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1 As Barcas de passagem no concelho de Constância, no século XIX (1836-1869): elementos para o seu estudo Tiago Manuel Rodrigues Cubeiro 1 [email protected] Resumo: Ao longo dos tempos, as barcas de passagem foram meios privilegiados de comunicação e transporte entre margens dos rios em Portugal, tendo existido em Constância três: a barca do rio Tejo; a barca do rio Zêzere; e o bote de passagem para a estação do caminho de ferro da Praia do Ribatejo. Neste trabalho, queremos especificar o que foram estas barcas, qual o seu papel e a sua importância no concelho de Constância, entre os anos de 1836 e 1869. Palavras-chave: Barcas de passagem; rios Tejo e Zêzere; Bote de passagem; Barqueiro; Constância; Século XIX. 1 Mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

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1

As Barcas de passagem no concelho de Constância, no século XIX (1836-1869):

elementos para o seu estudo

Tiago Manuel Rodrigues Cubeiro1

[email protected]

Resumo:

Ao longo dos tempos, as barcas de passagem foram meios privilegiados de

comunicação e transporte entre margens dos rios em Portugal, tendo existido em

Constância três: a barca do rio Tejo; a barca do rio Zêzere; e o bote de passagem para a

estação do caminho de ferro da Praia do Ribatejo. Neste trabalho, queremos especificar

o que foram estas barcas, qual o seu papel e a sua importância no concelho de

Constância, entre os anos de 1836 e 1869.

Palavras-chave: Barcas de passagem; rios Tejo e Zêzere; Bote de passagem; Barqueiro;

Constância; Século XIX.

1 Mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

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Índice

1. Introdução ..................................................................................................................... 3

2. As barcas de passagem em Constância, no século XIX ............................................... 5

2.1. A barca do rio Tejo ................................................................................................ 6

2.2. A barca do rio Zêzere ............................................................................................. 8

2.3. O bote de passagem para a estação do caminho de ferro da Praia ....................... 11

3. Conclusão ................................................................................................................... 14

4. Anexos ........................................................................................................................ 15

5. Fontes manuscritas ..................................................................................................... 22

6. Fontes iconográficas ................................................................................................... 23

7. Bibliografia ................................................................................................................. 24

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1. Introdução

O presente trabalho resulta de um projeto por nós apresentado, em conjunto com

a Câmara Municipal de Constância, ao Instituto Português do Desporto e Juventude,

intitulado “As Barcas de passagem dos rios Tejo e Zêzere no concelho de Constância

nos séculos XIX e XX”.

A escolha do tema obedeceu a vários critérios, destacando nós o facto de ser um

tema muito particular de Constância, um concelho que deve muito aos seus rios e ao seu

povo que neles trabalhou. Ao longo de séculos, barqueiros, calafates, marítimos e

pescadores tiravam dos rios o seu sustento e o das suas famílias.

Na Idade Média, as viagens tornaram-se mais frequentes. Viajava todo o tipo de

gente, principalmente os reis, os comerciantes, os exércitos, os diplomatas e os

peregrinos. Viajava-se, sobretudo, por necessidade. E, para viajar, eram necessárias vias

de comunicação. Havia estradas, ainda que poucas, de origem romana e medieval, e

essencialmente intransitáveis. Desta forma, as barcas de passagem tornaram-se numa

alternativa para atravessar os rios, na inexistência de pontes móveis para esse efeito.

O concelho de Constância é constituído por duas partes separadas pelo Tejo e só

em meados do século XIX é que uma ponte ferroviária permitiu essa ligação, em 18612.

O problema foi parcialmente resolvido, mas não totalmente, porque o problema das

passagens de animais e mercadorias persistiu, tendo aqui as barcas um papel essencial

como meio de comunicação entre as margens.

O nosso trabalho vai dividir-se em três partes, cada uma referente a uma barca: à

barca do rio Tejo, à barca do rio Zêzere e ao bote de passagem para a estação do

caminho de ferro da Praia do Ribatejo. Será nosso propósito descrevê-las, saber quem as

arrematou, as condições impostas ao seu arrematante e as taxas ou direitos de passagem

pagos em cada uma, tendo como fontes principais os autos de arrematação e os livros de

atas da Câmara Municipal de Constância.

Não queremos terminar sem justamente agradecer à Câmara Municipal de

Constância, particularmente à Dr.ª Anabela Cardoso e ao Dr. Rui Duarte o nosso

2 A segunda e atual ponte (inicialmente ferroviária) sobre o Tejo data de 1889.

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acolhimento, a total disponibilidade, o incentivo e o acompanhamento demonstrados no

decorrer do nosso trabalho.

Uma palavra de apreço extensiva ao Dr. António Matias Coelho pela leitura

crítica deste texto. Bem hajam!

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2. As barcas de passagem em Constância, no século XIX

Em Portugal, as primeiras referências a barcas de passagem remontam à Idade

Média3. Com o decorrer dos tempos, tornaram-se mais conhecidas as barcas de serviço

público de passagem, como ligação fluvial nos principais rios, do Minho até ao Algarve.

O seu principal objetivo era assegurar o transporte de pessoas, animais e/ou

mercadorias, num tempo de inexistência de vias alternativas. Luís Silva divide-as em

duas tipologias, as que eram propriedade dos municípios e as que eram propriedade de

particulares: as primeiras podiam ser, ou arrematadas em hasta pública para serem

exploradas durante um determinado período de tempo (tipologia em que se incluem as

de Constância); ou exploradas pelo município e entregues a um barqueiro, a expensas

do próprio município4.

No caso de Constância, no século XIX, datam de 1836 os primeiros autos de

arrematação que encontrámos referentes às duas barcas de passagem públicas, nos rios

Zêzere e Tejo5. Como as barcas de passagem eram propriedade do município (como as

carnes verdes do açougue e as contribuições indiretas de alguns géneros, por exemplo),

a Câmara Municipal procedia à sua arrematação em hasta pública para serem exploradas

por um particular. A arrematação e a fixação da data para a realizar eram deliberadas em

reunião camarária e a sua divulgação efetuada por meio de editais afixados nos “lugares

públicos do estilo”. O dia da arrematação era, normalmente, o domingo, no edifício dos

Paços do Concelho. Nesse dia, reunida a Câmara, era solicitado ao oficial de porteiro ou

de justiça que fizesse apregoar na praça pública a dita arrematação, bem como as

condições a que estava sujeita e aceitasse todos os lanços oferecidos.

No auto de arrematação, elaborado pelo escrivão e confirmado por duas

testemunhas, eram descritas as condições impostas ao futuro barqueiro e este, jurando

por sua pessoa e honra, aceitava os termos constantes e indicava um fiador como

garantia do contrato, numa eventual falta de pagamento. No final, procedia-se à

3 No caso de Constância (ainda chamada Punhete, até 1836), as referências mais antigas à existência de

barcas datam de 1411, quando D. João I doou metade da renda da barca a Diogo Fernandes. BRAGA,

Paulo Drumond, “Barcas de passagem em Portugal durante a Idade Média. Elementos para o seu estudo”,

Arquivos do Centro Cultural Português. Lisboa-Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, volume

XXXII, p. 379. 4 SILVA, Luís – As barcas de passagem e o tráfego do Guadiana: apontamentos etnohistóricos, p. 128,

publicado online em

http://www.academia.edu/7372518/As_barcas_de_passagem_e_o_tr%C3%A1fego_do_Guadiana_aponta

mentos_etnohist%C3%B3ricos_ERA_7_2006_. 5 Arquivo Municipal de Constância (doravante: AMCTC), [Autos de Arrematação 1835-1849], fl. 7.

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assinatura do mesmo, pelo presidente da Câmara e vereadores presentes, pelo

arrematante, o fiador, as testemunhas e o escrivão6.

2.1. A barca do rio Tejo

Esta barca fazia a ligação entre o Porto da Cova e Constância Sul e era a

segunda mais lucrativa para o município, a seguir à do Zêzere.

Tabela n.º 1

Arrematantes, fiadores e valor das arrematações da barca de passagem do rio Tejo,

em réis (1836-1866)

ANO ARREMATANTE FIADOR VALOR

1836 António do Sacramento Guilherme Ferreira Dias 62 800

18377 António do Sacramento Guilherme Ferreira Dias 161 000

1838 António do Sacramento Guilherme Ferreira Dias 20 000

1839 José de Moura Jerónimo Francisco 20 000

1840 Luís António da Silva Manuel Vicente Noronha 6 200

1844 Luís António da Silva Manuel dos Mártires 60 000

1845 Joaquim de Campos Viegas Manuel dos Mártires 26 000

1846 José dos Mártires Sertã Manuel Vicente Noronha 50 000

1847 Francisco Felipe João Patrício 57 900

1848 Francisco Felipe João Patrício 50 400

1849 Francisco Felipe João Subtil de Azevedo 49 000

1850 João António da Costa Bexiga José Vicente Dias 101 000

1852 João António da Costa Bexiga Manuel Lopes de Freitas 100 000

1853 João António da Costa Bexiga Manuel Lopes de Freitas

1859 Francisco Felipe Não prestou 48 000

1860 Francisco Felipe José Correia Pinto de Morais 80 400

1861 António Sacramento Manuel Ferreira Sacramento 80 000

1862 Manuel Francisco Filipe José Correia Pinto de Morais 80 000

1863 Manuel Francisco Filipe José Correia Pinto de Morais 60 000

1864 José Balbino João Guilherme 122 000

1865 Manuel Francisco Filipe António Máximo da Silva

Mendes 250 100

1866 Manuel Francisco Filipe António Máximo da Silva

Mendes 180 100

Fonte: AMCTC, [Autos de Arrematação 1835-1849] e Livros de Atas da Câmara

Municipal de Constância (1850-1866)

6 Ver em anexo o auto de arrematação da barca de passagem do rio Tejo e respetiva transcrição, neste

trabalho. 7 O valor da arrematação deste ano compreende as barcas dos rios Zêzere e Tejo.

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As condições impostas para a exploração desta barca, durante um ano, eram as

seguintes:

isenção do pagamento pela passagem na barca aos habitantes do concelho,

assim como seus criados, familiares, cavalgaduras e objetos que lhes

pertencessem, até 1864;

pagamento da renda, em metal sonante, em quatro quartéis saldados no final

dos meses de março, junho, setembro e dezembro;

bom serviço ao público com prontidão e segurança, com barca e botes bem

construídos;

início do serviço logo ao amanhecer e terminado depois do toque da retreta,

ou seja, no fim do dia;

o incumprimento de algum ou alguns pagamentos obrigava o rendeiro a

pagar mais 20% da importância do quartel ou quartéis em falta.

Como dissemos anteriormente, durante dois anos os habitantes do concelho

pagaram pela passagem na barca os direitos de passagem como mostra a tabela

seguinte8.

Tabela n.º 2

Direitos de passagem pela exploração da barca do rio Tejo, em réis (1864-1866)

VERÃO (1 de abril a 30

de setembro)

INVERNO (1 de outubro a

31 de março)

Pessoa (a pé) 5 10

Pessoa (a cavalo) 10 20

Cavalgadura maior (à mão) 10 20

Cavalgadura maior (carregada) 15 30

Cavalgadura menor (à mão) 5 10

Cavalgadura menor (carregada) 10 20

Boi (cada um) 20 40

Junta de bois (sem carro) 40 80

Junta de bois (com carro) 60 120

Gado lanígero e de cabelo (por cabeça) 2,5 5

Gado suíno (cada um) 20 60

Fonte: AMCTC, Livros de Atas da Câmara Municipal de Constância (1864-1866)

8 Em 1866, as autoridades e empregados públicos em serviço foram isentos deste pagamento. AMCTC,

[Livro de] Actas da Câmara Municipal de Constância (13-9-1865 a 4-5-1871), fl. 34.

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Os valores apresentados dizem apenas respeito aos habitantes do concelho que

pagaram pela passagem na barca entre 1864 e 1866. No entanto, aos não residentes era-

lhes cobrado o dobro deste preçário e é de sublinhar ainda o facto, na passagem do

verão para o inverno, os preços sofrerem um duplo aumento, devido sobretudo à subida

do caudal do rio na estação invernal que tornava as viagens mais instáveis e inseguras.

Deve referir-se ainda que o barqueiro só podia transportar, de cada vez, 30 pessoas no

verão e 20 no inverno.

2.2. A barca do rio Zêzere

Para atravessar o rio Zêzere, foi estabelecida uma barca de passagem entre o

Porto do Canto da Milharada, desta vila, e o concelho vizinho de Vila Nova da

Barquinha9.

Tabela n.º 3

Arrematantes, fiadores e valor das arrematações da barca de passagem do rio Zêzere,

em réis (1836-1852)

ANO ARREMATANTE FIADOR VALOR

1836 António do Sacramento Guilherme Ferreira Dias 320 000

183710

António do Sacramento Guilherme Ferreira Dias 161 000

1838 António do Sacramento Guilherme Ferreira Dias 60 000

1839 Joaquim de Campos Viegas António do Sacramento 201 000

1840 Joaquim de Campos Viegas Manuel de Campos Viegas 220 000

1842 Joaquim de Campos Viegas Manuel de Campos Viegas 130 000

1843 António Delgado Boga Joaquim de Campos Viegas 135 000

1844 Joaquim de Campos Viegas Manuel dos Mártires 201 000

1845 Joaquim de Campos Viegas Manuel dos Mártires 300 000

1846 Joaquim de Campos Viegas Manuel dos Mártires 310 000

1847 Joaquim de Campos Viegas Manuel dos Mártires 161 000

1848 Joaquim de Campos Viegas Manuel Felicíssimo 201 000

1849 Joaquim de Campos Viegas Manuel Felicíssimo 225 000

1850 João António da Costa Bexiga José Vicente Dias 300 000

1852 João António da Costa Bexiga Manuel Lopes de Freitas 172 500

Fonte: AMCTC, [Autos de Arrematação 1835-1849] e Livros de Atas da Câmara

Municipal de Constância (1850-1866)

9 Sobre esta barca, leia-se COELHO, António Matias – “Os Cem Anos da Ponte do Zêzere”, Boletim

Informativo da Câmara Municipal de Constância. [Constância]: Câmara Municipal de Constância, n.º 17,

setembro/outubro, 1992, pp. 9-12. 10

Ver nota n.º 7.

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Com a duração de um ano, a exploração da barca do rio Zêzere impunha o

cumprimento das seguintes condições:

isenção do pagamento pela passagem na barca aos habitantes do concelho,

assim como seus criados, familiares, cavalgaduras e objetos que lhes

pertencessem;

cobrança da passagem aos habitantes do concelho de Vila Nova da

Barquinha (isentos a partir de 1838, por um convénio feito entre os dois

municípios);

pagamento, em metal sonante, da renda em quatro quartéis saldados em

março, junho, setembro e dezembro;

prestação de bom serviço ao público com brevidade e segurança, tendo para

isso barca e botes bem construídos;

o serviço principiava logo ao amanhecer e terminava nunca antes do toque

da retreta e, nos dias de correio, “só depois deste ter passado” e esperando

sempre no porto do sul.

A partir da década de 1840, encontrámos ainda mais condições:

a cobrança não praticada ou indevida por parte do rendeiro originava o

pagamento de uma multa de seis mil réis para as despesas do município;

preservação da tabuleta das taxas de passagem e, caso por culpa do

arrematante, este pagaria a respetiva despesa;

valor da arrematação era repartido entre os dois municípios e, na falta de

algum ou alguns pagamentos, o rendeiro pagaria mais 20% da importância

do quartel ou quartéis em dívida.

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Tabela n.º 4

Taxas de passagem pela exploração da barca do rio Zêzere, em réis (1842-1849)

TEMPO

DE

VERÃO

ÁGUA

EM

BAIXO

MAR

(e até

chegar ao

marco n.º

1)

ÁGUA

CUBRA O

MARCO

N.º 1

ÁGUA

CHEGUE

AO

MARCO

N.º 2

ÁGUA

CHEGUE

AO

MARCO

N.º 3

ÁGUA

EXCEDA

MUITO O

MARCO

N.º 3

Cada pessoa (a

pé) 10

15

20 30

40

60

Cada pessoa (a

cavalo) 20 30 40 50 60 200

Cada

cavalgadura

maior

20 30 40 50 60 200

Cada

cavalgadura

menor

15 20 30 40 50 160

Cada boi 20 30 40 50 60

Cada junta de

bois 40 60 80 100 120 240

Cada junta de

bois (com carro) 60 80 120 140 160 300

Cada sege com

parelha 60 80 120 140 160 300

Gado miúdo em

geral (por

cabeça)

1 2,5 5 5 10 20

Fonte: AMCTC, [Autos de Arrematação 1835-1849]

Conclui-se que uma pessoa pagava menos pela passagem do que um animal e, à

medida que as águas do rio iam subindo, isso refletia-se no preço a pagar pela passagem,

chegando mesmo a ultrapassar o dobro para a passagem de alguns animais.

Nos finais da primeira metade do século XIX o rendimento desta barca, até aqui

pertença dos municípios de Constância e Vila Nova da Barquinha, passou para a alçada do

Estado, ficando os primeiros sem um produto das receitas ordinárias importante numa época

de crise económica. A Câmara de Constância protestou e reclamou por essa situação,

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argumentando que esse rendimento lhe pertencia e que o decreto de 6 de junho de 1864

dava razão às reivindicações dos dois municípios. Em reunião camarária de 16 de maio

de 1866, o presidente da Câmara João Freire Themudo d’Oliveira tornava pública a

representação enviada ao rei D. Luís onde invocava o artigo 1.º da carta de lei de 29 de

maio de 1843 que dizia que “as barcas de passagem sobre os Rios que cortão as estradas

do Concelho, e que não forem comprehendidas no systema geral de communicações

internas, a cargo da inspecção das obras publicas, ficão pertencendo às Municipalidades

dentro de cujos limites se acharem estabelecidas; e o producto da arrematação destas

barcas deve ser dividido em partes iguaes pelos mesmos Concelhos”11

, situação em que

o município de Constância considerava estar abrangido. Sem sucesso. A 1 de agosto

desse mesmo ano, um ofício do Governo Civil expunha que, por portaria do Ministério

do Reino, “fôra communicado, que o rendimento da barca de passagem sobre o rio

Zezere não póde ser restituido a esta Camara e à da Barquinha, emquanto não fôr

modificado o Orçamento geral do Estado na parte que considera aquelle rendimento

como receita do Thezouro”12

. Um ano depois, a 27 de fevereiro de 1867, nova

representação da Câmara, desta vez para a Câmara dos Senhores Deputados solicitava,

uma vez mais, a concessão do rendimento da barca aos dois municípios13

.

A Câmara não baixou os braços e continuou com a sua reivindicação até que a

carta de lei de 14 de maio de 1872 lhe dava razão, ao voltar a conceder aos dois

municípios o rendimento da referida barca.

2.3. O bote de passagem para a estação do caminho de ferro da Praia

A abertura da linha de caminho de ferro do Leste, na década de sessenta, fez

criar uma ligação entre a vila e a estação ferroviária da Praia do Ribatejo, a partir de

186414

.

11

AMCTC, [Livro de] Actas da Câmara Municipal de Constância (13-9-1865 a 4-5-1871), fl. 34v. 12

AMCTC, ibidem, fl. 59v. 13

AMCTC, ibidem, fl. 76v. 14

AMCTC, [Livro de] Actas da Câmara Municipal de Constância (1862 a 1865), fl. 56.

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Tabela n.º 5

Arrematantes, fiadores e valor das arrematações do bote de passagem para a estação

da Praia (1864-1869)

ANO ARREMATANTE FIADOR VALOR

1864 António do Sacramento Sénior Joaquim António Ferreira 7 000 réis

1865 Joaquim António Ferreira Francisco Maria Dias 14 500 réis

1866 António do Sacramento Júnior Joaquim António Ferreira 14 500 réis

1867 António do Sacramento Júnior Joaquim António Ferreira 13 500 réis

1868 António do Sacramento Júnior Joaquim António Ferreira 16 050 réis

1869 António do Sacramento Júnior Joaquim António Ferreira 13 000 réis

Fonte: AMCTC, Livros de Atas da Câmara Municipal de Constância (1864-1869)

Ao rendeiro eram impostas as seguintes condições, a saber:

pagamento da renda, de três em três meses, em metal sonante;

bom tratamento do público e servi-lo com prontidão e segurança, para o que

teria um bote bem construído e seguro;

cumprimento do transporte de passageiros para os comboios de dia e de

noite, saindo do porto de Constância 40 minutos antes da hora marcada de

saída do comboio da estação da Praia e regressando do porto junto da ponte

20 minutos depois da chegada do comboio à estação;

cobrança das taxas de passagem constantes na tabela da Câmara e aprovada

pelo Conselho de Distrito, conforme enunciado na tabela seguinte.

Tabela n.º 6

Taxas de passagem pela utilização do bote para a estação da Praia, em réis (1864-

1869)

VERÃO (1 de abril a 30 de

setembro)

INVERNO (1 de outubro a 31 de

março)

DIA NOITE DIA NOITE

Cada passageiro 20 40 40 80

Bagagens ou mercadorias (até 15 kg) gratuito

Bagagens ou mercadorias (+ 15 kg) 5 por cada kg

Fonte: AMCTC, Livros de Atas da Câmara Municipal de Constância (1864-1869)

As taxas de passagem duplicavam do verão para o inverno pelos motivos já

invocados e o transporte de bagagens ou mercadorias era gratuito até ao peso de 15

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quilos, ultrapassados os quais era cobrada por cada quilo a mais uma taxa de 5 réis ao

passageiro.

Figura 1: Os barcos no rio Zêzere, século XX (PT/AMCTC/CTCAPB/C-

001/0001/00036).

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3. Conclusão

Conforme verificado, as três barcas de passagem existentes em Constância eram

diferentes e iguais entre si. Eram iguais no objetivo comum e diferiam umas das outras

na travessia que faziam e também no tamanho: a barca do Tejo seria maior do que a do

Zêzere e esta maior do que o bote do Zêzere.

É notório que, na análise feita aos nomes dos arrematantes, alguns se repitam

frequentemente, concluindo que a profissão de barqueiro ocupava pelo menos cerca de

uma dezena de homens da vila de Constância. Quanto às condições, é comum a todas o

pagamento da renda em quatro mensalidades e a exigência do bom tratamento no

serviço ao público. O barqueiro era obrigado a cobrar aos passageiros só o que estava

estipulado na tabela da Câmara. Contudo, nas barcas do Tejo e do Zêzere, estava

proibido de cobrar aos habitantes deste concelho e aos de Vila Nova da Barquinha (no

caso da do Zêzere). Também eram distintas nas taxas ou direitos de passagem,

porquanto as pessoas pagavam menos do que os animais e, na mudança de estação, os

preços também aumentavam, pelos motivos já invocados neste trabalho.

O bote de passagem para o caminho de ferro foi criado mais tarde, em 1864, no

seguimento da abertura da linha do Leste. Era uma travessia que fazia a ligação entre a

vila e a estação da Praia do Ribatejo e a única que efetuava ligações à noite – ligações

em que a taxa sofria um aumento de preço do dia para a noite e um aumento de preço do

verão para o inverno.

A barca mais lucrativa era a do rio Zêzere, seguindo-se a do rio Tejo e, por fim,

o bote de passagem. Porquê? Uma das razões explicativas passaria pelo carácter da

deslocabilidade, ou seja, o movimento seria mais intenso e constante na barca do rio

Zêzere do que nas outras duas.

Com o incremento do fontismo na rede viária e ferroviária e a consequente

construção de pontes nos locais onde havia barcas, estas foram tendo um papel cada vez

mais secundário, mas ainda hoje algumas subsistem. Atualmente, em Constância, a

barca do rio Tejo é a única que persiste. A Câmara é proprietária da barca, para quem

reverte a receita (e o prejuízo, é claro) e o barqueiro recebe um pagamento pelo seu

trabalho em fazer as ligações entre a vila e Constância Sul. E não muito longe dela, na

toponímia local, lá está a “rua da Barca”, para memória de todos.

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4. Anexos

ANEXO N.º 1 – AUTO DE

ARREMATAÇÃO DA BARCA DE

PASSAGEM DO RIO TEJO, PELO

TEMPO DE 1 DE JULHO DE 1865 A 30

DE JUNHO DE 1866

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Fonte: [Livro de] Actas da Câmara Municipal de Constância (1862 a 1865), fls. 87v.-

88v.

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ANEXO N.º 2 – TRANSCRIÇÃO DO

AUTO DE ARREMATAÇÃO DA

BARCA DE PASSAGEM DO RIO TEJO,

PELO TEMPO DE 1 DE JULHO DE 1865

A 30 DE JUNHO DE 1866

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“No anno do Nascimento de Nosso Senhor Jezus Christo de mil oitocentos e sessenta e

cinco n’esta Notavel Villa de Constancia e Pacos do Concelho, aos vinte e cinco dias do

mez de Junho, onde estavão presentes o Presidente Jacintho Maria Pereira Menezes

Durão e os Vereadores, Feleciano da Costa, Jacintho de Souza d’Oliveira Falcão,

Jacintho da Costa de Oliveira Falcão, faltando com justa cauza o Vereador Jacintho

d’Oliveira Falcão, mais presentes estavão o Illmo

Administrador do Concelho a fim de se

proceder à arrematação da Barca de passagem do Rio Tejo pelo tempo que decorre do

dia primeiro de Julho proximo ate ao dia trinta de Junho do anno de mil oitocentos e

sessenta e seis, sobre as condições de que o arrematante será obrigado a tratar bem o

publico e servilo com promptidão e segurança sugeitando-se às Posturas numeros

quarenta e dois, quarenta e tres, quarenta e quatro, não passando no bote de cada vez no

tempo de verão mais do que trinta pessoas, e de inverno vinte, que levarão no tempo de

verão por cada pessoa a pé cinco reis, a cavallo dez reis, por cada cavalgadura a pe, digo

cavalgadura maior indo à mão dez reis, carregada quinze reis, menores à mão cinco reis,

carregadas dez reis, por cada boi vinte reis, por cada Junta de bois sem carro quarenta

reis, e com carro sessenta reis. Gado lanigero e de cabello dois e meio reis, e suino vinte

reis; e no tempo d’inverno, pessoa a pé dez reis, a cavallo vinte reis, cavalgaduras à mão

vinte reis e carregadas trinta reis, menores à mão dez reis, e carregadas vinte reis, por

cada boi quarenta reis, por cada Junta de Bois sem carro oitenta reis, e um carro cento e

vinte reis gado lanigero e de cabello cinco reis por cabeça, e suino sessenta reis aos

habitantes do Concelho; e para os que não são habitantes do Concelho o dobro;

contando-se o verão d’esde o primeiro d’Abril até trinta de Setembro; e o inverno

d’esde o primeiro d’Outubro ate trinta e um de Março; o que se havia feito constar a

todos por Editaes afixados nos logares publicos e do estylo: logo ahi mandou a Camara

ao official de Deligencias digo, official Porteiro Jose Antonio Gonçalves Mendes

abrisse a Praça sobre tal arrematação e asseitasse todos os lanços que lhe dessem, sendo

de todos o maior que offerecerão: Manoel Francisco Felipe, a quantia de duzentos e

cincoenta mil e cem reis; e depois de todos os mais lançadores dizerem que nada mais

querião lançar; mandou a Camara entregar o ramo, ao dito Manoel Francisco Felipe; e

aceito por elle que estava presente disse que elle por sua pessoa e bens se obrigava à

plena satisfação d’este contracto o que forão testemunhas presentes Joaquim Antonio

Ferreira, e Jose Joaquim d’Araujo, ambos d’esta Villa e de mim conhecidos, Escrivão

da Camara, de que dou fé e que aqui assignarão com a Camara, arrematante, fiador e

principal Antonio Maximo da Silva Mendes, digo, principal pagador Antonio Maximo

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da Silva Mendes, e o official de Porteiro. E eu Francisco da Silva Mendes, Escrivão

interino d’esta Camara o escrevi e assignei.”

Meneses Durão

Costa

Costa

Falcão

Administrador do Concelho

Manoel Francisco Felipe (de cruz)

Antonio Maximo da Silva Mendes

Joze Joaquim d’Araujo

Joaquim Antonio Ferreira

José Antonio Gonsalves Mendes

Francisco da Silva Mendes

Fonte: [Livro de] Actas da Câmara Municipal de Constância (1862 a 1865), fls. 87v.-

88v.

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5. Fontes manuscritas

Arquivo Municipal de Constância (AMCTC)

FUNDO: Câmara Municipal de Constância

Órgãos do Município

Câmara Municipal

Livro de Actas das sessões da Câmara Municipal de Constância (18-7-1846 a 27-03-

1852).

Livro das actas das sessões da Câmara (1852 a 1856).

Livro de actas da Câmara Municipal de Constância (de 9-9-1856 a 6-2-1862).

[Livro de] Actas da Câmara Municipal de Constância (1862 a 1865).

[Livro de] Actas da Câmara Municipal de Constância (13-9-1865 a 4-5-1871).

Património

Autos de Arrematação

[Autos de Arrematação 1835-1849].

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6. Fontes iconográficas

Arquivo Municipal de Constância (AMCTC)

FUNDO: Constância Antiga a Preto e Branco

Imagens da Vila e do Concelho

Os barcos no rio Zêzere, século XX. Código de referência: PT/AMCTC/CTCAPB/C-

001/0001/00036, disponível em http://arquivo.cm-constancia.pt/viewer?id=982115

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7. Bibliografia

BRAGA, Paulo Drumond – “Barcas de passagem em Portugal durante a Idade Média.

Elementos para o seu estudo”, Arquivos do Centro Cultural Português. Lisboa-Paris:

Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, volume XXXII, pp. 373-388.

COELHO, António Matias – “Os Cem Anos da Ponte do Zêzere”, Boletim Informativo

da Câmara Municipal de Constância. [Constância]: Câmara Municipal de Constância,

n.º 17, setembro/outubro, 1992, pp. 9-12.

Índice Alfabético e Cronológico dos Assuntos Tratados nas Atas das Reuniões da

Câmara Municipal de Constância: 1820-1910 (da Revolução Liberal à Revolução

Republicana). [Constância]: Câmara Municipal de Constância, 2013, publicado online

em http://arquivo.cm-constancia.pt/Documents/Others/indice_atas.pdf.

MARQUES, José – “Viajar em Portugal, nos séculos XV e XVI”, Revista da Faculdade

de Letras. Porto: Universidade do Porto, volume XIV, II série, 1997, pp. 99-107.

SILVA, Luís – As barcas de passagem e o tráfego do Guadiana: apontamentos

etnohistóricos, pp. 126-133, publicado online em

http://www.academia.edu/7372518/As_barcas_de_passagem_e_o_tr%C3%A1fego_do_

Guadiana_apontamentos_etnohist%C3%B3ricos_ERA_7_2006_ (consultado nos dias

05/10/2015 e 06/10/2015, às 15h15 e 09h24 respetivamente).