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Page 1: Artigo CSBS

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XVI Congresso Brasileiro de Sociologia

10 a 13 de setembro de 2013, Salvador (BA)

Grupo de Trabalho: GT15 ­ Mercados Ilícitos e Processos de Criminalização:desafios metodológicos

Rodas de fumo no Centro histórico de Salvador, Bahia.

Fabiano Cunha dos Santos, Universidade Federal da Bahia

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1. Introdução

Este artigo pretende investigar o consumo público de maconha no Centro

Histórico de Salvador como um fenômeno urbano. Apesar da proibição de

algumas substâncias psicoativas e da legalidade de outras, o uso ilegal de

Cannabis existe e persiste nas grandes metrópoles contemporâneas. Esta

perspectiva de análise põe o comércio de drogas ilícitas como intrínseco às

sociabilidades do espaço urbano e também critica o modelo proibicionista que

gera violência ao invés de respeitar direitos básicos dos usuários da cidade.

O contexto socio­político estabelecido de “Guerra às drogas” criminaliza o

usuário de substâncias ilícitas e, através dos respectivos dispositivos da lei,

promove o genocídio da juventude pobre e negra das periferias metropolitanas.

Esta política de repressão ao consumo de determinadas substâncias já se

demonstra na contemporaneidade mais danosa do que os próprios riscos do uso

ou abuso destas. Este artigo visa investigar, através de uma pesquisa

etnográfica, o contexto social estabelecido pelas, e nas redes de sociabilidades

que circulam pelo Centro Antigo de Salvador, no intuito de elucidar tanto os

controles informais estabelecidos pelos citadinos, como a organização de

espaços urbanos para o consumo público de Cannabis.

A investigação, portanto, passa por uma observação participante junto

aos atores sociais usuários deste espaço urbano e o contexto de uso de drogas

ilícitas. Esta metodologia tem como objetivo descobrir se há a construção

simbólica de espaços para consumo público de drogas pelos próprios usuários

do espaço. Isso tentará demonstrar que a criminalização do consumo de drogas

como política pública não se adequa à realidade urbana. Em ultima instância

pergunta­se até que ponto o uso da cidade também inclui o uso e os usuários de

drogas ilícitas, ou seja, as culturas das mais diversas drogas também compõem a

realidade socio­cultural da metrópole e, portanto, do urbano.

A discussão passa por uma investigação tanto em espaços públicos,

quanto em espaços privados da região especificada e a questão central aqui

levantada é sobre a legislação de drogas atualmente vigente que impõe um

controle comportamental aos citadinos, usuários do espaço urbano, e contribui

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para o acirramento da violência e repressão policial. Neste sentido, este trabalho

etnográfico se empenha em descrever como ocorre o uso de maconha no Centro

Histórico de Salvador e como os diversos atores e grupos sociais lidam com os

poderes simbólicos e materiais aplicados pelo chamado Sistema Proibicionista.

A grande atenção da segurança pública recai diretamente sobre o tráfico

de drogas e sobre os usuários que, na verdade, estabelecem rituais sociais e

controles formais para garantir o bom usufruto de suas respectivas drogas. Este

artigo pretende, portanto, discutir se existem controles informais organizados

socialmente e como os frequentadores destes espaços controlam e sancionam

as regras para o consumo drogas.

Assim como afirmam MacRae e Simões :

“Fica aberto, assim, um espaço para se considerar as diferentes modalidades de uso da maconha e os significados culturais atribuídos à sua utilização. (...) cabe perguntar de que modos o cenário sociocultural influencia a formação e a conservação de um padrão de consumo regular da maconha e de que modos se desenvolvem, entre os usuários regulares, mecanismos que possibilitam o uso controlado da substância”. (MACRAE & SIMÕES, 2004, p. 30)

No caso específico deste trabalho, o campo etnográfico a ser investigado

é a Escadaria do Passo, em frente à Igreja do Santíssimo Sacramento no Centro

Histórico de Salvador. O foco da pesquisa será a dinâmica socio­cultural e os

rituais sociais que envolvem o consumo público de maconha neste espaço

urbano. Apesar do uso desta substância psicoativa ser frequente no local em

diferentes momentos, a atenção será direcionada às noites de terça­feira,

quando o cantor e compositor Gerônimo Santana se apresenta com sua Banda

Mon´t Serra.

O objetivo de fazer esta pesquisa etnográfica é, portanto, demonstrar o

quanto a dinâmica socio­cultural desenvolvida neste espaço tem relação com o

consumo de maconha. A análise do mesmo tentará estabelecer se existe uma

rede de sociabilidade em torno da aquisição, confecção e consumo público da

substância ilícita, e, encontrando­a, pretende investigar como se dá a

organização social entre os citadinos usuários deste espaço urbano.

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Além disso, descreverei algumas das normas, regras de conduta e rituais

sociais entre estes atores em conflito direto com o Estado e a moral tradicional.

Apesar da proibição legal, os usuários da cidade estabelecem espaços

relativamente liberados e de certa forma tolerados socialmente. Estes espaços

urbanos serão analisados através de uma categoria êmica específica que

simboliza uma zona temporária ou “uma territorialidade marginal”

(PERLONGHER, 2005) para o consumo público de maconha e/ou outras drogas.

2. Espaços “legalise”: o conceito através do relato de campo.

“Legalise” é uma categoria nativa, possivelmente soteropolitana, que se

refere a certo contexto social e simbólico, situado no tempo e espaço, onde o

consumo público de maconha é tolerado socialmente. Isso não significa que este

não seja ilícito, mas sim que os grupos sociais dispostos entre pares que dividem

o espaço delimitado podem consumir, ou não a erva ilegal sem maiores

preocupações com os controles formais e repressores. Em termos gerais, o que

caracterizaria um espaço urbano “legalise” seria um estado de liberdade relativa,

no tempo e espaço, para o uso de maconha e/ou outras drogas ilícitas em um

dado território geográfico urbano público ou privado.

Este é o caso da Escadaria do Passo, onde acontecem semanalmente,

às terças­feiras, o show promovido por Gerônimo Santana e sua Banda Mon´t

Serra. O evento transforma a localidade da escadaria que é lotada por grupos de

pessoas dos mais diversos segmentos urbanos. Artistas, comerciantes,

estrangeiros, professores, estudantes, travestis, entre outros, dividem o território

para apreciar os clássicos do axé music. O consumo de maconha é constante e

se espalha por quase toda a região da escadaria antes, durante e depois do

concerto. Entre a multidão, que chega a ser de quase mil pessoas, encontram­se

numerosas rodas de fumo aglomeradas pela escadaria de costas para a Igreja e

de frente para o palco.

A categoria de espaço “legalise” também envolve um conjunto de códigos

sociais que indicam elementos de uma cultura urbana do consumo de maconha e

a construção informal de espaços para consumo público e tolerado socialmente.

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Dito isto, propõe­se aqui analisar o termo nativo “espaço legalise” à luz dos

conceitos de “espaço” e de “território” no âmbito da antropologia urbana com

intuito de entender mais sobre a cultura de consumo de drogas em espaços

urbanos contemporâneos.

Nestor Perlongher (2005) ao estudar a dinâmica do Gueto gay

paulistano, estabelece relação entre a análise destes espaços com os conceitos

de “espaço intersticial” ou “região moral”, formulados por Robert Park (1952), da

Escola de Chicago. Seu questionamento à teoria anterior volta­se ao próprio

conceito de território quando simplesmente analisado em âmbito espacial ou de

sua geografia física. A realidade urbana contemporânea, segundo a crítica de

Perlongher, é mais complexa e, por isso, não pode ser reduzida aos ambientes

físicos. O autor sugere fluidez nas análises para reconhecer certo trânsito contínuo

e diversificado de grupos e comunidades que circulam nestes espaços.

A produção dos shows semanais modifica bastante o espaço da

Escadaria do Passo em relação aos outros dias. A baiana do acarajé monta seu

tabuleiro; a mesa de beijú é colocada na calçada, do outro lado da rua; algumas

vendedoras ambulantes dispõem caixas de isopor para comercializar latas de

cerveja, água e refrigerante geladas. Os membros do público vão chegando aos

poucos até tomar por inteiro a região desde a Ladeira do Carmo na frente da

Casa de Gerônimo, tomando toda a escadaria até a frente da Igreja, na rua do

Passo, onde também trabalham ambulantes vendendo bebidas, cigarros, balas,

assim como, maconha e outras drogas ilícitas.

Apesar de ocorrerem em dia útil, os shows da banda Mon´t Serra são

geralmente cheios de pessoas tanto nativas, de classe média ou baixa, quanto

turistas brasileiros ou estrangeiros. O consumo de maconha é público e explícito

por parte dos que estão reunidos em grupos ou rodas de fumo. Apesar da

presença física do aparelho policial que fica posicionado acima e/ou abaixo da

escadaria, a maconha é consumida em espaço aberto e de forma bem visível e

assumida pelo público do cantor.

A ocupação do espaço e o controle da situação são realizados pela

própria comunidade local. Na Ladeira do Carmo, além dos estabelecimentos

comerciais, pousadas e restaurantes ao redor, encontram­se alguns ambulantes

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que montam seus negócios pela rua. A construção desse espaço público é feita

informalmente entre os atores envolvidos que negociam entre si a organização do

espaço. O público ocupa o local e estabelece também sua participação na

geografia social. O acesso aos diferentes espaços da escadaria se dá através

de uma organização informal e que se manifesta da mesma forma, perpetuando

uma tradição de ocupação pelos seus usuários. A disposição social ao longo da

escadaria também se constrói como forma de proteção às possíveis e

inesperadas repressões policiais. Sempre que existe o perigo latente de ação

policial os usuários do espaço se comunicam disfarçadamente para evitar

possíveis repressões.

A crítica de Perlongher ao conceito “identidade” e, específicamente,

“territórios marginais”, como articulado por Robert Park, inclui uma série de

condições intrínsecas às sociedades urbanas “complexas”, que levam em conta

elementos como: Desterritorialização das atividades econômicas, sociais,

culturais; Heterogeneidade que induz uma diversidade de estilos de vida difusa

entre estruturas sociais fluidas; Multiplicidade e Simultaneidade de relações no

mesmo campo que exprimem crenças, códigos e representações.

Em relação ao novo quadro teórico apresentado, Perlongher chama a

atenção para alguns conceitos importantes no intuito de estabelecer uma

caracterização mais precisa do conceito de “espaço”:

Quero reter de toda a discussão (...) a noção de segmentariedade (que apresentamos um pouco arguciosamente, com Deleuze e Guatarri e além, com Evans­Pritchard); a noção de Plurilocalidade (que tem a ver com os deslocamentos dos sujeitos fragmentados); a ideia de heterogeneidade e multiplicidade, tanto nos périplos existenciais quanto na profusa proliferação de expressões; e, por ultimo, (...) de captar “redes reais de funcionamento”. (PERLONGHER, 2005, p. 272)

Esta gama de novas categorias foram essenciais para objetivar esta

análise etnográfica e a própria metodologia de investigação dos e nos espaços

urbanos. Acredita­se que a antropologia urbana deva estar atenta às

reterritorializações formadas pelas diversas trajetórias e interconexões sociais.

Neste sentido, deve levar em conta também a “territorialidade itinerante que não

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se subscreve a uma fixitude residencial, e que tem a ver com certa persistência

ou insistência do nomadismo urbano”. (ibidem, p. 274)

O consumo público de maconha na Escadaria do Passo em

determinados momentos deveria assim ser tomado como uma instância de uma

prática mais geral do consumo urbano de drogas. Os citadinos fazem parte de

uma rede de sociabilidade fluida e complexa no qual o uso de drogas é parte dos

seus elementos simbólicos. O Centro Histórico de Salvador, enquanto território

turístico, é ocupado por diversos grupos e camadas sociais, das mais diferentes

faixas etárias e origem social que também têm disponível nestes ambientes

drogas ilícitas, em especial a maconha.

Para além disso, Perlongher, que busca fugir de uma noção essencialista

e reificadora de identidade, traz a discussão sobre a noção de código­território,

a qual deve se referir à relação definida por seu funcionamento. Esta noção

amplia a análise dos espaços urbanos porque admite um “agenciamento coletivo”

indicando a capacidade exacerbada nos circuitos marginais de o mesmo

indivíduo participar, de diversas redes, algumas delas “normais”. Isto significa que

a análise etnográfica dos espaços urbanos deve corresponder à fluidez de suas

redes de sociabilidade.

Em linhas gerais, Perlongher enfatiza a existência de funcionamentos

desejantes na territorialidade dos espaços urbanos e nas suas dinâmicas

sociais. Esta análise se aplica sobre a categoria nativa “legalise”, objeto deste

trabalho. Como entender o consumo de Cannabis no Centro Histórico de

Salvador? Como se consolida o hábito cultural de fumar maconha, mesmo que as

implicações sociais sejam desqualificadoras e criminalizantes? Como se dão as

metamorfoses do “maconheiro” durante suas errancias pela cidade? Estes são

questionamentos importantes para a análise sugerida neste artigo porque

envolvem as redes sociais e as representações culturais no espaço e tempo

urbano que devem ser investigadas para uma melhor adequação entre as

políticas públicas de segurança e a realidade socio­cultural.

Este referencial teórico ajuda no entendimento do que seriam os

mutantes “espaços legalise” e garantem melhor perspectiva de análise sobre as

consequentes dinâmicas sociais de organização do espaço, controles informais,

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sanções legitimadas e eventuais momentos de desordem ou desequilíbrio social.

Outra perspectiva teórica a ser invocada para o entendimento do funcionamento

desses espaços de relativa liberdade de consumo de maconha é a teoria de

Norman Zinberg.

Sua contribuição no entendimento do uso social e controlado de

substâncias ilícitas é fundamental porque chama atenção para fatores

socioculturais entre outros que desempenham importantes papeis na construção

dos efeitos pretendidos e alcançados pelo uso de substâncias psicoativas.

“Se tornou obvio que, para entender as experiências das drogas, eu teria que levar em conta, não somente a farmacologia da droga e a personalidade do uso (set), mas também o contexto (setting) fisico e social no qual o uso ocorre.” (ZINBERG, 1984, p. 3)

Acredita­se que os espaços legalise devam ser examinados à luz do

conceito de Zinberg de “contexto” ou “setting” justamente porque são espaços

socialmente construídos e auto­regulados onde o consumo de drogas ilícitas,

notadamente a maconha, é constante e insistente. Mesmo a possível repressão

ao tráfico, representado frequentemente pela presença ostensiva de policiais na

área, não impede às redes de sociabilidade de consumirem substâncias

psicoativas ilegais. Apesar das sanções formais, os frequentadores destes

espaços se auto­organizam e garantem suas próprias proteções. “(...) é o

contexto social através do desenvolvimento das sanções e rituais, que trazem

controle ao uso de drogas ilícitas.” (ZINBERG, 1984, p. 9)

Zinberg considera que o uso de qualquer droga envolve valores e regras

de conduta, chamadas por ele de “sanções sociais”, assim como modelos de

comportamento, denominados de “rituais sociais”. Estes dois elementos juntos

são conhecidos como “controles sociais informais”. Sanções sociais podem ser

informais, impostas pelo grupo de usuários, ou podem ser formais como as

várias leis e políticas públicas de regulação do consumo de drogas. Estas

sanções sociais definem quando e como uma determinada droga deve ser

usada.

O consumo de maconha na Escadaria do Passo já é consolidado e de

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certa forma conhecido por todos, apesar da proibição legal. A força policial não

teria efetivo suficiente para poder garantir a eficácia da lei, pois o número de

usuários é bastante superior ao contingente disponível para exercer as sanções

formais. Neste sentido existe na prática certa flexibilização das condutas formais

e legais e os representantes das forças de repressão muitas vezes não chegam a

combater o consumo ou apreender drogas e/ou usuários. O que se percebe no

comportamento da polícia é que não se dá muita atenção ao consumo de

maconha, ignorando­se a prática ilícita, mesmo quando realizada de forma

escancarada. Na maioria das vezes a força policial presente durante os shows na

Escadaria não aparenta preocupação com o consumo da droga em si, isto

parece indicar que para a grande maioria dos grupos sociais que ocupam aquele

espaço, inclusive para a força policial, o consumo da maconha não se apresenta

como uma grande preocupação.

Quando a força policial age, geralmente foca sua atenção sobre jovens

negros, já conhecidos por delitos eventuais ou simplesmente porque são

moradores das periferias pobres da capital. A polícia muito raramente usa de

violência com brancos de classe média e com turistas estrangeiros, concentrando

suas ações em uma determinada camada desprivilegiada socialmente. As

repressões policiais se concentram nos negros, pobres, hippies e nos chamados

sacizeiros, configurando um processo de criminalização de certos segmentos

sociais devido à sua condição social.

A disponibilidade da erva ilícita é tamanha que é possível adquiri­la ali

mesmo, durante o show. O clima lúdico do ambiente garante a interação social e

aquece as redes de sociabilidade que se encontram e se reencontram neste

espaço urbano. A maioria dos grupos envolvidos nessas rodas de fumo levam

uma quantidade razoável de maconha para consumirem durante o show. Para

muitos existe até o consenso de que a erva “não pode faltar”. As quantidades

variam, mas pelo que se observa durante as três horas de música é que os

grupos dispõem de uma quantidade da substância suficiente para a produção de

mais de um cigarro de maconha para cada indivíduo. As rodas de fumo

administram o consumo de modo que diversos cigarros sejam fumados ao longo

de todo o evento seguidamente.

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Para Zinberg, os rituais sociais são comportamentos estilizados e

abarcam todo o contexto de uso de drogas, desde a simples procura da

substância, até seu consumo. Esses rituais se voltam inclusive para a evitação

dos efeitos danosos das substâncias usadas, assim como para a promoção de

um conhecimento de como driblar as sanções repressoras.

Conforme já apontado por Becker (2008), a dinâmica básica para que um

indivíduo ou grupo se disponha a fumar um cigarro de maconha ou baseado,

implica uma série de etapas que culminam com a percepção individual do barato

e a elaboração de estratégias para preservar e justificar essa prática ilícita.

Processos similares aos apontados por ele podem ser percebidos funcionando

na Escadaria durante os shows.

Primeiramente, é necessário obter a droga a ser preparada e consumida.

Geralmente um dos integrantes da roda já a tem em sua posse e passa para a

segunda etapa, o preparo do baseado, a ser realizado por ele mesmo ou por

outro componente do grupo. Depois de manufaturado, o cigarro é aceso e

passado duas ou três vezes a cada integrante do grupo até ser plenamente

consumido e a “ponta” restante dispensada.

Todo este circuito de reunião, confecção e consumo de drogas em

espaços públicos expõe o ato ilícito, mas, mesmo assim, o poder repressor não

parece ter muita eficácia em impedir o consumo. Àqueles que já trazem prontos

seus baseados resta somente acendê­los e compartilhá­los com seus

companheiros, em um modo de consumo mais rápido, discreto e menos explícito

que o primeiro.

Às terças­feiras, dia do espetáculo, a escadaria fica especialmente

povoada multiplicando­se aí as rodas de fumo. A grande aglomeração de

indivíduos dispostos na Escadaria estabelece um espaço privilegiado que

dificulta ações repressoras. A parte superior da Escadaria, na Rua do Passo,

onde geralmente ficam dois policiais fardados, não permite uma boa visualização

dos usuários de maconha que se perdem em meio à multidão. Geralmente, os

policiais de plantão durante a apresentação da banda permanecem apenas

observando, sem agir da forma efetiva preconizada pela lei.

Mais importante do que as constatações de Zinberg sobre os

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mecanismos de controle do uso social de drogas é a sua observação da maneira

que os usuários lidam com os conflitos impostos pelas sanções sociais. No caso

das drogas ilícitas, os conflitos mais óbvios são entre os controles sociais formais

e informais, ou seja, entre as leis contra o uso e as práticas de uso ilegal,

disseminadas por diferentes setores da sociedade. Os usuários de drogas da

Escadaria estabelecem as regras informais para consumir maconha, entre o

público que se aglomera na Escadaria, tem por finalidade justamente garantir o

acesso aos efeitos psicoativos desejados, ao mesmo tempo em que se afasta a

probabilidade de se sofrer repressão por parte da polícia.

As análises de Magnani também nos ajudam no entendimento do que

seriam os “espaços legalise”. Segundo ele, os lugares de entretenimento urbanos

oferecem um vasto campo para o trabalho etnográfico, pois instauram relações,

propiciam contatos e constroem uma rica rede de lazer que revelam a

heterogeneidade e a hibridez da cultura urbana. Nesse contexto devemos apontar

que a denominação nativa “legalise” não significa que o uso de determinado

espaço urbano seja única e exclusivamente voltado para o consumo de maconha,

mas aponta para a presença de uma extensa rede de lazer e diferenciações na

forma de usar o espaço.

Muitos dos locais de consumo de maconha encontrados no Centro

Histórico se propõem a ser ambientes lúdicos e turísticos, voltados à música e

diversão. Nesse espaço de lazer e diversão, a presença da maconha nas redes

de sociabilidade raramente vem acompanhada de violência e desordem social. A

ineficácia do proibicionismo, diante da cultura urbana da droga, abre espaço

para o florescimento de um comércio ilícito de psicoativos no seio de espaços

públicos da cidade.

O conceito de “mancha”, desenvolvido por Magnani, é também pertinente

para interpretar etnograficamente os “espaços legalise”. Ao analisar as

dinâmicas diferenciadas dentro dos espaços de lazer públicos e privados, o autor

percebeu que não se podia acoplar a paisagem urbana a uma só modalidade de

espaço público, mas era preciso distinguir as formas em que esse espaço

público se apresentava e era trabalhado pelos usuários, o que implica numa

diferenciação das dinâmicas e sociabilidades no tempo­espaço.

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Esse conceito se aplicaria à Escadaria do Passo, onde muitos têm o

hábito de ir toda terça­feira, outros vão esporadicamente e, quando querem gozar

de uma noite de lazer no Centro Antigo. Além dos membros do público,

propriamente ditos, circulam pela região um grande o número de pessoas que

trabalham durante os eventos musicais. Há aqueles que oferecem serviços

comerciais variados, como a venda de bebidas, queijos assados, balas, doces,

cigarros, CDs, DVDs, etc. Além destes, os moradores de rua e catadores de lata

e material reciclável circulam antes, durante e depois das apresentações para

garantir seu sustento econômico diário.

Quando Magnani propõe a noção de “circuitos de jovens”, um novo tipo

de abordagem etnográfica surge para a antropologia dos/nos grandes centros

urbanos. A sua intenção seria privilegiar a observação das práticas e relações

sociais nas paisagens urbanas por meio da etnografia dos espaços por onde os

diversos atores circulam, registrando seus pontos de encontro, os episódios de

conflito e os parceiros com quem os atores estabelecem relações de troca.

A idéia era levar em conta tanto os atores sociais com suas especificidades (determinações estruturais, símbolos, sinais de pertencimento, escolhas, valores etc.), como o espaço com o qual interagem – mas não na qualidade de mero cenário, e sim como produto da prática social acumulada desses agentes, e também como fator de determinação de suas práticas, constituindo, assim, a garantia (visível, pública) de sua inserção no espaço (MAGNANI, 2005, p. 177).

O cenário não é, nesta perspectiva, um conjunto de elementos físicos,

nem deve sugerir a ideia de um "palco" que os atores encontram já montado para

o desempenho de seus papéis. Aqui, ele é entendido como produto de práticas

sociais anteriores e em constante diálogo com as atuais favorecendo­os,

dificultando­os e sendo continuamente transformado por estes.

São essas regras que dão significado ao comportamento e através delas

é possível determinar as regularidades, descobrir as lógicas, perceber as

transgressões, os novos significados. Identificar os movimentos, os fluxos e as

diferentes formas de apropriação correntes no universo de significado dos atores

seria o primeiro passo para se deslindar padrões mais gerais, responsáveis pela

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compreensão dos comportamentos articulados a outras instâncias e domínios da

vida social, mais amplos.

As descontinuidades significativas no tecido urbano não são o resultado

de fatores naturais, como a topografia, ou de intervenções como o traçado de

ruas, zoneamento e outras normas. Tais descontinuidades são produzidas por

diferentes formas de uso e apropriação do espaço, que é preciso, justamente,

identificar e analisar.

Ruas, praças, edificações, viadutos, esquinas e outros equipamentos

estão lá, com seus usos e sentidos habituais. De repente, tornam­se outra coisa:

a rua vira trajeto devoto em dia de procissão; a praça transforma­se em local de

compra e venda, o viaduto é usado como local de passeio a pé, a esquina recebe

despachos e ebós, e assim por diante. Na realidade são as práticas sociais que

dão significado ou resignificam tais espaços, através de uma lógica que opera

com muitos eixos de significação como, por exemplo,: casa/rua;

masculino/feminino; sagrado/profano; público/privado; trabalho/lazer.

Observe­se, porém que uma classificação, com base nesses eixos de

oposições, não produz tipologias rígidas já que não opera com sentidos unívocos;

às vezes, o espaço do trabalho é apropriado pelo lazer, o do passeio é usado

como local de protesto em dia de manifestação, o âmbito do masculino é

invadido pelo feminino, a devoção termina em festa.

A Escadaria do Passo, enquanto espaço público, tem sido ocupado

diferentemente ao longo do tempo. Ela já foi cenário cinematográfico para o

premiado filme “O Pagador de Promessas” e, atualmente, serve como espaço de

lazer para crianças que vivem no Centro Antigo; é importante ponto turístico, serve

de espaço de encontro para jovens que se reúnem aí para conversar durante o

intervalo das aulas ou do trabalho e, como tem sido relatado, é uma região onde

ocorrem práticas ilícitas como o consumo de maconha. Não poderíamos atribuir a

frequência desse uso e a sua tradição apenas à localização geográfica da

Escadaria. A explicação deve ser encontrada através de uma investigação

etnográfica da ocupação social do espaço urbano.

As redes de sociabilidade que circulam na região do Centro Histórico

estabeleceram informalmente, através de códigos socializados entre os usuários

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do espaço, a Escadaria do Passo como um espaço “legalise”. Isto implica que o

consumo desta substância neste espaço urbano é conhecido não só pelos

usuários de drogas, mas pelos não usuários, os comerciantes e moradores da

região e também a própria polícia que se estabelece territorialmente a poucos

metros do local. A categoria “legalise”, portanto, não se reduz aos códigos e

símbolos dos usuários de drogas, mas é também de conhecimento de outras

redes de sociabilidades da cidade.

As estratégias sociais e técnicas de consumo de drogas ilícitas em

espaços públicos urbanos são postas em prática pelos usuários para garantir os

efeitos desejados. Howard Becker, em Outsiders (2008), sugere que para um

indivíduo se tornar um usuário de maconha, é necessário que detenha uma série

de conhecimentos e que tenha passado por determinados aprendizados para

obter as sensações desejadas do “barato”. Dentre estes conhecimentos, estão

aqueles relacionados à observação e maximização dos efeitos desejados da

droga. Além de conhecer e saber modular os efeitos da maconha em seu

organismo, os usuários devem também lidar com uma série de exigências sociais

implicadas pela sua proibição e pela estigmatização moral.

“O ato é ilegal e passível de punições severas. Sua ilegalidade torna o acesso à droga difícil, erguendo obstáculos imediatos diante de qualquer um que deseje usá­la (...) Acreditando que o fumante é irresponsável e incapaz de controlar seu próprio comportamento, que talvez esteja louco, podem puni­lo com vários tipos de sanções informais (...) (BECKER, 2008, p. 70)

Diante destas condições, o usuário regular de maconha deve saber enfrentar uma

série de impedimentos sociais e legais se quiser manter seu uso e seus efeitos

positivos consequentes.

Como que repetindo os comportamentos observados por Becker, os

usuários de maconha da Escadaria do Passo procuram estabelecer condições

adequadas para desfrutar os efeitos desejados do uso da maconha ao mesmo

tempo que evitam problemas com as forças de repressão. Caso não o

conseguissem, é de se acreditar que, possivelmente, o consumo público de

maconha não seria tão recorrente. Assim, acreditamos que o passar de vários

anos desde que Gerônimo começou a prática semanal de fazer shows na

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Escadaria, na presença de um público que faz uso de maconha durante as

apresentações, demonstra que aí se consolidou um espaço legalise para essa

substância psicoativa apesar das ameaças formais repressoras e ideológicas.

Becker nos ajuda a compreender como o consumo de maconha se

mantém diante de muitos preconceitos morais que rotulam negativamente seu

uso e a busca do “barato” que proporciona. Segundo ele, para manter o uso de

Cannabis, os indivíduos devem ser capazes de invalidar ou ignorar essas

concepções e substituí­las por racionalizações e justificativas correntes entre os

usuários.

“Em suma, uma pessoa se sentirá livre para usar maconha à medida que passe a considerar as concepções convencionais sobre ela com as ideias mal fundamentadas de outsiders e as substitua pela visão “inside” que adquiriu por meio de sua experiência com a droga na companhia de outros usuários.” (BECKER, 2008, p. 87)

O caso da Escadaria do Passo é um exemplo de como o consumo de

maconha pode vir a ser parte da cultura do lazer em espaços públicos urbanos. A

partir das observações etnográficas, constata­se que é pouco comum que os

shows de Gerônimo na Escadaria sejam desacompanhados do uso da Cannabis.

A música, o espaço, o contexto social e a tradição dos rituais de uso contribuem

para que a maconha seja elemento da construção cultural e parte do lazer no

local. A baixa incidência de episódios de violência durante esses evento, além do

constante perigo de furto, generalizado pela região como um todo, vem ao

encontro com a noção de que esta substância psicoativa, longe de conduzir, por

si só, à desordem social, é essencialmente uma fonte de prazer, sociabilidade e

recreação pacífica entre os usuários que se congregam em espaços urbanos de

lazer como o Centro Histórico de Salvador.

3. O comércio da maconha e a criminalização do usuário

O uso da cidade implica também em consumo de substâncias

psicoativas, lícitas e ilícitas, principalmente em espaços lúdicos e de grande

oferta de serviços comerciais como o Centro Antigo de Salvador. Por outro lado,

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as políticas públicas voltadas para uma “guerra às drogas”, ou, como se começa

a dizer atualmente, “guerra ao tráfico”, partem de preceitos éticos e morais que

aparentam ter pouca racionalidade.

O constante crescimento da violência relacionada ao trafico de drogas

ilícitas, apesar dos montantes de dinheiro e tempo dedicados ao seu extermínio,

apontam para que o fenômeno de criminalização do usuário de drogas, e

consequentemente do comércio desses bens de consumo, seja visto como

nocivo para a segurança social em espaços urbanos e ambientes públicos além

de alimentar preconceitos sociais históricos sobre os segmentos sociais mais

sujeitos a esse tipo de criminalização.

Num contexto mais geral de marginalização de amplos setores da

população, especialmente dos seus segmentos mais jovens ou carentes,

promovida pelo ordenamento social e, destacadamente, pela legislação atual

relativa ao comércio e uso de diversas substâncias psicoativas, notadamente a

maconha, certas áreas do Pelourinho, como a Escadaria dos Passos, se

destacam como “espaços legalize”. A literatura socio­antropológica sobre a

região mostra como o consumo de drogas no Centro Histórico de Salvador é

recorrente. Neste sentido, levantam­se questionamentos sobre a atual política de

drogas e seus impactos sociais e políticos, não só em relação aos shows de

Gerônimo, mas também com toda a faixa citadina usuária do Centro Histórico,

seja para fins lúdicos ou não.

A presença da maconha não é necessariamente causa de violência e

desordem, mas a sua repressão impõe uma criminalização de numerosos

comportamentos culturais urbanos. Neste sentido, se analisa o mercado ilícito de

drogas como um fenômeno urbano, e o Centro Histórico de Salvador é apenas

um caso específico a ser explorado em nome de uma possível generalização

antropológica.

Assim, acredita­se que o consumo público e o comércio de drogas fazem

parte do cotidiano ritualistico e cultural dos centros urbanos em geral, sendo a sua

proibição e a consequente repressão os prováveis causadores da violência

urbana contemporânea.

Para falar da política de drogas Zinberg chama a atenção para a

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mudança de leis.

“Para distinguir uso abusivo ou controlado, uma especial atenção será dedicada como as drogas são usadas (a condição de uso) para então prevenir o uso. Pesquisadores devem estudar as duas condições em que os usos disfuncionais acontecem e como estes podem ser modificados e as condições que mantêm controle para o uso não abusivo e como estes podem ser difundidos. O objetivo da prevenção não deveria ser totalmente abandonada, mas as enfases deveriam ser lançadas desde uma prevenção de todos os usos até a prevenção do uso disfuncional. Quando este novo foco é adotado, as políticas públicas devem decidir não por tratar todas as substancias tóxicas como elas fossem ruins. Estudos mais cuidadosos do uso das variadas formas de drogas e das variadas condições de uso deve revelar as necessidades para criar uma diferente estrategia política para cada tipo de droga.” (ZINBERG, 1984, p 130)

Políticas públicas que levem em conta os fatores socio­culturais do uso

urbano de drogas resultariam em uma efetiva redução da violência e da

criminalidade. Os controles formais do Estado deveriam respeitar os rituais

informais socialmente construídos e que definem a qualidade do uso. Assim, as

instâncias formais entrariam em um acordo com aqueles que já usam

regularmente drogas ilícitas, além de retirar estes do âmbito da criminalidade. A

regulamentação do uso legal de substâncias hoje ilícitas é necessidade para a

sociedade contemporânea que sofre com a própria violência gerada pelas

políticas proibicionistas.

“Certamente, se nosso entendimento sobre o uso de drogas é para ser melhorado, nós necessitamos obter mais informações sobre o contexto social de uso, incluindo um conhecimento de como os costumes dos grupos e as normas operadas para moldar os diferentes estilos de uso, como estes costumes (controles) surgem, e como novos usuários os adquirem. Pesquisas futuras podem descobrir formas de fortalecer estes controles informais (sanções e rituais) que estimulam abstinências, promovem uso seguro e desestimulam o uso incorreto.” (Ibidem, p. 138)

Os atores sociais que resistem e persistem no uso de drogas lícitas ou

ilícitas produzem e reproduzem um costume frequente da sociabilidade do e no

espaço urbano. Uma intrigante questão a ser debatida é o próprio consumo de

substâncias psicoativas lícitas em espaços públicos das grandes metrópoles.

Principalmente no caso do Centro Histórico de Salvador, onde o lazer e o lúdico

estão promovendo a ocupação do espaço, o uso de álcool e tabaco não são tão

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criminalizados como o consumo de drogas ilícitas, apesar da existência de

alcoólatras e/ou pessoas que possam ter problemas com essas drogas lícitas.

A cultura da maconha e das outras drogas ilícitas não promove violência e

desordem social em si, mas faz parte da cotidianidade da condição urbana

contemporânea. A forma como estão sendo tratados os usuários de drogas é que

induz à violência e insegurança social através da criminalização deste tipo de

comportamento ferindo os direitos humanos de liberdade individual. A

demonização do consumo de substâncias psicoativas, além de ser uma política

violenta e ineficaz, abusa da incoerência em relação à realidade e ao cotidiano

cultural das cidades.

4. Bibliografia

MACRAE, Edward; SIMÕES, Júlio. Rodas de fumo: o uso da maconha entre camadas médias urbanas. Salvador, Editora da Universidade Federal da Bahia, 2004

MAGNANI, J. G. C. Os circuitos dos jovens. IN: Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 17, n. 2. 2005

PARK. R. E. Human Communities. Glencoe, Illinois: The Face Press, 1952

PERLONGHER, Néstor. Territórios Marginais. In: GREEN, James N; TRINDADE, Ronaldo (orgs.). Homossexualismo em São Paulo e outros escritos.São Paulo: Ed. Unesp, 2005.

ZINBERG, N. Drug, set and setting: the balis for controlled intoxicant use. New Haven: Yale University Press, c 1984. 277p.