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Recorde: Revista de Histria do Esporte Artigo volume 1, nmero 1, junho de 2008 Silvana Goellner
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AS MULHERES FORTES SO AQUELAS QUE FAZEM UMA RAA FORTE: ESPORTE, EUGENIA E NACIONALISMO NO
BRASIL NO INCIO DO SCULO XX Profa. Dr. Silvana Vilodre Goellner1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, Brasil [email protected]
Recebido em 2 de fevereiro de 2008
Aprovado em 25 de fevereiro de 2008
Resumo
Fundamentada na abordagem terico-metodolgica da histria cultural e nos estudos de gnero, este artigo discute a importncia atribuda ao esporte na poltica de fortalecimento da populao brasileira branca no incio do sculo XX. Evidencia, sobretudo, que para essa poltica se efetivar foi necessrio investir no fortalecimento do corpo feminino, pois segundo os ideais nacionalistas em voga naquele momento, somente um corpo forte poderia gerar uma raa forte. Traduzem-se como fontes primrias desta pesquisa, documentos produzidos neste perodo, bem como as 88 edies da primeira revista cientifica especfica da rea da educao fsica. Atravs da tcnica da anlise de contedo foi possvel compreender que o discurso nacionalista brasileiro, ao buscar o refinamento da raa, fez a apologia da sade da mulher branca identificando a atividade fsica como a melhor forma de fortalec-la e aprimor-la. Palavras-chave: esporte; eugenia; nacionalismo.
Abstract
Strong women are those who make strong race: sport, eugenics and nationalism in Brazil in the early 20th century
Based on the theoretical-methodological approach of cultural history and in gender studies, this paper discusses the importance given to sports in the domestic policy of strengthening the Brazilian white population in the beginning of the 20th century. In order to analyze the role occupied by sport in this process, I have analyzed many sources of research, moreover, the 88 issues of the first physical education and
1. Pesquisadora Produtividade em Pesquisa do CNPq.
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sports journal. Making use of the technique of content analysis, it was possible to understand that the Brazilian nationalist discourse, by searching the refinement of the race, defended white beauty, and, therefore, identified womens body as the most important instrument for the obtainment of this, identifying in sports the main means of educating womens body, strengthening it, and perfecting it. Keywords: sport; eugenics; nationalism.
Introduo
Nos primeiros anos do sculo XX a populao brasileira era composta,
majoritariamente, por negros escravos ou descendentes. Essa composio tnica passou
a ser alvo de diferentes intervenes em nvel nacional cujos objetivos estavam
direcionados para o refinamento da raa visto que, para as elites brancas, os negros eram
considerados como seres inferiores. Muitas das aes planejadas para atingir esse
intento partiam das observaes de autores estrangeiros para quem o Brasil, apesar de
ser um belo pas, um dos mais belos que existem no mundo conforme apresentao de
da Reveu de lExposition Universelle por ocasio da Exposio Universal de Paris, em
1889 (PESAVENTO, 2005), era um pas condenado mestiagem (GOBINEAU, 1874;
LAPOUGE, 1896; LE BON, 1907).
Dentre as inmeras aes desenvolvidas em prol do fortalecimento da raa
branca tais como a vigilncia sobre o casamento inter-racial, a realizao do exame pr-
nupcial e a esterilizao de doentes, algumas se voltaram para o robustecimento do
corpo e a potencializao da sade. Dentre elas destacam-se as recomendaes
contrrias ao uso do fumo e do lcool, prtica sexual intensa e a poucas horas de sono
bem como as prescries em favor dos banhos de mar, da exposio ao sol, da
alimentao adequada e da realizao de atividades fsicas (GOELLNER, 2003).
No que diz respeito s prticas esportivas, desde o final do sculo XVIII existiam
no Brasil muitas tradies pr-esportivas, como por exemplo, as cavalhadas e jogos. O
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campo esportivo em seu sentido moderno (BOURDIEU, 1983) desenvolveu-se somente
a partir das dcadas de 1830/1840 com o surgimento de clubes de remo, turfe e
atletismo (MELO, 2001; LUCENA, 2001) e, estes eram freqentados pelas elites
urbanas e brancas. Considerado como carter aristocrtico, familiar e saudvel o esporte
passa a ser recomendado como uma prtica que possibilita o desenvolvimento orgnico
e social dos indivduos tornando-os mais fortes e conscientes de seus deveres para com a
sociedade e a Nao.
Incorporar esta nova crena nas prticas cotidianas dos brasileiros e constituir de
forma duradoura uma moral em prol do fortalecimento da Nao compunham o
imaginrio social dos primeiros anos do sculo XX. Para viabilizar tal intento era
necessrio investir no equilbrio funcional e morfolgico dos indivduos brancos de
forma a no retardar, mas tambm no precipitar o seu desenvolvimento orgnico,
sobretudo daqueles que eram mais fracos. A constituio de uma raa forte se faria
mediante a eliminao dos sinais de enfraquecimento. Nas palavras de eminente
intelectual do perodo:
Se necessrio para o vigor da espcie que todos os imperfeitos sejam destrudos, sobreponhamo-nos natureza no destruindo os imperfeitos com austeridade drica, que mandava lanar ao Taigete as crianas disformes e punia a obesidade como um vicio o que seria deshumano, mas tornando-os perfeitos o que seria altruistico; no eliminando os fracos, o que seria selvagem, mas eliminando-lhes a fraqueza o que dever da sciencia (AZEVEDO, 1920, p. 4)
A idia de fraqueza no se relacionava somente s questes orgnicas, estava
tambm, e principalmente, ligada carncia de atributos morais que levavam a
populao indolncia e ao desnimo. Dentro desta perspectiva, os exerccios fsicos so
apresentados como um poderoso instrumento modelador das formas e agente de
ordenao dos corpos que, pela prtica sistemtica, aumentaria o capital-sade da
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populao. Em funo dessa percepo, o esporte inicia, gradativamente, a adquirir
importncia no cenrio cultural das cidades e a educao fsica inserida como disciplina
integrante do plano nacional de educao cuja ao, no interior do contexto escolar,
deveria desenvolver, ao mximo, as virtudes da raa e as aptides hereditrias de cada
indivduo. O ensino da depurao racial deveria acontecer desde a infncia pois
educar as crianas a conhecer os fatores que perturbariam as condies da boa sade em defesa dos interesses da raa, da famlia e da ptria exigia a instalao de dispensrios higinicos, voltados puericultura, em todas as fbricas, bem como a construo, em todas as cidades do pas, de ginsios de educao fsica, facilitando o aperfeioamento fsico e mental das futuras geraes (MONTELEONE, 1929 apud MOTA, 2003, p. 33).
Advoga-se, ento, em favor de uma educao fsica e esportiva que, pautada por
um estatuto cientfico e ao mesmo tempo moral, estivesse articulada medicina e s
normas jurdicas em favor de uma nova ordenao dos corpos, fortalecendo, assim, a raa
branca ideal imaginrio de um povo ameaado pela mestiagem.
Baseados na teorizao darwinista de que a atividade fsica atuava no
fortalecimento orgnico e, portanto, no aprimoramento da espcie, muitos dos discursos
e prticas que circularam no Brasil do incio do sculo XX mencionavam que o
refinamento da raa estava diretamente relacionado com o fortalecimento da populao.
Nesse sentido, no pouparam esforos para criar condies de educar, fortalecer e
aprimorar o corpo feminino branco, observado como o principal instrumento para
atingir uma raa branca, representada como superior e perfeita.
Fundamentao terico-metodolgica
Fundamentada no aporte terico dos estudos de gnero (SCOTT, 1988;
BUTTLER, 1990; MESSNER e SABO, 1990; LOURO, 1995) e da histria cultural
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(HUNT, 1989; LE GOFF, 1998; PESAVENTO, 2004), o objetivo deste artigo analisar
a importncia atribuda s prticas corporais e esportivas na poltica nacional de
fortalecimento da populao brasileira na primeira metade do sculo XX. Analisa, mais
especificamente, diferentes discursos e prticas que, pautados pelos ideais eugnicos e
nacionalistas em voga naquele momento, apontaram para a necessidade investir no
aprimoramento do corpo feminino branco como um meio de atingir tal intento.
Considerando o corpo como uma construo histrica e social (SOARES, 2001;
GOELLNER, 2005; AZARITO e SOLMON, 2006) sobre o qual se inscrevem marcas
vinculadas ao feminino e ao masculino, a categoria de gnero utilizada para analisar os
discursos e prticas que representam a mulher como a clula-mater de uma sociedade
em processo de regenerao.
A adoo do gnero como ferramenta terica e analtica justifica-se pela
possibilidade que oferece de desconstruir a representao naturalizada de que homens e
mulheres constroem-se masculinos e femininos pelas diferenas corporais e que essas
diferenas justificam determinadas desigualdades, atribuem funes sociais, determinam
papis a serem desempenhados por um ou outro sexo (GOELLNER, 2007). Possibilita,
sobretudo, identificar que os corpos, as gestualidades, as representaes de sade,
beleza, performance, sexualidade so construes histricas que, em diferentes tempos
e culturas foram associadas aos homens e/ou as mulheres, produzindo, ainda,
representaes de masculinidades e feminilidades.
Considerando que os corpos no se traduzem em matria universalmente
edificada pelos desgnios da natureza, enfatizo a importncia da utilizao do gnero
como uma categoria analtica visto que esse conceito importante para perceber os
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processos pelos quais, no interior de redes de poder2, a diferena biolgica tomada
para explicar desigualdades sociais gestando, assim, formas de incluso e excluso de
sujeitos e grupos.
Vrios outros argumentos poderiam ser utilizados para demarcar a importncia
dos estudos de gnero no campo da Educao Fsica e do esporte, no apenas nas
abordagens historiogrficas. No entanto, um deles, por si s, j garante sua existncia: o
gnero nos constitui, inscreve-se na nossa carne. Isso significa perceber que os corpos
carregam discursos como parte de seu prprio sangue (BUTLER apud PRINS e
MEIJER 2002, p.163). Eles, os discursos, se acomodam no corpo e os generificam.
No caso especfico deste texto, o foco de anlise est centrado nas mulheres
brancas e na valorizao de uma representao de feminilidade que considera virtuosa a
mulher que ou se tornar a me de filhos hgidos e fortes.
A articulao entre gnero e raa3 aqui considerada porque as recomendaes
em favor da realizao atividades fsicas e esportivas visando aprimorar o corpo
feminino no so direcionadas para as mulheres brasileiras em geral, mas para um grupo
especfico: as mulheres brancas. O Brasil dos primeiros anos do sculo XX, ao
considerar o branco europeu como a referncia tnica a ser perseguida no apenas
centrou na colorao da pele o principal elemento a classificar as raas como tambm
investiu na construo de uma identidade racializada cujo objetivo era embranquecer a
populao.
2. Poder aqui tomado a partir da teorizao de Michel Foucault (1992) que o percebe como difuso,
descentralizado e horizontal. 3. Raa e etnia so aqui compreendidas como categorias sociais discursivamente construdas que ao longo da
histria da humanidade tm sido utilizadas para hierarquizar os sujeitos, considerando-os no apenas diferentes, mas, sobretudo, desiguais (HOOKS, 1992).
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A opo pela abordagem histrica para subsidiar este artigo est ancorada na
compreenso de que a vida social inescapavelmente histrica (THORPE, 2006). Razo
pela qual tempo uma categoria de anlise importante, no apenas para os estudos
historiogrficos, mas tambm para anlises de cunho sociolgico (ABRAMS, 1980;
GRIFFIN, 1995), inclusive, no campo da sociologia do esporte (MAGUIRE, 1995;
THORPE, 2006).
Para analisar as relaes entre esporte, raa, gnero, eugenia e nacionalismo, no
contexto brasileiro do incio do sculo XX, foram utilizadas como fontes primrias de
investigao, diversos documentos produzidos neste perodo tais como: livros
publicados sobre educao, esportes e educao fsica, manuais mdicos, anais de
congressos cientficos, publicaes da Sociedade Eugnica de So Paulo alm de uma
variedade de documentos oficiais produzidos pelo governo brasileiro. Foi considerada,
ainda, como fonte privilegiada de pesquisa, a Revista Educao Physica - primeiro
peridico cientifico da rea da educao fsica e do esporte publicado no Brasil, cuja
circulao se deu no perodo compreendido entre maio de 1932 e setembro de 1945,
totalizando oitenta e oito edies.
At o final dos anos 30, a educao fsica brasileira era ainda uma rea muito
incipiente, no havia escolas de formao de profissionais (surgir apenas em 1939) e o
saber dos professores geralmente se limitava instruo prtica dos esportes e da
ginstica. Os esportes, por sua vez, estavam em plena expanso com o surgimento,
desde o final do sculo XIX, dos clubes recreativos, agremiaes, federaes,
campeonatos, demonstraes atlticas, clubes de ginstica, parques de lazer e estdios
esportivos (ALTMANN et alli, 2001).
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dentro deste cenrio, que a Revista Educao Physica tornou-se um importante
instrumento para a divulgao das idias eugnicas visto que se configurava como um
peridico cientfico e pedaggico a instruir os sujeitos que atuavam no campo das
prticas corporais e esportivas4. Alm disso, foi um meio de divulgao de idias
nacionalistas uma vez que, desde 1930, vigorava, no Brasil, um governo centralizador
que culminou com a instaurao de um regime ditatorial (1937-1945). Este governo
implementou vrias aes ligadas educao fsica e ao esporte, considerados como
pilares do projeto de engrandecimento da Ptria para o qual se fazia necessrio o
fortalecimento da populao, a depurao racial e a construo de um sentimento de
identidade nacional5.
Como ferramenta metodolgica foi utilizada a anlise de contedo cujos
documentos foram analisados em separado e, posteriormente, relacionados entre si.
Desse entrecruzamento entre as diferentes fontes de pesquisa (livros, revistas, manuais
mdicos, anais de congressos cientficos e documentos oficiais) foram elaboradas
unidades de significado que possibilitavam melhor compreender como, no incio dos
anos XX, no Brasil, foram articuladas as representaes de raa e gnero com o esporte
e com o discurso nacionalista. Entendemos que o esporte um espao generificado, no
entanto, nossa anlise no se restringe apenas a essa a categoria de anlise. No caso
especfico deste estudo, a articulao entre gnero e etnia permitiu compreender que o
4. Em outubro de 1932 vai surgir a Revista brasileira de educao Fsica, publicada pelo Exrcito brasileiro.
5. Corresponde a este perodo a criao do Instituto Brasileiro de Eugenia (1920); do Ministrio dos
Negcios da Educao e da Sade Pblica (1931); da Escola de Educao Fsica do Exrcito (1933), da Diviso de Educao Fsica do Departamento Nacional de Educao (1937); da Escola Nacional de Educao Fsica e Desportos da Universidade do Brasil (1939); a instalao da Comisso Nacional de Desportos (1939) e do Conselho Nacional de Desporto (1941). Alm disso, na Constituio Nacional, promulgada em 1937, a Educao Fsica passa a ser uma disciplina curricular obrigatria para todas as instituies de ensino.
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discurso nacionalista brasileiro buscou a valorizao da beleza branca como uma forma
de refinamento da raa.
O Brasil no incio do sculo XX: a branquidade construda
A escravido no Brasil teve incio com a produo de acar na primeira metade
do sculo XVI quando os portugueses traziam os negros de suas colnias na frica para
utilizar como mo-de-obra nos engenhos do Nordeste. Esse sistema ampliou-se para os
setores da agricultura, pecuria e extrao de minerais em diversos estados da nao
perdurando at 1888, quando foi abolida. Identificada pela elite branca como
fundamental para o desenvolvimento da economia nacional, a fora de trabalho dos
negros sustentava o modelo econmico vigente voltado, predominantemente, para a
exportao de produtos oriundos da produo dos grandes latifndios. Segundo dados
publicados pelo governo brasileiro, em 1900, os negros compunham cerca de 60% da
populao, em um total de, aproximadamente, 14 milhes de habitantes (REIS, 2000).
No continente americano, foi o pas que mais importou escravos africanos, totalizando
cerca de 4 milhes de homens, mulheres e crianas, o equivalente a mais de um tero de
todo comrcio negreiro mundial (REIS, 2000).
Com o final do regime escravagista, o governo federal adotou uma poltica de
incentivo imigrao, fundamentalmente de europeus, cujo trabalho assalariado passou
a substituir a mo-de-obra dos escravos. Entre 1884 e 1933, o Brasil recebeu por volta
de 4 milhes de imigrantes em sua maioria, portugueses, italianos, alemes e espanhis
(REIS, 2000) que, primeiramente, atuaram na agricultura e pecuria e, a partir das
primeiras dcadas do sculo XX, no cenrio urbano, visto que estava iniciando o
processo da expanso industrial brasileira.
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O Brasil que se modernizava buscava inspirao na civilizao europia
ocidental e, diante da ameaa da mestiagem, buscou na cincia elementos para
justificar a supremacia branca. Neste contexto possvel perceber o quanto a noo de
raa uma categoria discursiva que historicamente tem operado cultural, poltica e
simbolicamente em favor dos brancos, que deveriam ser cada vez mais aprimorados
quanto s suas capacidades fsicas e morais de forma a diferenciarem-se dos negros
escravos ou dos descendentes destes.
Assim o era para as elites brasileiras que, identificadas com os europeus,
buscavam fazer do Brasil uma nao construda a partir de suas referncias polticas,
culturais e econmicas. A prpria poltica imigratria foi pensada dentro dessa
perspectiva: atrair imigrantes brancos se traduzia em uma outra estratgia do
embranquecimento da raa pois, evitar a mestiagem, era uma forma de garantir s
elites o seu pedigree (MARQUES, 1994, p. 88).
Nos primeiros anos do sculo XX, a constituio homognea do povo brasileiro
passou a ser o pilar fundamental de um projeto de humanidade centrado na valorizao
do corpo gil, viril, saudvel, potente e branco (GOELLNER e FRAGA, 2004). O
disciplinamento e a crena na transformao da sociedade atravs da padronizao do
corpo brasileiro se tornaram mais sofisticados ao ganharem contornos cientficos mais
apurados, cuja referncia primeira era a eugenia movimento poltico-cientfico que
visava ampliar as qualidades daqueles que ainda estavam para nascer. Uma cincia que
pretendia legar boas caractersticas s geraes futuras (SILVA, 2007).
Renomados intelectuais brasileiros comeam a fazer referncia s atividades
fsicas como instrumento privilegiado para desenvolver ao mximo as virtudes da raa
e as aptides hereditrias de cada indivduo pois, ao atuarem no equilbrio funcional e
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morfolgico dos indivduos aumentavam a sade da populao (MELO e MANGAN,
1997; DAOLIO, 2003). Em funo de argumentos como este, o esporte passa a ser
amplamente difundido cuja fraqueza e desnimo s se mantinha por que os sujeitos no
haviam desenvolvido suficientemente atributos fsicos como virilidade, hombridade e
coragem. Atributos esses fundamentais para a idia da constituio do corpo-nao: um
corpo que representasse o brasileiro liberto e moderno e que se distanciasse, sobretudo,
do corpo negro ainda que estes fossem os corpos que constituam, nesse momento, a
maioria pobre da populao.
Os ideais eugnicos foram, gradativamente, incorporados pela elite brasileira que
percebia nesta cincia um instrumento primoroso para constituir uma raa elevada e, ao
mesmo tempo, utilizar diversos dispositivos para barrar e impedir o surgimento
daqueles considerados inferiores e ameaadores aos projetos nacionais. (MOTA, 2003).
O ano de 1918 pode ser considerado como marco das investidas sistemticas da eugenia
no Brasil, com a criao da Sociedade Eugnica de So Paulo, apenas alguns anos aps
o surgimento da The Eugenics Education Society, na Inglaterra em 1907-1908, da The
Eugenics Record Office nos Estados Unidos em 1910 e da French Eugenics Society em
Paris em 1912 (STEPAN, 1996).
O embranquecimento da raa, ao fazer parte da poltica nacional de
desenvolvimento do pas, foi amplamente difundido na sociedade brasileira encontrando
apoio em diferentes categorias profissionais. Mdicos, intelectuais, militares, dirigentes
polticos, professores, instrutores de atividades fsicas se integraram a esse projeto e,
atravs da especificidade de sua interveno no plano social e educacional, no
pouparam esforos para consolid-lo (SCHWARCZ, 1993). Das vrias aes a serem
desenvolvidas para esse aprimoramento racial, uma delas foi consensual e amplamente
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destacada: o fortalecimento do corpo feminino a ser conquistado atravs da prtica de
atividades fsicas.
As mulheres fortes so aquelas que fazem uma raa forte
A inteno de fortalecer o corpo feminino mediante a prtica de atividades
fsicas objetivando prepar-lo para a conduo de uma maternidade sadia orientou a
incluso das mulheres no universo das prticas corporais e esportivas em diferentes
pases como, por exemplo, na Argentina (RODRIGUEZ, 2001; SCHARAGRODSY,
2006), Alemanha (PFISTER, 2001; HARTMANN-TEWS e LUETKENS, 2003),
Estados Unidos (GUTTMANN,1991; BIRRELL e THEBERGE, 1994), Reino Unido
(SCRATON, 1992; WHITE, 2003), Frana (ARNAUD e TERRET, 1996; LIOTARD e
TERRET, 2005), Itlia (DE GRAZIA, 1981 ), Espanha (ARMAR Y BORBN, 1994;
AJA, 2002) e Portugal (HASSE, 2001; CRUZ et alli, 2005).
No caso especfico do Brasil, na virada do sculo XIX para o XX, ao
fortalecimento do corpo feminino visando uma maternidade sadia agregou-se um
objetivo de cunho nacionalista que conferia s mulheres brancas o papel de fortalecer a
Nao mediante a regenerao fsica e racial da sua populao. Em 1884, o mdico
Eduardo de Magalhes advertia:
Com a fraqueza das mes comea a do homem pois da mulher fraca, depauperada, nervosa, mal nutrida, no se espera filho bem constitudo, nem que possa amament-lo convenientemente: o recm-nascido representa uma clula do organismo de seus progenitores, mxime da me. A predestinada a reproduzir a espcie, garantir a validez, habilitar o homem a ser homem, apto a lutar pela vida utilmente para si, para a famlia e para a ptria, no devidamente educada entre ns para o desempenho de sua misso sublime (1884, p. 123).
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Tanto quanto realizar um bom casamento, evitando, por exemplo, as relaes
inter-raciais, fortalecer o corpo feminino branco passa a ser identificado como uma
necessidade nacional (KEHL, 1926; BESSE, 1996; GOELLNER, 2003). O corpo
feminino (e tambm o masculino), pois a fraqueza, a indisposio e a debilidade, vistas
como males sociais, afetavam e prejudicavam homens e mulheres, ainda que de forma
diferente. Impelir os sujeitos atividade fsica era uma necessidade, no entanto,
deveriam ser resguardadas as especificidades da natureza dos corpos que, por serem
considerados como distintos, reclamavam prticas diferenciadas. Educar para a
imposio fsica equilibrada era a finalidade do trabalho muscular destinado aos homens
brancos; exercitar os corpos para suportar os desgnios maternais era a misso reservada
s mulheres brancas. Segundo Fernando de Azevedo, um importante intelectual da
poca,
O que preciso, no entanto, ter sempre em vista na educao fsica a diferena do sexo... Os rgos de agresso e defesa no homem reclamam violncia de movimento, na mulher apenas gestos suaves, a quase quietude. Por exemplo, o olhar do homem est habituado a produzir o medo e os sinais da energia e do mando; o da mulher veludoso e educa-se em atra-los. A violncia e o exerccio no homem criam as asperezas da superfcie do corpo pelo desenvolvimento de ossos e msculos. A maternidade ou a sua predestinao avoluma as formas do ventre, nos seios e nos membros inferiores (1939, p. 94)
Afirmaes como estas permitem compreender as diferentes atribuies
conferidas aos brasileiros e s brasileiras no processo da regenerao da raa. Nas
diversas fontes analisadas a constante recorrncia construo de maternidade sadia se
justifica porque esta considerada como a mais sublime misso da mulher. Uma
habilidade natural, essencial e inevitvel. (HAYS, 1996, p.156), seu destino e no uma
opo pessoal. Em contrapartida, no existe meno alguma educao dos homens
em favor de uma paternidade sadia. A exercitao de seus corpos busca formar tipos
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perfeitos, expresso do equilbrio plstico-morfolgico, congregando dois princpios
atribudos como fundamentais e inseparveis: fora e beleza. Para formar uma raa
elevada era imprescindvel essa correlao, visto que a regenerao fsico-moral
masculina s se completaria se o aprimoramento fsico tambm se estendesse s
mulheres: as verdadeiras guardis da raa (SCRATON, 1992). Para atingir tal intento
era preciso dar visibilidade cultura fsica feminina, redirecion-la aos propsitos
higinicos e eugnicos exigidos pelo corpo-nao moderno afinal, so as mulheres
fortes aquelas que fazem uma raa forte (TISSI, 1919, p. 32).
O projeto nacional de fortalecimento orgnico dos corpos, de aprimoramento dos
valores morais e da construo de uma raa forte refora representaes tradicionais de
gnero visto que reafirmam concepes dominantes de masculinidade e feminilidade.
No mbito especfico das mulheres, enfatiza-se a imagem da mulher maternal, bela e
feminina (GOELLNER, 2003). Uma mulher para quem o exerccio corporal deveria
atuar em prol do seu revigoramento sem lhe destituir a harmonia das formas, a beleza e
a graciosidade.
O temor de que a prtica de atividades fsicas pudesse masculinizar a mulher ou,
ainda, ferir sua feminilidade fez com que muitas das recomendaes que circulavam
nesse momento estivessem voltadas para: a) o incentivo incluso de meninas e
moas em programas de atividades fsicas; b) o cuidado para essas atividades fossem
minuciosamente controladas, de forma a no extrapolarem os limites compatveis com
natureza feminina, considerada como mais frgil que a dos homens. O termo
masculinizaro da mulher indicava, no apenas alteraes no comportamento e na
conduta das mulheres, mas tambm no seu corpo cuja aparncia deveria evitar o
estigma da excessiva musculatura e a implcita lesbiandade (HARGREAVES, 1998).
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Dentro deste contexto, o esporte passou a ser recomendado como uma atividade
necessria ao aprimoramento fsico feminino. O primeiro livro escrito por um autor
brasileiro sobre educao fsica e esporte para mulheres foi publicado no ano de 1930.
J nas suas primeiras pginas aparece, explicitamente, a vinculao destas prticas com
a preparao para a maternidade:
A falta de vigor fsico tem na mulher conseqncias piores que nos homens. A funo primordial da mulher a procriao e todo o preparo fsico no deve perd-la de vista. Podemos mesmo adiantar que a constituio fsica mais importante que a intelectual; enquanto a primeira pode determinar, quando m, a extino das descendncias em poucas geraes, a segunda passvel de desenvolvimento indefinido de gerao em gerao. Os retardados intelectuais podem ser eficientemente combatidos; os fsicos constituem uma tara terrvel, de funestas conseqncias para a reproduo da espcie e o aperfeioamento da raa. As inteligncias privilegiadas nem sempre se transmitem aos filhos, mas a herana das taras fsicas quase sempre irremedivel, fatal, quando em tempo no intervm processos especiais para preveni-la (RANGEL SOBRINHO, 1930, p. 07).
Escrito por um tenente do Exrcito brasileiro esse livro exemplar para
ilustrar a afirmao dos elos que nesse perodo se fazia entre nacionalismo, eugenia,
sade e atividade fsica. Em outra passagem do livro podemos ler a seguinte
afirmao:
Nunca ser demasiado encarar a importncia do esporte para a mulher. Quanto mais nos aprofundarmos nos estudos tendentes a efetivar a eugenia da raa, nas pesquisas destinadas a solucionar os problemas relativos sade humana, a dar ao homem e mulher o mximo de sua eficincia fsica para a vida, mais nos compenetramos da importncia capital da Educao Fsica feminina. mister que nos convenamos da verdade irrefutvel desse dogma - a mulher precisa de esporte! Precisamos identificar a mulher com a prtica racional dos exerccios fsicos, educ-la para uma compreenso elevada dessa forma salutar de atividade que, tanto contribui para a conservao de sua sade e de sua beleza, para a manuteno de sua mocidade e de sua eficincia (RANGEL SOBRINHO, 1930, p. 21).
s atividades fsicas, portanto, conferida a tarefa de corrigir as deficincias da
raa brasileira ao mesmo tempo em que deve modelar o corpo feminino desenhando
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sobre ele novos contornos onde a harmonia corporal, a graa, a doura e a delicadeza
devem ser preservadas. A construo de um organismo feminino forte estava assentada
no trinmio sade, fora e beleza, pois desse trinmio resultaria a fora de uma
gerao de novas criaturas, e, por conseguinte, de um novo pas.
No Brasil, as primeiras iniciativas de participao de mulheres em prticas
esportivas podem ser observadas na segunda metade do sculo XIX. At aquele
momento, a estrutura extremamente conservadora da sociedade brasileira no lhes
permitia muitas aparies nos espaos pblicos. Com independncia do Brasil, a
chegada de imigrantes europeus e com a propagao das idias eugnicas e higinicas
esse quadro comea paulatinamente a mudar. Obviamente que essa mudana foi lenta e
muito mais significativa para as mulheres da elite, pois estas tinham maior acesso aos
bens culturais, escolarizao e s novidades do continente europeu. Alm disso, eram
brancas e a elas era dirigido o discurso do fortalecimento do corpo e, por fim, da raa.
Vale lembrar que a prtica de atividades fsicas no era popular na sociedade brasileira
do perodo. Era, na maioria das vezes, uma prtica relacionada elite e se caracterizava
como aristocrtica, familiar e saudvel (ALTMANN et alli 2001; MOURO e
VOTRE, 2003).
Turfe, remo, natao, esgrima, tnis, arco e flecha, ginstica e ciclismo, so
algumas das modalidades que, inicialmente, registram o maior nmero de mulheres
praticantes. No entanto, ser nas primeiras dcadas do sculo XX que vai acontecer uma
maior insero das mulheres no campo do esporte seja nas dimenses do lazer, da
educao escolar e da competio ocasionando, com isso, uma maior circulao das
mulheres nos espaos pblicos destinados ou no prtica de atividades fsicas. nesse
perodo tambm, que o a ginstica adquire importncia na instituio escolar como uma
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forma de educao das meninas objetivando prepar-las para serem as futuras mes. A
moa de hoje, sem dvida, vir a ser a me de amanh. Prepar-la fisicamente e dar-lhes
os necessrios esclarecimentos, assentar alicerces slidos da gerao futura (ARENO,
1938, p. 16).
O Boletim de Eugenia, publicao mensal da Sociedade Eugnica de So Paulo,
em vrias de suas edies publicou matrias referentes aos benefcios do esporte para as
mulheres. Vejamos:
em face da procriao que avulta a importncia do esporte para a mulher. Ela precisa no apenas estar apta para o exerccio pleno daquela funo, mas estar tambm em condies fsicas para gerar seres fortes. cuidando de seu prprio corpo, de sua sade, de sua eficincia fsica que a mulher adquire os conhecimentos prticos indispensveis a realizar uma vida sadia e a forjar uma gerao forte; praticando esporte a mulher far desta uma verdadeira escola de sade, conhecer melhor os preceitos da higiene, os melhores processos de alimentao, como funciona o organismo, qual a estrutura do corpo, como ele se desenvolve e o que se deve fazer para a sua melhor conservao e para o seu maior rendimento, interessar-se- mais pela sua vida fsica, corrigir suas deficincias orgnicas, combater seus defeitos e preparar-se- melhor para dar espcie filhos so e filhos fortes (SOCIEDADE EUGNICA DE SO PAULO, 1929, p. 42)
Se por um lado o incentivo participao feminina no universo das atividades
corporais e esportivas estava voltado para a maior insero na vida social daquele
tempo, por outro, estava absolutamente atrelada poltica nacionalista em voga que,
assentada na eugenia e no higienismo, identificava o corpo feminino como o local
privilegiado para a construo de uma nova raa. Alm disso, ao anunciarem os
contornos corporais ideais das mulheres brancas estes discursos enunciavam o lugar do
outro, do negativo, do intolervel nos corpos brasileiros. O outro, nesse caso, o corpo
negro que em muitas das fontes consultadas sequer foi nomeado.
Essa afirmao pode ser evidenciada em diferentes documentos publicados no
Brasil, dentre eles, a primeira revista cientfica de Educao Fsica. Dada a sua grande
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receptividade em todo o territrio nacional e, tambm, em alguns pases da Amrica do
Sul tais como Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Venezuela, a Revista Educao
Physica tomada aqui como uma fonte privilegiada de informaes e de divulgao dos
ideais nacionalistas e sua articulao com as questes de raa e gnero no Brasil do
incio do sculo XX.
A Revista Educao Physica: esporte, eugenia e nacionalismo
Criada em 1932, por um grupo de professores civis de educao fsica, a Revista
Educao Physica caracterizou-se como um importante meio de circulao de
informaes sobre as atividades fsicas, pois, alm de textos escritos por autores
brasileiros, seus editores recorriam traduo de artigos estrangeiros tanto para
viabilizar a regularidade e continuidade da publicao como para assegurar ao peridico
um perfil cientfico. Nos quatro primeiros anos a Revista circulou com periodicidade
semestral, tornando-se mensal de janeiro de 1937 at a sua ltima edio, publicada em
setembro de 1945. Registra seu primeiro editorial:
Revista Tcnica que visa apoiar a causa da educao fsica: divulgando os princpios cientficos que servem de base a educao fsica; favorecendo o surto dos esportes, como fator de aperfeioamento da raa; incentivando a formao de tcnicos especialistas; propagando os fins morais e sociais das atividade fsicas; despertando a ateno publica para este aspecto do problema educativo; coadjuvando o governo e instituies particulares na execuo de seus programas esportivos (LOYOLA, 1932, p. 02).
Embora a Revista Educao Physica no tratasse especificamente das atividades
fsicas femininas, esse foi um tema recorrente nas suas pginas visto que seus editores
estavam sintonizados com o discurso nacional-patritico6. Os artigos, reportagens,
6. Hollanda Loyola, principal editor da revista, atuou como responsvel tcnico pela Educao Fsica junto
ao Ministrio da Educao durante o perodo do Estado Novo (1937-1945).
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textos e as pesquisas que publica, ao mesmo tempo em que incentivam s mulheres a
aderirem a prtica de atividades esportivas, enfatizam a importncia da exercitao
fsica na formao fsica e moral da juventude, na regenerao da raa, no cuidado para
com a sade e a beleza e na construo da identidade nacional. Tanto quanto as outras
fontes investigadas, a mulher da qual a Revista fala e para quem fala a mulher branca,
de classe mdia ou da elite.
Ao analisar todas as edies da Revista notria a apologia que faz beleza
branca. Nos seus oitenta nmeros, h uma nica referncia mulher negra, formada pela
juno de uma fotografia de pgina inteira, com um pequeno texto assinado por
Fernando Azevedo:
Aplicada convenientemente em geraes sucessivas, teremos logo, com a regenerao social pela educao fsica, um povo que se encaminhe mais depressa para o nosso verdadeiro tipo tnico, representante caracterstico e genuno de uma raa que possa ir florescendo atravs da idade, em lindas flores - rubra nos glbulos sanguneos de seiva e morena na tez queimada da pele, graas ao vigor fsico e a este belo sol tropical, que atapeta de verde as encostas das montanhas e pontua de flores os campos de nossa exuberante natureza (Azevedo, 1939, p. 8).
A fotografia publicada mostra o corpo de uma jovem mulher negra, que no tem
rosto nem expresso, pois exibido de costas, com os cabelos parcialmente ocultos e
est sendo banhado por uma pequena quantidade de gua que escorre de um vaso que
carrega no ombro direito. O corpo que se v nesta imagem tem uma musculatura
delineada, bonito, sensual e ertico. No entanto, destitudo de identidade. um corpo
estrangeiro para essa Revista, pois no remete o leitor a imagin-lo construdo atravs
de atividades fsicas. Esta imagem e o texto que o acompanha, ocultam a identidade
tnica desta mulher uma vez que a explicao dada para a cor da pele, que no branca,
recai na ao bronzeadora do sol e no nas marcas que fazem lembrar a raa qual
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pertence. Ao negar sua origem afirma-se o mito da superioridade racial branca mesmo
em um pas cuja conformao tnica passava ao longe dessa suposta branquidade
(SCHWARCZ,1993).
Revista Educao Fsica, n. 8, p. 12.
Em se tratando de refinamento racial, na experincia desenvolvida na
Alemanha Nacional-Socialista que a Revista Educao Physica busca elementos para
exemplificar como uma Nao poderia desenvolver programas de atividades fsicas
voltados o aperfeioamento da sade e do vigor dos corpos. Ao longo das suas edies
so publicados vrios textos e imagens que mencionam as estratgias de aprimoramento
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da raa ariana. Muitos deles fazem referncia explcita exercitao fsica das
mulheres:
Em nenhum pas do mundo, a educao fsica est merecendo tanta ateno por parte do governo, a eugenia do povo preocupa tanto os dirigentes nem os esportes esto mais bem regulamentados do que na Alemanha. O Nacional Socialismo, com o seu programa de rejuvenescimento da Alemanha encarou, como um dos elementos principais para a constituio das nacionalidades, a eugenia do povo, o aprimoramento racial, partindo do principio de que no h pas forte com um povo fraco. Notvel, o entusiasmo da mulher alem pelos esportes. Eu as vi, s centenas, fazendo ginstica, remando, nadando, praticando esgrima, cavalgando, etc. A mulher alem, da gerao que est se formando, forte, de impressionante robustez, exuberante de sade, produzir, necessariamente, filhos sadios, hgidos (LOYOLA, 1937, p. 27).
Em que pese as diferenas dos ideais eugnicos existentes entre o Brasil e a
Alemanha, a glorificao da maternidade faz parte o discurso oficial dos dois pases. Em
nome da formao de uma gerao futura, justificam-se estratgias de cunho racista, seja
por mitificar a branquidade, seja por no conferir visibilidade ao que era considerado
desviante da representao de corpo e de nacionalidade que se queria evidenciar
(BOCK, 1991; PFISTER, 1997). Essa talvez seja uma das razes pelas quais no se
encontram corpos negros nas pginas da Revista Educao Physica, mesmo que fora
delas eles existissem em profuso sendo facilmente visualizados nas ruas das cidades.
A recorrncia aos exemplos advindos da Alemanha justifica-se pela
aproximao poltica entre os dois pases. Getulio Vargas, ento presidente do Brasil,
nutria forte simpatia pelas idias de Adolf Hitler e, nesse sentido, empenhou-se em
desenvolver estratgias de aproximao entre os dois pases. Alm de acordos
comerciais, da permisso para a circulao no Brasil de livros, jornais e revistas editados
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na Alemanha7, da restrio entrada no pas de imigrantes judeus8, possibilitou
intercmbios culturais entre brasileiros e alemes. Na dcada de 30, por exemplo,
permitiu que o governo alemo montasse um servio de transmisso de distribuio de
filmes educativos destinados a escolas teuto-brasileiras localizadas em diversos estados
do pas. Dentre os temas abordados nos filmes destacavam-se as prticas eugnicas
obtidas atravs da realizao de exerccios ginsticos (VON SIMSON, 1998).
Casamento, maternidade, procriao e refinamento da espcie so funes e
papis sociais designados mulher branca ou ariana cujo corpo observado como o
local a abrigar e nutrir uma prole sadia e hgida. Ariana ou no, a perfeio branca que
a Revista Educao Physica faz questo de exibir em suas pginas como smbolo de
beleza e feminilidade. Razo pela qual possvel afirmar que a Revista no passiva
em relao aos discursos eugnicos e nacionalistas em voga na Alemanha e no Brasil:
ao contrario, uma instncia que os produz e reproduz. Afinal, se a preservao da
famlia necessria para a estruturao da sociedade brasileira, tambm o a educao
da mulher branca, considerada como o pilar sobre o qual se sustenta a prpria Nao.
Consideraes finais
Ser bela, maternal, feminina e saudvel era um desejo produzido e expresso no
apenas pela Revista Educao Physica e pelos documentos aqui citados, mas pelo
imaginrio social de um pas que identificava na mulher um elemento importante para a
sua modernizao. Juventude, beleza, ousadia, disposio, sade, perseverana,
7. Entre 1930 e 1942 circulam, no trs estados do sul do Brasil (Rio Grande do Sul, Paran e Santa Catarina)
12 jornais editados na Alemanha, dois deles com periodicidade de seis dias na semana. 8. A Circular n 1127, publicada em 1937 adverte: Fica recusado visto no passaporte a toda pessoa que se
saiba, ou por declarao prpria (folha de identidade) ou qualquer outro meio de informao segura, que
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dedicao, prudncia, so atributos que, neste contexto, transformam-se em virtudes a
serem conquistadas mediante a participao das mulheres em diferentes espaos sociais,
dentre eles, os espaos onde se realizavam as atividades fsicas e esportivas.
O incentivo a uma maior insero das mulheres em diferentes instncias
culturais continha, em si mesmo, discursos emancipatrios e conservadores, pois, ao
mesmo tempo em que incentivavam as mulheres adeso a pratica de atividades fsicas,
atravs destas reforavam uma representao hegemnica de feminilidade. Pensando
especificamente no Brasil do incio do sculo XX, ainda que as atividades fsicas
tenham possibilitado certa emancipao para algumas mulheres, essa no se entendeu
para o conjunto das mulheres brasileiras dado que a poltica vigente, ao combinar,
nacionalismo e branquidade, invisibilizou as negras e imputou as brancas a tarefa de
civilizar, elevar e redimir o Brasil e no transform-lo.
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