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ARTIGOS SOBRE O EXRCITO

Marcelo Oliveira Lopes Serrano

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NDICE

TTULO....................................................................................................................................Pag

PENSAR ESTRATGIA.........................................................................................................03 PRECISAR IDIAS.................................................................................................................09 CULTIVAR TALENTOS........................................................................................................15 PILAR OU INSTRUMENTO?...............................................................................................20 REVER PRIORIDADE...........................................................................................................26 REFLETIR SOBRE VIRTUDES...........................................................................................32 MANTER A MENTE RESOLUTA........................................................................................39 PESQUISAR COM RELEVNCIA.......................................................................................50 PROFISSIONALIZAR O EXRCITO..................................................................................58 LEALDADE E DISCIPLINA.................................................................................................73 PADRES COMPARATIVOS PARA O DIMENSIONAMENTO DO EXRCITO.......79 CONFLITOS FUTUROS E A ORGANIZAO DO EXRCITO....................................87

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PENSAR ESTRATGIA 1Um jornal de grande circulao publicou recentemente, em uma de suas colunas, um acontecimento envolvendo Albert Einstein: em certa ocasio, o notvel cientista, no exerccio de suas atividades acadmicas, apresentou, sua secretria para que ela datilografasse, as questes de uma prova que aplicaria em seus alunos. A secretria, muito ciosa de seus deveres, indagou a Einstein se ele tinha certeza de que as questes eram aquelas mesmas, uma vez que ele j as tivera aplicado em uma prova alguns anos antes, e os alunos poderiam beneficiarse do prvio conhecimento das respostas. Einstein disse-lhe que no se preocupasse porque as questes eram as mesmas, mas as respostas j no o eram mais. Embora este caso refira-se aos avanos do conhecimento cientfico que tornaram obsoletas as respostas da prova anterior, ele bem ilustrativo do escopo de destacar, por meio deste trabalho, as caractersticas que devem animar todos os que, por dever ou pendor, dedicam-se ao pensamento estratgico. A estratgia o domnio das incertezas e das solues exclusivas. Neste sentido, ela difere grandemente da ttica e, at mesmo, da estratgia-operacional. Nestes nveis de atividade, h a possibilidade de estabelecer um slido corpo doutrinrio que sistematize todas as formas bsicas de atuao, pois todas as aes tticas e seus desdobramentos so restritas em nmero e perfeitamente conhecidas. Evidentemente, as peculiaridades de cada situao exigem adaptaes dessas formas bsicas, no entanto, a extensa gama de manuais especficos fornecem um terreno firme e um ambiente relativamente claro ao ttico, quer seja ele planejador ou executante. A ttica pode, por conseguinte, ser facilmente ensinada e apreendida em tempo relativamente curto, em que pese o valor do talento, da experincia e da cultura acumuladas. A estratgia porm muito mais fluida. Sua sistematizao doutrinria, apesar de vasta, insuficiente como ferramenta intelectual e de ao, uma vez que no atinge muito mais do que uma genrica conceituao e a classificao de suas aes em grandes linhas, em virtude mesmo de sua fluidez. Quem com ela1 Publicado no PADECEME, 3 Quadrimestre de 2002

4 trata, deve movimentar-se em ambiente nebuloso e terreno pouco firme, dado o seu carter cambiante e impossibilidade de, como na ttica, apreender e controlar todas suas variantes, de modo a padronizar formas bsicas de atuao que, com as devidas adaptaes, possam ser aplicadas s diversas situaes. O rol das aes estratgicas praticamente inextinguvel, da provindo as incertezas e a exclusividade de suas solues. Cada situao requer uma estratgia especfica, que no poder ser reproduzida em outra circunstncia, uma vez que as variantes dificilmente sero as mesmas. Quanto mais elevado for o nvel estratgico no qual se trabalha, mais verdadeiras tornam-se essas assertivas. Isso coloca o pensador estratgico diante de situaes inteiramente novas sempre que as circunstncias mudarem. O adequado trato de problemas estratgicos requer mentalidade e caractersticas intelectuais prprias, que facultem ao pensador estratgico decifrar convenientemente esta esfinge, a fim de que ela no o devore. Da anlise mais ampla dessas caractersticas, sintetizando-as, pode-se reduzi-las a dois aspectos fundamentais: a necessidade de dispor-se de ampla e profunda bagagem cultural orientada para a estratgia e o desapego a idias pr-concebidas. Estratgia no se aprende, embora as escolas possam fornecer uma boa base para o seu desenvolvimento. Na falta de um corpo doutrinrio, cuja apreenso fornea as ferramentas necessrias ao adequado equacionamento de problemas, cujas incontveis variantes na maior parte das vezes no podem ser previamente conhecidas, deve-se admitir que resta a possibilidade de alargar e aprofundar os horizontes culturais de modo a obter-se a capacidade de melhor analisar e compreender as injunes dessas variantes incgnitas quando elas se apresentarem, ou delas houver indcios. A capacidade de resoluo estratgica consiste portanto na persistente acumulao de conhecimentos, da qual o pensador extrair, ele prprio, as ferramentas para construir a soluo mais adequada ao problema. A complexidade dos problemas modernos obriga que essa continuada aquisio cultural propicie ao pensador conhecimentos polticos, diplomticos, econmico-financeiros, sociais, jurdicos, administrativos e histricos, dentre outros, que devero ser integrados em variadas combinaes, de acordo com as exigncias da questo apresentada. Essa abrangncia, aliada necessria profundidade em cada uma dessas reas do conhecimento, indica a insuficincia

5 do aprendizado obtido ao longo de cursos regulares, naturalmente limitados no tempo. A preparao para o pensamento estratgico deve, por conseguinte, iniciar-se o mais cedo possvel, sendo cultivada ao longo dos anos, de modo que, no que concerne ao Exrcito, o oficial, ao atingir os postos e as funes nas quais ter por encargo pensar estrategicamente, possua suficiente solidez de conhecimentos teis e necessrios. Por outro lado, dificilmente um indivduo conseguir aliar a abrangncia com a profundidade. A poca dos grandes estrategistas que, por si s, tudo abarcavam, compreendiam e elaboravam, parece estar definitivamente relegada ao passado. Os complexos problemas da atualidade recomendam que as questes estratgicas tenham tratamento multidisciplinar, sendo portanto necessrio o trabalho em equipe. Preparar e constituir, em permanncia, essa equipe deve ser uma preocupao do Exrcito, para que se consolide a possibilidade de que lhe sejam oferecidos melhores rumos a longo prazo, por meio da acurada e permanente anlise da conjuntura, a fim de identificar os fatores significantes, as principais tendncias cambiantes e aconselhar caminhos, alm de cooperar na conduo de questes correntes. Outro aspecto, to ou mais importante que o acmulo de conhecimentos, a disposio mental de aceitar o novo e suas conseqentes necessidades de transformao. Estratgia basicamente uma preparao para o futuro. O passado e a atualidade, devem servir como repositrios de lies e experincias teis para essa preparao e no como empecilho ou fator inibidor. Diante de uma mudana de circunstncias, faz-se imprescindvel o desapego a frmulas estabelecidas, uma vez que, se necessrio, elas devem ser abandonadas, por melhor que tenham respondido em outras situaes. A Histria, essa grande mestra, apresenta provas cabais de que a falta desse desapego constitui-se em largo caminho para o fracasso. Dois exemplos so bem significativos. A Igreja foi onipresente no mundo cristo ao longo de todo o perodo medieval. Com o esfacelamento do Imprio Romano, que adotara o cristianismo como religio do estado, a Igreja, herdando o conhecimento da estrutura administrativa do Imprio, ascendeu como a nica instituio organizada que abrangia toda a cristandade. Ela pde assim avocar a si a idia romana de um forte poder central regulador e controlador, mas adotando como base os princpios cristos. Dessa forma, a Igreja permeou toda a vida poltica, econmica e social durante a Idade Mdia. Com o passar do tempo, houve um afastamento do ideal

6 originrio e, dedicando-se cada vez mais a aspectos mundanos, a Igreja corrompeu-se nesse processo. O Renascimento, ao introduzir novos ares na vida cultural, e a disponibilidade de maiores informaes acessveis sociedade em virtude do advento da imprensa, possibilitaram maior dinamismo ao intercmbio de idias e um relativamente intenso florescimento educacional da sociedade. Isso veio a acarretar profunda insatisfao com a cupidez de grande parte do clero e com a orientao religiosa da Igreja. A estrutura eclesistica e suas prticas no mais se ajustavam aos novos padres scio-culturais, o que provocou crescente clamor por reformas. A cpula da Igreja no soube perceber a profunda mudana em andamento e permaneceu insensvel aos apelos de saneamento e de reorientao de suas prticas. O resultado foi sua traumtica e sangrenta ciso por meio da Reforma protestante. Mesmo com essa tremenda perda de substncia, a Igreja teve de, por fim, transformar-se, promovendo a Contra-Reforma a fim de conter o avano protestante. Em outro exemplo marcante, a Frana, vitoriosa na I Guerra Mundial, passou a creditar a sua segurana futura s mesmas formas de atuao que haviam lhe dado a vitria. Desse modo, acorrentou-se a uma estratgia defensiva baseada na mentalidade da guerra de trincheiras, a qual caracterizava-se pela quase imobilidade das frentes, pela lentido das operaes e pelas desgastantes e violentas aes frontais. Construiu ao longo de toda a sua fronteira com a Alemanha um gigantesco e extremamente oneroso complexo de fortificaes, que, longe de economizar meios, absorviam e imobilizavam inmeras divises do exrcito francs a malfadada Linha Maginot. A esclerosada crena defensiva vigente, o elevado dispndio de recursos e o fato, por fim, consumado de a Linha existir, funcionaram como antolhos, que restringiram o campo de viso do governo e da cpula das foras armadas francesas, tornando-os incapazes de reconhecer a influncia que a mecanizao poderia acarretar s operaes militares, e levando-os a menosprezar os trabalhos de alguns estrategistas que apontavam o efeito sinergtico do emprego de massas blindadas e da aviao como forma de devolver mobilidade s operaes. A humilhante derrota francesa em 1940 foi o resultado da obstinao dos responsveis pela segurana do Pas de prepararemse, no para a guerra que estava por vir, mas, sim, para aquela da qual tinham acabado de sair. No fosse pela rebeldia do general De Gaulle, que recusou-se a aceitar a rendio e a obedecer ao governo fantoche de Vichy e que organizou e

7 liderou, a partir de Londres, a resistncia e a luta das foras da Frana Livre, seu pas no teria emergido da guerra ao lado das potncias vencedoras, nem teria se credenciado a ocupar o lugar de membro permanente no Conselho de Segurana da recm-criada Organizao das Naes Unidas. De Gaulle, no entanto, no perodo entre-guerras, alertou e clamou em vo pela necessidade de mudana de mentalidade e de organizao do Exrcito francs. Hoje, o vasto e intil conjunto de tneis, casamatas e fortalezas de concreto da Linha Maginot permanece como um sombrio memorial cegueira estratgica. A Histria revela que o conservadorismo de idias estrategicamente desastroso. Buscar nela exemplos que se contraponham a essa afirmao incuo, pois, casos bem sucedidos de permanncia imutvel de posturas estratgicas, caracterizaram-se, tambm, pela imutabilidade das circunstncias. Conhecer os trs principais fatores que concorrem para o

conservadorismo de idias importante para que o pensador estratgico, identificando algum deles em si, repila-o energicamente a fim de garantir a eficcia do produto do seu pensamento. Os fatores, relacionados a seguir, so ilustrados por exemplos relativos a situaes similares, a ttulo de comparao: - A extrema e orgulhosa confiana na correo e na superioridade do status quo, com o desprezo ou, at mesmo, a recusa de tomar conhecimento de qualquer fator de mudana. At o incio do sculo XIX, a China, julgando-se cnscia de sua superioridade cultural, fechou-se a qualquer influncia e intercmbio com o ocidente, salvo no pequeno enclave portugus em Macau, como forma de evitar a contaminao de sua cultura superior pela influncia externa de povos que, segundo a observao de um imperador chins, nada tinham a oferecer China. A partir de meados do mesmo sculo, a China constatou sua total incapacidade de resistir abertura forada de seu mercado por meio do poder da tecnologia ocidental, e viu-se invadida e praticamente partilhada entre as potncias europias. - A timidez ou a falta de coragem de lanar-se nas incertezas de uma mudana, abandonando situaes ou estruturas j familiares. O exemplo neste caso positivo e oposto ao anterior. O fato de o Japo, de estrutura feudal at meados do sculo XIX, em menos de cinqenta anos transformar-se numa nao moderna e industrializada. Vinculado a esse fator, h ainda a iluso de que

8 mudanas superficiais possam atender a circunstncias que exigem que elas sejam profundas e consistentes. - A prevalncia de interesses corporativos em detrimento dos interesses maiores do objeto da estratgia (um pas, instituio, empresa, etc.). As elites agrrias que, dominando politicamente o Brasil Imprio, eram as grandes beneficirias do modelo econmico agrcola-exportador baseado no trabalho escravo, e que ignoraram, em benefcio prprio, a possibilidade de encetar qualquer esforo para inserir o Brasil oportunamente no processo de industrializao que se encontrava em curso na Europa e nos Estados Unidos. As incertezas da fluidez estratgica dificilmente proporcionaro suficiente confiana na absoluta justeza de sua orientao e de suas medidas. Por isso, sua conduo requer constante reavaliao e redirecionamento, quando novas variantes indicarem essa necessidade. Torna-se fundamental, portanto, a existncia permanente de um grupo de peritos, com largo conhecimento em todas as reas afetas estratgia, ao qual seja atribuda a pesada responsabilidade de pesquisar, discutir, avaliar, analisar, conceber e propor, com fundamento, caminhos a longo prazo. Os riscos dessas incertezas, no entanto, so ainda menores do que os do imobilismo estratgico, caracterizado pelo conservadorismo de idias e limitado a reaes de curto prazo aos efeitos imediatos da mudana de circunstncias. Estratgia um passaporte para o futuro. Na base de suas premissas est a liberdade e flexibilidade de pensamento o raciocnio sem ncoras, salvo aquelas ligadas a interesses transcendentes. Hipotecar o futuro devido falta de consistentes aes de longo prazo, que dem adequada resposta aos reais problemas apresentados, uma sria responsabilidade que pode vir a constituirse em lamentveis erros, como os exemplificados neste trabalho.

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PRECISAR IDIAS 1O Exrcito no pode ser maior nem menor do que a estatura polticoestratgica da Nao. Esta frase tem sido frequentemente veiculada como um padro para a Fora Terrestre. Todos que a ouvem, tm-na como correta. Mas qual ser o seu real significado? Que acepes pode-se dela extrair para torn-la, mais do que uma atraente porm incua verdade, em uma efetiva fonte de orientao para a necessria evoluo do Exrcito Brasileiro? O termo poltico-estratgica, por sua ampla abrangncia, talvez seja insuficiente para caracterizar integralmente a apropriada relao da Fora Armada com a estatura da Nao. No se pode falar de estatura poltico-estratgica, sem se pensar imediatamente nos interesses da Nao, particularmente os relacionados com a defesa, e, nesse campo, as opinies se dividem. Uns, mais comedidos, vem os interesses exclusivamente restritos Amrica do Sul, outros, otimistas quanto ao grande potencial brasileiro, cientes do anseio nacional por uma maior influncia nas decises mundiais e atentos trajetria das demais potncias, inclusive as emergentes, julgam-nos irremediavelmente ligados esfera mundial a mdio ou longo prazo. Esta distino de pontos de vista, por si s, j suficiente para caracterizar a impreciso daquela frase to cultuada. Mas a busca pelos interesses polticos-estratgicos precisa ser condicionada, a fim de evitar que a generalidade do conceito produza efeitos perniciosos. Faz-se necessrio, definir com mais detalhes a estatura qual o Exrcito deve adequar-se, a fim de evitar erros, tanto por ao como inao, e adotar medidas responsveis perante o futuro. Prximo no tempo, ocorreu um flagrante exemplo deste erro. Durante a Guerra Fria, as Foras Armadas soviticas foram mantidas estritamente conforme a estatura poltico-estratgica da ento Unio Sovitica. Esta, em sua luta geopoltica e ideolgica contra os Estados Unidos da Amrica, possua interesses em escala mundial e suas foras foram erigidas e mantidas para guardar a paridade ou, se possvel, superar a potncia americana em todos os campos e reas geogrficas de atrito. O titnico esforo do Estado sovitico de1 Publicado no PADECEME, 3 Quadrimestre de 2003

10 equiparar-se e de criar as condies para romper a rede de alianas tecida pelos Estados Unidos e que continha a sua liberdade de ao, foi conduzido em detrimento da sua sociedade, que foi mantida empobrecida e carente de bens de consumo. Os imensos recursos destinados pesquisa de cunho militar e produo de equipamentos e de sofisticadas armas em grande quantidade acabou por arruinar a economia do pas e lev-lo completa derrota na Guerra Fria, sem o disparo de um nico tiro, e ao fim do seu regime. Este nico exemplo, exposto em parcas linhas, j basta para demonstrar que algo mais se faz necessrio, alm da genrica adequao estatura poltico-estratgica. Voltaremos a essa linha de raciocnio. Tem-se percebido ultimamente uma certa tendncia no Exrcito de atribuir rtulos s idias. No raro falar-se da necessidade de adequar o Exrcito era do conhecimento, de prepar-lo para exercer a estratgia da transformao, etc. Rotular idias apresenta duas enganadoras vantagens: a primeira a iluso de que o rtulo possui um maior apelo, capaz de conceder maior credibilidade e aceitabilidade idia defendida; a outra, usar o rtulo como artifcio para mascarar a pobreza ou a carncia de idias. Em ambas, o rtulo, ele prprio, pode acabar por atrair as atenes, desviando-as da necessria preciso das idias. evidente que os oficiais que apresentam suas opinies por meio destes rtulos, possuem consistncia em seus pensamentos. No tm pois necessidade destes artifcios. necessrio raspar os rtulos para poder-se enxergar nitidamente o interior da garrafa. Concentre-se o foco no que preciso transformar, em vez de tratar genericamente de uma estratgia da transformao, precisem-se os requisitos da era do conhecimento, o que significa simplesmente atualizar o Exrcito, para que se possa pr os ps no cho. Algum j disse que o homem sensato concentra-se no essencial. E essencial reconhecer que nada do que foi expressado no pargrafo acima pode ser atingido sem uma conveniente flexibilidade oramentria. E aqui, se faz o vnculo com o raciocnio anterior. Ocorre com o Exrcito um fenmeno da mesma natureza, mas inverso ao que levou derrocada da Unio Sovitica. Esta, exauriu-se ao dedicar s suas Foras Armadas, durante o perodo de confrontao, uma quantidade de recursos financeiros insustentvel a longo prazo. O Exrcito, por sua vez, tem se exaurido

11 pela carncia de recursos, e o persistir dessa situao a mdio ou longo prazo ser igualmente desastroso, pelo menos para o Exrcito. A adequao oramentria portanto uma condicionante da estatura poltico-estratgica. A penria financeira que o Exrcito tem vivido ao longo dos ltimos vinte anos, no apenas deteriorou os seus meios e capacidades, como impede sua adequada e necessria modernizao. A disponibilidade de recursos para investimentos tem sido escassa e a das atividades de custeio insuficiente, e sem investimentos significativos no h possibilidade de modernizao. E dentre estes, os destinados pesquisa cientfica e tecnolgica tm sido simplesmente irrisrios. E na era do conhecimento no privilegiar essas pesquisas significa atrelar o Exrcito ao atraso. O Exrcito tem tentado remediar esta situao adversa por meio da prioridade atribuda s chamadas ilhas de modernidade. Essa soluo boa apenas a curto prazo. Serve como um degrau para uma futura expanso de qualidade para toda a Fora. Caso contrrio, as dificuldades do Exrcito tendero a aumentar, visto que um corpo no pode permanecer saudvel se uma de suas partes estiver com risco de gangrenamento. Urge a obteno de suficiente, ou ao menos razovel, folga oramentria para investimentos e adequado custeio, de modo que seja iniciada, o quanto antes, a reverso deste quadro altamente negativo. Duas opes podem ser visualizadas. A primeira consiste em manter a atual estrutura e envidar esforos junto ao executivo e legislativo federais a fim de aumentar a fatia oramentria destinada Fora. a soluo passiva, j que a sua implementao independe do Exrcito. E por isso mesmo, no pode ter previsibilidade de prazos, nem razovel certeza de concretizao. Os assuntos de Defesa, diante da pliade de graves problemas sociais e econmicos que persistentemente assolam o Brasil, tm pouca probabilidade de, mantidas as atuais circunstncias de tranqilidade externa, receberem do Estado a ateno a que sua importncia faz jus. possvel que, mesmo obtendo-se um acrscimo no oramento, este no seja

percentualmente significativo e que, diludo pela atual estrutura, revele-se insuficiente para a modernizao desejada. A viabilidade desta alternativa, portanto, depende de um prvio estudo acerca dos custos necessrios para o adequado reequipamento e modernizao da base existente e de seu conveniente

12 custeio, de modo a calcular-se o percentual de aumento necessrio, o prazo em que o processo de modernizao poder ser concludo e avaliar a aceitabilidade poltica da concesso de tal percentual. Talvez, essa conta revele-se demasiadamente alta diante das demais prioridades do Governo. A outra opo, ativa, consiste em adequar-se ao oramento possvel, em aumentar proporcionalmente os recursos por meio de significativa reduo, tanto horizontal como vertical, da estrutura vigente do Exrcito. O custo da modernizao ser, em conseqncia, proporcionalmente menor, e a garantia de concretizao mais consistente, devido a depender exclusivamente da prpria Fora. Tal processo no ser indito. Foras Armadas de outros pases j o fizeram. Esta alternativa igualmente requer alguns requisitos prvios basicamente mudana de padres de pensamento. Tradicionalmente, tem se associado a estrutura do Exrcito com a larga extenso das fronteiras e com a vasta populao do Pas. Esses critrios, diante da necessidade de modernizao, no se sustentam, uma vez que tendem a fazer prevalecer a prioridade com o efetivo da Fora. Alm disso, amplamente discutvel se tais parmetros guardam necessariamente algum vnculo com a estrutura das foras armadas. Basta imaginar a existncia de um vasto pas, com numerosa populao, cercado exclusivamente por outros pequenos que, de to pacficos e despojados de interesses geopolticos e geoestratgicos, no possuam absolutamente foras armadas. Nesse caso hipottico, aquele primeiro pas precisar de foras armadas proporcionais s suas extensas fronteiras e vasta populao? Evidentemente que no. O que realmente condiciona a estrutura de uma fora armada so as ameaas, reais ou potenciais, a que o pas esteja submetido e a necessidade de corresponder aos requisitos ditados pela poltica externa do pas. Igualmente comum, tem sido a tendncia de se pensar a estrutura do Exrcito em termos de efetivos. Efetivo, historicamente, tem sido um fator subsidirio da capacitao tecnolgica. Aumente-se o efetivo, e o poder de um exrcito aumentar em progresso aritmtica. Aumente-se sua capacitao tecnolgica, e seu poder crescer em progresso geomtrica. Efetivo, por conseguinte, somente torna-se fator de desequilbrio se a ele estiverem agregados meios tecnologicamente avanados. Em outras palavras, um exrcito com tecnologia moderna possui maior poder de combate do que um mais

13 numeroso e atrasado. Face escassez de recursos, eventual prioridade concedida a efetivos ser sempre obtida em detrimento da tecnologia aplicada aos meios. Relacionada com efetivos, h a questo da necessidade de se manter o Exrcito como uma fora de presena em todo o territrio nacional. Faz-se necessrio neste caso, mudar o conceito, de presena fsica para capacidade de fazer-se presente. Outro aspecto sujeito a uma mudana de pensamento, o argumento segundo o qual, aps uma eventual reduo da Fora, seguir-se-ia

inapelavelmente uma reduo do seu oramento, imposta pelo Governo em virtude de supostas menores necessidades. Este, um argumento de inao: diante da necessidade de agir, nada fazer por receio de conseqncias adversas. evidente que tal processo, se implementado, no poder ser feito de forma precipitada. Ter de ser precedido por uma ampla discusso e apresentao de seus propsitos s esferas governamentais e personalidades de destaque da sociedade, a fim de esclarecer seus reais objetivos dotar o Brasil de um Exrcito moderno e ajustado s necessidades e incertezas do novo sculo. Raciocinandose com o caso, pouco provvel se o esclarecimento for bem feito, de o oramento minguar aps a reduo de sua estrutura, o Exrcito ver-se-ia diante de uma perversa bifurcao: de um lado o Exrcito atual, de outro um menor, ambos atrasados. A diferena que neste ltimo a responsabilidade seria do Governo e da sociedade, ao passo que no primeiro a responsabilidade pelo atraso seria exclusivamente nossa. E a ltima postura mental, necessria de ser adotada, a absoluta rejeio ao conservadorismo de idias e aos fatores que para ele concorrem: a exagerada crena na superioridade e adequao do status quo, o receio de enfrentar as incertezas de uma mudana e a prevalncia de interesses corporativos. Voltando-se frase que abriu este artigo, foroso admitir que o Brasil tem todas as qualificaes para influir crescentemente, a partir de um patamar modesto, no cenrio mundial. J somos um pas que no pode ser desconsiderado. Nossa potencial pujana econmica, nosso anseio de assumir o posto de membro permanente do Conselho de Segurana das Naes Unidas e nossa tradicional caracterstica de equilibrado relacionamento poltico e comercial

14 com todas as regies do globo, indicam a trajetria futura do Brasil como um significativo ator global. E a essa estatura que o Exrcito Brasileiro deve adequar-se. E essa adequao s possvel por meio de um exrcito moderno e tecnologicamente atualizado, capaz de operar independentemente e

adequadamente integrado a exrcitos do dito primeiro mundo, se assim for conveniente aos interesses de nossa poltica externa. Paralelamente, um exrcito com essas caractersticas, possuir uma capacidade dissuasiva muito mais efetiva do que a atual, constituindo-se em fator de fortalecimento de nossa Poltica de Defesa Nacional. importante considerar que dispomos de uma importante condio favorvel: tempo. No para desperdiar, mas para adotar as medidas transformadoras necessrias, tendo em vista a falta atual de riscos ou ameaas e o decurso da trajetria do Brasil rumo a seu esperado patamar no concerto mundial. A sociedade brasileira no possui o hbito de preocupar-se com os assuntos relativos s suas Foras Armadas, mas sabe muito bem que paga por elas e inconscientemente lhes credita a sua segurana. Na eventualidade de tempos sombrios no futuro, no temos o direito de trair, por inadequada capacitao, essa confiana, embora na atualidade no recebamos esse reconhecimento.

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CULTIVAR TALENTOS 1No tarefa de um oficial de marinha escrever livros. Esta frase infeliz foi dita por um alto oficial da Marinha dos Estados Unidos a respeito do ento comandante Alfred T. Mahan, que acabara de publicar A influncia do Poder Naval na Histria, livro que propiciou a base intelectual para a transformao do pensamento estratgico norte-americano, a criao de uma portentosa marinha de guerra ocenica e que estimulou a alavancagem do Pas condio de potncia poltica e militar de alcance mundial, j no fim do sculo XIX. Embora nos tempos atuais a ningum mais cause espanto o fato de um oficial publicar um livro, de se questionar por que h tanto tempo, no Exrcito Brasileiro, no surge um oficial dotado de disposio e de talento e vigor intelectuais, capaz potencialmente de escrever uma obra da importncia da citada na abertura deste artigo. Aps a gerao do nosso brilhante Gen Meira Mattos, h quase um deserto intelectual na nossa Fora. Este artigo no tem a pretenso de apontar caminhos ou especificar detalhadamente as possveis causas deste fenmeno, embora no se abstenha de aventurar-se um pouco neste sentido. mais a manifestao de uma inquietude pessoal. A ns militares apraz ligar nossos talentos ao. normal e desejvel que assim seja, visto que a guerra ou o combate, finalidade ltima de nossa existncia profissional, domnio quase exclusivo da ao. Mas necessria a existncia de luzes intelectuais que clareiem os caminhos e apontem destinos, que direcionem previamente as aes. O curso da Histria nos mostra com segurana que as grandes transformaes e evolues polticas, socio-econmicas e militares,

implementadas por industriosos e determinados homens de ao, foram precedidas por intelectuais que lanaram as bases tericas ou filosficas da transformao. Os exemplos so inmeros e seria exaustivo tentar alongar sua

1 Publicado no PADECEME, 2 Quadrimestre de 2004

16 lista, mas alguns so sempre teis. O sistema poltico-democrtico ocidental no teria sido possvel sem a base elaborada pelos filsofos do Iluminismo. Clausewitz revolucionou o modo de se encarar e fazer a guerra ao codificar e analisar profundamente o modo napolenico de guerrear e ao estabelecer os ntimos vnculos entre a poltica e a guerra. O exrcito de cunho nacional e capaz de operar independentemente de bases fixas, que possibilitou Frana

revolucionria bater todos os velhos exrcitos dinsticos e a Napoleo, no incio de sua carreira, subjugar a Europa, foi idealizado, ainda sob o regime monrquico, que no o soube aproveitar, pelo Conde de Guibert. A formidvel mquina do exrcito alemo no incio da Segunda Guerra Mundial no teria sido possvel sem o trabalho prvio de Liddel Hart e Fuller. Por trs da vitoriosa estratgia norteamericana na Guerra Fria, esteve o pensamento de George Kennan. No Brasil, tambm dispomos de significativos, embora no to numerosos, exemplos. O ento capito Mrio Travassos, nos idos das dcadas de vinte e trinta do sculo passado, lanou as bases da geopoltica brasileira, ao escrever A projeo continental do Brasil. Monteiro Lobato despertou o Pas para a necessidade de se explorar petrleo em solo brasileiro, abrindo os olhos da Nao contra a crena vigente de que no havia petrleo no Brasil. O tenente Bertoldo Klinger e seus companheiros, que conheceram o Exrcito alemo de antes da Primeira Guerra Mundial, fundaram a revista A Defesa Nacional e por meio de seus artigos lograram profissionalizar e modernizar o Exrcito, superando o marasmo e a ineficincia que o bacharelismo dos ltimos anos do Imprio havia produzido no Exrcito. O pensamento gerado na Escola Superior de Guerra, nos anos cinqenta e sessenta do sculo passado, teve grande importncia no processo de desenvolvimento experimentado pelo Brasil durante os governos militares. Portanto, julgo ser muito importante que dentre a grande massa dos homens potencialmente voltados para a ao, que compe o Exrcito, no faltem as condies para o surgimento de alguns tendentes via intelectual, para o bem da nossa Fora. Deve-se admitir que o surgimento espontneo de talentos como os de Alfred Mahan e Mrio Travassos um fenmeno relativamente raro. Todavia, a atual carncia, ou mesmo a ausncia, de produo intelectual de vulto no Exrcito aponta para a possibilidade de algo estar abafando, ou mesmo impedindo, o florescimento e o aproveitamento de possveis talentos.

17 Sem pontificar sobre a pertincia das idias que seguiro, especularei sobre alguns pontos que me saltam mente. A disciplina o fulcro do Exrcito, e assim que tem de ser. a virtude militar por excelncia. No entanto, nosso Exrcito nutre uma viso de disciplina que, a meu ver, no favorece nas melhores condies o livre surgimento de idias. H que se estimular a ampla liberdade para expressar e publicar opinies, mesmo que elas sejam crticas a posies correntes do Exrcito, pois no h indisciplina em expressar com franqueza uma opinio. Disciplina no significa concordncia e, sim, o cumprimento das ordens com empenho. mais digna e produtiva a franqueza, do que a inibidora timidez de nutrir e expressar opinies, que amortece a criatividade e, de certa forma, aliena dos destinos do Exrcito. Lembremo-nos de que franqueza no consta do rol dos atributos de avaliao do pessoal militar. Deciso provm de apenas uma fonte o Chefe, entretanto bom que as idias brotem ininterruptamente de todos e, se conveniente, realimentem a deciso. preciso despir a idia de crtica de uma eventual conotao negativa, pois acredito que uma instituio que no se critique seja uma instituio imvel, e a imobilidade degeneradora. Os artigos de Bertoldo Klinger foram crticos com respeito situao ento vigente no Exrcito. O prprio fato de a palavra crtica ter sido substituda, nos exerccios militares, por um eufemismo em nosso Exrcito, j , a meu ver, uma indicao de que essa idia no inteiramente desprovida de propsito. Somos Oficiais do Exrcito por todas as nossas vidas, mas comandantes de frao, subunidade, unidade, ou qualquer outra funo, por apenas dois ou trs anos. O que desejo dizer com isso, que a necessria dedicao s nossas funes correntes no deve ser to exclusiva a ponto de monopolizar nossas atenes. H que se atentar para a nossa condio permanente Oficial do Exrcito, e nossa condio transcendente Defensor da Ptria. necessrio debruarmo-nos sobre nossas funes. Mas tambm importante, com a devida freqncia, erguermos o olhar para vislumbrar o conjunto que nos abarca, analisando sua eficcia. evidente que a percepo desse conjunto variar de acordo com o nvel do observador. O conjunto para um jovem oficial ser provavelmente um subconjunto do Exrcito. Com o passar do tempo, ter uma viso ampla e consistente, e ter exercitado seu pensamento e sua capacidade de anlise e, talvez, ver despertar um talento precoce como o do capito Mrio

18 Travassos. A capacidade de pensar com propriedade no brota de uma hora para outra. Pensar tambm exige treinamento. Nossa cultura militar generalista, e o ensino no Exrcito segue essa linha. No se discute a convenincia dessa opo, ela a mais adequada. Ela proporciona aos oficiais, desde sua formao at os ltimos cursos da carreira, uma viso ampla, que pode ser aprofundada, aqui ou ali, de acordo com as inclinaes pessoais. Mas, se a viso ampla, os horizontes so curtos. como uma viso mope, que s v nitidamente o que est prximo, o afastado embaase. A generalidade boa porque situa melhor o oficial diante de uma diversidade de questes, mas, em contrapartida, o pensamento oriundo da generalidade sumrio. Seus frutos tm flego curto, as idias logo se esgotam. Mas a generalidade no um fim, a base para a construo de uma estrutura cultural e intelectual mais sofisticada e precisa. Nesse sentido, como bem se sabe, o processo de modernizao do ensino no Exrcito tem feito importantes avanos. Creio que convm Fora, no apenas criar mecanismos favorecedores do esforo individual de aprofundamento de conhecimentos, mas tambm estimular que eles frutifiquem na forma de trabalhos teis ao Exrcito e Nao, cuja divulgao deve ser incentivada e favorecida. Uma idia que talvez possa ser aplicada o estabelecimento de convnios entre o Exrcito e instituies universitrias a fim de que sejam oferecidos mediante requerimento, para oficiais de qualquer posto, cursos de psgraduao em matrias como cincias polticas, estratgia e administrao. Essa prtica, poderia estreitar os vnculos entre o Exrcito e o meio universitrio, propiciar a formao de uma massa crtica para a produo intelectual e fortalecer, a mdio e longo prazos, os prprios cursos de alto nvel da Fora. Seria igualmente interessante que os meios de divulgao fossem flexibilizados, de modo a acolher trabalhos de variados nveis e extenses. Se um oficial, fora de um dos cursos regulares da carreira, produzir uma monografia, onde poder ela ser publicada? Os veculos atuais de divulgao no so apropriados para isto. Talvez a internet seja uma boa opo. Por ltimo, um aspecto delicado, que raras vezes abordado no mbito do Exrcito, a existncia de um tipo de oficial que, por amar mais a sua carreira do que o Exrcito, equivocadamente julga que, abstendo-se de sua vontade e do uso independente e criativo do seu intelecto, acomodar-se- melhor ao que

19 acredita ser o caminho para a ascenso profissional. Deste tipo de oficial no se pode esperar um pensamento de anlise crtica, mas, se porventura o tiver, provavelmente no o expressar por receio de reflexos negativos em sua carreira. Que perda no teriam tido os Estados Unidos se Alfred Mahan fosse desse gnero! Este no um artigo conclusivo. o resultado da preocupao com um estado de coisas cujas causas e correo, com certeza, so muito mais amplas e complexas do que as idias aqui esboadas, pois, afinal, o pensamento genrico sumrio.

20

PILAR OU INSTRUMENTO? 1O Exrcito tende a ver a si mesmo como um pilar da Nao. Existem profundas razes histricas que corroboram e que justificaram, at recentemente, essa viso. Questes de poltica interna levaram o Exrcito a intervir mais frequentemente dentro das fronteiras nacionais do que na defesa externa. Rivalidades intra-regionais e a ainda frgil vinculao das regies do Pas ao poder central, em torno de um ideal de nacionalidade, somente puderam ser superadas pela ao do Exrcito durante o perodo regencial. Embora essa viso de pilar tenha emergido durante o Imprio, ela foi bastante reforada a partir da Proclamao da Repblica. Por ter sido o Exrcito o agente principal dessa transformao, ele foi constrangido, por um sentimento de responsabilidade poltica e social, a envolver-se diretamente no cerne das questes posteriores. Seu arraigado senso de brasilidade, sua organizao e presena em todo o territrio nacional, propiciaram Nao a ossatura que a ento vigente situao do Pas no poderia fornecer, em virtude da fragilidade institucional, da indiferena e alienao da sociedade, da prevalncia de interesses oligrquicos estaduais em detrimento de verdadeiros interesses nacionais e do insidioso assalto marxista-leninista. Na atualidade, no entanto, a situao fundamentalmente diferente. A partir principalmente da base provida pelos governos militares, que afastaram o perigo comunista e impulsionaram significativamente o desenvolvimento nacional, o Brasil presenciou, nos ltimos vinte anos, a construo de slidas e estveis instituies democrticas, que fornecem agora a necessria estrutura Nao. Embora persistam problemas internos, como as inqas disparidades sociais, a questo da luta pela terra e o crime organizado, tudo leva a crer que essas questes no sero capazes de abalar a estabilidade, duramente conseguida, de nossas instituies. Mesmo que eventualmente seja necessria a atuao do Exrcito, ela ocorrer dentro do arcabouo legal, em subordinao ao poder poltico. Tendo bem correspondido aos seus deveres diante das necessidades1 Publicado no PADECEME, 3 Quadrimestre de 2004

21 impostas pela inconsistncia poltica e social do passado, convm atualmente ao Exrcito dispensar-se da funo de pilar, por j t-la cumprido, e assumir novas misses ditadas pelo novo status nacional. Nossa Fora, para continuar altura de suas subidas responsabilidades perante a Ptria, deve reajustar-se e redefinir seus rumos. Neste sentido, julgo ser imperioso e urgente que o Exrcito promova a sua transio de pilar para instrumento da Nao. O longo perodo em que se viu constrangido a intervir nas questes polticas nacionais, imprimiu e cristalizou na mente do Exrcito sua funo de pilar. O apego estratgia da presena atesta essa afirmao. Mas, infelizmente, essa idia arraigada tem sido empecilho a qualquer transformao mais significativa do Exrcito. Como pilar, a necessidade de ajustar-se, modernizandose e evoluindo como um todo, no bem percebida, pois, para cumprir essa sua funo basta essencialmente sua existncia e sua inamovibilidade. Essa noo de rigidez impediu que fossem adotadas, pela Fora, as medidas de ajuste adequadas quando um novo patamar oramentrio comeou a prenunciar-se, h cerca de vinte anos atrs. O receio de enfraquecer o Exrcito com uma mudana de seus rumos, acabou, em minha opinio, por enfraquec-lo em escala bem maior. Fui tenente em um Regimento de Carros de Combate. Embora essa unidade no dispusesse de material moderno, ela era perfeitamente apta ao emprego operacional, pois dispunha de praticamente todos os seus meios materiais, e em boas condies de disponibilidade. Fui capito em outro RCC e, nessa poca, a situao material do regimento j se ressentia da carncia de meios, repercutindo negativamente em sua aptido operacional. Por fim, comandei um RCC, cuja praticamente nica capacidade real era a de produzir reservistas, dada a vasta inexistncia de seus meios de dotao e a progressiva indisponibilidade dos existentes. Infelizmente, essa marcha para a penria no pode ser caracterizada como exceo em nosso Exrcito. Estamos sem dvida diante de uma problemtica bifurcao. De um lado, est o Exrcito que, salvo uma pequena parcela representada pela Fora de Ao Rpida, assemelha-se a uma fora territorial, pela sua falta de mobilidade, baixo adestramento e insuficincia logstica. De outro, um Exrcito como efetivo instrumento da poltica nacional e o abandono de algumas posturas quase

22 dogmticas cultuadas pela Fora. Qualquer que seja o rumo a seguir, exigir penosa deciso e envolver pesadas responsabilidades. Transformar o Exrcito em instrumento significa torn-lo homogneo em sua capacitao operacional, plenamente apto a atingir anualmente, com todas suas OM, o nvel de operacionalidade previsto e, se necessrio, evoluir rapidamente para o nvel de eficincia operacional. Exrcito instrumento seria um Exrcito sem pesos mortos, caracterizados por unidades ou grande unidades incapacitadas para o cumprimento de suas misses doutrinrias, tanto por falta de meios como pelo despreparo de seu pessoal devido insuficincia de adestramento. Seria igualmente um Exrcito capaz de prover o adequado sustento logstico a todas suas OM, bem como de propiciar o nvel de investimento adequado para assegurar sua evoluo e modernizao. E seria, principalmente, um Exrcito que resgatasse, em todos os seus nveis, o esprito e o elan de fora combatente, anulando a mentalidade de guarnio que, pouco a pouco, foi nos absorvendo e que nos fez algo indiferentes degradao de nossos meios e capacidades. Somente um Exrcito com essas caractersticas possuir real capacidade de cumprir suas misses constitucionais, se a necessidade surgir, e de corresponder s expectativas e responsabilidades da poltica externa de uma Nao que pleiteia o posto de Membro Permanente do Conselho de Segurana das Naes Unidas. H uma condio imprescindvel nessa transformao: ajuste

oramentrio. Esse ajuste s pode ser atingido por duas maneiras1: por meio do crescimento da fatia oramentria destinada ao Exrcito, ou pelo esforo em ajustar-se ao oramento possvel, embora o pleito pelo seu aumento seja sempre lcito. A segunda opo me parece a mais factvel. Dificilmente o nosso oramento voltaria a crescer a ponto de possibilitar a transformao de toda a atual base existente num eficaz e moderno instrumento militar da Nao. Embora dolorosa, julgo necessria a perda de alguns anis em benefcio dos dedos. Convm reduzir significativamente a estrutura atual do Exrcito. Antes porm de promover essa transformao, a troca de quantidade por qualidade, necessrio definir com preciso que capacidades o Exrcito deve possuir no futuro, de modo a assinalar o objetivo a ser atingido. Confrontando-se essas capacidades com o oramento possvel, definir-se- o nvel da reduo necessria para atingi-las. Deve-se considerar que o oramento possvel no o

23 atual, reflexo do severo ajuste econmico-financeiro implementado pelo Governo, ele ser maior, mas no a ponto de dar sustentabilidade atual estrutura. O Exrcito pilar gerou algumas disfunes que a atual crise financeira apenas agravou. Analis-las para corrigi-las, demandar mentes isentas de conservadorismo de idias. A organizao bsica do Exrcito e sua articulao refletem

preocupaes com parmetros poltico-geogrficos prprios da funo de pilar. A necessidade de estruturar-se em todo o territrio nacional e de possuir nvel decisrio compatvel com a importncia poltica, econmica e social dos diversos Estados da Federao, acarretou um desproporcional nmero de grandes comandos. Obviamente outros fatores tambm influenciaram, mas todos tendo como pano de fundo a conscincia de pilar. A exceo do Comando Militar do Sul, todos os demais subordinam grandes unidades, cujo adequado enquadramento exigiria apenas o nvel divisionrio. H outros grandes comandos com organizao unitria, ou seja, um grande comando enquadrando, ou tendo a responsabilidade de apoiar, apenas um outro, ou uma grande unidade. No esforo de reduo convm adotar em todos os nveis, no mnimo, o princpio ternrio de subordinao. A reduo do nmero de comandos j produzir alguma economia de recursos e propiciar a redistribuio de pessoal pelos estados-maiores que permanecerem, reforandoos e permitindo o melhor cumprimento de suas misses. A reduo de nveis decisrios dinamizar a administrao. A reduo deve igualmente abranger o nvel de grandes unidades e unidades. Nesse processo, acredito na convenincia de observar alguns princpios simples. Primeiramente, a manuteno de todas as naturezas de foras atualmente existentes, para garantir a ampla capacitao do Exrcito como Fora Armada. Segundo, a garantia de estrutura organizacional e de dotao em pessoal e material completas, para viabilizar a presteza de emprego. Por ltimo, a garantia de adequada estrutura e suporte logsticos, para possibilitar a capacidade de durar na ao, tanto no dia-a-dia como em operaes. O encolhimento resultante desse processo, que a primeira vista pode parecer um

enfraquecimento, na realidade fortalecer o Exrcito. O nmero de grandes unidades e unidades que o Exrcito atualmente dispe d uma medida ilusria de sua capacidade. O real valor militar da maioria dessas grandes unidades e

24 unidades menor do que o valor atribudo a suas identificaes como brigadas, regimentos, batalhes ou grupos. A falta de material leva grandes unidades a valerem unidades e unidades a valerem subunidades, num processo que poderamos chamar de mobilizao invertida, j que, para ser empregado, o Exrcito no se expande nem se mantm encolhe. O sistema de ensino do Exrcito, comprovadamente eficiente, constitui o ponto forte que impediu que as disfunes aludidas tivessem maior impacto na Fora. A prioridade concedida ao ensino, que foi preservado de maiores perdas, foi uma sbia deciso, pois permitiu s diversas escolas prosseguirem na formao de oficiais, cultural e tecnicamente, ajustados modernidade. Todavia, o sistema de ensino no est isento de disfuno no intrnseca, mas na sua relao com o sistema operacional, com prejuzo para o desenvolvimento de uma doutrina militar terrestre nacional. O ensino proporcionado pelas escolas permanece individualizado e os conhecimentos auferidos tendem a esmaecer ao longo do tempo. Isso ocorre porque as restries financeiras e a carncia de material prejudicam seriamente o adestramento em todos os nveis, o que impede que os conhecimentos adquiridos individualmente sejam integralmente

exercitados na prtica e traduzam-se em valor coletivo, por meio de organizaes militares operacionalmente eficazes. Paralelamente, esse fato impede que a doutrina militar terrestre, produzida principalmente nas escolas, seja

adequadamente testada e realimentada, permanecendo assentada sobre bases tericas e em ntido descompasso com os meios existentes, o que nos impede de atestar sua validade. Essas disfunes no podem coexistir com o Exrcito instrumento. Nele necessrio o perfeito equilbrio e o intenso relacionamento entre ensino, adestramento e doutrina. Alm disso, a prioridade concedida ao ensino no deve acarretar, como atualmente, a maior valorizao do desempenho de atividades docentes e discentes, em detrimento da valorizao das atividades operacionais nos corpos de tropa, o que no deixa de ser uma inverso de valores. importante que o ensino passe a ser considerado como o que ele realmente : uma atividade-meio, o que no significa transigir com o seu nvel de qualidade. A atividade-fim , e deve ser, a aplicao daquilo que foi ensinado. Com certeza, o problema mais delicado dessa transformao o relativo necessidade de reduo de efetivo. Essa reduo deve abranger todos os

25 postos e graduaes, na medida necessria ao ajustamento reduo da estrutura. Nesse processo, necessrio que o efetivo de Oficiais Generais no seja visto como um dogma pelo Exrcito. Esse processo de reduo de efetivo dever ser meticulosamente planejado e executado ao longo de um prazo adequado, para minimizar os sacrifcios e o impacto social. Finalizando toda essa argumentao, verifica-se que o problema resumese dificuldade de manter e de renovar com modernas tecnologias os meios materiais do Exrcito. Todo o resto conseqncia disso. necessrio dar-lhe adequada soluo, a fim de preservar o futuro da nossa Fora. O futuro, imprevisvel, poder interromper a nossa despreocupada rotina isenta de ameaas. Rotina que tem nos permitido alimentar nossa iluso de exrcito de tempo de paz profundo contra-senso e nos dado o perigoso privilgio de descurar de seu preparo. No teremos cumprido nossa misso se, diante daquela eventualidade, razo para a existncia de um exrcito, no estivermos altura das ameaas ou desafios. Convm desmontar o pilar, e dele construir um instrumento preciso e afiado. Momentos de crise requerem decises crticas, que nem sempre so desejadas, mas que devem ser tomadas, por serem necessrias. Caso no fizermos, ns mesmos, essa transformao, temo que tenhamos de aceitar no futuro uma transformao imposta pela sociedade, e esta, com certeza, nos seria muito mais inconveniente.

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REVER PRIORIDADE 1A inquestionada vigncia, no presente, de critrios e procedimentos estabelecidos como soluo para problemas do passado, e a perspectiva de continuarem a viger no futuro, uma prtica inadequada, que pode vir a constituirse num risco. Essa continuada adoo acrtica de posturas inconveniente por no considerar o efeito que a mudana de circunstncias exerce sobre os fatores do problema original, ou por negligenciar o fato de que, ao longo do tempo, o acmulo de eventuais efeitos negativos da soluo original pode lev-la a constituir-se em um novo problema. Devemos estar muito atentos contra essa possibilidade. Gostamos de caracterizar a feio cartesiana de nosso pensamento e de destacar nossa objetividade e nossa capacidade de decidir com base na anlise meticulosa das variadas questes. Assimilamos muito bem o mtodo analtico, uma simples ferramenta intelectual, mas temos muito mais dificuldade de absorver e praticar o essencial no pensamento de Descartes, e que motivou o mtodo. O importante em Descartes, que tambm foi soldado na juventude, foi o seu permanente estado de dvida diante de tudo o que era considerado verdade em sua poca e a sua conseqente postura de s considerar verdadeiro o que sua razo aceitasse absolutamente como tal. Seu mtodo nada mais foi do que o processo que elaborou para julgar racionalmente a veracidade das coisas. Creio na convenincia, ou melhor, na imperiosa necessidade de constante questionamento crtico de nossas verdades, a fim de verificar se continuam sendo verdadeiras. No precisamos chegar ao extremo de Descartes, que duvidou da prpria existncia, por julgar que poderia tratar-se de uma mera iluso (da sua concluso famosa: penso, logo existo), mas, salvo a Disciplina e a Hierarquia fundamentos do Exrcito os valores morais e a vocao mental e material para o cumprimento da Misso, tudo o mais deve ser freqentemente

1 Publicado no PADECEME, 3 Quadrimestre de 2005

27 submetido anlise crtica. Verdades perenes podem pertencer ao domnio da religio, no ao das prticas militares. Apesar de advogar a ampla abrangncia da necessidade de anlise crtica, este artigo bem menos ambicioso em seu escopo. Ele centra-se em uma nica dvida de carter cartesiano: ainda conveniente o Exrcito priorizar o ensino da maneira como vem fazendo? No estou bem certo disso e, na tentativa de apresentar as razes de minhas dvidas, recorrerei ao passado histrico a fim de, pela confrontao das razes que levaram o Exrcito a priorizar o ensino no passado com as que o levam a faz-lo na atualidade, demonstrar porque suspeito da convenincia de continuar fazendo-o, tanto no presente como principalmente no futuro. No Exrcito, a quase centenria prioridade concedida ao ensino mais um hbito do que uma tradio. Teve suas origens, no final do sculo XIX, na reao ao atraso tecnolgico e organizacional do Exrcito e ao bacharelismo, reforado na mente da oficialidade pela filosofia positivista, bem como ao conseqente despreparo e ineficincia operacional da Fora. Buscou-se, ento, transformar o Exrcito por meio de sua reformulao doutrinria, reestruturao organizacional, modernizao material e principalmente pelo desenvolvimento de uma nova mentalidade profissional nos oficiais, que substitusse o cientificismo terico e militarmente contraproducente herana do bacharelismo positivista. A transformao foi um longo processo, que enfrentou no poucas dificuldades e que no teria sido to bem sucedida se o Exrcito no tivesse contado com uma sucesso de chefes determinados e clarividentes, que tiveram o tirocnio de bem avaliar a situao do Exrcito e de determinar as medidas adequadas, e de uma resoluta parcela da oficialidade que, inflamada pela sua vocao militar e a despeito de todas as reaes, dedicou-se de corpo e alma busca de seus ideais. A prioridade ao ensino concretizou-se em 1918, com o estabelecimento da chamada Misso Indgena, resultado da indita deciso, tomada no ano anterior pelo Estado-Maior do Exrcito, de selecionar os instrutores da Escola Militar. Os brilhantes oficiais que foram selecionados, incluindo muitos dos que, por iniciativa do Marechal Hermes da Fonseca, haviam anteriormente estagiado no Exrcito alemo, foram concentrados na Escola Militar, com o objetivo de expandir para todo o Exrcito, por meio do ensino, os conhecimentos adquiridos e incutir a nova mentalidade. Essa Misso redundou posteriormente nas reformas

28 implantadas pelo ento Cel Jos Pessoa na Escola Militar do Realengo, que visaram suplementar a profissionalizao do ensino com a valorizao simblica da figura do cadete. Misso Indgena, somou-se, com objetivos mais amplos, a Misso Militar francesa, que perdurou de 1919 a 1940 e que centrou-se principalmente na Escola de Aperfeioamento de Oficiais, que criou, e na de Estado-Maior. Pode-se tipificar essa prioridade original como cabea de ponte, pois, a partir dela, as idias e ideais de transformao profissional do Exrcito se irradiam. Neste tipo de prioridade, o fluxo de conhecimentos e de experincias ocorre praticamente numa nica direo: do sistema de ensino para o sistema operacional. Este recebe e aplica as novas idias e conhecimentos, mas no tem ainda desenvolvida a experincia necessria para realimentar o primeiro. A essa prioridade, segue-se uma condio de equilbrio quando a transformao se efetiva e os novos conhecimentos so integralmente absorvidos, e na qual o sistema de ensino realimenta-se da experincia prtica obtida pelo sistema operacional. Nessa fase de maturidade, o fluxo de conhecimentos e de experincias se d em ambas as direes e a prioridade ao ensino, se houver, meramente incidental. Nas fases acima citadas, a prioridade ao ensino estabelecida com o ntido objetivo de aprimorar o sistema operacional transformando-o na primeira e mantendo-o como um eficaz instrumento blico na segunda. O sistema de ensino apenas o meio para o atingimento desses fins, o foco o sistema operacional. A atual prioridade ao ensino difere fortemente das anteriores, tanto em suas motivaes como em seus efeitos. Ela fruto da severa restrio oramentria que persegue o Exrcito h longos anos e que dificulta intensamente o equilibrado e interdependente relacionamento entre os sistemas de ensino e operacional. Devido grande dificuldade de evitar a degradao e obsolescncia dos meios materiais, de manter o adestramento em nveis adequados e, conseqentemente, manter a capacitao operacional da Fora Terrestre, decidiu-se, sabiamente diga-se de passagem, concentrar

prioritariamente no ensino os parcos recursos existentes, na esperana de que, superada a restrio oramentria, o sistema de ensino, preservado de perdas, poderia novamente irradiar conhecimentos atualizados. Da conclui-se

29 naturalmente que, ao ser estabelecida, essa prioridade tipo regio capital de defesa deveria possuir uma ntida conotao de transitoriedade. No entanto, esta prioridade ao ensino j est tomando um carter de permanncia, em virtude de as circunstncias adversas persistirem inalteradas e sem perspectiva de alterao positiva a curto ou mdio prazos. A perenizao do que deveria ser transitrio j estaria produzindo resultados perniciosos, devido ao efeito da longa acumulao de seus aspectos negativos. A carncia de adestramento e a degradao material impedem a tropa de aplicar convenientemente o que as escolas ensinam. Os ensinamentos permanecem individualizados e estreis na cabea dos ex-alunos, pois no frutificam na melhoria da capacitao operacional, nem resultam em

realimentao do aprendizado escolar. A qualidade do ensino afetada, pelo fato deste assentar-se em bases predominantemente tericas. Em grande parte, ensina-se o que nunca se fez ou no se sabe fazer, no por negligncia ou incompetncia daqueles que ensinam, mas pelas restries j assinaladas. O conhecimento e as experincias praticamente no fluem. O conhecimento terico permanece concentrado no mbito escolar e as experincias desenvolvidas com a prtica so extremamente reduzidas, quando no inexistentes. O ensino praticamente estagna-se na teoria. O rompimento de contato com o sistema operacional e o retraimento dos conhecimentos para a regio capital de defesa, fazem o ensino ensimesmar-se, fazendo-se, na prtica, objetivo de si mesmo. A persistncia da escassez de recursos induz muitos a considerar a atual prioridade ao ensino uma realidade da qual ainda no se pode escapar, mesmo que eventualmente reconheam o efeito de seus aspectos negativos. Penso diferentemente. E o fao por considerar que a prpria prioridade tende a produzir as condies para sua preservao. A sobrevalorizao das atividades docentes e discentes, decorrentes desta prioridade, agrava o descolamento entre os sistemas de ensino e operacional, por possibilitar, elite intelectual da oficialidade, uma via de ascenso profissional mais fcil, mais eficaz e mais atraente do que as duras condies do exerccio prtico da vida militar. Essa elite a que obtm o melhor desempenho como alunos e que, por isso, retorna s escolas como instrutores e assume as funes de maior relevncia na Fora. O fato de o sistema de ensino ser mais compensador, do ponto de vista da carreira, do que a tropa, abafa nessa elite da oficialidade, justamente a que

30 possui maior capacidade de influncia, o legtimo desejo de posicionar-se e manifestar-se clara e francamente em prol da recapacitao operacional do Exrcito. Confunde-se acomodao com disciplina intelectual e, com isso, reforada a tendncia passiva de aceitar as dificuldades atuais como um determinismo, colocando-se a soluo delas exclusivamente no governo ou na sociedade, em detrimento da postura possibilista da transformao interna, adotada por aqueles que modificaram o Exrcito nas primeiras dcadas do sculo XX. Receio estarmos diante do despontar de um novo bacharelismo. No como aquele do passado, caracterizado por um ensino baseado exclusivamente nas cincias fsicas e humanas, mas num outro, baseado agora nas cincias militares, mas igualmente gerador de uma mentalidade militar desviada de seus verdadeiros objetivos. Esse novo bacharelismo viria da aceitao, como fato consumado, de que no se poder, em mdio ou longo prazos, sair da regio capital de defesa, e seria o resultado da intensificao daquilo que se poderia chamar de espiral terica, caracterizada pela contnua repetio do ciclo: ex-aluno nomeado instrutor, que forma outro aluno e que exercem suas funes com base apenas em conhecimentos tericos. Esses novos bacharis, satisfeitos com o brilho de exerccios meramente intelectuais, dedicar-se-iam, cada vez mais profundamente, especulao de cunho acadmico sobre questes militares, e veriam nisso o sentido da carreira e considerariam isso o suficiente para a realizao profissional. Que no se julgue da, que no se deva estimular e aprofundar as pesquisas de assuntos militares conduzidas nas escolas e em outras organizaes militares, ou estreitar os laos com instituies universitrias. No isso que caracteriza o academicismo militar e, sim, a carncia ou a falta da contrapartida operacional, que em ltima anlise a razo da existncia de uma fora armada, e o eventual desprestgio ou desmotivao de novos tarimbeiros. Parafraseando os versos inspirados de Castro Alves, no convm esquecer que o livro laureado em luzes, mas no sabre que os lauris se enlaam. Necessitamos urgentemente buscar o equilbrio entre os sistemas de ensino e operacional, se desejarmos realmente ser um Exrcito eficaz. O primeiro passo nessa direo poderia ser o abandono da prtica de atribuir maior mrito ao desempenho de atividades docentes e discentes, em

31 detrimento do mrito das atividades operacionais nos corpos de tropa, o que em minha opinio uma inverso de valores. importante que o ensino seja considerado como o que ele realmente uma atividade-meio. A atividade-fim , e deve ser, a aplicao daquilo que foi ensinado. Isso no significa transigir com o nvel de qualidade do ensino, visto que o sistema operacional no pode ser eficaz se no houver ensino eficiente, mas a recproca no verdadeira, e o ensino pode prescindir do sistema operacional, fazendo-se objetivo de si mesmo na espiral terica. Na busca pelo equilbrio, imprescindvel que se resolva a questo da carncia de recursos, motivadora do recuo para a regio capital de defesa. Creio na alternativa possibilista da transformao interna, quer como soluo, quer como mal menor, visto que a determinista, dependente de vontades externas ao Exrcito, se vier a constituir-se em soluo, o que bastante improvvel, s o ser em muito longo prazo e, at l, a mentalidade do novo bacharelismo poder j ter fincado razes e o Exrcito necessitaria, ento, de uma nova Misso Indgena. Certamente foi pensando na aplicao do ensino, que se fixou, na prgula da AMAN, a placa de bronze com os versos dos Lusadas, que todos ns lemos inmeras vezes como cadetes: A disciplina militar prestante, No se aprende, senhor, na fantasia, sonhando, imaginando ou estudando, Seno, vendo, tratando e pelejando.

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REFLETIR SOBRE VIRTUDES

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As virtudes militares devem prevalecer no estabelecimento dos atributos que o Exrcito julga necessrio desenvolver em seu pessoal.

Tato no deve ser encarado como um atributo de valor militar. Os atributos que interessam ao Exrcito desenvolver em seu pessoal so obviamente de natureza positiva, o que atribui a esses atributos o carter de virtudes. Conseqentemente, um atributo de valor militar confunde-se com uma virtude militar. Adjetivar uma virtude como militar significa associ-la com o que caracteriza a prtica militar na sua essncia. Sob esse enfoque, as virtudes militares devem ser aquelas que encontram suas razes nas condies necessrias conduta do combate, pois o combate, ou a vocao para ele, em ltima instncia o que caracteriza a atividade militar. No so militares virtudes comuns a outras reas de atividade ou aos cidados em geral, inclusive os militares. O homem combateu ao longo de toda a sua histria. Para isso, organizou-se em exrcitos. Aprendeu, com a experincia acumulada, que um exrcito s se mantm coeso e eficaz sob as condies extremas a que os homens so submetidos em combate, se certas regras de conduta forem observadas, certos critrios de comportamento forem neles incutidos e certos traos de personalidade neles desenvolvidos. Dessas regras, critrios e traos provm as virtudes militares. Mas, por outro lado, inegvel que os militares, alm de cultivar o cerne das virtudes militares, devem evidenciar virtudes de carter geral, bem como comportar-se segundo as regras da boa educao e urbanidade, tanto no rotineiro convvio social, como no convvio funcional na caserna. nesse mbito perifrico que o tato e outras qualidades se situam e no no cerne das virtudes militares. Mas por que essa preocupao com o tato?

1 Publicado no PADECEME, 2 Quadrimestre de 2006

33 Porque as virtudes militares devem ser prioritrias no desenvolvimento de atributos no pessoal militar e, conseqentemente, no estabelecimento dos atributos de avaliao. Uma virtude perifrica pode, certamente, fazer parte daqueles atributos, mas desde que no se contraponha ou substitua uma virtude do cerne. O que, na minha opinio, acontece com o tato. O foco deste artigo no simplesmente o sistema de avaliao do pessoal e a maneira de se quantificar o mrito. Sua razo motivadora a suspeita de que a preocupao em desenvolver o tato esteja prejudicando o desenvolvimento de importantes critrios de comportamento e traos de personalidade geradores de virtudes verdadeiramente militares. O dever militar pode, em certas situaes, exigir que o militar exima-se de agir com tato e, sob as agruras do combate, quando vidas esto em risco e o cumprimento da misso em jogo, o exerccio do tato pode inclusive ser prejudicial quele dever. Durante a II Guerra Mundial 2, o ento Ten Cel Castello Branco, Oficial de Operaes da FEB, foi acionado s pressas, numa madrugada, para dirigir-se a um determinado ponto da frente. L encontrou um peloto que acabara de abandonar, sem autorizao, suas posies de combate. Indagado por Castello Branco, o comandante do peloto, claramente alucinado pelo medo, disse que havia alemes por toda a parte e que ele no queria deixar rfo o seu filho. Diante do risco imediato de o pnico se propagar e de o inimigo explorar o vazio na frente, Castello, sem hesitar, sacou sua pistola e disse ao tenente que se ele e seu peloto no retornassem imediatamente para suas posies, seu filho ficaria rfo a partir daquele mesmo instante. Diante da firmeza e da aparente fria determinao de cumprimento da ameaa, o tenente reassumiu sua posio e, mais tarde, veio a ser elogiado por bravura por suas aes de combate. Deveria o insgne futuro Marechal e Presidente da Repblica ter usado de tato com aquele tenente transido de medo, ou sua rude energia no caracterizou o mais puro dever militar? A resposta a esta pergunta me parece evidente, como tambm o o fato de que o dever militar e os atributos pessoais no devem ser conflitantes. Por conseguinte, referindo-se ainda ao de Castello Branco citada, o fato de se dar

2 Conforme narrativa do Gen Vernon Walters no livro Misses Silenciosas

34 cabal cumprimento a um dever militar no pode, ao mesmo tempo, significar o no atendimento de um atributo julgado necessrio. Como o dever militar inalienvel, o atributo que deve ser questionado. O tato, definido como a capacidade de agir com prudncia em relao s pessoas, evitando causar mgoas ou situaes constrangedoras, tambm no se ajusta, em alguns casos, com o estrito cumprimento do dever no dia-a-dia da atividade militar. Situaes do cotidiano em que uma pronta resposta necessria para impor a disciplina, evitar um acidente ou um mal maior, podem tambm exigir enrgica interveno, na qual a preocupao em ser prudente e no causar mgoas torna-se secundria. O dever de punir, ditado pela necessria preservao da disciplina, um potencial gerador de mgoas. Nem sempre, o punido, privado temporariamente do seu direito de ir e vir, ou simplesmente atingido em seus brios, estar, de acordo com seus pontos de vista, convencido de seu erro e da justia da punio. Nesse caso, a mgoa ser inevitvel, a despeito da correo do ato que lhe imps a punio ou da prudncia com que foi executado. Os processos de escolha, principalmente promoo, tambm podem gerar mgoas. H diversos casos de oficiais que, considerando-se os mais qualificados, ressentiram-se profundamente e, s vezes, at mesmo revoltaramse, ao serem preteridos pelo exerccio justo do poder discricionrio de escolha. Esses exemplos seriam suficientes para demonstrar que o dever militar se sobrepe preocupao de no causar mgoas. Alm desses e de outros desajustes com o dever militar, o tato exerceria influncia perniciosa para o adequado relacionamento funcional dos militares, por ser um atributo que, no seu exerccio, tende facilmente a distorcer-se. O tato serve como um amortecedor de choques interpessoais, mas a sua distoro pode lev-lo a servir tambm como capa para, por parte do subordinado, encobrir timidez de propsitos, indiferena, falta de convico ou de idias e receio de, por carreirismo exacerbado, desagradar ou contrariar chefes. Esse tipo distorcido de atitude pode tambm ser induzido inadvertidamente por chefes que, julgando-se auto-suficientes, prescindem do efetivo assessoramento de seus subordinados, ou por outros que, no sabendo separar a feio funcional da

35 feio pessoal, sentem-se pessoalmente ofendidos com a clara manifestao de pontos de vista diferentes ou opostos aos seus. Nesses casos, desvios inconvenientes de atitude podem se travestir em atributo positivo por meio de uma falsa demonstrao ou percepo de tato. Desse modo, pode ser tomada como tato a tendncia acomodao conformista, evitao do choque de idias, ao preconceito contra crticas, ao bom-mocismo, abordagem oblqa das questes, ao recurso a circunlquios e ao uso excessivo de formas amaciadas de expresso oral e escrita, tudo a fim de evitar o comprometimento pessoal, evidenciado pelo trato franco e direto das questes e pela exposio inequvoca de pontos de vista, opinies e assessoramentos. A fim de posteriormente melhor concluir sobre a inconvenincia do tato, convm antes comentar, de modo amplo, algumas virtudes militares. Entre essas virtudes, destacam-se a disciplina e o sentimento do dever, por serem virtudes de expresso permanente, ou seja, so aquelas que, sendo transcendentes, devem ser exercitadas em todos os momentos de nossa vida profissional. A disciplina, virtude militar por excelncia, faz com que exrcitos mantenham-se coesos e comandveis em combate. O sentimento do dever, inoculado na alma do soldado, permite que essa coeso seja orientada a um objetivo determinado, por mais duro e difcil que isso possa ser. Tanto a disciplina como o sentimento do dever aplicam-se da mesma maneira na paz ou na guerra, a despeito de o nosso sistema de avaliao do pessoal ter substitudo sentimento do dever por responsabilidade. Responsabilidade o sentimento do dever burocratizado. Homens podem ser responsveis em suas atividades rotineiras, mas, para predisporem-se aos esforos supremos que o dever militar pode exigir, devem cultuar um valor transcendente, que s o sentimento do dever capaz de expressar. Abaixo da disciplina e do sentimento do dever, h as virtudes militares de expresso momentnea, que so aquelas que devem ser evidenciadas sob certas condies, e que suplementam e reforam o exerccio das duas virtudes permanentes. O rol das virtudes de expresso momentnea no excludente. Sua composio pode ser variada, desde que todas tenham, de um modo ou de outro, suas razes fincadas nas necessrias condies para que homens combatam com eficcia. tambm necessrio que essas virtudes no se

36 contraponham entre si, ou seja, o atendimento de uma no signifique a negao de outra. A primeira que nos vem mente a coragem, virtude necessria para a superao do medo, cuja idia foi magnificamente representada pela frase de Turenne: Tu tremes, carcaa! Tremerias muito mais se soubesses para onde vou te levar3. A coragem, como virtude absoluta, de dficil manisfestao em tempos de paz, mas adjetivando-a, como coragem moral, haver situaes em que seu exerccio seja conveniente e at mesmo necessrio. Segue-se o equilbrio emocional. Ligado principalmente ao ato de comandar, o controle adequado das emoes em situaes de adversidade, a fim de resguardar a capacidade de decidir e de agir com calma, racionalidade e eficcia. Em combate, a necessidade de equilbrio emocional atinge seu pice e seria melhor definida pela expresso sangue-frio, herdada do jargo militar francs. Sangue-frio, alm do controle das emoes para a manuteno da calma e da racionalidade, representaria a capacidade, por vezes necessria, de reprimir a sensibilidade para decidir e agir. A alma posteriormente pode buscar alvio ou redeno, mas, em combate, o dever militar exige muitas vezes o exerccio do sangue-frio, e a histria militar plena de exemplos dessa natureza. Mas, por outro lado, se no houver adversidade sob a qual se tenha que decidir e agir, o equilbrio emocional, como virtude militar, no se aplica. Sob esse aspecto, equivocado considerar a exaltao mental na defesa de convices como falta dessa virtude, pois do contrrio estar-se-ia desestimulando os convictos de suas idias a defend-las, sem ter-se, em contrapartida, a certeza de que eles teriam ou no a capacidade de exercer o verdadeiro equilbrio emocional nas adversidades, ou mesmo o sangue-frio em combate. Napoleo foi um homem exaltado e at mesmo colrico em no poucas ocasies, mas ningum pode acusar o maior general dos tempos modernos de no ter tido equilbrio emocional ou sangue-frio em suas decises e aes sob as diversas adversidades que viveu no campo de batalha. A camaradagem a espcie de amizade que vincula aqueles que compartilham os mesmos riscos, esforos e sacrifcios, alm de comungarem do sentimento ambivalente de responsabilizar-se pela segurana dos que combatem3 Tu trembles, carcasse! Tu tremblerais bien davantage si tu savais o je te mnerai. Henri de La TourDAuverne, Visconde de Turenne (1611 - 1675)

37 ao lado e de confiar a prpria segurana a eles. O esprito de corpo, quase a expresso coletiva da camaradagem, o sentimento gerado pelo orgulho de pertencer a um grupo eficiente e aguerrido, em virtude da eficcia obtida pelo esforo coletivo nas asperezas dos trabalhos ou do combate. O esprito de corpo caracteriza-se tambm pelo anseio individual e espontneo de cooperar para manuteno ou engrandecimento do prestgio da organizao militar a que se pertence, alm de representar o mais forte fator de motivao para que se obtenha eficincia no combate, de acordo com Ardant Du Picq. O esprito de grupo, adotado pelo sistema de avaliao, substitui essas duas virtudes, embora sem expressar inteiramente suas caractersticas. O esprito de sacrifcio, cuja expresso mxima prpria vida, exercido em prol do cumprimento da misso ou em benefcio dos camaradas. semelhana do sentimento do dever, s se evidencia pela crena num valor transcendente. O desprendimento e a dedicao retratam essa virtude no dia-adia. Conforme j dito, outras virtudes poderiam ser adicionadas a esta lista. Estas foram destacadas porque, com a incluso da capacidade de liderana, na qual est implcita a de deciso, e da franqueza, as virtudes citadas seriam comuns a qualquer lista eventualmente feita. Atribui-se a Leonardo da Vinci a frase: nenhum conselho possui maior sinceridade de propsitos do que aquele dado ao capito de um navio sob risco de naufrgio. A frase evidentemente refere-se sensao do perigo comum, ao fato de se estar no mesmo barco. O relacionamento interpessoal em combate e, por conseqncia, a prtica das virtudes militares citadas requerem a mesma sinceridade de propsitos, o que s pode ser obtido por meio do exerccio absoluto da franqueza, fato que torna essa virtude verdadeiramente militar. Voltando-se ao tato, verifica-se que ele no incompatvel com a franqueza, mas suas distores sim. Desta assertiva e dos mencionados desajustes com o dever militar, pode-se inferir que o tato, na realidade, um atributo subsidirio, que no deve igualar-se em valor queles vinculados s virtudes militares, uma vez que suas inconvenincias talvez superem o seu benefcio como fator de preveno ou amortecimento de choques pessoais e funcionais.

38 Segundo essa linha de raciocnio, a franqueza, virtude verdadeiramente militar, deve prevalecer sobre o tato, atributo subsidirio. O tato deve ser condio para o exerccio da franqueza e no atributo independente, do mesmo nvel dos demais. No entanto, o tato tem sido privilegiado em detrimento da franqueza, j que franqueza no consta do rol dos atributos de avaliao. necessrio inverter essa lgica. O Exrcito deveria empenhar-se no desenvolvimento da franqueza como atributo necessrio a todos os seus integrantes, pois de acordo com a mxima esportiva, deve-se treinar conforme se vai jogar. Para tanto, necessrio inicialmente inserir a franqueza no rol dos atributos de avaliao do pessoal militar. O desenvolvimento da franqueza poderia anular os efeitos negativos das distores do tato, caso este seja mantido como atributo independente. No entanto, mais conveniente que o tato seja apenas condicionante da franqueza, como sugerido anteriormente. A absoro do tato pela franqueza, salvo melhor juzo, no traria prejuzo aos traos de personalidade adequados aos militares. A preocupao em no causar mgoas no se ajusta bem com o dever militar, o que no exclui o acatamento s regras da boa educao e urbanidade. Uma eventual preocupao de que a ausncia do tato possa exacerbar o choque de opinies, e com isso exceder a esfera funcional, atingindo a pessoal, carece de fundamento, porque essa uma questo que se insere na esfera disciplinar e no em qualquer preocupao em ser prudente com as pessoas e no causar mgoas ou situaes constrangedoras.

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MANTER A MENTE RESOLUTA 1S deixaremos enferrujar nossas armas, se deixarmos de acreditar na possibilidade ou necessidade de us-las.

Brao forte, mo amiga um belo lema. Tem vnculos profundos com a tradio e cultura do Exrcito Brasileiro. Reflete a ao pacificadora de Caxias que, aps o emprego resoluto e implacvel do brao forte para impor militarmente o respeito legalidade, estendia magnanimamente a mo amiga para o ajustamento adequado das diferenas polticas. O lema tambm compatvel com a conscincia social que o Exrcito Brasileiro passou a nutrir ao longo de sua evoluo histrica. Conscincia que desabrochou com a recusa, no ltimo quartel do sculo XIX, de exercer o papel de capito-do-mato, devido em grande parte ao reconhecimento pela inestimvel contribuio do brao negro para a vitria contra o Paraguai. Conscincia que se reforou aps as duras represses que o Exrcito imps, por determinao do poder poltico, s grandes tragdias sociais que foram os conflitos de Canudos e do Contestado. Esses fatos levaram o Exrcito a perceber que o Pas jamais atingiria adequada condio de equilbrio social e, conseqentemente, a necessria estabilidade interna e unidade de propsitos imprescindveis defesa da Ptria, se a injusta estratificao do povo brasileiro, herdada de uma viso aristocrtica da sociedade, continuasse inalteradamente a vigorar. Na poca, o tenentismo foi o movimento com que parte do Exrcito buscou resolver essa questo social, e as escolas regimentais, o elemento mais simblico dessa preocupao. Na atualidade, a mo amiga tem se feito bastante presente e, inegavelmente, tem trazido muitos benefcios imagem do Exrcito junto sociedade brasileira, pela forma sria, competente e eficaz com que a Fora tem atendido inmeras e diversificadas necessidades do governo e anseios da sociedade. O Exrcito tem sido um instrumento eficaz para o desempenho de encargos que outras instituies, diretamente responsveis por essas

1 Publicado na Coleo Meira Mattos, 2 Quadrimestre de 2007

40 necessidades e anseios, no tm demonstrado condies reais ou polticas de resolver. O estender da mo amiga, em funes que no so primariamente suas, tem rendido ao Exrcito um elevado nvel de credibilidade junto sociedade. Esse um aspecto que no se pode desprezar, e o Exrcito deve, sempre que houver necessidade ou convenincia, perseverar na execuo desse meio de atuao poltica e social. No entanto, no a mo amiga que caracteriza um exrcito. No por ela que uma nao dispe-se a arcar com os custos pela manuteno de uma fora armada. Esses custos s so justificveis perante a sociedade se as foras armadas forem realmente capazes de garantir a segurana e prover a defesa da nao diante das necessidades e ameaas que porventura surgirem. A caracterstica essencial de um exrcito , e sempre ser, o seu brao forte. A boa imagem que o Exrcito goza junto a sociedade em virtude de sua mo amiga efmera e condicional. Esta imagem desfar-se- rapidamente se, em caso de necessidade de uso do brao forte, razo pela qual a sociedade sustenta a fora armada, ele no demonstrar ser forte e dispor de suficiente destreza para responder a desafios e ameaas soberania e aos interesses nacionais. O Exrcito necessita de ambos, do brao forte e da mo amiga, mas no pode jamais esquecer que esta simplesmente importante, enquanto o primeiro essencial. A mo amiga facilmente estendida, basta praticamente a boa vontade para isso. O brao forte em contrapartida requer um grande esforo prvio para aparelh-lo e exercit-lo, antes de ficar em condies de ser empregado. Nos ltimos vinte anos, por razes diversas, esse esforo no foi adequadamente empreendido, a ponto de termos hoje uma viso muito mais ntida da mo amiga do que do brao que necessita muito fortalecer-se. H um grande desequilbrio nesse binmio, a despeito do carter essencial do brao forte. O patamar oramentrio, vigente h longos anos, situa-se muito abaixo das atuais necessidades do Exrcito. Essa carncia financeira e o conseqente muito baixo nvel de investimentos e a insuficincia dos recursos para o custeio tm concorrido fortemente para a obsolescncia e degradao dos nossos meios de combate. A deteriorao e a indisponibilidade de nossos armamentos, viaturas e equipamentos afetam diretamente o adestramento da Fora e a sua capacitao para o cumprimento de sua misso precpua e intransfervel: a defesa da Ptria,

41 misso indelevelmente relacionada com o brao forte. A mdio ou longo prazos, esta situao, alm dos atuais danos materiais, trar prejuzos para o esprito militar do nosso pessoal, principalmente dos jovens, em virtude do amolecimento gerado pela falta da prtica puramente militar, voltada para o combate, e pelo enfraquecimento da f na misso essencial do Exrcito, em virtude da evidente inadequao ou da falta de meios para isso. No entanto, a carncia de recursos no explica integralmente a atual fraqueza dos nossos meios de combate. preciso incluir um outro elemento naquela metfora corporal, a fim de melhor entendermos as razes que levaram atual situao e visualizarmos uma condio necessria sua correo. Como j dito, fcil estender a mo amiga, mas o brao, entretanto, no se faz forte e nem se aciona por simples boa vontade. necessria uma vontade tenaz e firme. H necessidade de a mente, que comanda o brao, ser resoluta para que sejam tomadas as indispensveis e, na maioria das vezes, difceis decises tanto para o fortalecimento dele, como para o seu emprego decidido e eficaz. O brao no ser forte se a mente no for resoluta, e se a mente no o for, ser intil o brao ser forte. Levando-se em considerao as naturais diferenas de carter e personalidade, todos os oficiais do Exrcito, formados pelas mesmas escolas e temperados nas mesmas labutas, so, em nvel individual, resolutos. A resoluo a que me refiro, embora originria de pessoas, tem uma implicao institucional. preciso portanto defini-la. Mente resoluta aquela que se mantm permanentemente focada na essencialidade da Misso. aquela que no se concentra no secundrio de preferncia ao principal, que no trata do suprfluo em detrimento do essencial, e que no prioriza os meios com prejuzo dos fins. E, por ter essas caractersticas, aquela que no se comporta necessariamente como os lquidos, que escorrem sempre pelo caminho de menor resistncia, mas que no hesita em adotar as medidas necessrias para que o principal, o essencial e os fins prevaleam sobre o secundrio, o suprfluo e os meios. Ao longo dos ltimos vinte anos e de acordo com a definio acima, creio que, de algum modo, nos falhou a mente resoluta. Os nossos meios de combate, indispensveis para a operacionalidade, que a caracterstica primordial do

42 Exrcito, deterioraram-se significativamente em virtude de no terem recebido ateno prioritria, condizente com sua essencialidade. Pretendo, neste artigo, demonstrar que essa perda de capacidade blica no foi provocada por um determinismo irrecorrvel, que nos privasse de qualquer alternativa. Sobre o oramento, cuja insuficincia a causa original dos problemas, o Exrcito nunca teve, e provavelmente nunca ter, suficiente controle para garantir o seu adequado ajustamento s necessidades da Fora. Esse um fator que depende de decises de governo, externas ao Exrcito, e que portanto escapa nossa exclusiva esfera de atribuio. No porm nas aes externas que o Exrcito pode implementar para aumentar sua fatia oramentria que centrarei o foco deste artigo, at mesmo porque estas aes no tm logrado efetivo sucesso. Focalizarei o campo de atuao interna do Exrcito, o mbito da nossa margem de manobra, as alternativas que, a meu ver, poderiam e ainda podem solucionar ou minorar os efeitos perniciosos que a escassez oramentria provocou na nossa capacitao operacional. Mais grave, porm do que a degradao dos nossos meios de combate, foi a nossa postura, da oficialidade em todos os nveis, de aparente tcita aceitao do longo desenrolar desse indesejado processo. No estimulamos, nem tampouco buscamos alternativas que o amenizassem. Inicialmente alimentamos a esperana de que a crise seria transitria. Com o seu prolongar, creditamos a culpa integralmente desdia e falta de preocupao do pas e da sociedade pelas questes de defesa. Diante do fato consumado, no pensamos na possibilidade de enfrentar o problema internamente, na esfera de atribuies da Fora, com a mente focada, de forma resoluta, no essencial, no principal e nos fins. Seria no entanto um equvoco tentar explicar esta aceitao pela m-f, inpcia, ou mesmo, pela indiferena da oficialidade pelos destinos do Exrcito. Nossa rgida formao e os vnculos que indubitavelmente nos prendem Fora, excluem essas possibilidades. A explicao deve ser de outra natureza. Creio que ela seja fruto de duas causas: da ambigidade histrica e cultural de nossa herana militar e de uma viso patrimonial do Exrcito. Certa feita, os oficiais e graduados de uma subunidade independente foram indagados, por seu comandante, sobre qual era a imagem que lhes vinha mente ao ouvirem o nome da subunidade. A resposta foi unnime, e a imagem

43 que tinham era a do quartel. Isso primeira vista pode parecer sem importncia, mas no . A resposta unnime reflete a nossa viso patrimonial do Exrcito. Vemos principalmente o patrimnio imobilirio o quartel e no o conjunto bem dosado de homens, armas e equipamentos destinado ao cumprimento de misses especficas de combate. Um nmero bastante significativo de comandantes de OM se desdobra na execuo de obras e na manuteno de seus aquartelamentos, mas um nmero bem menos significativo demonstra a mesma tenacidade na manuteno de seus meios de combate e na busca do melhor adestramento para sua OM. Essa viso patrimonial convive em simbiose com o sedentrio esprito de guarnio de uma parte do nosso pessoal, que v a sua ao profissional circunscrita administrao da vida vegetativa e s atividades rotineiras das lides no quartel, em detrimento do esprito combatente, focado na essencialidade da Misso. A influncia atvica de sculos de montono servio de guarnio nas fortalezas que pontilhavam o litoral e o interior do Brasil talvez ajude a explicar essa tendncia. Sob o enfoque desse esprito de guarnio, a instruo e o adestramento so apenas mais algumas daquelas rotinas, e no a ao primordial, justificadora da existncia da OM. Bem representativa deste esprito a conhecida frase: instruo no d cadeia. Diante da crise financeira, estabeleceu-se a manuteno da base existente como premissa para o planejamento estratgico do Exrcito. Mas, na prtica, o que tem sido mantido e preservado, no sem dificuldades, o patrimnio imobilirio, em detrimento do patrimnio blico, representado por nossas armas, viaturas e equipamentos, que, de modo geral, vm sendo alienados medida que se tornam inservveis, sem possibilidade de serem substitudos por similares e muito menos por meios mais modernos 2. Na realidade, a premissa inobservvel. invivel manter a base existente dispondo-se de um oramento que s permite destinar um percentual irrisrio para investimento e bastante insuficiente para o custeio. A poltica de manuteno da base existente tem, de fato, resultado na aceitao da progressiva deteriorao do patrimnio blico. A prioridade estabelecida para as foras estratgicas tem evitado que estas sofram intensamente essa deteriorao e lhes permitido manter

2 interessante notar que, no caso das fortalezas coloniais, os patrimnios imobilirio e blico se confundiam.

44 bons nveis de operacionalidade. Mas deve-se considerar que, a mdio e long