesmas

cerimônias baseadas em colaboração coletiva e práticas intersubjetivas são preteridas

por ferramentas de avaliação corporativas.

Mateus descreve bem a prática de melhoria continua na grande maioria das

empresas, uma ferramenta de intensificação do trabalho, com o tempo a prática vai

sendo deixada de lado por conta das entregas, o debito técnico vai aumentando, então

aquilo que poderia ser feito de maneira tranquila e sustentável ao longo do tempo,

torna-se uma exigência insustentável afetando o trabalho como um todo:

“Entra toda questão de educação em volta disso no início tem um sentimento

de cansaço, vou ter que melhorar continuamente, significa que estarei

correndo, correndo, correndo para melhorar. Aí entra a questão do ritmo

sustentável, a melhoria contínua nesse caso não tem impacto negativo, torna-

se pesada se não há ritmo sustentável, aí o esforço é grande, se 100% do

tempo está focado em execução, tudo que é necessário para melhoria fica

acumulado, e quando vem a necessidade de melhoria a porrada é grande. ”

(MATEUS, 2017)

Qualquer modelo de excelência visa atingir desempenhos cada vez mais altos,

que leva necessariamente a comparação com desempenhos anteriores ou com base

em alguma meta estabelecida ou pior comparando com o desempenho de outros

levando à uma crescente competição, pois “o trabalho não consiste mais em realizar

uma tarefa predefinida em tempos e em horas, mas em realizar desempenhos. ”

(GAULEJAC, 2015, p. 91). Os métodos ágeis não recomendam a comparação de

desempenho entre pessoas e equipes, é essa é uma das adaptações que o processo

sofre ao ser introduzido em grandes empresas.

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O problema de qualquer modelo de gestão é se apresentar como científico,

por estar apto a compreender a realidade da empresa com objetividade e neutralidade.

Os processos ágeis valorizam o teste de hipóteses em meio à incerteza e

imprevisibilidade, mas seu discurso é subvertido pela ideologia gerencialista e

transformado em um discurso operatório, cujo o objetivo é melhorar os resultados

financeiros. Quando não convém dizer certas coisas em reuniões, sustentar

determinadas opiniões ou apresentar dados coletados a partir de situações reais,

evita-se confrontação com situações reais, dotado de objetividade, pragmatismo e

neutralidade o discurso gerencialista suscita a adesão necessária, mas também a

rejeição quando:

“O sentido prescrito não corresponde ao sentido que cada trabalhador lhe dá,

este vive uma incoerência que, longe de o mobilizar, leva-o a se desestimular

de sua tarefa, o sentido do trabalho é construído a partir de um modelo ideal

e não a partir da realidade concreta. A qualidade é definida a partir de

indicadores pré-estabelecidos, a não a partir de critérios reais que os agentes

utilizam para definir a qualidade daquilo que eles fazem, os únicos critérios

que são significativos para eles. ” (GAULEJAC, 2015, p. 95)

Aqui vemos cair por terra toda a auto-gestão, liberdade e autonomia

preconizada pelos métodos ágeis. A criação de boas práticas, de procedimentos

documentados em frameworks de uso geral, define o que deve ser encorajando ou

desencorajando, prescrevendo condutas que as pessoas têm de aderir livremente.

Como veremos na quase totalidade das implantações de métodos ágeis a estratégia

preferencial é sempre top-down, ou seja, imposta desde cima do alto escalão, muito

raramente bottom-up, ou seja, a partir da vivência dos próprios trabalhadores que

nesse caso aderem de forma autônoma ao método. É importante observar que o

discurso gerencialista não se apropria do método ágil, mas o modula conforme as

suas necessidades visando otimizar recursos humanos, ampliar o marketshare,

favorecer a flexibilidade, produzir adesão, normalizar comportamentos, promover

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autonomia controlada. Faz isso com a anuência do próprio método que traz a vocação

da adaptação no próprio DNA. Ao invés de uma imposição por decreto, as pessoas

são convidadas a colaborar, desde que o resultado da colaboração passe pelo crivo

de alguém que identificará desvios e recomendará um ajuste ou descarte daquilo que

não se adapta. Trata-se mesmo de um discurso contraditório, faz um movimento

pendular entre a rigidez disciplinar, o paradoxo, a contradição são os meios pelos

quais consegue modular o discurso. As normas mesmo que aceitas voluntariamente

produzem efeitos de poder. Se os métodos ágeis preservassem seus valores e

princípios poderia produzir uma democracia corporativa interessante, mas quando

colocado em prática não resiste à modulação de um discurso próprio de uma cultura

gerencialista pré-existente e arraigada.

Assim como nos modelos de qualidade dos anos 1990, os métodos ágeis

sofrem forte influência do pensamento sistêmico, preocupados em valorizar o humano,

em refundar a avaliação em práticas empíricas. Ambas se dispõem a combater a

burocracia e a tecnocracia, sem embargo, quando colocadas em prática nas

organizações, acabam vilipendiando as subjetividades entrando em contradição com

sua proposta por adotar medidas que engessam as possibilidades de construção de

relações sociais benéficas.

É possível que grande parte das corporações sofra do mal da quantofrenia,

que designa “uma patologia que consiste em querer traduzir sistematicamente os

fenómenos sociais e humanos em linguagem matemática. (GAULEJAC, 2015, p. 98)

Não se pode compreender ou dominar a realidade com medições, o engodo

começa quando fracionamos a realidade para poder facilitar os cálculos, comparações,

a ilusão da representação objetiva não permite responder questões sobre a qualidade

do conjunto, a ética dos comportamentos, impactos e ponderações entre os diversos

elementos. O desempenho integral de um sistema depende da combinação de uma

infinidade de elementos, inclusive dos subjetivos ou intersubjetivos.

Dessa forma em corporações que resolvem adotar os métodos ágeis vemos

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a difusão de diversos tipos de modelos e matrizes e de maturidade que enfatizam as

informações sobre quantidade de entregas, quantidade de defeitos, execução de

práticas, cumprimento de prazos, e desprezam informações como percepção da

colaboração, da autonomia, do aprendizado, do ritmo sustentável de trabalho.

A insignificância e a quantofrenia são duas figuras do poder. Uma permite

evitar a crítica e a contestação, pois ela impede de chegar ao sentido dos

mecanismos que estão em prática, e a outra permite apresentar como neutro

e objetivo um programa que leva os agentes a interiorizar a ideologia

gerencialista. (GAULEJAC, 2015, p. 101)

Tanto os especialistas da qualidade quanto os agilistas operam um discurso

que promove uma confluência de interesses, desprezando os conflitos e

antagonismos que emergem das relações humanas. As empresas são organismos

sociais e como tais, sempre instáveis e prenhe de incertezas. Essa visão de

estabilidade é expressa por grandes players do mercado, como a IBM, que prestam

consultoria para grandes corporações, trabalhando para consolidar uma visão de

mundo determinística e preditiva. É o caso do Framework23 SAFe, dotado de uma

estrutura que permeia toda a organização, da área de negócio à produção de software,

abrindo todas as portas possíveis para que a ideologia gerencialista se aproprie de

diversas práticas e valores ágeis, e os coloque a serviço da eficiência e da

rentabilidade, mantendo a estrutura burocrática e os controles necessários, entretanto

seu objetivo explícito é “escalar”24 o processo na empresa.

O pessoal é convidado a pôr em coerência os planos dos recursos humanos

com a política, a estratégia e a estrutura da organização. Trata-se de fazê-lo

aderir à organização, de moldá-lo conforme o modelo da empresa.

23 Um Framework ou arcabouço conceitual é um conjunto de conceitos usado para resolver um

problema de um domínio específico.

24 Escalar aqui pode ser entendido como disseminar o processo por toda a empresa, colocá-lo em prática e estabilizá-lo, mantendo os preceitos essenciais da metodologia ágil.

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Flexibilidade, comunicação, reatividade, motivação, mobilidade e empenho

são as palavras-chave de uma política de qualidade na gestão dos recursos

humanos. São todos termos que exprimem a necessidade de uma

mobilização psíquica a serviço dos objetivos da empresa. (GAULEJAC, 2015,

p. 103)

As regras, procedimentos e dispositivos trazem no seu bojo, de forma menos

visível, o poder, orienta os objetivos e as tomadas de decisão. O poder então está nas

mãos daquele que escreve as regras do jogo. Os trabalhadores são envolvidos pela

engrenagem do processo que os submete, adesão facilitada pela participação dos

próprios empregados na elaboração das normas, transição habilmente facilitada pela

atuação do Agile Coach25 , assim as prescrições gerais serão transformadas em

prescrições concretas. E justamente aqui reside a maior incongruência entre os

métodos ágeis e poder gerencialista, por um lado o estímulo à auto-gestão,

transparência, colaboração, autonomia, criatividade; por outro a prescrição, a

arbitrariedade, as normas a instrumentalização e a dependência. A incerteza é

constantemente mascarada pela objetividade de instrumentos de gestão que se

pretendem neutros. Não obstante é justamente dessa dobra que se dá a modulação

dos discursos.

4.3.6 Liberdade e autonomia

Voltando para a noopolítica, para entender a cooperação de cérebros, não

podemos mais partir da empresa, pois não podemos embasar uma compreensão do

que seja o capitalismo contemporâneo na exploração do trabalho, o trabalho seria na

visão de Lazzarato (2006) um modo de captura da cooperação entre cérebros, e não

25 Corresponde a uma função criada recentemente nas empresas, cujo objetivo é dar suporte à implantação da metodologia ágil no contexto da empresa.

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um elemento central que constitui o mundo.

Retomando as ideias já esboçadas anteriormente, a empresa não produz

mercadorias, mas cria mundos onde as mercadorias ou serviços serão utilizados. Da

mesma forma que a Alcatel em 2001 separou-se das fábricas, algumas empresas

brasileiras seguem o mesmo caminho, como é o caso de três dos maiores bancos

nacionais. Separa-se assim todos os serviços e empregados que estão envolvidos na

criação de mundos: pesquisa, marketing, comunicação, tecnologia, todas as

máquinas de expressão. O produtor e o consumidor, o serviço ou o produto estão

imersos no mesmo mundo, isso se dá não mais por técnicas disciplinares, a realidade

da empresa se confunde com as relações entre trabalhadores e consumidores.

Lazzarato (2006) assevera que “a expressão e a efetuação dos mundos e das

subjetividades neles inseridas, a criação e realização do sensível (desejos, crenças,

inteligências) antecedem a produção econômica”. Portanto os clientes ocupam uma

posição de centralidade na estratégia das empresas, uma vez que se trata em primeiro

lugar de criar demandas. Consumir significa pertencer a um mundo, constituído por

regime de signos, que trazem no seu bojo um repertório de crenças, um convite a

participar de uma determinada maneira de ser.

As sociedades de controle se distinguem pela proliferação de ofertas de

mundos, mundos formatados, que foram forjados para uma maioria, esvaziados de

singularidades. A liberdade está na escolha de possíveis que outros constituíram,

especialistas, nos é vedada a construção dos mundos, tudo é possível, a partir de um

leque de opções pré-determinadas, mas ao mesmo tempo nada é possível, quando

se trata de criar o novo.

Você pode ser ágil, mas é um ágil que eu acho que deve ser, assim é a forma

como as grandes empresas se apropriam dos métodos ágeis, e promovem uma

adaptação a sua própria cultura e diretrizes.

A sensação de insuficiência, descontentamento, lassidão advém da não

experimentação do acontecimento, promovida pelo capitalismo hodierno, o

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acontecimento se reduz a ações de marketing e publicidade, pois antes do produto ou

serviço estar disponível, já foi vendido, já foi produzido um “mundo”, ao qual equivale

um público. Os investimentos nas máquinas de expressão superam os investimentos

da produção em si. Publicidade e acontecimento tem em comum o fato de disseminar

maneiras de sentir, induzindo maneiras de viver, a alma é afetada primeiramente para

depois “in-corporar”. A empresa promove mudanças incorporais.

“A publicidade constitui a dimensão mental do simulacro de acontecimentos

que a empresa e as agências de publicidade inventam, e que devem ser

encarnados nos corpos. A dimensão material do simulacro se realiza tão logo

as maneiras de viver [...] se efetuam nos corpos”. (LAZZARATO, 2006, p.

103) ”

São produtos e serviços que obtemos como possíveis, em meio ao fluxo de

informações, do caldo de comunicações no qual estamos submersos. As

subjetivações produzidas por essas máquinas de expressão circulam de forma

ininterrupta como ritornelos usando sons e imagens. Os indivíduos, são afetados

primeiro por transformações incorporais e depois corporais, entretanto grande parte

da raça humana fica só com as transformações incorporais, seja pela televisão ou

pelo celular. Trata-se de um duplo encontro, primeiro a alma é afetada, e depois o

corpo. As narrativas são mundos possíveis, formatados, porém uma dobra que

envolve virtualidades, o que está oculto no desenvolvimento da dobra pode produzir

efeitos heterogêneos, impensáveis, porque as mônadas são singularidades

autônomas, a apropriação capitalista é sempre imprevisível, existir é diferenciar-se. O

capitalismo tenta controlar esses mundos por uma constante modulação. A sociedade

de controle restitui os dispositivos disciplinares, sem os quais ele não poderia modular

os cérebros, e capturar a memória e a atenção. O paradigma da sociedade de controle

não é mais o corpo confinado do trabalhador, mas o corpo obeso, repleto de mundos,

corpos tatuados pelos signos, palavras, os logos das empresas. As máquinas de

expressão agem pelo exemplo e não pela disciplina, servindo de balizamento para as

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condutas.

As transformações incorpóreas produzidas por essas narrativas perseveram

como ritornelos, circulam pelo mundo, para conquistar mentes e corpos. Todo esse

processo é anterior, organizando o trabalho e o não-trabalho, portanto, para Lazzarato,

pensar a produção a partir da categoria “trabalho” seria redutor demais.

Partindo de uma asseveração da neomonadologia pretende-se reformular a

teoria do trabalho:

“O “possível” (um produto ou um serviço) que vai expressar o “mundo”

normatizado da empresa não existe a priori, ele precisa ser criado. O mundo,

os trabalhadores, os consumidores não preexistem ao acontecimento. São,

ao contrário, engendrados pelo acontecimento. ” (LAZZARATO, 2006, p. 108)

Segundo Gabriel Tarde a invenção é uma criação de possíveis que se

atualizam nas almas de consumidores e trabalhadores, diferenciando aquilo que os

economistas clássicos chamam de produção, que nesse caso trata-se de reprodução.

Hoje a atividade de criação e efetuação das subjetividades é apropriada pelas

empresas. A captura dessa atividade se dá pela captura do acontecimento. “A

organização do trabalho passa a ser investida da lógica do acontecimento, pelo

agenciamento da diferença e da repetição” (LAZZARATO, 2006, p. 108).

Segundo Philippe Zarifian, do ponto de vista das disciplinas, o acontecimento

não é desejável, tudo deve acontecer conforme o planejado, não pode fugir ao que foi

normalizado, a visão disciplinar da organização do trabalho é contrária à invenção, ao

acontecimento. A incerteza, a necessidade de fazer face às mudanças impacta

visceralmente a organização do trabalho, uma instabilidade que abala sua estrutura,

de coisas não previsíveis. Parece-me que a produção de software, pelo prisma da

justificativa dos métodos ágeis, encaixa-se perfeitamente nesse contexto. Quando se

fala de zona de conforto, parece que as pessoas estão mais influenciadas pelo

ambiente criado pela própria empresa do que por iniciativa própria.

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“A resposta ao surgimento do imprevisível, do incerto, dos acontecimentos, é

dada pela mobilização da atenção individual e coletiva ao que está se

passando, ao que já passou e ao que vai passar, e isso significa invenção,

capacidade de agenciamento, de combinações, de fazer acontecer.

Acontecimentos e invenções se distribuem ao longo do ciclo de produção

(desde a concepção do produto à sua fabricação) e se articulam com as

rotinas, os hábitos, as operações codificadas”. (ZARIFIAN apud LAZZARATO,

2006, p. 109)

Tal resposta parece ser dependente de um certo quantum de liberdade,

autonomia, e guarda estreita proximidade com o conceito de auto-organização

preconizado pelos métodos ágeis.

O capitalismo contemporâneo controla a produção prestando atenção aos

acontecimentos, sejam eles produzidos no cliente, no mercado ou na empresa, implica

em aprendizado com as incertezas e mudanças, estar pronto para se antecipar,

produzir em conjunto.

Ainda segundo Zarifian, o mercado é a constituição de uma clientela, que por

sua vez exige fidelização e inovação, fidelizar significa capturar atenção e memória,

os cérebros, constituir desejo e crenças. A produção visa os modos de vida,

transformação das capacidades de ação futura, os serviços antecipam as demandas,

concretizando-as. Essa antecipação se dá na esfera do virtual, requerendo a

mobilização dos recursos da comunicação.

Para além da modulação do espírito, a empresa requisita também uma

modelagem dos corpos, e articula essas duas dimensões, pretende com isso criar um

mundo também para o trabalhador, que adere a desejos e crenças corporativos.

Inspirando em Leibniz, Zarifian transcende a dicotomia, o paradoxo entre individual e

coletivo, incluindo o individual e o coletivo na mônada:

“A relação do indivíduo com sua atividade tende a se tornar uma mônada,

uma totalidade em si [...]. Esta relação não é mais vista como fracionamento,

funcionamento determinado, da divisão orgânica do trabalho. Torna-se global

por si mesma[...]. ” (ZARIFIAN apud LAZZARATO, 2006, p. 112)

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197

Isso pode significar que apesar da empresa impor uma forma de se fazer o

ágil, o trabalhador ao tomar contato com o método, não só por intermédio da empresa,

mas também por intermédio dos consultores especialistas, da internet, dos diversos

canais, materiais, evangelizadores, experiências com o método das mais diversas

formas, podem assim tecer um próprio entendimento e construir um processo de

trabalho singular.

A competência exigida pelas empresa pós-fordistas, de se confrontar com a

incerteza, o absolutamente novo, abrange os autônomos e independentes bem como

os dependentes e subordinados. A empresa com suas normatizações pode invadir a

mônada desde o seu interior, mas não destrói a sua singularidade, ela mesma permite

que o universo da empresa tenha sentido, mas sempre com base em uma

reformulação. O discurso de autonomia da empresa pode ser substituído por um

conflito intestino que se dá no processo de digestão da mônada, é um trabalho que

requisita autonomia, de um lado a autonomia e singularidade do trabalhador, por outro

a captura e pertencimento ao mundo da empresa.

Mateus ressalta a importância da participação da empresa no

desenvolvimento de autonomia e liberdade dos trabalhadores e da importância do

vínculo de confiança para que um outro de tipo de construção de conhecimento seja

possível:

“Não acredito em um on/off de liberdade e autonomia, mas em níveis de

liberdade, a capacidade de autonomia vai aumentando a medida que você

vai aprendendo, os processos ágeis defendem isso, e tem impacto na maioria

das organizações, não acredito que os trabalhadores sejam capazes de lidar

com tamanha liberdade e autonomia, quando a organização faz um

investimento para desenvolver a competência das pessoas, as pessoas vão

se preparando e se mostrando competentes para lidar com determinado tipo

de liberdade e autonomia. Tudo depende do nível de autoridade e confiança

entre aquele que concede a liberdade e autonomia e aquele que a pleiteia.

Sobre o trabalho individual e trabalho em equipe, precisamos voltar na

questão sobre os extremos, numa gestão tradicional, a coisa é focada no

individual, o mundo ágil trouxe muito a questão do trabalho em equipe. Nos

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últimos anos houve uma romantização muito grande, tudo tem a ver com

equipe, e as vezes um time trabalhando junto e fazendo tudo junto apresenta

resultados ruins. Você tem que descobrir a cadeia de valor de cada trabalho,

existem tipos de trabalho que você só vai conseguir gerar valor para o negócio

se for feito em equipe, mas existem trabalhos onde você só será capaz de

gerar valor fazendo individualmente. Equipes criativas sabem quando

trabalhar em equipe e quando não trabalhar, criam uma inteligência coletiva,

a ponto de saber como e quando, esse é um segundo nível de auto-

organização que vemos nos animais e que não somos capazes de fazer,

somos um extremo ou outro. Sobre especialização e generalização,

especialização sempre vai existir, se alguém quer ser tester e se identifica

com isso tudo bem, o que é inadmissível é ele ser um ignorante no restante

da engenharia de software, tenho que conhecer minha cadeia de valor e ser

generalista nisso, mesmo que seja um especialista em uma parte da cadeia

de valor”. (MATEUS, 2017)

João salienta que autonomia pode, na visão da empresa, elevar o risco do

negócio, e o quanto afeta as relações de poder estabelecidas:

“Liberdade e autonomia tem a ver com experimentações, existe um risco em

ser disruptivo demais e botar em risco uma marca ou modelo de negócio, isso

gera medo. O segundo ponto é vai impactar os aspectos gerenciais, vi mexer

no status quo da gestão, a maior restrição é o poder da hierarquia, dos

gestores. Para mexer nessas estruturas de poder há que se ter habilidade

política em primeiro lugar. O terceiro ponto é a grife, porque a IBM está no

Santander? São os melhores? Se der algo errado foi a IBM que fez... não é

tomada de decisão em favor da organização, e sim individual, minimizar o

risco individual do executivo”. (JOÃO, 2017)

A narrativa de Paulo esclarece a contradição intrínseca à ideia de auto-

organização e a necessária liberdade e autonomia que ela traz, e a captura por parte

da empresa do conhecimento gerado. Em seguida afirma a importância da

singularidade e como ela se funde com outras se aproximando bastante da ideia de

cooperação de cérebros, e de como a especialização excessiva pode ser um

empecilho para a colaboração:

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“Autonomia é bom, liberdade não sei se é adequado, processo ágil preconiza

isso. A restrição maior é, o ágil você pode se auto-organizam do jeito que

você quiser, mas o foco é resolver um problema específico, que tem prazo,

custo definidos, enfim restrições. Todo esse devaneio tem que fazer sentido,

não é uma coisa totalmente lúdica, tem que se traduzir em capital tudo isso.

Sobre o trabalho em equipe e individual, o espaço individual é necessário,

ritmo, criação, o seu pensamento, o indivíduo é singular, tem um jeito único

de pensar, existir, deve ser respeitado, sua singularidade deve prevalecer,

mas no seu time ela se transforma, no processo de fusão se funde com outras

singularidades e fica maior. A menor unidade gerenciável na empresa deveria

ser o time, parar de gerenciar o que os indivíduos estão fazendo, e focar-se

no resultado do time. Não é o Mindset vigente, continuamos a acreditar que

o desempenho individual é mais importante e desconectado dos demais.

Crescemos como indivíduos, cada um tem as suas necessidades, agendas,

você tem elementos de competitividade, as empresas tentam tirar proveito

disso, e ainda estimulam! A questão da especialização e da generalização

tem dois pontos. O primeiro é que as pessoas se aprofundam em alguns

assuntos mais que outros, a especialização nesse caso precisa ser

respeitada, do ponto de vista econômico pode ser menos custoso um

especialista resolver. Esse é o grande equilíbrio para definir o “T”, o balanço

entre especialista e generalista, na prática todo mundo pode entender de tudo,

ter uma visão do todo, tentar colaborar com o todo, entretanto é saudável ser

um especialista em alguma coisa. O mercado de capacitação insiste na

especialização, a empresa valoriza isso. A complexificação das tecnologias,

plataformas e a economia de escala também favorecem a especialização”.

(PAULO, 2017)

Para explicar o controle nas empresas Zarifian utiliza a metáfora do elástico,

pois o trabalhador não se encontra mais agrilhoado ao posto de trabalho, está

umbilicalmente ligado à empresa por um elástico:

“O assalariado pode, livremente, esticar o elástico, ele não está mais preso,

pode mover-se, deslocar-se ao sabor de suas iniciativas e de seu savoir-faire,

de acordo com suas próprias faculdades decisórias e de julgamento. Mas, eis

que o elástico é tensionado, uma força periódica de chamamento se exerce

sobre o trabalhador, e ele tem que prestar contas [...]. A pressão dos prazos,

dos resultados a atingir, substitui aquela do cronômetro das operações

elementares do trabalho. Mas seria falso pensar que esse controle só se

exerce periodicamente. Na verdade, é onipresente. Permanentemente - o

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assalariado deve pensar – vão ficar no meu pé, me importunando noite e dia”.

(ZARIFIAN apud LAZZARATO, 2006, p. 114)

Parece lembrar o taylorismo, mas é diferente, a diferença abre uma

perspectiva de explicação para a sujeição e para a resistência.

O desencontro entre subjetividades e as estratégias da empresa, ocasionado

pela atualização das almas e a encarnação dos corpos, promove um confronto com a

gestão, desse deslocamento podem se originar tanto desvios exitosos quanto um

colapso subjetivo. As técnicas de controle se articulam com técnicas disciplinares, a

intensidade de aplicação as quais os trabalhadores serão submetidos depende de

posição hierárquica, competências e tipo de produção, dessa forma as técnicas de

poder formam camadas sedimentares e se articulam.

“Com a advento da cooperação entre cérebros, não basta mais dizer que o

trabalho se tornou afetivo, linguístico ou virtuoso, posto que é a configuração

mesma da acumulação e da exploração capitalista que se modifica

radicalmente. “ (LAZZARATO, 2006, p. 120)

O software livre é um bom exemplo de como a cooperação se dá antes da

captura, uma co-criação que se dá sem empresa ou capitalismo, que depende apenas

do acesso a bens comuns (ciência, saber, internet, saúde).

É uma invenção que ocorre pelo agenciamento de uma pluralidade de

inteligências, de conhecimentos e afetos que circulam em uma rede, que articula

desenvolvedores e usuários, uma criação e realização recíprocas que faz de todas as

mônadas colaboradores. Essa forma de criação é pública, porque envolve desejos e

crenças de todos, uma atividade que tem um lado da iniciativa individual e singular e

uma natureza pública. Os velhos preceitos da economia política e do marxismo não

explicam os lucros exorbitantes da Microsoft, não se trata somente da exploração dos

trabalhadores. Mas se explica pela clientela, formada e mantida por fidelização e

inovação, e do monopólio que se estabelece. Nesse caso os empregados da empresa

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mantem uma interface com a cooperação de cérebros, neutralizando a co-criação, de

forma que a potência de agenciamento converge para a empresa.

“E como se realiza essa captura? A forma imediatamente pública da

cooperação é negada pelo segredo que rege as atividades da empresa e o

segredo que rege as atividades da empresa e o segredo que rege a difusão

dos softwares (impossibilidade de acessar o código-fonte). A neutralização e

a captura da potência de co-criação e de co-realização se fundam sobre a

propriedade intelectual, e não sobre a propriedade dos meios de produção,

como na cooperação da fábrica”. (LAZZARATO, 2006, p. 122)

A natureza da atividade dos pequenos cérebros que fazem parte de um

cérebro social, não se define apenas pela cognição e afetos, mas também pela

capacidade de começar algo novo, de elaborar problemas e colocar à prova as

soluções.

Pedro comenta como se dá o verdadeiro trabalho em equipe, e podemos

perceber como essa ideia se aproxima da cooperação entre cérebros:

“O conceito de equipe, time, entra em cena quando se tem uma meta comum,

existe um jogo, uma definição clara de quando vencer o jogo, aí começa a ter

time, o oposto disso é grupo de trabalho, quando as pessoas têm

individualmente seus objetivos, a empresa reforça isso com prêmios

individuais, porque é a forma mais fácil de gerir, estabelecer modelos de

motivação extrínseca para as pessoas, do que para grupo. Os esportes

coletivos mostram um caminho, ambientes altamente competitivos

estruturados para vencer o jogo. A questão individual é importante, mas um

craque não jogo em qualquer time. Se você tem um objetivo, ele se desdobra

em várias coisas que precisam ser feitas, como numa jogada para atingir a

meta a equipe precisa se planejar taticamente. Os times de software definem

um objetivo comum, engaja as pessoas para resolver os problemas, e não

em fazer suas tarefas somente, então você tem um momento de distribuição

das partes desse problema para o time, explode o problema em tarefas e

volta para convergir. É um processo de três etapas, você reúne para discutir

a melhor configuração das tarefas no time, quem está em melhor situação

para pegar determinadas tarefas. A generalização entra como fator

importante, tudo pode virar gargalo, com um peão do xadrez, se você é uma

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peça que tem mais possibilidades de movimentos, você é mais útil. O

segundo momento é individual, você resolve aquilo que foi atribuído para

você, aqui as vezes cai bem o especialista. O terceiro momento é voltar a

prestar contas para o time, verificar se todos estão caminhando em direção à

meta. As pessoas criativas precisam de coisas novas, não conseguem ficar

muito tempo fazendo a mesma coisa. A empresa precisa criar um cenário

para mantê-lo ali, desafios, flexibilização para trabalhar em projetos diferentes.

O cara conservador precisa de ordem, estabilidade, previsibilidade”. (PEDRO,

2017)

Aqui Lucas ressalta a dificuldade e fazer conviver dois modelos de trabalho,

os dilemas que surgem pela imposição de uma ideologia gerencialista, focada no

individualismo e na meritocracia, fruto de uma ideia de trabalho já ultrapassada:

“Tenho pensado muito sobre o trabalho individual e em equipe, o melhor

modelo que chegamos na BlueSoft foi uma combinação de alguns fatores, se

você olha para o desempenho individual apenas, se você olha para as

métricas individuais, você quebra o incentivo que as pessoas têm para

colaborar com os outros, porque vou me preocupar a ajudar os outros se isso

não está na minha meta? Se você olha só o desempenho coletivo teremos

dificuldade de remunerar as pessoas que contribuem mais. Passamos a ter

disfunções no time, pessoas que não contribuem, são acomodadas, e deixam

o piano para as outras carregarem”. (LUCAS, 2017)

Lucas ainda levanta uma questão interessante sobre como a polivalência, a

multifuncionalidade da equipe pode ser interessante para fomentar a cooperação

entre cérebros, entretanto, como já analisado nessa pesquisa, é utilizado pela

empresa como um dispositivo para reduzir custo, intensificar o trabalho e aumentar a

rentabilidade:

“Precisamos cada vez mais de profissionais que vão se limitem a fazer

alguma coisa, e assume que o resto não é o trabalho dela, quando falamos

de time multifuncional, cross-functional, a gente precisa disso. Misturar

pessoas com diferentes skills em um time vai também permitir que pessoas

que não são especialistas em uma função possam contribuir com atividades

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daquela função, um dev pode testar, um design pode escrever código, um

tester pode montar um ambiente. Gosto da ideia do T-shape profissional,

especialista em alguma coisa generalista nas outras”. (LUCAS, 2017)

Aqui parece haver mais uma aproximação com os métodos ágeis, quando

falam de PDCA, de testes de hipóteses, da importância do feedback, de auto-

organização, do valor dado à comunicação.

Cada um adiciona pequenas invenções à memória social. Uma empresa como

a Microsoft reivindica para si o direito de definir os problemas e guardar o segredo de

suas soluções, para favorecer sua clientela.

“A propriedade intelectual tem, assim, uma função política, já que determina

quem temo direito de criar e quem tem o dever de reproduzir. A propriedade

intelectual separa a multiplicidade de sua capacidade de criar problemas e

inventar soluções. A empresa e a relação capital/trabalho impedem que se

veja a dimensão social do acontecimento que caracteriza a produção da

riqueza contemporânea, determinando assim formas de exploração e

subordinação inéditas. ” (LAZZARATO, 2006, P. 126)

Talvez a resistência da empresa aos métodos ágeis esteja em uma relação

que pode se abrir para outras perspectivas além da apropriação, nesse sentido os

métodos ágeis são vistos com reservas, ainda que seu proposito seja tão somente

calibrar a relação de diferença (invenção) e repetição. O que poucos talvez tenham

percebido é que o manifesto ágil foi pensado como se fora uma balança, que

dependendo da ocasião pende para um lado ou para outro.

Quando uma mônada é capturada na execução de um trabalho reprodutivo, a

memória e a atenção não se voltam para o espaço virtual da invenção, torna-se um

hábito, a ação se transforma em automatismo, as forças psicológicas e todas as

potencias de vida e de invenção são capturadas e neutralizadas, e talvez isso explique

tantos problemas de ordem psicológica e psiquiátrica ocasionados pelas relações

laborais.

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A dinâmica da cooperação entre cérebros é dada pelo acontecimento, as

ações representam novos começos, quando criam se abrem para um horizonte de

imprevisibilidade. Para fazer frente a fragilidade e ao risco presentes nessa ação, é

requerida a confiança, co-criação implica em empatia e compartilhamento. As

mônadas operam em estados de colaboração e rivalidade que se alternam, mas

sempre guiadas pela empatia, confiança propiciada pela criação. Estar em estado de

colaboração é uma afetação recíproca. Por isso a invenção não pode ocorrer por

comando e controle, confiança, empatia e colaboração possibilitam a co-criação de

mundos e de si mesmo, a diferença é o motor da colaboração. O espírito de

competitividade exacerbado e a contradição só encontram espaço quando se pensa

através das categorias da economia política e do marxismo, na mesma chave cada

qual em uma extremidade, a práxis e o liberalismo.

“Dois termos contrários não podem ultrapassar sua contradição, a não ser

pela vitória definitiva de um ou de outro, ao passo que dois termos diferentes

podem combinar sua heterogeneidade pela hibridação. A fecundidade da

lógica do acontecimento e da invenção resulta na capacidade desta de fazer

o encontro, de co-produzir e co-adaptar as forças heterogêneas que só se

opõe na lógica dos contrários. Ao estabelecer um novo plano de imanência,

as forças co-produzem uma nova modulação de suas relações, descobrem

“uma vida ainda não trilhada que lhes permitem utilizar-se reciprocamente”.

(LAZZARATO, 2006, p. 134)

A invenção e cooperação expressa uma alegria, que é distinguida da tristeza

que se expressa no trabalho de repetição padronizado, por uma subjetividade

envolvida em uma atividade qualquer. O fenômeno econômico não encontra

explicação bastante na sanha desmedida do lucro, sequer no binômio minimizar a dor

e maximizar o prazer, mas talvez no esforço constante de evitar a tristeza

proporcionada pela reprodução padronizada a ampliar a alegria proporcionada pela

invenção, reduzir a necessidade do trabalho e ampliar a liberdade da cooperação. Eis

a contradição do capitalismo atual, a empresa deve se render a essas condições sob

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pena de desaparecer, mas sua lógica recusa a imanência e a colaboração que a

cooperação entre cérebros pressupõe, ou antes a modula para capturar sua produção.

Mais um indicio do rol de possíveis explicações para a dificuldade de implantar

métodos ágeis em grandes empresas e manter a iniciativa ágil.

Paulo realça na sua narrativa a contradição entre a necessidade da criação e

o excesso de controle, a falta de confiança e a cultura do medo:

“Como a empresa lida com a incerteza, com relação ao aprendizado, porque

a empresa se enche de planos, artefatos, processos. Por causa da falta de

confiança e do medo de perder dinheiro, e acha que se municiando de

detalhes, informação, de tudo muito bem documentado, aprovado, vai

conseguir se proteger. O principal empecilho é jogar na defensiva, de

imaginar problemas futuros, com o cliente, com o fornecedor, com o time, é

mãe de todos os empecilhos. Porque o medo? Porque quem tem cú tem

medo! Ou segundo Noam Chomsky, quem tem juízo obedece! Você tem uma

cultura nas empresas, na sociedade, de que você tem que ser um vencedor

a qualquer custo, de que não podemos errar, e se errar os culpados devem

ser caçados, é o manifesto pão na mesa: sobrevivência ”. (PAULO, 2017)

A cooperação entre cérebros produz bens comuns: linguagens, serviços,

conhecimentos, informação, ciências, entre outros. Não são bens consumíveis,

apropriáveis, permutáveis, tangíveis, bens produzidos a partir da cooperação de

subjetividades são gratuitos, não pode ser apropriado porque compartilhado. Além

disso o consumo desse tipo de bem pode entrar na composição, no processo de

criação de um novo conhecimento. A cooperação produtiva do capitalismo industrial,

os trabalhadores sendo comandados pelo capital não dão conta de explicar a criação,

circulação e consumo de bens comuns, mas são utilizados a bel prazer pelas

empresas reduzirem os bens comuns à bens privados, impondo uma condição de

escassez a cooperação entre cérebros cuja natureza é da abundância.

As grandes empresas têm uma obsessão por industrializar, cristalizar modelos,

por isso método nenhum estabelecido, formatado, definido, sacramentado,

documentado, funciona. As pessoas (mônadas) tomam o conhecimento, o modificam

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na sua execução, conforme os problemas com os quais se deparam, e não atualizam

o monólito metodológico.

“A cooperação entre os cérebros se opõe à cooperação produtiva de Marx e

Smith, da mesma maneira que se opõem abundância e escassez,

incomensurável e mensurável, fora de medida e medida. Se a economia é a

ciência da otimização dos recursos escassos, e se hoje a escassez não é

mais uma condição natural, mas um produto do direito, parece-nos

necessário lançar as bases de reflexão para pensar a riqueza a partir da

lógica da abundância própria aos bens comuns”. (LAZZARATO, 2006, p. 137)

Essa ideia da escassez e da abundância, do que pode ser avaliado e medido

e o que não pode, aproxima-se bastante da apreciação feita a partir da crítica à

avaliação na problematização da melhoria continua. Podemos entender como essa

melhoria pode se dar naturalmente pela cooperação entre cérebros, subjetividade, e

como ela pode se transformar em uma ferramenta de pressão e controle. As

comunidades, a exemplo da comunidade do software livre que estimula mais a

liberdade que a gratuidade, têm esse potencial de estimular um certo devir ativo dos

integrantes, um protagonismo, em contraposição a passividade e a dependência. O

manifesto ágil e seus princípios preconizam o tempo todo a colaboração entre

cérebros, sejam clientes ou equipes. Portanto as narrativas dos evangelizadores

focados em denunciar a tendência das pessoas a ocupar uma zona de conforto,

referindo-se muitas vezes aos desenvolvedores, leva-nos a entender que se trata de

um ambiente construído pela própria empresa, que mina a potência de criar de todos.

O relato de Tiago deixa claro que criar uma escassez artificial é benéfica,

expressando uma forma de trabalho que entra em discordância com o que temos

exposto:

“No final das contas é se as pessoas enxergam se vai ser melhor ou pior,

quanto incentivo o cara tem, imagina que está acomodado em uma zona de

conforto, não tem ameaças para fazê-lo andar. Nessa transformação ágil

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trabalho com a ideia de criar crises, cria-se uma demanda, uma tensão de

fora, uma data fixa, um sendo de urgência! No final é um jogo de prazer e dor,

se a dor da mudança for maior não rola. O que eu faço é um mapeamento de

pessoas visionárias, Early Adopters, Early Majority e late, esses dois últimos

grupos ficam para trás, trabalho com os dois primeiros grupos, e não chamo

os outros, porque são os caras que já acreditam, os early majority ficam

preocupados e batem na porta para saber quando serão incluídos. Tem que

passar a ideia de escassez, de que não é para todos, é exclusivo, e aí você

cria o desejo de ingressar. Primeiro você cria um sucesso, com qualidade,

deixa aqueles que criam objeções para depois. Se você envolve e escala

prematuramente, aí esses grupos mais descrentes vão puxar para baixo. Se

a iniciativa top down entender esse fenômeno, entende como transformação

social, e entende como criar o movimento, nesse caso o top down faz sentido.

Diferente do linear para o exponencial, você com qualidade cria essência e

esses caras vão se espalhar pela organização. A maior parte das

transformações não são assim, estão trabalhando com teoria de mudança

organizacional defasadas. Não levam em consideração sistemas adaptativos,

intervenções sistêmicas para alavancar mudanças. ” (TIAGO, 2017)

Sobre a questão da zona de conforto Pedro sugere que a resistência das

pessoas tem a ver com má vontade, e que a empresa não tem responsabilidades com

relação ao ambiente que cria, e que a melhor saída é a coerção mesmo:

“Pergunta difícil, tem muita psicologia ai, tem uma frase famosa que diz “as

pessoas resistem a serem mudadas”, tem muita literatura sobre como realizar

mudanças, mas eu acho que o primeiro fator é você estar junto com as

pessoas lidando com o problema, e cada um tem um problema diferente,

quando você chega para ajudar um time, você não consegue usar uma

linguagem que todo mundo cumpre, como consultor você tem uma prática de

tentar estabelecer uma narrativa que faça sentido para o máximo de pessoas

possíveis, se você cria uma narrativa que faça sentido para o seu gestor

imediato ou para quem te paga e não faz sentido para o time, você recebe

mas não entrega, se você fizer uma narrativa para o time que não for aderente

para o cara que te paga, você entrega mas não recebe. Você pode criar uma

narrativa que metade do time aceita e a outra não .... É difícil estabelecer uma

narrativa concreta para todo mundo aderir, porque existem interesses

particulares. Tem gente que o interesse é não mudar, não quero sair da minha

zona de conforto e para mim funciona. Chego às 8, faço o que tenho que

fazer e vou embora, e agora você vem aqui me dizer que eu tenho que

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colaborar para ajudar os outros com os problemas deles ?! Uma pessoa que

tem esse tipo de pensamento, não tem narrativa nenhuma que o traga para

o time, se ela estiver isolada, vai sentir medo, insegurança correndo o risco

de sair, talvez ela comece a tentar. É difícil dar uma resposta genérica, são

muitas situações. ” (PEDRO, 2017)

Mateus enxerga de uma forma diferente, e que se aproxima da ideia presente

na cooperação entre cérebros, afirma que quem deve sair da zona de conforto é a

empresa:

“Não tem muita aderência, porque o papel do método ágil é fazer com que a

empresa mude, fazer com que a empresa saia da zona de conforto. Pode

parecer feio, mas a empresa tem que entender o jeito ágil de trabalhar

daquela forma para então se apropriar do método e adaptar a sua realidade.

Se a empresa não estiver aberta para fazer a mudança, não vai aprender com

o método. ” (MATEUS, 2017)

Perscrutar a natureza da riqueza, reconhecer que não está fundada somente

no trabalho subordinado que produz capital, mas também na ação livre, que todo o

processo que cria essa nova riqueza abrange a atividade e a não-atividade, o tempo

vazio, o ócio, os vacúolos de silêncio e solidão dos quais falava Deleuze, que para

além da subjetivação é necessário promover uma desubjetivação, esquivar-se de

papéis pré-determinados e impostos.

Na atual fase do capitalismo, o trabalho produtivo continua a ser explorado,

mas é o agenciamento, a articulação da diferença com a repetição, que assumiu a

hegemonia, a criação e efetuação de mundos possíveis passam a ser alvo da

apropriação capitalista. De saída temos o problema da categoria trabalho ser sempre

uma atividade subordinada, e a indistinção no interior da atividade, entre criação e

repetição. A atividade livre mobiliza as potências criadoras incorporadas das mônadas,

ultrapassam amplamente a esfera da empresa, Lazzarato afirma que:

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“A cooperação entre cérebros não é uma coordenação de atividades

especializadas; não remete, a priori, ao cognitariado ou aos trabalhadores

imateriais. Expressa a potência de agir de todos e de cada um: a mobilização

da inteligência (crença), e do desejo (vontade) pela atenção”. (LAZZARATO,

2006, p. 145)

A cooperação dos cérebros não se reduz a grandes ideias e gênios, mas é

sobretudo resultado de uma infinidade de agentes sociais, com pequenas ideias em

geral anônimas. Todos possuímos uma originalidade, uma genialidade singular,

podemos inventar, aperfeiçoar.

O capitalismo na sua fase atual, produz modos de vida e captura a proliferação

de mundos possíveis, destruindo a cooperação entre cérebros.

4.4 Análise da adesão das empresas aos métodos ágeis

Das respostas dos evangelizadores sobre a questão da rejeição e adesão aos

métodos ágeis, a resposta orbitava entre os dois polos sempre com algumas

justificativas, porém em nenhuma delas podemos encontrar uma terceira situação que

seria a adesão de fachada. Os agentes diante da impossibilidade de realizar seus

objetivos pelo excesso de controles, procedimentos, exigências, criam mecanismos

para se libertarem das injunções contraditórias, para se defenderem dos paradoxos,

da ansiedade e da frustração que isso gera, a resistência mais comum é:

A clivagem entre um eu organizacional, o que parece responder às exigências

da empresa, e um outro eu, o eu verdadeiro, aquele que se revela fora, nos

lugares de expressão íntimos ou privados. (GAULEJAC, 2015, p. 108)

Tiago fala dos efeitos colaterais da gestão que chama de “tradicional”,

deixando entender que o problema é falta de empirismo, associa a essa ideia

preconizada pelos métodos ágeis, uma ideia de gestão pragmática criada por ele

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como uma narrativa para vender transformação ágil, não vê a autonomia como uma

coisa desejável, porque privilegia os direitos em função das responsabilidades. Sua

narrativa desconsidera a assimetria existente entre empresa e trabalhadores,

desconsidera a força de coerção e imposição de intensidade de trabalho da empresa

e não leva em consideração o processo de criação de conhecimento comum e

cooperação entre cérebros tratados no item anterior deste capítulo, cuja pedra angular

é justamente a autonomia:

“A maneira tradicional de gestão gera efeitos colaterais indesejáveis, são

mais construções teóricas do que empíricas. A questão é como se cria

conhecimento que gera a menor quantidade possível de efeitos colaterais.

Com essa ideia de gestão pragmática crio um discurso, uma narrativa menor

possível que consiga ter um conjunto de conceitos e ferramentas mínimas

para orientar na direção correta, para mudar a percepção dos gestores. Crio

histórias para eles enxergarem o que eu estou enxergando. O ágil encontrou

no Brasil um grupo com inclinações marxistas, e esse foi o motivo pelo qual

me afastei do movimento, virou muito dogmático pendendo para o lado dos

direitos dos trabalhadores. O ágil se tornou um caminho para a autonomia,

sendo que o ágil deveria ser uma forma de otimizar o todo, e não só uma

parte. Uma narrativa de muitos direitos e poucas responsabilidades. É

verdade que existem dinâmicas de poder tirânicas, isso chama a atenção.

Acho que o trabalho se bem gerido ameniza o conflito entre capital e trabalho,

senão você acaba despertando o pior das pessoas. Por exemplo acho tão

legal desenvolver softwares que faria de graça! A metáfora de como a gestão

funciona polariza demais, poderia ser mais equilibrado, de um lado a empresa

entende as suas necessidades, de outro você entrega valor, estou

aprendendo e sendo remunerado para isso. O ágil começou a gerar lugares

péssimos para se trabalhar, onde as pessoas performavam um terço do que

poderiam. Temos um problema econômico aqui, não é só cultural”. (TIAGO,

2017)

Para João a adesão ou rejeição ao processo está relacionada com um

conjunto de crenças que se adota, em momento algum leva em consideração o fato

de que a empresa pode querer manter o “status quo”, e que sofrimento, problemas é

o preço que se paga pela busca impetuosa de eficiência e rentabilidade, e que os

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males citados têm mais a ver com a intensificação do trabalho do que com crenças

limitantes ou evolutivas, admite que o processo por ser uma máquina de gestão

empírica, expõe as fragilidades e deficiências, mas tal exposição passa pelo crivo da

gestão que por questões de sobrevivência as ignora peremptoriamente:

“Trata-se de crenças limitantes ou crenças evolutivas. Meta programas é

como a mente das pessoas está estruturada e é orientada. Uma

metaprograma é o “afastar-se de ou ir em direção à’, afastar-se de custos, de

sofrimento, de problemas, o discurso é focado no estado presente, ir em

direção à é o empreendedor, não quero saber do estado presente, quero ir

para lá. Em estado de depressão o presente, o futuro gera ansiedade. Muitas

empresas adotam o ágil porque querem se afastar do sofrimento, se métodos

ágeis é uma solução para “afastar-se de”, aí você não consegue a

transformação, o problema é que você não tem lideres “em direção à”, só vai

mudar de problema, vai dizer que não está funcionando, que está ruim, que

não tem resultado, você muda de problemas e continua a querer “afastar-se

de”. Todos os problemas virão à tona, porque o ágil os evidencia. O ágil

começa a crescer com as lean startups porque elas vão “em direção à”. Essa

estratégia de mudança organizacional vai transformar sua equipe, a sua

empresa, o seu negócio em pessoas incríveis, negócios incríveis. Aí você

pergunta o que é incrível no contexto dessa empresa: “90% dos clientes

elogiando, equipes entregando no prazo”, eles começam a falar de todos os

drives de valor do negócio dele! O que impede você de conquistar isso hoje?

Ele vai manifestar crenças limitantes. ” (JOÃO, 2017)

Para Mateus a adesão ou rejeição ao processo está relacionada com o

sentimento que a pessoa tem com relação ao processo de trabalho atual, e o que ela

espera em relação aos métodos ágeis. A questão é o quanto essa insatisfação é

ocultada por um “eu organizacional”, e de que forma a empresa impõe o processo, de

forma que a adesão pode ser superficial e a rejeição nunca ser explicitada. De forma

que uma adesão transparente não implica necessariamente em mudança do processo

de trabalho:

“Tem a ver com sentimento da pessoa pelo jeito atual dela trabalhar, o quanto

ele conhece os processos, o sentimento de quão é melhor, faz sentido para

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o ambiente de trabalho, toma decisão baseado nisso. Acho que acaba sendo

como qualquer movimento social, quando defende um partido ou político

qualquer, faz essa reflexão, relaciona com seu jeito de ser, trabalhar, o quanto

você conhece, o quanto está satisfeito com a situação atual. É uma questão

social, aderimos à algum movimento baseado em nossas crenças e Mindset,

o quanto conhecemos do novo, o quanto estamos satisfeitos ou insatisfeitos

com o velho ou atual. ” (MATEUS, 2017)

Lucas reflete sobre as motivações intrínsecas das pessoas para aderir ou

rejeitar os métodos ágeis. Como as motivações são muito diversas, o caminho em sua

opinião passa pelo estabelecimento de um objetivo comum, porém esse objetivo é

definido pela empresa, a forma como a empresa se estrutura para atingir tal objetivo

não passa pela auto-organização. Os conflitos que se gera acaba por afetar a

motivação intrínseca de todos, levando não raramente a uma espiral de intensificação

do trabalho, trata-se de um processo de mudança que não é visto da mesma forma

pelas pessoas, em função das rígidas estruturas de poder existentes na empresa:

“Pessoas diferentes terão interesses diferentes na organização. Tem dois

elementos: porque aquele cara gosta ou não de métodos ágeis, muda de acordo

com o papel que ele tem na organização, o cliente gosta porque vai reduzir time-

to-market, o time gosta por causa da colaboração e autonomia, e por aí vai. Isso

está relacionado com a motivação intrínseca das pessoas, tem pessoas que se

valorizam e se motivam mais pela liberdade, outras pela ordem, outras pelo

status, tem uma série de motivadores intrínsecos que a gente poderia citar, as

pessoas que vão perder status vão resistir por esse motivo, as pessoas que

valorizam a ordem, e agora não vão ter muita previsibilidade, não vão receber

todos aqueles artefatos, vão resistir e perceber que estão perdendo o controle.

Aquele desenvolvedor que gosta de trabalhar sozinho, vai resistir à colaboração,

as pessoas resistem por motivos pessoais. Muitas vezes em um processo de

mudança como esse é importante trazer um objetivo comum, aquele objetivo que

une todo mundo, seja a sobrevivência da organização ou o crescimento da

organização, tem que ter uma missão que fala no coração de todas as pessoas

envolvidas no processo de mudança, que as faça olhar mais para as vantagens

que eles terão com aquela mudança e que isso tem que ser maior que as

preferências pessoais, a chance de sucesso será maior, as pessoas com

interesses muito conflitantes com a mudança, elas vão resistir até o fim, e não

vão continuar a fazer parte da equipe, para que a coisa flua.” (LUCAS, 2017)

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Outros diante das contradições mais agudas, farão aquilo que julgam correto,

desconsiderando sumariamente as formalidades. Uma outra forma de evidenciar as

contradições, sem poder se contrapor a elas, é a greve do zelo, aplicando os

procedimentos até levar o sistema à exaustão e consequente paralisação. Um eu é o

do tipo dócil, que deseja ser bem visto, o outro procura manter sua sanidade,

capacidade de reflexão, resistir à alienação, e preserva o sentido das ações. O ideário

da qualidade e dos processos ágeis falam de um mundo edênico, mítico, onde não

existe o erro, a imperfeição, onde não existe o conflito, os interesses, um mundo da

conciliação dos opostos, das relações simétricas, conquista dessa forma consenso e

adesão. Entretanto a máscara não adere à realidade quotidiana, diante dos conflitos

e do choque de interesses e desejos advém a frustração, a ansiedade. A prescrição

passa a servir de guia para a ação, um modelo que poderia servir para melhorar as

condições de trabalho passa a ser utilizado como instrumento de pressão para

reforçar a produtividade e a rentabilidade.

Se há tanto em comum entre ideologia gerencialista e métodos ágeis caberia

indagar porque implantar métodos ágeis e manter a iniciativa em grandes empresas

é tão penoso.

Mateus destaca que o sucesso tem a ver com o início da jornada, a motivação

inicial da empresa para a adoção de métodos ágeis, determinando o resultado. Se a

empresa adota os métodos ágeis para aumentar a produtividade, eficiência,

rentabilidade, se a empresa enxerga os métodos ágeis como um conjunto de práticas

para intensificar o trabalho e responsabilizar as pessoas, em troca do seu

protagonismo. Entretanto salienta que na sua opinião a motivação deveria ser a

sobrevivência, e mais uma vez estamos na chave da escassez e não da abundância:

“Aprendi ao longo do tempo que a pergunta “o que é uma empresa aplicar o

ágil corretamente” não é a pergunta certa, e sim o que motivou a empresa a

ir para o ágil isso é decisivo, se você observar, boa parte dessas empresas

que estão tendo comportamento nocivo com ágil, o que aproxima ela do

mundo ágil, o que faz ela querer uma transformação ágil, foi a motivação

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errada, foco em produtividade, queremos fazer mais na metade do tempo,

queremos conseguir mais cliente, o ágil está na moda. A razão que leva uma

empresa a adotar o ágil é decisiva para manter a iniciativa. A principal

motivação deveria ser sobrevivência, as melhores empresas por onde passei,

que aplicavam o ágil da melhor forma possível, se olhavam no espelho e

diziam, se não fizermos esse movimento não vamos sobreviver ao mercado,

nosso modelo está falido, os clientes não param de reclamar, os concorrentes

sempre saem na frente, só assim para encarar o ágil com seriedade e dar

sequência, levar a iniciativa adiante”. (MATEUS, 2017)

Tiago evidencia que os métodos ágeis não são introduzidos como uma

questão estratégica pelas empresas e sim taticamente, como uma questão

operacional, e, portanto, de pouca adesão à cultura da empresa. Destaca a

necessidade da velocidade, entrando em contradição com o que os métodos ágeis

defendem em termos de ritmo sustentável, respeito a capacidade produtiva. Deixa

claro a necessidade de adaptação em função da visão dos executivos, salienta o

despreparo da comunidade ágil, afinal a “estratégia” das empresas talvez seja mesmo

de manter a aplicação no nível operacional:

“Tem uma minoria que entende o ágil como estratégico, faz parte do core

business, da cultura, tem empresas que entendem como diferencial tático, é

legal, mas não está no DNA, e aqui está a maioria hoje. Agora tem as

megacorporações entrando, estão apanhando, sentindo a dor de chegar

tarde com as ofertas, a velocidade virou gargalo. Existem várias formas de

implantar o ágil, top down é uma delas, mas o top down como apoio, para

criar um ambiente propício, dar apoio, não pode ser na base com comando-

controle, mas é o que acontece. Trata-se de transformação de cultura, toda

organização tem uma capacidade de adaptação, a maioria vende que mudou,

mas não mudou, é um verniz. A gestão não sabe gerir transformação cultural,

isso custa caro! Hoje os executivos dos bancos estão preocupados com as

Fintechs, os boards das empresas em 2017 estão começando a se preocupar

com a avalanche de disrupção, a velocidade é estratégica. A comunidade tem

uma resposta que se limita a questão tática, e não consegue falar a língua

dos executivos. Você não pode esperar que os executivos aprendam sobre

ágil, que eles se posicionem de forma diferente! (TIAGO, 2017)

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Pedro observa que a adesão aos métodos ágeis é baixa, porque as empresas

insistem na adoção de melhores práticas, sem adaptação dos métodos à cultura da

empresa, recusando a criar um repertório de práticas. Mas as empresas buscando

rentabilidade e eficiência visam reduzir custos, pois a adaptação de processos de

trabalho requer alto investimento, dada a complexidade do contexto social, econômico

e cultural, mais do que uma mudança de processo, o conceito do que significa trabalho

e valor necessita de uma revisão profunda, critica que o capitalismo não parece

disposto a empreender:

“Acho que é pequena, já existe uma consciência de que os métodos ágeis

são o caminho para melhorar os ambientes da empresa, mas ainda não existe

uma aderência por causa dos contextos serem tão diversos, as empresas têm

uma cultura de comprar as coisas prontas e não de construir, não criam um

ambiente próprio de práticas, tenta puxar do mercado, porque esse foi

sempre o jeito que funcionou em outras industrias, melhores práticas que são

incorporadas, copiando. Quando falamos da área de software, por ser

trabalho do conhecimento e da era da informação, são complexos, não são

puramente complicados, e nesse caso você não consegue simplesmente

copiar as melhores práticas, você tem que usar o repertório de práticas para

construir aquilo que faz sentido para a empresa. O ambiente de negócios e

tecnológico está cada vez mais complexo, hoje você tem a mobilidade, a

internet de velocidade, plataformas de software bem sofisticadas, a

complexidade e a quantidade de problemas que se consegue resolver é maior,

um terreno mais complexo exige mais para lidar com a complexidade. Você

tem culturas diferentes dentro das empresas, as atividades do trabalho do

conhecimento no desenvolvimento são essencialmente sociais e humanas,

exige saber lidar com a interação entre as pessoas, isso contribui para a

complexidade. Existe também um choque de gerações, empresas que

mudam rapidamente tornam-se caóticas, você tem um mercado ativo,

acelerado e dinâmico. ” (PEDRO, 2017)

Lucas observa que a gestão de mudança requerida quando se introduz

métodos ágeis na empresa não deve ser colocada somente a cargo de um agile coach,

que zela pela adoção das práticas. Se não houver uma mudança cultural, os métodos

ágeis são descontinuados. O que acontece é que os métodos ágeis sofrem uma

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mutilação em função das práticas gerencialistas, a gestão não parece incomodada

como a contradição e o desconforto gerados pelas duas práticas e procuram tirar

proveito disso para melhorar o desempenho da empresa buscando aumento de

eficiência e intensificação do trabalho, lembrando da metáfora do elástico proposta

por Zarifian, o trajeto parece claro: adesão voluntária, coerção e demissão.

“Acredito que aí entramos numa questão de gestão de mudança, qualquer

coisa, seja uma transição para a agilidade, seja a adoção de um novo

framework de trabalho, vai precisar de um processo de gestão de mudança,

para sair de onde está e ir para um novo modelo, é o famoso AS IS - TO BE.

Isso é muitas vezes subestimado, acaba acontecendo na figura de um agile

coach, trabalhando no quotidiano, quando ele vai embora as coisas voltam a

acontecer como antigamente. Temos um músculo, uma memória muscular de

hábitos, e voltamos a fazer as coisas do jeito que sempre fizemos. Gosto de

ver a mudança de uma forma sistêmica, observando como lidamos com a

mudança do ponto de vista do indivíduo, do ponto de vista do relacionamento,

para virilizar um processo de mudança, do ponto de vista do ambiente e do

sistema como um todo. Se não conseguimos trabalhar a mudança em todos

esses aspectos, ela não se sustenta, e provável que voltemos a fazer as

coisas como antes. Algumas pessoas serão céticas até o final, e não vão

adotar a nova forma de trabalho, temos que ter coragem de transferir essas

pessoas que não se adequam. ” (LUCAS, 2017)

Pedro afirma que o caminho para adoção dos métodos ágeis está na

adequação das práticas e valores ágeis aos objetivos da empresa. A despeito de sua

observação, nos últimos anos parece que as empresas encontraram uma boa razão

para adotar um novo processo de trabalho, a intensificação do trabalho, talvez as

pessoas não se envolvam com a resolução de problemas, porque a empresa controla

demasiadamente a forma como as pessoas se engajam e criam conhecimento:

“Porque não gera valor para ela, se você quer ser ágil porque acha que é

legal, ou porque é moda, tendência, se o objetivo está desconectado dos

objetivos reais da empresa, a empresa não vai topar, a empresa só muda se

aquilo resolver problemas concretos dela. O ágil pelo ágil não te leva a lugar

nenhum, e o que as empresas percebem é que adotaram ágil, mas não

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resolveu o problema que elas tinham, [...]. Você pode dizer que as pessoas

não fizeram ágil direito e por isso a empresa não soube implementar, e não

obteve os resultados que esperava. Meu contra-argumento para isso é, talvez

as pessoas não tenham usado ágil direito, porque elas estavam tentando ser

ágeis e não tentando resolver problemas. Nesse caso haverá um

descompasso entre o que o ágil pode oferecer e aquilo que a empresa

necessita. O que você precisa alinhar constantemente é o que a empresa

precisa com o que o ágil pode oferecer. ” (PEDRO, 2017)

João relata a dificuldade de adoção dos métodos ágeis quando esta é

conduzida por gestores despreparados, como se essa condução não tivesse uma

anuência estratégica da alta gestão, ele parece desejar uma produção no sentido

colocado por Lazzarato, da coordenação de cérebros, frisando a importância da

incerteza, da experimentação, da aprendizagem, da colaboração, da autonomia, de

forma que a produção de conhecimento ganhe outra dimensão dentro da empresa e

depois fora dela, mas tudo isso pode ser facilmente trocado pelo controle exercido

pela gestão:

“Você dá a faca e o queijo na mão dos gestores fazerem o comando-controle,

todas as práticas são: Review, planning, daily, monitoramento de

impedimentos, riscos, a inspeção monitora continuamente, mas aqui é

controle que está na mão da equipe. Adaptação é planejamento,

monitoramento, controle constante, se você entrega isso na mão de gestores

malévolos, eles transformam isso em comando-controle. A inspeção e

adaptação é transformada em comando-controle, transforma a

experimentação e a aprendizagem, a inspeção significa experimento

contínuo, e você se adapta porque aprende gestão empírica! Transforma

experimentação e aprendizagem em determinismo, o ápice disso é quando

mandam fazer o “Manual de processo ágeis”, IBM implantando ágil é tão

natural quanto TANG de melancia. Não há transparência radical, a gestão à

vista é deturpada, as ferramentas digitais trazem acomodação, e as pessoas

param de fazer gestão à vista, as ferramentas digitais ocultam a realidade,

não promove senso de urgência. A adoção massiva de ferramenta de apoio

à gestão, fazem com que algumas empresas matem os radiadores de

informação, gestão de pensamento e gestão visual. Outra coisa, não há mais

nada para melhorar, as equipes voltam a se focar em eficiência e se

esquecem da eficácia, as reuniões diárias já não servem para nada, a

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retrospectiva deixa de ser feita, aí você abandona os testes. O que aconteceu?

O processo ficou determinístico. Por fim a pressão por resultados, coloca o

foco na eficiência. Os caras não querem alta performance, querem

produtividade, encher as pessoas de coisas! 100% de ocupação. As

incapacidades gerenciais, dos gestores tradicionais diante desse cenário,

para não perder o cargo, a posição, o status, ele começa a fazer de tudo para

dar errado, começa a gerar conflito de interesses, aqui o príncipe do

Maquiavel vai bem, os caras sabotam o processo para não perder o poder, o

cara tem um discurso de que gostou, acredita na proposta, vira para o lado e

pega o chicote e pronto! ”. (JOÂO, 2017)

Mateus reconhece a adulteração sofrida pelos métodos ágeis ao serem

introduzidos nas empresas, a necessidade de adaptação de baixo custo, deixando

claro que a auto-organização não recebe a atenção que deveria, e que as evidências

de fragilidades são sumariamente descartadas:

“Ele sofre mudanças para se adequar ao mundo real daquelas empresas,

tentam fazer um de-para do jeito que o ágil trabalha para o jeito como a

organização trabalha, como o Mindset da organização é mais forte, acaba

fazendo as alterações no método, a parte da auto-organização é uma que

sofre bastante mudança, a questão de entrega contínua para acelerar

feedback é outra que sofre bastante mudança, se você introduz o método em

uma organização que é difícil coletar feedback, eles vão alterar o método para

não ter feedback tão rápido, porque dói na organização, essa rapidez de

feedback, a empresa, os processos são complexos, a cultura da empresa é

sempre mais forte que o processo, ao invés de consultar o cliente ao final de

cada time-box, vamos consultar o cliente a cada dois meses. Uma das

questões que é bem aceita, que tem um pacto rápido, é trabalhar com uma

lista de prioridades, as pessoas veem valor no backlog, quando há resistência

mais técnica que da gestão...” (MATEUS, 2017)

Mais uma vez João abusa do ferramental da PNL para explicar aquele que

seria na sua visão o maior empecilho para adoção de métodos ágeis, as crenças

limitantes associadas com problemas comportamentais, como se toda problemática

social, econômica e política se reduzisse a problemas de comunicação e

comportamentais, os problemas emocionais devem ser resolvidos por cada um, medo,

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insegurança, ansiedade, como se tais problemas não fossem suscitados pelo

ambiente de trabalho:

“Crenças limitantes, associadas ao status quo comportamental, assim

aprendi na universidade, assim trabalho a anos, assim é o mundo. CHA -

conhecimento, habilidade e atitude, conhecimento as pessoas adquirem,

crenças e valores são mais inconscientes, o conhecimento é consciente,

crenças e valores podem ser conscientes e inconscientes. Crenças e valores

conscientes vão influenciar a formação de crenças e valores inconscientes.

Anos de prática fazendo do mesmo jeito, comando e controle, ganhar um

salário no final do mês, pagar as contas. Isso faz com que as regras do jogo

mudem, e mexem com o estado emocional. Por mais que você dê

conhecimento e o cara tenha habilidade para entender, praticar e executar a

atitude não aparece, tem o CH, mas não tem atitude, o estado emocional tem

a ver com isso, medo, apreensão, ansiedade, insegurança, faz com que o

inconsciente diga “isso é perigoso, não vá para lá”. Só consegue investir mais

se consegue mexer nas crenças e valores que origina estes estados

emocionais. O jeito mais efetivo de mexer com crenças e valores é mexer

com a identidade da pessoa, ou mais acima, no propósito, que está além da

produtividade, da eficiência, da eficácia, pastores fazem isso. A linguagem é

hipnótica, para fazer com que as pessoas se convertam. Melhor é fisgar as

pessoas, você dá o argumento alimentando-as e deixe-as decidir você é livre

para ser feliz ou infeliz, para ganhar dinheiro ou não, para fazer ágil ou não.

As pessoas que fazem a mudança na empresa estão mais preparadas para

trabalhar com processos e ferramentas do que com pessoas, você não muda

cultura fazendo cerimônias, artefatos e desempenhando papéis. ” (JOÃO,

2017)

Pedro insiste na tentativa de melhorar a organização sem rever o conceito de

trabalho e valor, sem levar em consideração as motivações que estão na base do

capitalismo atual, é sempre uma questão de adaptação, permanecendo nas contradições

geradas pelo confronto entre capital e trabalho, as empresas têm suas especificidades,

mas não fogem das determinações impostas pelo capital sobre o trabalho, conviver com

os distúrbios gerados pelas mudanças, que diga-se de passagem tem sua origem mais

fora do que dentro da empresa, parece ser o cotidiano da maioria dos gestores que

sentem-se muito à vontade nesse contexto, e o utilizam a seu favor:

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“Se você já decidiu que quer ser ágil, você tomou a decisão do que quer ser

no futuro, independente do que a sua empresa precisa, a sua aposta é de

que se você for daquele jeito no futuro, tudo que a sua empresa precisa estará

resolvido, só que não é bem assim, como sua empresa vive em um contexto

muito específico e num cenário muito particular, ela tem necessidades muito

específicas de processo produtivo, se você aplicar o modelo do vamos deixar

de ser o que somos e vamos passar a ser outra coisa, a chance é de você

criar um distúrbio muito grande, porque o que você está pensando é que a

empresa tem muitos problemas e você quer ser ágil por isso, mas você não

está adequando, olhando o que empresa tem de bom, as coisas que

funcionam bem, que você está deixando de lado para ser ágil, e você não

está olhando quais são as coisas ruins do ágil que podem ser nocivas para o

contexto que a sua empresa vive. O empecilho é qualquer coisa que se

interponha no caminho, você pode culpar a cultura da empresa, a hierarquia,

o chefe que não entende, você tenta criar um mapa cognitivo que não se

encaixa no seu terreno, você vai tentar fazer aderir jogando coisas boas e

ruins fora, nem sempre a transformação ágil é a melhor para o seu contexto.

Agora se o objetivo final é ter um ambiente melhor, mais produtivo, mais

motivado, O empecilho pode ser o fato de não querer lidar com as questões

que você precisa lidar. Você tem que olhar com análise crítica para o ambiente,

descobrir os problemas, resolver um a um, e aos poucos ir na direção que

você quer. O que você quer tem que ser uma visão de baixa resolução, um

ideal que você persegue, senão você amarra o caminho todo. ” (PEDRO,

2017)

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Considerações Finais

A presente pesquisa nasceu de uma inquietação em compreender as

contradições e conflitos que emergem da tentativa de estabelecimento de um novo

processo de trabalho, que por intermédio de suas práticas e valores preconizam

mudança cultural e organizacional radicais na empresa, caracterizado por uma

abordagem mais democrática, ritmos de trabalho sustentáveis, por exercício de

liberdade e autonomia, não obstante, encontra resistências em um ambiente

corporativo no qual vigora uma gestão gerencialista que de forma prescritiva busca,

por níveis cada vez maiores de eficiência e eficácia assentadas em uma racionalidade

neoliberal, promover uma intensificação do trabalho sem precedentes.

Tal embate, entre propostas de trabalho aparentemente dispares, se dá em

um território comum, qual seja, o da sociedade informacional e de controle, o confronto,

em movimento continuo de assimilações, adaptações e rejeições, favorece a

produção de subjetividades requeridas pelo atual contexto histórico neoliberal. A

pesquisa procurou elucidar também como as mediações operam em conjunto com a

ideia de adaptação dos métodos ágeis, para minimizar conflitos, privilegiar interesses

organizacionais que nos permite entrever as razões pelas quais um movimento que

na sua origem preconiza uma humanização do processo de trabalho, transfigura suas

práticas e valores em dispositivos de intensificação do trabalho

Na visão dos autores utilizados para balizar teoricamente a pesquisa, a

nova configuração laboral permite estabelecer resistências aos mecanismos de

opressão, ou linhas de fuga, valorizando assim a potência inventiva, possibilitando

uma afirmação do desejo a partir da singularidade dos sujeitos, reconfigurando um

modo de trabalhar que conduza os indivíduos para além da ideologia gerencialistas e

dos ditames do capital. A pesquisa ousou traçar em linhas gerais como se dá a

construção de um novo modelo produtivo a partir da percepção de profissionais

designados como evangelizadores, responsáveis por anunciar as “boas novas”,

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entendidas por esses atores como a melhor forma de pensar e fazer software, atuando

a partir de comunidades que se articulam em torno de um novo paradigma conhecido

no mercado de tecnologia da informação como “processo ágil”, largamente

influenciado pelo espírito pós-fordista. Essa pesquisa indica uma abertura para

aprofundamento da compreensão dos mecanismos de controles e resistências a partir

da ótica dos evangelizados.

O argumento reflexivo que balizou a construção da pesquisa é o de que

atualmente a gestão gerencialista por meio de suas peculiaridades ideológicas, reitera

modos de viver e trabalhar. Para tanto foi necessário dissecar seu modus operandi e

entender como ocorre a incorporação de outros modos de trabalhar e subjetivar que

emergem no universo laboral.

Estabelecer um debate sobre a noção de sociedade de controle no contexto

neoliberal, implica, em diversos sentidos, uma análise do processo de trabalho no

intuito de entender a formação de laços sociais, permeados sempre por linhas de

modos de funcionamento do poder que operam em esfera microssociais e

macrossociais.

A análise das narrativas dos evangelizadores entrevistados à luz do

referencial teórico proposto parece revelar uma aporia no que diz respeito a uma

possível mudança da forma como a gestão é concebida atualmente. O diagnóstico

coloca em relevo indícios causados pela ideologia gerencialista: dificuldade de

encontrar sentido na atividade laboral, comunicação paradoxal, transformação do

humano em recurso, pressão por resultados sem limites.

A empresa como uma instituição social deveria primordialmente zelar pelo

laço social, considerando o humano não como um recurso como tantos outros

destinados a ampliar a rentabilidade, e cumprir tão somente uma finalidade econômica,

relegando o bem-estar coletivo e a vida psíquica a um plano de esquecimento da

dimensão humana, colocando em risco a própria existência social. A empresa pode

ser considerada um conjunto de processos que expressam um fato social total, com

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reflexões e implicações em diversas esferas da vida e da sociedade, sejam elas

econômicas, políticas, ideológicas ou afetivas, tecendo um pano de fundo comum a

partir do qual subjetividades serão concebidas. Atualmente a empresa ocupa uma

posição de centralidade e tornou-se locus privilegiado de reprodução da ideologia

neoliberal. A gestão nesse contexto distanciou-se de seu objetivo de conferir sentido

às atividades laborais, tornou-se prescritiva na sua essência, aderiu a toda espécie de

avaliação quantitativa, recusando-se a entender o indivíduo mais do que recurso ou

custo.

É possível entender pelas narrativas dos evangelizadores que o propósito

dos métodos ágeis na sua essência consiste em valorizar o humano e sua capacidade

de reflexão e deliberação, de pensar o mundo e se articular com outros para produzir

conhecimento, estabelecendo importantes vínculos de confiança, reafirmando a

iniciativa para além da medida de resultados. Entretanto a convergência e o confronto

entre a ideologia gerencialista e o movimento ágil asseveram as contradições já

existentes nas prescrições gerencialistas, somente amenizadas por mediações e

adaptações de diversas ordens sem as quais inviabilizaria a convivência pacifica entre

indivíduos, em tal grau necessária, para a promoção dos objetivos e interesses

corporativos.

A noção de gestão foi inflacionada se disseminou por todos os domínios da

sociedade e da vida, deita suas raízes na própria cultura forjando uma interpretação

do mundo, guiando as ações dos sujeitos a partir de uma escala axiológica própria. A

vida torna-se meta absoluta do capital, transmutando-se ela mesma em capital.

Estrutura ideológica que funciona como uma teia, promovendo uma espécie de

bricolagem com influencias diversas, descartando o que contradiz e denega sua

essência, e se apropriando daquilo que fortalece sua iniciativa, que responsabiliza,

intensifica o trabalho, reduz custos, amplia o controle. Realiza essa operação de forma

a dissimular a dominação, sem imposição, por intermédio de um consentimento.

Dispositivos técnicos e sofisticados são utilizados para realizar essa acomodação de

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visões dispares.

O paradigma da objetividade exclui tudo o que é subjetivo, os métodos

ágeis em muitos momentos salientam a importância do subjetivo, a saída é permitir

que as pessoas exponham a sua subjetividade, mas sem efetividades alguma, ou seja,

os instrumentos dotados da almejada objetividade se sobrepõem sobre as expressões

subjetivas. O paradigma do funcionalismo reforça o uso dos papéis sugeridos pelos

métodos ágeis, e qualquer ajuste ou adequação desses papéis pelas equipes ágeis

não será bem visto, o que leva uma estrutura rígida e burocrática a conviver com a

fluidez e a flexibilidade, matizando as iniciativas de autonomia e liberdade que

eventualmente surjam. O paradigma do utilitarismo, uma franca referência à utilidade

e otimização, transforma a empresa em uma máquina de produção. Os sujeitos

constroem uma experiência de si, sua subjetividade, a partir de um conjunto de noções

consideradas como verdade, em um dado momento histórico da sociedade onde vive,

a busca incessante por maior eficiência e eficácia do gerencialismo exacerba essas

noções.

Se a empresa é o lócus privilegiado para a realização de si mesmo, isso

somente é possível com a transformação da autonomia em autocontrole, a

disponibilidade e o engajamento total torna-se factível por intermédio das tecnologias

de informação e comunicação, dar conta de si mesmo passa a ser uma exigência

existencial, fixar objetivos, avaliar o desempenho e tornar seu tempo rentável. Se o

indivíduo mantém o foco em si mesmo, mal se dá conta do que acontece no âmbito

da empresa, maximizando os efeitos ideológicos do gerencialismo. Importante

salientar que apesar disso as práticas de gestão geram desconforto, desilusões e

resistências, em um primeiro momento quando os métodos ágeis são introduzidos nas

empresas, as pessoas encontram muito sentido na nova forma de trabalhar, mas aos

poucos o gerencialismo vai conduzindo uma adaptação de forma que a nova forma

de trabalho esteja restrita aos seus domínios ideológicos, os indivíduos percebem as

contradições, entretanto não conseguem se livrar do jugo da culpa e do mérito.

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Essa situação suscita vários dilemas que derivam de relações ambíguas,

paradoxos mediados por formas ideológicas, forçando os sujeitos a escolher pontos

de vista, tomar decisões quotidianamente, fonte de ansiedade constante e sofrimento,

porque toda a responsabilidade por essas escolhas cabe a ele, ponderando sobre

uma realidade da organização que se lhe impõe e sua própria subjetividade,

verdadeiras injunções paradoxais, tem que optar por trabalho em equipe ou

desempenho individual, ritmo sustentável ou velocidade crescente, autonomia ou

responsabilização total por resultados, tecer uma realidade compartilhada ou

estabelecer controle sobre todos, engajar-se ou vigiar. Pela própria narrativa dos

evangelizadores percebemos a nota de ambiguidade e do paradoxo, como foi

necessário flexibilizar o discurso para que a cultura da empresa, imersa no discurso

gerencialista pudesse aceitar a introdução dos métodos ágeis e também se adaptar

às injunções paradoxais.

Culturalmente podemos dizer que a mídia e os processos educacionais em

geral prescrevem maneiras de ser no trabalho que só reforçam situação, usando a

figura dos Gurus, a inteligência emocional, os achados da neurologia, o coaching, as

técnicas de aprendizado, o empreendedorismo, teorias e técnicas de gestão das mais

diversas, formam um caldo cultural pavimentam o caminho do sucesso rápido, líquido

e certo. Verdadeiros balizadores dos jogos de verdade contemporâneos legitimam e

reproduzem novas formas de pensar, sentir, agir. Prescrições que invadem a

subjetividade dos indivíduos com vistas a torná-los aptos, adaptados e motivados para

ocuparem o seu espaço no mundo organizacional, responsabilizando-se e

rentabilizando-se cada vez mais como capital, enquanto a organização assume uma

posição de neutralidade.

O paradigma gestionário serve como orientação para um mundo que deve

ser sempre mais produtivo e rentável. Cada um se torna o empreendedor de sua

própria vida. A família se transforma em pequena empresa, encarregada de produzir

indivíduos autônomos, com bom desempenho e empregáveis. A educação se coloca

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a serviço da economia para satisfazer as necessidades do mercado de emprego.

A sensação de escassez de tempo, também reproduzida pela mídia, produz

uma sensação de dívida, a sensação de que não é possível resolver todas as

demandas, ajuda a construir uma percepção de futuro no qual o indivíduo se vê

engolfado numa armadilha que ele mesmo ajudou a construir, um sentimento de culpa

inelutável, por não ter dado tudo de si.

Uma abordagem que se configura como possibilidade de escapar das

engrenagens do paradoxo, seria proceder a uma meta-análise, sair do contexto no

qual pensamos o problema e não procurar a solução nos elementos que são a sua

causa, é necessário compreender em profundidade causas e efeitos, pensar fora do

âmbito da gestão como ela se configura. É preciso fornecer aos indivíduos meios de

conectar o que acontece nas relações de trabalho e sua subjetividade, não é possível

encontrar uma solução para um problema naquilo que o produz, parece-me o caminho

trilhado pelos evangelizadores quando insistem na ideia de adaptação.

Quando a atividade faz sentido para o sujeito se produz a verdadeira

adesão, e ele colocará todas as capacidades reflexivas e criativas em movimento, a

discussão coletiva, o confronto dos pontos de vista, promovidos pelos métodos ágeis,

permitem dar novamente sentido à ação, avaliar sua pertinência, regular o mundo

ameaçado pelo caos. Entretanto os sujeitos são colocados a todo momento diante de

um paradoxo que os devora, transmutação realizada pela máquina gerencialista, a

adesão em alguns momentos consentida em outros momentos imposta, transforma

os indivíduos em protagonistas de sua própria dominação, ficam confinados na

armadilha do próprio desejo de poder. Esse processo permite extrair a energia

psíquica transformada em força de trabalho a serviço da rentabilização. É preciso

avaliar constantemente a fim de melhorar continuamente, intensificar as atividades a

fim de que se faça cada vez mais rápido, combatendo o desperdício e reduzindo

custos de forma a se utilizar cada vez menos meios. Sob esse ponto de vista os

métodos ágeis são bem aceitos pelo poder gerencialista.

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A sucessão de crises recentes do capitalismo fragiliza a construção da

principal figura subjetiva sobre a qual se estabeleceu os mecanismos mais atuais de

exploração, o capital humano, o empreendedorismo de si, a gestão de si, não foi capaz

de articular como outrora, o mundo da produção e o universo subjetivo, as promessas

de emancipação não se cumpriram, embora sempre surjam formas libertárias de

trabalhar que são de alguma forma axiomatizadas, a exemplo dos métodos ágeis.

Todos os custos e riscos recaem sobre os indivíduos, em uma configuração política e

econômica neoliberal, tanto o Estado quanto a empresa se eximem de arcar tais riscos

e custos. A imposição da dívida como liame entre o sujeito e a sobrevivência, não

permite entrever outras possibilidades para além dos limites estabelecidos pelo capital,

que não consegue estabelecer um lastro real e concreto para as narrativas de

liberdade, autonomia, inovação e criatividade.

Deleuze sugeriu por inúmeras imagens a passagem da sociedade

disciplinar para a sociedade de controle, contudo uma figura sobressai por seu poder

imagético, a da estrada e sua presumível liberdade para transitar, desde que

permaneça na estrada e obedeça às sinalizações. Em uma sociedade ancorada na

inovação, as estradas proliferam, tornando indistinguíveis as fronteiras entre liberdade

e controle. O sujeito neoliberal percorre a estrada, ciente da responsabilidade que tem

sobre si e das regras que deve obedecer, um ser ambíguo, não se dá conta de que a

mesma matéria da qual são produzidas suas asas, também compõem seus grilhões.

Apesar de todo entusiasmo pela conquista de uma autonomia plena, nunca fomos tão

cativos.

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Anexos

A - Roteiro de perguntas para os evangelizadores e evangelizados

Identificação do Entrevistado

Nome

Idade

Formação

Função

Empresa

Tempo de trabalho na área de TI

Tempo de trabalho com métodos ágeis

Perguntas da Entrevista

1 - Como você aderiu ao processo ágil?

2 - Na sua opinião no que consiste o processo ágil?

3 - Na sua opinião há algo de novo nessa proposta?

4 - Na sua opinião o que mudou no processo desde quando chegou no Brasil?

5 - Na sua opinião qual o grau de aderência desse processo à realidade da empresa?

6 - Qual sua contribuição para o movimento ágil?

7 - Na sua opinião porque algumas empresas não conseguem manter a iniciativa ágil ao

longo do tempo?

8 - Na sua opinião o processo ágil aproxima o desenvolvimento de software de uma

abordagem artesanal?

9 - Na sua opinião qual o maior empecilho para utilização do processo?

10 - Na sua opinião qual o papel do agile coach nas empresas?

11 - Na sua opinião o que leva as pessoas a aderir ou rejeitar o processo?

12 - Qual a relação entre empreendedorismo, inovação e processos ágeis?

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13 - Na sua opinião qual o impacto dos ciclos curtos de trabalho ou time-box sobre as

pessoas?

14 - Na sua opinião qual o impacto do regime de visibilidade (gestão visual) proposto pelos

métodos ágeis sobre as pessoas?

15 - Na sua opinião qual o impacto da melhoria continua (inspeção, feedback, adaptação)

sobre as pessoas?

16 - Como você vê o modelo de liderança empregado nas empresas hoje e a ideia de

autogerenciamento?

17 - Que mudanças esse processo sofre quando implantados em grandes empresas?

18 - Na sua opinião existem restrições para a proposta de liberdade e autonomia ensejada

pelo processo?