artigo alo eixo c 2013 - hartmann

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Religiosidade Midiática Uma Nova Agenda Pública na Construção de Sentidos? Atíllio Hartmann * 1 * Bacharel em Filosofia – Faculdade de Filosofia Nª Sª Medianeira, São Paulo/SP, bacharel em Teologia – Faculdade de Teologia Cristo Rei, São Leopoldo-RS, Bacharel em Comunicação Social, Habilitação Jornalismo – Universidade do Vale do Rio dos Sinos/UNISINOS, Mestre em Ciências da Comunicação – Universidade Metodista de São Paulo (UMESP)e Doutor em Ciências da Comunicação – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). É vi- ce-presidente da Organización Católica Latinoamericana y del Caribe de Comunicación (OCLACC), 2004-2009, profes- sor e pesquisador do PPG em Ciências da Comunicação da UNISINOS, diretor-presidente da Associação Cultural e Bene- ficente Pe. Réus (ABEPARE), Livraria e Editora, diretor do Jornal “Solidário”, de Porto Alegre e editor da Revista JESUÍTAS, 2002... Suellen Zuanazzi é bolsita e aluna do curso de Comunicação Social – Jornalismo – UNISINOS. Daniel Schwark é bolsita e aluno do curso de Comunicação Social – Publicidade Propaganda – UNISINOS.

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Page 1: Artigo ALO EIXO C 2013 - Hartmann

Religiosidade Midiática

Uma Nova Agenda Pública na Construção de Sentidos?

Atíllio Hartmann*

1

* Bacharel em Filosofia – Faculdade de Filosofia Nª Sª Medianeira, São Paulo/SP, bacharel em Teologia – Faculdade deTeologia Cristo Rei, São Leopoldo-RS, Bacharel em Comunicação Social, Habilitação Jornalismo – Universidade do Valedo Rio dos Sinos/UNISINOS, Mestre em Ciências da Comunicação – Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) eDoutor em Ciências da Comunicação – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). É vi-ce-presidente da Organización Católica Latinoamericana y del Caribe de Comunicación (OCLACC), 2004-2009, profes-sor e pesquisador do PPG em Ciências da Comunicação da UNISINOS, diretor-presidente da Associação Cultural e Bene-ficente Pe. Réus (ABEPARE), Livraria e Editora, diretor do Jornal “Solidário”, de Porto Alegre e editor da RevistaJESUÍTAS, 2002...Suellen Zuanazzi é bolsita e aluna do curso de Comunicação Social – Jornalismo – UNISINOS.Daniel Schwark é bolsita e aluno do curso de Comunicação Social – Publicidade Propaganda – UNISINOS.

Page 2: Artigo ALO EIXO C 2013 - Hartmann

Sumário

1 Introduzindo ao fenômeno ............................................................................................................................. 3

2 Religiosidade midiática: história e atualidade ................................................................................................. 4

3 Uma aproximação analítica.......................................................................................................................... 6

4 Religiosidade midiática e a construção de sentido ............................................................................................ 11

5 Novos atores sociais ...................................................................................................................................... 155.1 Edir Macedo...................................................................................................................................... 155.2 Romildo Ribeiro Soares................................................................................................................... 175.3 Marcelo Rossi.................................................................................................................................... 19

6 Terminando sem concluir............................................................................................................................... 22

Referências bibliográficas .................................................................................................................................. 23

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1 Introduzindo ao fenômeno

Dissertar sobre as novas expressões de reli-giosidade deixou de ser tema-tabu para trans-formar-se em um dos mais recentes e desafiado-res temas de debate como uma nova agenda naconstrução de sentidos. E o tema, como não po-dia deixar de ser, explodiu nas modernas mídiaseletrônicas, literalmente. Não que seja um temanovo nem sinal de tempos apocalípticos. Ape-nas, com as modernas mídias massivas, ganhoumaior visibilidade e gera mais impacto no públi-co consumidor.

Será possível afirmar que a visibilização de re-ligiosidades de diferente corte e conteúdo institu-cionais ou, mesmo, sem nenhuma vinculaçãoeclesial/institucional, possa significar uma novaagenda de construção de sentidos? E que senti-dos são esses: transcendentais, utópicos, para um“outro mundo”, como eram e ainda são propos-tos por igrejas históricas, cristãs e outras, ou sen-tidos tópicos, definidos e situados, de respostaspara temas/problemas muito humanos no aqui eagora?

O que, sim, é novo é a extraordinária e cres-cente visibilidade que ganham propostas e ex-pressões religiosas nas mídias, particularmente natelevisão, e que pode receber distintas e contra-postas interpretações. No mundo católico-roma-no, esta visibilidade se dá, principalmente, em re-des de rádio e televisão de alcance nacional e, oque há 20 anos era inimaginável, com muito boaresposta de audiência. A Rede Vida de Televisão,por exemplo, no ar há apenas seis anos, é, hoje, aquinta rede nacional. Vem logo após a Rede Re-

cord, de propriedade do ator religioso Edir Mace-do e que dedica um significativo número de ho-ras/dia à programação chamada “evangelizado-ra”, religiosa. No campo do Rádio, a Rede Católica

de Rádio (RCR) é integrada por cerca de 200 emis-soras e a Rede Milícia da Imaculada produz progra-

mas para mais de 120 emissoras de rádio. No mo-mento, há, no Brasil, seis redes de televisão queatuam no espaço católico-romano: a citada Rede

Vida, Canção Nova, Século XXI, TV Horizonte e,com os sinais no ar em caráter experimental, aTV Aparecida e a TV Imaculada Conceição da jámencionada Milícia da Imaculada. O espectro daprogramação dessas redes inclui programas cul-turais, sociais, musicais, jornalísticos, esportivose, naturalmente, de conotação religiosa ou, ex-plicitamente, institucionais, evangelizadores ecelebrativos.

No caso católico-romano, há uma política queaponta para a importância e a necessidade de quesuas instituições locais (dioceses, congregaçõesreligiosas, movimentos eclesiais, organizações efundações) tenham sempre mais “meios próprios”para garantir espaços evangelizadores por meiodas modernas mídias. O papa João Paulo II crioua figura dos “novos areópagos”, resgatando dacultura grega e atualizando, para este tempo, osentido e a importância de um espaço onde sediscutem as idéias e se decidem os rumos da so-ciedade pós-moderna. Por isso, no entender dahierarquia da igreja católico-romana, é funda-mental, urgente e intransferível que este espaçoseja utilizado, agressivamente, pelas mídias quese propõem evangelizar.

A visibilidade de propostas e projetos religio-sos nas mídias é evidente e de constatação diá-ria. O que parece urgente é discutir se estas pro-postas, assim como se apresentam e são veicula-das, podem significar uma nova agenda públicade construção de sentidos. O debate deveria,então, debruçar-se sobre a eficácia das mídiaspara gerar fidelidade e adesão a um processo re-ligioso comunitário que parece ser imprescindí-vel para a construção de “sentidos que façamsentido”.

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2 Religiosidade midiática: história e atualidade

O tema é complexo, intrigante, multifacéticoe fascinante. Sua compreensão desafia comunica-dores, pesquisadores, empresários das mídias,sociólogos, hierarquias eclesiais, pastoralistas, li-turgistas, crentes, ateus ou indiferentes. A religio-sidade midiática ou o televangelismo, explodindona “telinha” em programas específicos ou namais “leiga” de todas as produções, a telenovela,está gerando ou estimulando o aparecimento denovas formas de expressão religiosa e, até, deuma nova concepção de religião e de relações co-munitárias. O tema está na pauta do dia de igrejase organizações religiosas das mais diferentes de-nominações e é um prato cheio para o mercadomidiático.

O televangelismo1 pode ser entendido comouma intencional e sistemática utilização dos meiosmassivos, especialmente a televisão, para finsproselitistas e/ou evangelizadores. A utilizaçãointensiva dos meios massivos, particularmente datelevisão, para a divulgação da fé cristã ganha for-ça e recebe aceitação de amplos públicos consu-midores com dois televangelistas norte-america-nos: o bispo católico Fulton Sheen, posterior-mente impedido por seu superior hierárquico decontinuar utilizando a televisão para suas prega-ções, e o pregador de massas Billy Graham, aindanos anos 50. Embora nem um nem outro possaser identificado com os personagens que, aqui,vamos chamar de “atores sociais midiáticos”, já épossível estabelecer uma primeira e fundamentaldistinção entre os discursos de ambos: se Sheen,com seu carisma especial de fala fácil e direta,pretendia multiplicar ouvintes e “salvar almas”numa clara “extensão do púlpito”, Graham per-cebia o espaço da mídia como um novo lugar de

interação religiosa. Nesse sentido, sim, Grahamse torna o verdadeiro precursor da chamada“igreja eletrônica”, ou de uma neo-religião midiá-tica com todas as conotações e controvérsias quea compreensão desses termos traz embutido.Nos anos 60, e, principalmente, nos anos 70 e 80,seguiram as pegadas dos dois precursores os tele-vangelistas Oral Roberts, Rex Hambard, Pat Ro-bertson com seu Clube 700, Jimmy Swaggart e,na última década, a freira católica Madre Angéli-ca, todos nos Estados Unidos2.

Podemos afirmar que as vertentes inaugura-das por Fulton Sheen e Billy Graham continuam,“grosso modo”, sinalizando os atores religiososdas décadas posteriores: se, no mundo católi-co-romano, a mídia é instrumento ou meio parao anúncio da Boa Nova ou de publicização de fa-tos “religiosos” e ações solidárias, para o pente-costalismo protestante a mídia é o lugar da men-sagem evangelizadora. Se, para o catolicismo, otemplo é o lugar da celebração da eucaristia e si-nalizador do processo evangelizador comunitá-rio, para o pentecostalismo, o templo é o lugar dacura e da manifestação testemunhal da ação espe-tacular de Deus na vida das pessoas.

O televangelismo católico romano chegou aoBrasil nos anos 70 com a Renovação CarismáticaCatólica (RCC). Existe uma relação intrínseca en-tre o crescimento e a aceitação populares da RCCe a eclosão do televangelismo católico na mídiaem geral. Este movimento contribui decisiva-mente para a presença de uma religiosidade decorte neopentecostal na mídia eletrônica e a dilui-ção das linhas demarcatórias que definem e dis-tinguem as produções midiáticas do catolicismoromano das produções do cristianismo neopen-

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1 Televangelismo: simplificando, identifica a atividade de evangelizar a distância (do grego: teleos).2 O desenvolvimento deste processo foi amplamente estudado e discutido por Assmann, Hugo. A Igreja Eletrônica e seu

Impacto na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1986.

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tecostal que tem no Bispo Edir Macedo3 seuprincipal e mais conhecido expoente.

Entre os televangelistas brasileiros de corteneopentecostal é preciso destacar ainda o funda-dor da Igreja Deus é Amor, David Miranda, e,mais recentemente, o fundador de uma igreja queganha cada dia mais adeptos, o missionário Ro-mildo Soares com a sua Igreja Internacional daGraça de Deus. Soares é cunhado de Edir Mace-do, de quem se separou por razões não muito cla-ras, mas, segundo observadores, os ingressoseconômicos que suas pregações geravam influí-ram na decisão. O missionário mantém um pro-grama diário em rede nacional de televisão (TVBandeirantes) em horário nobre e que ele chamao Show da Fé, promovendo curas e exorcismos aovivo. Ao final de cada programa, ele não é nadadiscreto e apela explicitamente para a colabora-ção monetária dos fiéis telespectadores.

No meio católico, um ator social midiático quese inspira nos parâmetros celebrativos e de con-teúdo teológico-pastoral da RCC e tem nos fiéisdeste cenário eclesial seus principais seguidores econsumidores de sua produção é, sem dúvida, opadre Marcelo Rossi. Mais apresentador que can-tor, Rossi contribui significativamente para umaagenda pública, considerando o espaço religioso.

Aqui apenas nomeamos os três principais ato-res sociais religiosos – Edir Macedo, RomildoSoares e Marcelo Rossi – aos quais voltaremosmais adiante.

Um televangelista típico, não cantor, é o padrecatólico Alberto Gambarini, com presença diária

na televisão e no rádio, além da produção de li-vros, CDs e outras publicações, cujo estilo é oque mais se aproxima, em forma e conteúdo, doestilo de pastores/pregadores neopentecostais.Não fossem as alusões emocionadas a Nossa Se-nhora, Gambarini, certamente, seria confundidocom pastores ou “missionários” fundamentalis-tas neopentecostais.

Ainda no campo religioso lato sensu, mas deoutro corte e tendo menos aparições na grandemídia televisiva, encontramos Paiva Neto que,sem querer representar nem identificar sua obracom nenhuma religião propriamente dita, fun-dou a Legião da Boa Vontade (LBV), um projetofilosófico-religioso que realiza uma prática assis-tencialista e de promoção humana já histórica.Utilizando tradicionalmente o rádio para veicularseu projeto de ajuda humanitária, a LBV ingres-sou, recentemente, na mídia televisiva por meiode produções independentes que veicula em es-paços pagos. É um televangelismo caritativo, ePaiva Neto é seu ator principal e referencial.

Como podemos sentir, as águas deste mar re-ligioso midiático fundem-se cada dia mais. É umespaço democrático, disputado numa verdadeira“guerra santa virtual”, com exigências e lingua-gem próprias às quais os atores midiáticos sãoobrigados a adaptar-se para poder atuar e ter su-cesso. E as instituições eclesiais das quais pro-vêm, mesmo majoritárias em número de adeptos,devem aceitar, humildemente, que sua mensa-gem/palavra é, apenas, uma mensagem a maisneste mundo/mar da mídia eletrônica.

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3 Bispo Edir Macedo é fundador da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e tem à sua disposição todo um impériomidiático (uma rede nacional de Rádio e outra de Televisão, com 16 canais), além de uma rede internacional de templos,geralmente locais amplos e relacionados com lugares de grandes concentrações populares.

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3 Uma aproximação analítica

O exame do fenômeno do televangelismoparte da constatação de uma crescente diminui-ção na participação de processos comunitáriosorganizados e nas celebrações litúrgicas presen-ciais por um lado, e por outro, o aumento deadeptos de “comunidades virtuais”, onde o fielconsome individualmente os bens da fé. Nestascomunidades virtuais, o protagonismo passou docomunitário/coletivo para atores/artistas indivi-duais que ocupam o “palco”, enquanto o fiel,massivo e anônimo, acomodou-se na “platéia”4 edaí aplaude seu líder e “guru” religioso.

Passados mais de 40 anos do início de trans-missões de missas pela televisão, a audiência decultos e de outras expressões explicitamente reli-giosas, não só não diminuiu, mas cresceu. Nos úl-timos anos e com o aparecimento dos chamados“padres cantores” e a cooptação feita pela mídia,o consumo midiático das religiosidades alcançouníveis muito elevados nas pesquisas de audiência.

Num trabalho acadêmico (Hartmann, A.,ECA/USP, 2000), o autor trabalha esta questãoda religiosidade na mídia eletrônica, fazendo damediação sociocultural religiosa um lugar de pro-dução de sentido para sempre mais pessoas, dosmais diferentes vieses religiosos. A busca de sen-tido parece ser um dos motores que leva a estecrescente peregrinar de crentes de celebraçõespresenciais comunitárias para o consumo de cele-brações mediatizadas eletronicamente, com asquais estabelecem um outro tipo de interação. Je-sus-Martín Barbero diria que...

(...) los medios de comunicación no son un puro fenó-meno comercial, no son un puro fenómeno de manipu-

lación ideológica, son un fenómeno antropológico, sonun fenómeno cultural a través del cual la gente, muchagente, cada vez más gente vive la constitución del senti-do de su vida.5

O consumo real ou imaginário de bens cultu-rais midiáticos apresenta-se como uma respostaimediatista de sentido. Como resposta imediatis-ta de sentido, entende-se, também, o consumo debens da fé, muito presente em propostas religio-sas fundamentalistas e pragmáticas que estabele-cem com a divindade um “espaço de troca” ma-terial, em que o fiel/cliente entra com a sua parte,em forma de “promessas”, ou de oferta de obje-tos ou dinheiro e a divindade é “pressionada” aresponder com o “milagre” (bom emprego, saú-de, dinheiro, sorte, a “teologia” bíblica da pros-peridade, do “cem por um”). Os adeptos destaforma de expressão religiosa geralmente cultuamuma divindade individual e não dão maior impor-tância nem vêem necessidade na organização, vi-vência e celebração comunitária da fé. Tambémnão lhes fala muito a historicidade de uma insti-tuição eclesial. O importante para este tipo decrentes e esta forma de fé é que a “igreja” respon-da aqui e agora às suas necessidades tópicas de fe-licidade imediatas. É neste grupo de crentes queencontramos os transmigrantes religiosos outransmigrantes da fé, maioria absoluta no cenáriodeste tempo.

Num tempo/mundo caótico, que invade ocotidiano das relações entre as pessoas, a religio-sidade e suas manifestações podem apresentar-secomo uma solução, mágica talvez, pela necessi-dade que as pessoas têm de um referente que,

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4 Marita Mata, pesquisadora latino-americana e autora de importante produção cultural, especialmente no setor da radio-fonia, trabalha esta questão da abdicação de sempre mais fiéis do seu ser sujeito nas celebrações para se tornarem espec-tadores, do descer do “palco” e acomodar-se, passivamente, numa poltrona na “platéia”.

5 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Secularización, desencanto y reencantamiento massmidiático. Diálogos de la Comunicación,Lima, FELAFACS, n.41, mar. 1995. p.75.

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para elas, faça sentido, construa sentido. E estesentido pode vir, em grande parte, da sensação deharmonização que o mundo religioso oferece oupode oferecer. São pequenos cosmos de harmo-nia, de paz, de bem-sentir e bem-estar muitos lu-gares religiosos de culto, hoje. Ali, a música, ocanto, o mover o corpo num balanço sensual rít-mico, o fechar os olhos, o convite à “contempla-ção”, ao êxtase servem como um contraponto àviolência agressiva e agressora do cotidiano. Nocaso brasileiro, a televisão cooptou este senti-mento e o transportou para sua programação, le-gitimando esta forma de “celebrar”.

Mas para praticar esta subjetiva religião dapaz de espírito e do conforto da alma, as grandesworld religions com suas macroestruturas institu-cionais e seu discurso urbi et orbe parecem de-frontar-se com uma única alternativa: ou ofere-cem estes microespaços de prática religiosa, oudesaparecem.

Reginaldo Prandi6 aponta algumas caracterís-ticas de religiões neopentecostais, entre elas, oculto mágico da cura divina que, no mundo cató-lico-romano, se transforma na clássica bênçãoe/ou imposição das mãos. Cenas destas curas ebênçãos são apresentadas em programas de gran-de audiência, acompanhados por telespectadoresou radio-ouvintes numa interação com todos osingredientes de presencialidade. E agora que o di-nheiro já não parece ser “coisa do diabo”, Prandiressalta os aspectos econômicos, proselitistas epolítico-partidários7 relacionados com a práticareligiosa. Para Prandi, são modelos exemplaresdeste neopentecostalismo

As Igrejas Universal do Reino de Deus (IURD), Deus éAmor e a Casa da Oração. (...) Nenhuma dessas reli-giões se propõem a transformar o mundo. O pentecos-talismo da cura divina, muito diferente da sua matrizoriginal protestante desencantada (Weber, 1967), repõea importância da magia e quer a transformação moraldo indivíduo isolado no interior da comunidade religio-sa, em que ele vigia e é vigiado.8

Prandi poderia relacionar, hoje, a já mencio-nada Igreja Internacional da Graça de Deus, dopastor Romildo R. Soares, como o exemplo maistípico do pentecostalismo da cura divina. E Pran-di continua, identificando algumas semelhançasentre estas religiões, as religiões afro e o carisma-tismo brasileiro:

Os afro-brasileiros querem o indivíduo no mundo, ti-rando dele todo o proveito que possa significar au-to-realização e reafirmação do poder da divindade (...).Os católicos carismáticos apostam numa transcendên-cia imediata, muito diferente da grande e distante trans-cendência das comunidades de base, crêem na cura pelaimposição das mãos, no contato direto com o sagrado,através dos dons do Espírito Santo, abandonandocompletamente qualquer dos velhos ideais de solidarie-dade fundados na teologia da libertação e na opção pe-los pobres do catolicismo dos anos 60 e 70.9

Um dos temas mais polêmicos é a apropriaçãoe utilização pela mídia do produto “religião” paragerar ingressos econômicos com o sentimentoreligioso, universalmente presente em nossa cul-tura. Empresários da mídia televisiva perceberamo filão religioso e começaram a fazer dele um lu-gar de audiência e uma fonte de lucro.10 Conhe-cedores do imaginário popular e sentindo melhora alma do povo do que as instituições eclesiásti-

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6 PIERUCCI, Flavio Rafael; PRANDI Reginaldo. A Realidade Social das Religiões no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996.7 Ver Cap. 7, Antonio Flávio Pierucci: Representantes de Deus em Brasília: a bancada evangélica na Constituinte

(p.163-91), Cap. 8, Ricardo Mariano e Antonio Flávio Pierucci: O envolvimento dos pentecostais na eleição de Collor(p.194-210), e Cap. 9, Antonio Flávio Pierucci e Reginaldo Prandi: Religiões e voto: a eleição presidencial de 1994(p.211-38) (In: PIERUCCI e PRANDI, op.cit.)

8 PIERUCCI e PRANDI, op.cit., p.103.9 Idem, ibidem, p.104.10 HARTMANN, A. tem 40 anos de presença e atuação na mídia, tanto radiofônica, quanto televisiva, e testemunha uma

mudança radical de atitude das grandes redes nacionais: nos anos 70/80, para conseguir um espaço, por mínimo quefosse, para inserir uma “mensagem” ou levar ao ar uma celebração, era exigida uma dose da paciência de Jó e sempre de-pendia da boa-vontade eventual ou da amizade pessoal com algum diretor de TV local. Hoje, é a poderosa Globo queleva ao ar produções explicitamente religiosas em horário nobre e realiza uma missa dominical em rede nacional, apresen-tada pelo padre Marcelo. Em Porto Alegre, a TVCom leva ao ar a “Missa do P. Marcelo” e, logo, a reprisa em gravação.

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cas em geral, porque mais profissionais no ramo,resgataram símbolos, mitos e toda uma lingua-gem religiosa de fácil digestão e de muita emoçãoe fizeram os programas/produtos “religiosos”invadir todos os horários, com um cardápio di-versificado para todos os gostos e paladares destemacromundo de deuses e mitos, de tupãs e olo-duns, de Maria e Yemanjá, de santos e orixás, deguias e gurus11.

O que parecia apenas um detalhe, não esca-pou aos profissionais da mídia: a linguagem ade-quada e a visibilidade do religioso. Na televisão,deuses e santos falam a língua da gente, falam dasalegrias e tristezas do cotidiano da gente. E mais:na mídia, os “representantes” destes deuses sãoperfeitamente identificáveis, seja pelo traje, sejapela maneira de falar e de interagir com o públi-co. Numa sociedade – e até em espaços religiososde culto – onde a visibilidade do “religioso” qua-se desapareceu, a mídia a recupera e a coloca, sempudor nenhum, no seu lugar mais público e maisvisível: a televisão. Sem julgar se é um retrocessoou um avanço, aqui apenas a constatação de umainteligente e situada tática/técnica comunicacional.

Todos esses aspectos são relativamente recen-tes como fenômeno massivo de comunicação. Po-demos afirmar, também, que os atores/artistasque aparecem no palco/mídia das novas religiosi-dades seguem, geralmente, algumas linhas comunsna forma de aparecer/evangelizar, mas se diferen-ciam nos conteúdos de sua pregação, uma vez queas vertentes das quais se alimentam e que lhes ser-vem de paradigmas têm origens sociais e culturais,referentes teológicos, leituras comunicacionais einterpretações bíblicas diferenciadas.

Embora aparentemente indivíduos isolados,atuando no mais puro estilo single man show, apare-ce ainda uma questão pontual: em que medida osatores sociais midiáticos (padres e pastores) con-tam, na sustentação de sua atividade evangelísti-ca, com máquinas econômicas empresariais, ummarketing profissional capaz de garantir sucessode público e vendagem de seus produtos, comogeralmente vem acontecendo? Esta real ou apa-

rente contradição nos objetivos – evangeliza-ção/lucro – leva os atores religiosos a adaptar-seàs exigências das diferentes mídias, tanto em ter-mos de linguagem quanto em termos de uma in-terpretação mais ampla e menos rígida, quandonão pouco ortodoxa das disposições, normas ecânones de suas respectivas igrejas.

Um aspecto aparentemente lateral: no cená-rio das novas religiosidades e no palco da igrejaeletrônica, a mulher está praticamente ausente,especialmente quando se fala de atores midiáti-cos de grande projeção. No meio católico-ro-mano, este fato segue uma certa lógica da suaeconomia interna (a disciplina eclesiástica cató-lica impede a ordenação presbiterial de mulhe-res). No fenômeno analisado, a ausência femini-na parece ser uma disposição intencional domarketing que promove, sustenta e se alimentadas novas religiosidades. Esta intencionalidadeviria da constatação de que mais de 75% do pú-blico consumidor dos bens da fé midiáticos sãomulheres que preferem o homem para seu“guru” religioso.

A criação de ídolos e mitos como uma respos-ta à necessidade sentimental relacional e, por de-corrência, um gancho de vendagem de produtosde qualquer gênero, é parte essencial do marketing

midiático. Os atores religiosos parecem sucum-bir, freqüentemente, à “tentação” mítico/idolá-trica, por mais que afirmem e reafirmem que são,apenas, “instrumentos do Senhor Jesus”! Nessesentido, estariam extrapolando ao seu que-fazerevangelizador, tornando-se monopolizadores e,em muitos casos, referentes únicos e paradigmá-ticos da fé das pessoas. Assim, o conhecido teó-logo jesuíta alemão Karl Rhaner, famoso tam-bém por seus sermões, durante uma celebraçãodominical, questionou os presentes, perguntan-do se haviam vindo à missa para ver e ouvir KarlRhaner ou para celebrar a Ceia do Senhor?! Nocaso católico, o marketing trabalha evidentementea figura do Padre Marcelo, inclusive anunciandoa “Missa do padre Marcelo”, quando ele é apenaso animador da celebração.

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11 Orixá, Olodum e Iemanjá são divindades afro-brasileiras; Tupã é a divindade indígena do povo Tupi/Guarani.

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Como já foi dito antes, estamos presenciando,hoje, uma íntima relação entre a religião, o desejoe o mercado, relação esta sustentada pelos meiosde comunicação, estratégias de marketing e publi-cidade. Se, de certa forma, está ocorrendo umabalo nas instituições religiosas tradicionais, exis-te também uma forte efervescência religiosaidentificada pelo surgimento de novas formas deexpressão e vivência religiosas. Uma das causastidas como responsável por este crescimento é ainter-relação que se estabeleceu entre as novas re-ligiões e os meios de comunicação de massa.

Na sociedade moderna, está se formando umaverdadeira rede virtual de religião em que os indi-víduos ou grupos têm a possibilidade de fazer es-colhas de bens religiosos. Existe, no mercado re-ligioso, uma multiplicidade de caminhos espirituaisque podem ser consumidos de acordo com o de-sejo de cada um. Assim, as pessoas se filiam auma religião em busca de um encontro pessoal,em que são valorizados seus interesses indivi-duais. Pesquisadores dizem que a sociedade mo-derna está se caracterizando, de certo modo, pelahegemonia religiosa e, também, pelo surgimentode um pluralismo em que as religiões estão com-petindo em uma espécie de mercado.

No Brasil, os grupos católicos carismáticos eneopentecostais são os que crescem com extre-ma rapidez e os que mais facilmente se adaptam àera da religiosidade midiática e a esta cultura con-sumista de uma sociedade globalizada e su-per-influenciada pelos meios de comunicação.Estes grupos se caracterizam por apresentaremuma linguagem de fácil conversão para a televi-são, mais coloquial, a “fala do povo”, que caimuito bem em produtos da mídia.

São visíveis as estratégias de marketing utiliza-das pelos televangelistas. A força de seu discurso,a objetividade que utilizam para obter penetraçãojunto às classes populares, a construção de verda-deiros impérios, o sucesso financeiro capaz decomprar os horários mais nobres da TV e o poderde arraste que têm sobre as pessoas, caracterizamuma “atividade” fundamentada na relação mer-cadológica e na publicidade, com fortes caracte-rísticas de produto midiático.

Diríamos que a presença da religião na mídiavem como uma boa alternativa de mercado deaudiência e fonte de lucro. Com a aparição na TV,as religiões também vislumbram uma grandeoportunidade de venda de produtos afins à suaideologia e, principalmente, relacionados direta-mente ao ator social midiático em evidência.

No momento atual, estas igrejas estão se mos-trando um empreendimento muito lucrativo, e osseus líderes são, em sua maioria, verdadeiros em-presários da fé, com alta capacidade administrati-va, êxito financeiro e eficiente produção de marke-

ting. As novas religiões utilizam-se das formas depersuasão usadas pela propaganda para evangeli-zar e lançam mão de metodologias eficazes para aconquista de fiéis e para o ganho econômico.

Quando comentamos aqui sobre uma novaconcepção de religião, fazemos referência à idéiade uma “privatização religiosa”, a uma intensa di-minuição dos encontros e celebrações comunitá-rias nos templos ou espaços tradicionais de cele-bração e, em contrapartida, está cada vez maispresente a idéia de uma comunidade virtual decelebração, em que o consumo individual se tor-na a principal característica, e a religião se mostramuito mais universalizada.

Neste processo de “privatização religiosa”, aconsciência espiritual se constitui de maneira par-ticular e é extremamente influenciada por neces-sidades individuais. Dessa maneira, o indivíduose torna valor-base das novas ideologias religio-sas. Assim, colocando-se como valor central, olugar sagrado começa a ser ele próprio, e as traje-tórias espirituais passam a representar indivíduosparticulares.

Uma outra questão que tem sido muito discu-tida é exatamente a da universalização da religião.Observa-se o surgimento de uma religião plura-lista entre os cidadãos, que vem sendo construídapelas novas expressões religiosas midiáticas, emque não existem instituições formais, não exis-tem santos que representem uma única fé e tam-pouco um compromisso comunitário. As novasreligiosidades não destacam uma igreja em parti-cular e, por isso, ajudam a construir uma religiãoglobal. Obviamente, tais “comunidades” extra-

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polam limites geográficos ou bases territoriais, eas relações entre seus membros se realizam maismentalmente. Essas “comunidades” vão criandoum imaginário religioso próprio no qual intera-gem mais ou menos sistematicamente.

Além disso, um tema muito intrigante é o daprodução de sentidos que ultrapassem o aqui eagora das preocupações tópicas ou de simplessobrevivência. É uma questão que pode ajudar aexplicar o crescente peregrinar de crentes dascelebrações presenciais comunitárias para a as-sistência a celebrações mediatizadas eletronica-mente, com as quais estabelecem um outro tipode interação.

Esse assunto é discutido pela noção de comuni-

dade virtual de ouvintes, proposta por Thompson:

uma virtual comunidade de ouvintes que podem não inte-ragir mutuamente direta ou indiretamente, mas que parti-lham em comum o fato de receberem as mesmas mensa-gens e que, por isso, fazem parte de uma coletividade quepode se estender através do tempo e do espaço.12

É impossível ignorar a importância da televi-são em todos os aspectos sociais. A TV é dosmeios mais eficientes para a disseminação demensagens, portanto uma peça extremamenteútil para as religiões em crise e para as estratégiasdo televangelismo. Com programações diversifi-

cadas, as igrejas, através da tela, atraem para a te-levisão e para os templos, um grande número deconsumidores.

Sempre mais convencidas da importância dasmídias em geral, da televisão, em particular, paraa evangelização, as igrejas passam a utilizar a TVcomo um meio capaz de acelerar e aumentar aquantidade de mensagens de fé oferecidas àspessoas diariamente, em grande variedade dehorários e possibilidades para realizar comuni-cações religiosas. A televisão está fazendo comque os “produtos religiosos” sejam entregues adomicílio, e isso tem sido uma boa estratégiapara evangelizar.

Como afirma Morin, estamos vivendo “otempo da segunda industrialização, a industriali-zação dos espíritos, dos sonhos e dos desejos daalma.”13

Pela TV, os televangelistas conseguem trans-por a distância que existe entre as pessoas e, poreste meio, estabelecem contato com um fiel, quepossivelmente, não freqüentaria um templo.Neste processo de midiatização da religião, a fi-gura do evangelizador tem um papel fundamen-tal: ele será o maior identificador e o maior repre-sentante da ideologia que apresenta. A figura doator tem muita visibilidade e é a primeira identifi-cação feita pelo fiel.

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12 THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 408.13 MORIN, Edgar. Cultura de massa no século XX: o espírito do tempo, 1 Neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

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4 Religiosidade midiática e a construção de sentido

É da constatação histórica e do mais universalsenso comum que a religiosidade, no seu sentidomais amplo, perpassa o viver diário de pessoas egrupos humanos, interpenetra relações e cultu-ras, constrói, destrói e reconstrói mitos e deuses,sinaliza e impregna os mais simples gestos eações do cotidiano das pessoas.

Ao atuar neste mundo, a religião não é mera crença,mas um complexo variado, criativo, efervescente. (...)De comum, há a procura de respostas a problemas coti-dianos (...) problemas de sentido, enfim.14

No início de um novo milênio, para as cultu-ras de corte cristão, há uma visibilidade do reli-gioso como jamais houve na história da humani-dade. Esta visibilidade da religião, com as suasmais diferentes, contrárias e contraditórias ex-pressões públicas e privadas, sociais, grupais e in-dividuais, está diretamente relacionada com aeclosão e universalização da mídia eletrônica, es-pecialmente da televisão e meios audiovisuaisafins. Por outro lado, quando se exibe esta visibi-lização religiosa, não se quer afirmar que a reli-gião seja uma espécie de condão mágico de umadivina fada-madrinha, capaz das mais milagrosastransformações na sociedade deste tempo. Emoutras palavras, agora aplicadas ao fazer religio-so: ver não significa crer, dizer não significa fazer,definir não significa construir, aparecer não signi-fica ser. Numa concepção genuinamente cristã, éimportante ter presente que religião é uma pro-posição, não uma imposição, é constante e sem-pre nova busca, não mágica e definitiva solução.

Aqui, cabe a pergunta muito atual no interiordas igrejas e na sociedade também: a missão dareligião, organizada em sistemas institucionais ouigrejas, inclui (ou deveria incluir) a preocupação ea organização de ações de ordem sociopolítica?

Estas ações deveriam aparecer nos programas re-ligiosos na mídia, particularmente na televisãocomo ações evangelizadoras? João Paulo II pare-ce não ter dúvida quanto a isso ao repetir e insis-tir, em diferentes pronunciamentos, que a produ-ção religiosa destinada às mídias deve dar respos-tas de sentido para as autênticas necessidades hu-manas, especialmente para as necessidades dosmais fracos e geralmente marginalizados da parti-cipação e, mesmo, da recepção destas mensa-gens. Estas necessidades são, obviamente, tam-bém de ordem temporal.

Com relação a esta presença sociotransforma-dora das igrejas cristãs na mídia, as opiniões sãocontroversas. Para muitos cristãos, especialmen-te de igrejas históricas, as instituições eclesiais de-veriam ter, não apenas uma preocupação social epolítica em termos de discurso, mas igualmenteuma ação efetiva de construção da sociedade, in-dependente, inclusive, da pertença ou não depessoas e grupos beneficiados por estas ações àsrespectivas instituições eclesiais. Esta ação efeti-va de construção da sociedade é uma ação de or-dem eminentemente política que contraria dispo-sições de boa parte da mais alta cúpula da igrejacatólica, sempre reticente e, até mesmo, cercea-dora, quando se trata do atuar político dos pa-dres. Por outro lado, quando se entende a políticacomo “a arte do bem comum”, fica difícil com-preender as repetidas proibições oficiais com re-lação à atividade política dos religiosos (mem-bros de ordens, congregações, institutos religio-sos) em geral, dos padres em particular.

Numa recuperação histórica bastante recente,este cenário nos remete aos anos de chumbo bra-sileiros, em que a participação das lideranças daigreja significou uma das principais – senão a

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14 PIERUCCI, Flavio Rafael; PRANDI, Reginaldo. A Realidade Social das Religiões no Brasil. p.16.

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principal – forças sociais que lutaram por refor-mas profundas no cenário sociopolítico nacional.Este claro e definido posicionamento político daigreja foi, para Pierucci, o realmente novo de umaconcepção e prática religiosa: “justiça social, sim,mas também liberdades civis e políticas.”15

Outra preocupação é a urgente necessidadedo reencantamento do mundo e da vida, embu-tido na concepção de produção de sentido. Estapreocupação é assumida por todos os que pen-sam o mundo em termos de um espaço/lugar devivência e convivência humana prazerosa, satis-fatória, feliz. Esta preocupação afeta, particular-mente, as gerações mais jovens, porque o jo-vem, como toda pessoa humana, “não se acos-tuma a viver sem encanto, sem mistério, semmitos, sem ritos. A gente segue necessitando re-encantar o mundo, devolver-lhe magia, devol-ver-lhe mistério”.16

No atual e acelerado processo de mutação cul-tural, em grande parte motivado pelo avanço tec-nológico e das comunicações, o indivíduo é desa-fiado por “sentidos” às vezes contraditórios eque podem levá-lo a um no sense existencial. Esteno sense pode ser ocasionado pela “obrigação” deviver numa sociedade neurotizante, fragmentadae fragmentária, onde o que menos se encontra éum continuum minimamente lógico e administrá-vel pelo indivíduo. Caos poderia ser a síntese ver-bal e conceitual da realidade atual: caos no trânsi-to, caos nas finanças, caos na segurança, caos nopoder público e privado, caos nas relações detodo tipo, caos religioso, caos informacional,caos tecnológico, caos científico.

A religião como um bem de consumo mais in-dividual que coletivo/comunitário parece ter, acada dia, mais seguidores e/ou fruidores. E mui-tos encontram, fazem ou refazem seu micromun-do religioso diante da televisão. Ali, sozinhos, tal-vez com a família, eventualmente com parentes eamigos, interagem com a TV e com “muitos ir-mãos e irmãs” interligados pela mídia e, num sen-

tido amplo, pela mesma fé. Experiências frus-trantes anteriores de participação presencial de-sestimulam o crente de hoje, hedonista e consu-mista como toda pessoa mais ou menos normal,a deixar a comodidade do ambiente familiar paraenfrentar a rua, o templo, a voz esganiçada do pa-dre/pastor, o canto desafinado, os “donos da li-turgia”, os bancos duros e nada anatômicos, oslongos e repetidos avisos paroquiais, a insistênciapela contribuição econômica, um clima poucocordial e tantas vezes nada acolhedor. Este não éum quadro “teórico”, montado para impressio-nar; este é o quadro real da maioria das igre-jas/templos conhecidos na nossa realidade.

Dois temas polêmicos e bastante conhecidossão a lentidão das instituições eclesiais para adap-tar-se a uma nova linguagem e a novas necessida-des que o dinamismo da própria vida, acentuadopela aceleração dos tempos atuais, traz consigo ea apropriação e utilização pela mídia do produto“religião” para gerar ingressos econômicos como sentimento religioso, universalmente presenteem nossa cultura.

A lentidão das instituições eclesiais faz parte,inclusive, do anedotário popular. O medo donovo e de enfrentar o risco que todo o novo sig-nifica é histórico nas igrejas e tem causado sériosproblemas para a sua adequada gestão. Interna-mente se diria que o medo é sempre sinal de faltade fé. A lentidão nas respostas que o novum decada tempo traz consigo leva à defasagem, a defa-sagem produz respostas inadequadas, e a inade-quação conduz à marginalização. Resultado: “fe-che-se, por arcaica, ultrapassada, inútil”.

A mídia eletrônica, certamente, não é a “pros-tituta da praça” nem a “Geni” de Chico Buar-que17, depositária da culpa de todos os proble-mas relacionais e de sentido deste começo de mi-lênio, como se afirma aprioristicamente, em cer-tos setores da sociedade e, particularmente, eminstituições eclesiais de cunho moralista ou fun-damentalista. A mídia terá menor força de persua-

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15 PIERUCCI, Religião e liberdade... In: PIERUCCI e PRANDI, op.cit., p. 255.16 MARTÍN-BARBERO, Secularización, desencanto... op. cit., p.72.17 Referência ao texto de uma produção musical de Chico Buarque de Holanda.

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são e de produção de sentido, na medida em queforem mais definidas as raízes culturais, foremmais fortes os laços propiciados pelo sentir e par-ticipar político/social e comunitário/religioso, eos processos comunicacionais se colocarem aserviço das relações, livres e democráticas, entrepessoas e grupos humanos.

Um dos objetivos principais de toda organiza-ção religiosa (comunidade de fé) é ser/oferecerum lugar de encontro e de relações de raiz paraseus fiéis e, assim, ser um espaço de construçãode sentido para o seu estar no mundo, como já sedizia acima. Esta dimensão é essencial à sua cons-tituição. Parece ponto pacífico que a virtualiza-ção do lugar religioso dilui a força e a profundida-de que a relação presencial propicia.

O fenômeno da já aludida transmigração ecle-sial que se caracteriza pelo deslocamento dosfiéis de comunidades organizadas que celebramsua fé em recintos institucionalmente consagra-dos para um consumo individual e mediatizadodos bens da fé não é, apenas, uma questão interna(pastoral) das igrejas, mas é preciso ser analisadode uma dimensão psicossocial e de relação comu-nicacional. Assim, é muito importante tentar res-ponder ao “porquê” da abdicação de um crescen-te número de fiéis da sua atuação como sujeitosda sua fé para assumirem uma postura de espec-tadores de expressões religiosas, dando-se por sa-tisfeitos em aplaudir os novos protagonistas da“platéia”.

Já é de senso comum a constatação de que asatuais expressões religiosas midiáticas (igrejaeletrônica) estão sinalizando uma religião globa-lizada, de uma mesma divindade, difusa e etérea,para todas as religiosidades, sem instituiçõeseclesiais, sem normas institucionais nem identi-ficação ou compromisso com determinada co-munidade localizada. Conhecendo a pouca ounenhuma alusão que fazem, em suas aparições,às igrejas particulares ou comunidades organiza-das, os atores sociais midiáticos, estariam con-tribuindo para o estabelecimento desta religiãoglobal.

Manuel López, um pesquisador espanhol, fazuma interessante análise nesse sentido. Falando

da Fast-Gospel e suas implicações na vida de sem-pre mais pessoas no mundo inteiro, ele especula:

Arrependei-vos e convertei-vos. O texto grego usa(Atos 3,19), de forma conjunta, duas vozes de significa-do aparentemente díspares: “metanóia” e “epístrofe”.A primeira apela ao cérebro: adentrar-se “por detrás damente”, mudar esquemas mentais. A segunda, aos pés:dar meia volta e voltar sobre os próprios passos. Difi-cilmente cabe imaginar o discurso de Pedro ao povo ju-deu no Pórtico de Salomão em tom de vibrante espetá-culo religioso-musical. O discurso dele foi um discursode inquestionável caráter espiritual, exposto com toda aracionalidade. Não houve qualquer truque dos tratadosda oratória de massa para provocar a explosão da fibraemocional do público e, ao mesmo tempo, neutralizar aveia racional das pessoas.Os paladinos do neopentecostalismo dizem também“arrependei-vos e convertei-vos”, mas se apressam emacrescentar o imperativo bíblico do arrependimento e aconversão ao advérbio de tempo “já”. O que buscamsão auditórios entregues, não ouvintes reflexivos. É acultura flash da religião fast-food, do “amém-amém”, otranse súbito, o arrebatamento expresso, a decisão ins-tantânea, o seguidismo cego. É o Evangelho light quesustenta a planetária onda de ultaconservadorismo ide-ológico que nos invade.A salvação bíblica pela cruz de Cristo é suplantada porexperiências salvíficas emocionais, de poder, bênção,felicidade e cura (Coster). O ensinamento sobre o Ser-vo sofredor é substituído pela ênfase na experiência doêxito, enfatiza a autoridade do serviço e não a do cargo.O neopentecostalismo, concluem, não é evangélico,mas um “sincretismo espiritualista”, no qual se mescla“certa terminologia cristã com conceitos e práticas pa-gãs”. Diante da onda de “Evangelho expresso” que nosinvade, só cabe apelar ao Evangelho eterno. (In: ALCNotícias, 05/04/04).

Já o teólogo luterano Oneide Bobsin, pastorda Igreja Evangélica de Confissão Luterana noBrasil (IECLB), professor de Ciências das Reli-giões da Escola Superior de Teologia de São Le-opoldo/RS, fala em “exotismo religioso” ao re-ferir-se à proliferação de igrejas de corte neo-pentecostal.

“Estás cansado da tua igreja? Organiza a tua”! Esta má-xima de um líder evangélico norte-americano é uma daschaves explicativas para a proliferação de igrejas evan-gélicas e grupos religiosos no Brasil e, certamente, emnosso continente latino-americano. Segundo a legisla-ção vigente no Brasil, é menos arriscado abrir uma novaigreja do que uma pequena empresa. Bastam oito pes-

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soas para formar uma diretoria, elaborar uma ata defundação e, em seguida, registrá-la num cartório. Destaforma, a nova igreja adquire o Cadastro Nacional dePessoas Jurídicas. Abre-se, assim, o campo religioso àlógica liberal de mercado, aprofundando a privatizaçãoda fé e o empreendedorismo religioso. A confirmaçãodesta tese estampa-se na mídia evangélica e secular. Arevista Eclésia, por exemplo, recentemente fez uma re-lação de nomes de novas igrejas evangélicas.Como poderemos ver, os nomes demonstram a religiãosob a influência de interesses bem específicos e imedia-tos de líderes e grupos de pessoas. Mais do que oportu-nizar risos, os nomes exóticos revelam o espírito indivi-dualista da época. Seguem alguns nomes: CongregaçãoAnti-Blasfêmias, Igreja Evangélica Abominação à VidaTorta e Comunidade do Coração Reciclado. O contex-to e as lides dos primeiros discípulos/pescadores de Je-sus são fontes de inspiração para criar novas igrejas:Igreja Barco da Salvação, Igreja Evangélica a ÚltimaEmbarcação para Cristo e Associação Evangélica FielAté Debaixo D’Água. Também há lugar para o auto-louvor: Cruzada Evangélica do Pastor Waldevino Coe-lho, a Sumidade, e Igreja Evangélica Pentecostal doPastor Sassá. O fogo do Espírito também motiva a cria-ção de igrejas, como as que seguem: Igreja Automotivado Fogo Sagrado, Igreja Batista Incêndio de Bênçãos,Igreja Explosão da Fé e Igreja Pentecostal Fogo Azul.Se os nomes exóticos nos fazem rir, algumas práticasnos levam ao choro. Pouco interessada em informar, amídia secular se esbalda em anunciar as práticas dos no-vos evangélicos. Assim, num grande centro urbano, foicriada a Clínica de Exorcismo. Na primeira sessão, opaciente endemoniado é submetido a um interrogató-rio. Depois, a pessoa passa por choques elétricos e pal-matórias. Se os demônios não abandonarem a pessoa,ela vai para o Pau Santo de Arara. Se, ainda assim, o de-mônio resistir, passa-se o Tratamento Intensivo deTerceiro Grau, que consiste em eliminar a pessoa pos-sessa. Notícias sobre espancamento de crianças emcentros religiosos que praticam o exorcismo atraem oleitor sedento de tragédias e de emoções. Num caso, olíder religioso não soube o limite entre religião e loucu-ra, batendo a cabeça da criança contra a parede até eladesmaiar, sob os olhares da mãe. Uma semana depois, acriança morreu.Vemos, portanto, que sob o preceito da liberdade reli-giosa, garantida pela Constituição no Brasil, líderes reli-giosos submetem pessoas e grupos aos seus interesses

particulares. Cabe ao movimento ecumênico ajudar aosEstados Nacionais a elaborarem critérios éticos e legaispara proteger as pessoas de certos líderes e grupos reli-giosos. O novo Código Civil Brasileiro já deu algunspassos neste sentido, ao responsabilizar administrativa-mente líderes de organizações religiosas. Mesmo quepareça hilariante, atrevo-me a sugerir a criação de umServiço de Proteção ao Consumidor de Bens Religio-sos. Afinal, entre a liberdade religiosa e a disputa mer-cadológica das almas deve haver limites ecumênicos eestatais/públicos (In: ALC Notícias, 10-03-04).

No acima citado boletim da Agência Lati-

no-Americana de Comunicação (ALC), encontramosque a religião é um dos fatores que contribuempara o crescimento econômico, como mostrampesquisas desenvolvidas em vários campos doconhecimento. O inferno aparece como um fatormotivador muito forte às pessoas. A absorção deconceitos religiosos no campo econômico nãodeveria ser nenhuma surpresa. Afinal, o pai daeconomia liberal, o escocês Adam Smith, autorde A riqueza das nações (1776), estudou teologia.Na teoria neoliberal o mercado assume um postodivino.

A Teologia da Prosperidade, construída sobre apromessa bíblica do cento por um, encontra cadadia mais pessoas que a tomam como seu referen-cial de fé. No meio católico, é muito utilizada,para os mais diversos fins, inclusive o econômi-co, uma frase que tem na teologia da prosperida-de sua inspiração: Deus não se deixa vencer em genero-

sidade. Não é necessário grande esforço nem pes-quisas de opinião para constatar que as religiõesque atendem às necessidades das pessoas, não sóde indivíduos, mas também de grupos, tendem aflorescer e aquelas que são menos atentas às de-mandas temporais, vão perdendo seus adeptos.Basta assistir, ao vivo ou pela televisão, a algumculto pentecostal para se ter a noção da quantida-de de problemas cotidianos que fazem destesmomentos de fé uma espécie de supermercadode troca de favores entre o fiel e a divindade.

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5 Novos atores sociais

Praticamente, não há controvérsia quanto aosnomes dos três principais atores sociais midiáti-cos que contribuem para uma nova agenda públi-ca com base na religiosidade. Edir Macedo e suaIgreja Universal do Reino de Deus (IURD), Ro-mildo Ribeiro Soares e a muito recente Igreja In-ternacional da Graça de Deus e Marcelo Rossi,padre da Igreja Católica, Romana. Ao tomarmosestes três atores como sendo referenciais da reli-giosidade midiática, não queremos emitir ne-nhum juízo de valor, mas apenas oferecer algunsdados a mais para este fascinante debate.

5.1 Edir Macedo

Nesta análise mais específica do bispo EdirMacedo, fundador da Igreja Universal do Reinode Deus (IURD), é importante lembrar que ele setorna um pioneiro na utilização intensiva e exten-siva das mídias (rádio, televisão, jornal, vídeos,DVDs) para “evangelizar”. O jornal da IURD temuma tiragem de mais de um milhão de exemplares.

Edir Macedo Bezerra nasceu em 18 de feve-reiro de 1945, na pequena Rio das Flores, no esta-do do Rio de Janeiro. Desde muito jovem, sentiaalgo de especial em seu coração, uma experiênciamaior de Deus. O “encontro” ocorreu em 1963 edeu origem a uma virada radical não apenas emsua vida, mas também na de milhões de pessoas.Começou evangelizando nas ruas, fazendo reu-niões nas praças, até filiar-se à igreja Nova Vida.Com grande talento para a pregação e decidido anão receber ordens de terceiros, criou, em 1974, aigreja Cruzada do Caminho Eterno, até que, em 9de julho de 1977, ele fundou a Igreja Universal doReino de Deus. Hoje, além do Brasil, a IURD estápresente em mais de 80 países da Europa, Ásia,África e Américas. Além das mídias convencio-

nais já citadas, a igreja de Macedo se apóia numverdadeiro império logístico-comunicacional.Este império mantém a Editora Gráfica Univer-sal, hoje incorporada pela Holding UniversalProduções, o Portal Arca Universal (Internet, noqual está o seu site, www.bispomacedo.com.br),as redes Record, Mulher e Rede Família de Tele-visão e a Rede Aleluia de Rádio (Rede Nacionalde Radiocomunicação).

Com toda esta logística comunicacional, EdirMacedo é um intransigente guarda e defensordos valores e princípios cristãos, segundo a pala-vra de Deus. A Bíblia é sua obra referencial e a fa-mília, seu máximo valor. Ele é o próprio exemplodisso: com mais de 30 anos de casamento, sua es-tável união com Ester Eunice Macedo Bezerra éum dos grandes trunfos do ministério do bispo.O casal tem três filhos: as duas filhas mais velhas,casadas com pastores, vivem em países diferen-tes, servindo na obra de evangelização da IURD,e o terceiro filho, Moisés, segue o mesmo cami-nho. De hábitos simples, comunicativo, o bispomantém um estilo de vida comum ao de uma pes-soa de classe média. E, depois de mais de 24 anosà frente de uma igreja com milhões de fiéis e emviva expansão, Macedo afirma que, se tivesse derecomeçar tudo de novo, não mudaria nada doque foi feito até o momento, mantendo sempre amesma linha de ação: pregação do evangelhopara salvação e libertação das pessoas.

Edir Macedo não esconde sua insatisfação epreocupação com a situação do Brasil e com osproblemas das pessoas. Sem compromisso comoutras correntes filosóficas e religiosas, ele utilizaseu macroimpério midiático para dar uma palavrade fé e ânimo a todos os seus ouvintes. Além dis-so, o bispo ainda se tornou um consagrado autorde livros. Seus escritos, construídos sobre textosbíblicos selecionados, utilizam uma linguagem

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clara e objetiva para combater o engano, a menti-ra e a corrupção na sociedade, de acordo com aótica particular de Macedo. A pregação destemi-da e a forma de falar de Macedo o transforma-ram, em poucos anos, no pastor, antes sem púlpi-to, em líder mundial da IURD, que congrega,hoje, milhões de fiéis no mundo inteiro.

Essa quase incrível carreira e realizações ren-deram a Edir Macedo alguns títulos, como Cida-dão Benemérito do Estado do Rio de Janeiro,Medalha Tiradentes, Cidadão Petropolitano e Ci-dadão Paulistano. Macedo é formado em Filoso-fia Cristã, doutor em Teologia, tem um título Hono-

ris Causa concedido pela Faculdade de EducaçãoTeológica do Estado de São Paulo (FATEBOM) eainda é mestre em Ciências Teológicas pela Fede-ración Evangélica Española de Entidades Religi-osas (FEDER) de Madrid/Espanha. O bispoMacedo fala três idiomas, português, inglês e es-panhol. Além dos programas que mantém norádio e na televisão, Macedo escreve semanal-mente para mais de dez jornais e revistas domundo todo, organizando, ainda, concentra-ções evangélicas no Brasil e em outros países,como a de 1994, quando reuniu mais de um mi-lhão de pessoas no aterro do Flamengo, no Riode Janeiro, ou quando lotou o Vale do Anhanga-baú em São Paulo. Vale lembrar, também, queMacedo organiza grandes eventos internacio-nais, como o que concentrou milhares de pes-soas de todo o mundo em Israel.

E o império deste fenômeno chamado EdirMacedo não pára de crescer. A IURD, que reco-lhe mais de 700 milhões de dólares anuais em doa-ções, vai ter uma sede gigantesca em Manaus.Surgida há pouco mais de dez anos naquela cida-de amazônica, a Igreja Universal do Reino deDeus cresceu tanto que agora está construindoum templo com dimensões que chegam a assus-tar os manauaras. Com área construída do tama-nho do estádio do Maracanã (maior estádio domundo), a nova “catedral da fé” terá auditóriopara seis mil pessoas, estacionamento para maisde dois mil carros e um free-shop, com lojas, livra-rias, lanchonetes e restaurantes. “O prédio égrande porque vamos abrigar ali os estúdios da

TV Record, de uma emissora de rádio, além deoutros departamentos da Igreja Universal”, diz odeputado-pastor José Mourão.

Mas nem tudo é brilho, transparência e suces-so na vida deste impressionante ator social midiá-tico. A imprensa noticiou, recentemente, que oautoproclamado bispo Edir Macedo Bezerra, quecontrola mais de mil templos da Igreja Universaldo Reino de Deus, é proprietário da Rede Recordde Televisão, cujo patrimônio é avaliado hoje emcerca de US$2 bilhões, está sendo intimado a de-volver algo em torno de US$3,2 milhões ao em-presário paulista Waldemar Alves Faria Júnior.Para recuperar o dinheiro, que entregou a EdirMacedo em 1997, para ajudá-lo a acertar suascontas com a Receita Federal, o empresário já en-caminhou notificação extrajudicial ao líder daIgreja Universal, por meio do 4º Ofício de Regis-tro de Títulos e Documentos de São Paulo.

Revoltado e disposto a recuperar tudo o quehavia transferido ao bispo Edir Macedo e à IgrejaUniversal, o empresário faz um alerta a todos osque estão sendo convidados a doar seus bens àIURD, que faz questão de proclamar não ter finslucrativos e somente remunerar seus pastorescom o mínimo necessário para que suas famíliassobrevivam com dignidade. Faria lembra tam-bém que, se Edir Macedo não dispunha de US$3,2 milhões em dezembro de 1997 e precisou pe-dir essa quantia para se regularizar perante a Re-ceita Federal, de onde tirou os US$ 500 milhõesinvestidos na Rede Record e na compra de outrasemissoras de rádio e de televisão, nos últimosanos, consoante palavras de seu próprio dire-tor-superintendente, Demerval Gonçalves, pu-blicadas na Folha de S. Paulo, de 20 de julho de1999 e nunca desmentidas?

Finalmente, a nota diz que os bispos da IURDsão “laranjas” de Macedo na Record e que o go-verno do presidente Luiz Inácio Lula da Silvaprestou um grande serviço ao País, durante a ges-tão de Miro Teixeira no Ministério das Comuni-cações, ao tornar pública a relação dos proprietá-rios de todas as emissoras de rádio e televisão. Alista, que sempre foi envolvida em sigilo total,agora pode ser acessada pela internet no site do

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Ministério das Comunicações, www.mc.gov.br.Cruzando as mais de 500 páginas de documentosdisponibilizados na internet, a reportagem da Tri-

buna da Imprensa ficou sabendo, por exemplo, quea Igreja Universal do Reino de Deus, por meio deseus bispos e pastores, é uma das campeãs docontrole do maior número de emissoras de rádioe de TV, muito embora se saiba que eles não têmrenda mensal, pois trabalham por amor à causaevangélica, não podem ter patrimônio suficientepara justificar a posse dessas caríssimas estações,evidenciando que são apenas “laranjas” de EdirMacedo.

Diferentemente do que acontece no meio ca-tólico-romano, no qual os atores se expõem abun-dantemente na mídia televisiva, o Bispo Macedoé bastante discreto nestas aparições, preferindoclaramente o rádio onde se torna uma voz que éouvida e multiplicada por dezenas de emissoras,especialmente nas madrugadas brasileiras. Aqui,se pode intuir que essa preferência pelo rádio(voz) quer induzir o ouvinte a associar Macedocom a figura de João Batista, “uma voz que clamano deserto”18. Esta associação – João Batista/Macedo – é extremamente conveniente como es-tratégia de marketing, que parte de uma hipótesegeralmente aceita: a exposição demasiada na mí-dia banaliza e desmitifica o personagem, tiran-do-lhe o “mistério”, um componente fundamen-tal de atração na recepção de produções das mí-dias. Nestes últimos tempos, Macedo se apresen-ta mais na TV, especialmente nos fins de semana,sábados e domingos.

5.2. Romildo Ribeiro Soares19

O pastor eletrônico Romildo Ribeiro Soares éo fundador de uma igreja evangélica com caracte-rísticas midiáticas, a Igreja Internacional da Gra-ça de Deus. O missionário se tornou um cam-

peão de aparições na TV. Prega em horário nobrena TV Bandeirantes, em rede nacional, desde ja-neiro de 200320 e está também na programaçãoda Rede TV, CNT e em algumas afiliadas do SBT.Um total de aproximadamente 100 horas por se-mana de programação nas emissoras de alcancenacional. Também possui sua própria rede, cha-mada Rede Internacional de Televisão, que irra-dia programação para todo o País através de umageradora em Dourados (MS).

O pregador também conta com um impériode mais ou menos 900 igrejas espalhadas de Nor-te a Sul do País e algumas no exterior (Uruguai ePortugal). Soares é dono ainda da Graça Gráficase Editora Ltda., de uma gravadora gospel, a Graça

Music, e de uma editora, A Graça Editorial, commais de 100 títulos catalogados, incluindo os 22livros que já escreveu.

É inegável que o missionário Soares possuimuitos talentos. Coloca-se no plural, porque suabem sucedida carreira não está apenas no talentode apresentador. Soares é, sem dúvida, um talen-toso empresário da fé, um administrador de em-presas e marketing que vem sustentando e ampli-ando visivelmente um império religioso, que semede, principalmente, pela quantidade de segui-dores que conquista diariamente (estima-se quetenha hoje 500.000 seguidores ou “associados”como costuma dizer).

O culto da igreja de Soares é dividido em duaspartes. Na primeira, os pastores pedem o dízimoaos fiéis, às vezes, de uma forma que chega a seragressiva. A quantia de pelo menos R$ 30,00 é re-colhida em envelopes ou por boletos bancáriosque são distribuídos aos fiéis. Depois são vendi-dos produtos, como livros, revistas e CDs. Final-mente, após muita insistência e discursos intimi-dadores, os pastores pedem para que os fiéisdoem tudo o que podem.

R.R. Soares só aparece na segunda parte doculto. Canta músicas, reza, recolhe testemunhos

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18 Cf Lucas 3,4; João 1,23.19 Romildo Ribeiro Soares, o R. R. Soares, é o fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus e é, atualmente, o ator

religioso midiático campeão de aparições na televisão, com aproximadamente 100 horas no ar por semana.20 R.R Soares compra um espaço diário na Rede Bandeirantes. Seu programa, Show da Fé, é exibido diariamente, em rede

nacional, das 20h30 às 21h30, sem intervalos para anunciantes.

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de fiéis que dizem ter sidos curados pelas pala-vras proferidas por ele, o que induz o espectadormais crítico a estar assistindo a uma encenação decharlatanismo religioso. O missionário faz su-postos exorcismos e se vangloria de ter curadocâncer, AIDS e dissuadido uma mulher de seprostituir. No culto, Soares não pede dízimo,mas destaca a importância da doação para conti-nuar como missionário eletrônico. A parte prin-cipal de suas pregações televisivas é a livre inter-pretação que faz da Bíblia. Soares lê passagens dolivro e interpreta à sua maneira, passando umamensagem cheia de exageros, apelos e manifesta-ções que expõe um caráter financeiro e, com isso,reforçando a sensação de instrumentalizaçãocharlatã do culto.

O missionário apresenta uma mensagem comênfase na salvação individual, faz um culto im-pregnado de curandeirismo religioso. É fácil no-tar que seus destinatários preferidos são pessoasque passam por dificuldades financeiras, dificul-dade nos relacionamentos, pessoas que sofremcom a solidão e depressão. Sem dúvida, uma dasestratégias mais usadas por sua igreja eletrônica éabordar temas, como drogas, família, crises, etc.,já que estes são assuntos que comovem as pes-soas e despertam uma audiência maior. O tele-vangelista sustenta idéias como a de que homos-sexuais são pessoas possuídas pelo demônio.“Uns dizem que é safadeza, outros que é doença,eu digo que é um espírito maligno”, prega ele.“Toda anormalidade é do diabo.”

Soares também conquista muitos fiéis pormeio de depoimentos de pessoas que narram asmudanças ocorridas em suas vidas depois de ou-vir as palavras do pregador. Sua genialidade estána capacidade de tornar a esperança mais realpara as pessoas, na escolha de temas comoventes,na linguagem adequada que usa para dialogarcom seus fiéis, no jeito calmo sem exaltações nafala que acaba por convencer. Sua mensagem fazcom que o fiel, por meio da emoção, se aproximee se identifique com os fatos narrados e simula-dos nas pregações. Os receptores interpretam osrelatos e procuram encontrar semelhanças comsuas próprias vidas e encontram, com base nesta

identificação, uma grande compatibilidade comesta religião.

A Igreja Internacional da Graça de Deus segue oexemplo de muitas outras, como a Deus é Amor,cujo fundador e líder máximo é David Miranda ea já vista Igreja Universal do Reino Deus (IURD), dobispo Edir Macedo. Ela oferece aos seus segui-dores um fácil e cômodo acesso aos bens de sal-vação, que são muito procurados por pessoas emsituações aflitivas. Nestas comunidades virtuais,as pessoas encontram consolo, alívio para as afli-ções e sofrimentos e elas atuam como verdadei-ras “comunidades virtuais de salvação”.

O missionário R.R. Soares assume um perfilperfeitamente adequado à televisão. É uma ver-dadeira “personalidade” e conquista cada vezmais espaço em meio à crise da religião, apare-cendo como um novo ideólogo religioso e come-çando a cumprir uma função de suplência ao ofe-recer um bem-estar individualista, associandosalvação e consumo. “Suntuoso é o caminhopara a salvação – consuma e sinta-se bem”, ironi-za John Carrol, crítico de cultura.

Concluindo, constata-se o uso de táticas co-municacionais que vêm atraindo as igrejas e pos-sibilitando maior difusão das religiões. Notam-seconseqüências positivas e negativas, que surgemquando as características midiáticas são aplicadasàs religiões.

O tema é extenso e polêmico. Aqui, apenasuma pequena parte das leituras possíveis sobre otelevangelismo. Não há definições conclusivaspara se dizer se as religiões midiáticas são noci-vas, se exploram seus fiéis, se apenas querem po-der de visibilidade e poder financeiro. Tambémnão podemos concluir sobre a total honestidadede suas intenções e que seu único objetivo éevangelizar.

O que podemos afirmar é que existe umagrande polêmica em torno do uso dos meios decomunicação de massa para a evangelização. Ficaevidente o caráter comercial que as religiões aca-bam por adquirir quando buscam adaptar-se aospadrões midiáticos mas, ainda assim, não pode-mos negar que a atividade-fim de uma grandemaioria de manifestações religiosas televisivas é a

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de levar para a casa das pessoas o conforto espiri-tual. O grande motivo para que a maior parte dasreligiões ocupem o cenário midiático é a evange-lização, ainda que individualista.

A crítica que se estabelece não está no fato emsi de utilizar os meios de comunicação para a evan-gelização, já que se mostram tão eficientes, massim na forma como são utilizados, distorcendo eempobrecendo o conteúdo das mensagens.

No caso da igreja eletrônica, o problema não éque “a religião tenha se tornado o conteúdo dosespetáculos de televisão, mas que os espetáculosde TV se venham a tornar conteúdo da religião”,como afirma Postman.21

Postman faz uma sábia afirmação. Pensamosque este seja o maior problema das religiões mi-diáticas, e talvez o único. Os programas religio-sos acabam transformando seu conteúdo, adap-tando-o para a publicidade, para os espetáculos.O problema não é a utilização do meio para aevangelização, as críticas voltam-se para a trans-formação da religião espiritual em uma religiãocomercial e espetacular, em que o padre/pastormidiático se transforma em ídolo ou mito, cultua-do de forma intensa e servil.

5.3 Marcelo Rossi

No meio católico-romano, um ator social mi-diático que se inspira nos parâmetros celebrati-vos e de conteúdo teológico-pastoral da Reno-vação Carismática Católica (RCC) e tem nos fiéisdeste cenário eclesial seus principais seguidorese consumidores de sua produção é, sem dúvida,

o padre Marcelo Rossi. Apresentador das cha-madas show missas, cantor de recursos medianos,o que é admitido por ele publicamente, semmaiores pendores artísticos e bastante limitadoacademicamente, recupera antigas canções docancioneiro católico mais tradicional, cria algu-mas músicas novas, associa sua produção aoexótico “terço bizantino”, é presença em todasas mídias, bate recordes de vendagem de toda asua produção (CDs, revistas, gravações em áu-dio, artigos “religiosos”, etc.) e já aconteceu apa-recer, num mesmo dia, em programas popularesdas três principais redes de televisão do País. Ascelebrações que ele anima22, muitas vezes, saemdo templo, espaço privado de iniciados, e buscamo espaço público de praças e estádios, quando setransformam em megashows religiosos, onde Mar-celo é personagem central e megastar.23

Por tabela, e sem que se possa aparentementedefinir uma intencionalidade causal, Pe. Marcelopropiciou uma verdadeira explosão dos assim cha-mados “padres cantores” e que, na sua versão ho-dierna, já nascem/aparecem midiáticos. Entre osque alcançam, hoje, um público nacional via redesde televisão de inspiração católica (Rede Vida,Rede Século XXI, Rede Canção Nova), apresen-tando-se em shows musicais ou missa-shows, podemser nomeados os padres Antônio Maria e Joãozi-nho, em São Paulo, padre Zeca, no Rio de Janeiroe padre João Carlos, de Belo Horizonte. Aqui, ou-tro detalhe do marketing moderno que dá sustenta-ção à produção dos padres-cantores: tal como osartistas do grande show business, eles se apresentame geralmente são conhecidos pelo público apenaspelo nome próprio ou artístico.

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21 Neil Postman é escritor e reconhecido crítico de cultura e comunicação.22 Nos cinco anos que estamos acompanhando as aparições públicas do padre Rossi, ele jamais presidiu uma missa. Seu

papel é, assumidamente, o de animador, de single show-man. Na sua passagem por Novo Hamburgo, em maio de 2003,falando com o pai de Rossi, ele nos informou que “o Padre” celebra todas as manhãs, às cinco horas, em sua residência,acompanhado apenas pelos familiares e algumas pessoas muito próximas.

23 Com início em 29 de julho de 2001, Pe. Marcelo anima uma missa dominical transmitida pela Rede Globo para todoo Brasil e quase sempre presidida pelo bispo da sua igreja particular de Santo Amaro, Dom Fernando Figueiredo.Esta missa é levada ao ar em Porto Alegre pela TV COM, integrada à rede RBS, e reapresentada imediatamente após asua apresentação ao vivo. Historicamente refratária em veicular, em rede nacional, celebrações que explicitam deter-minada religião/igreja, a Globo abre um precedente absolutamente novo na história da televisão brasileira, em seusmais de 50 anos!

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Embora não se enquadre, stricto sensu, na cate-goria de padre-cantor, como definido acima, éimportante lembrar, por seu pioneirismo no Bra-sil na utilização das mídias em sua atividade evan-gelizadora, a produção do padre José Fernandesde Oliveira, o padre Zezinho, um padre multimi-diático, compositor, cantor, escritor, apresenta-dor, com uma vasta e constante produção cultu-ral acumulada ao longo de mais de 30 anos.

Padre Marcelo, como ele mesmo confessouem várias oportunidades, quando ainda estudan-te, participava dos grupos de oração da Renova-ção Carismática Católica24. Atualmente, ele querser um padre de toda a Igreja, um padre para to-dos os gostos e idades. Mas seu público preferen-cial, e que consome abundantemente seus produ-tos é, sem dúvida, o que se identifica com estemovimento eclesial. Marcelo gosta de aparecerem público, é intimista na sua oração, fundamen-talista na pregação e na prática pastoral em quequase todos os conflitos encontram solução nasbênçãos e preces, lota igrejas e estádios e, sempreque lhe brindam o acesso, se apresenta na mídia,particularmente no rádio e na televisão.

Este modelo de padre e de Igreja “popular”25

parece ter encontrado no padre Marcelo um re-ferente modelar para boa parte das novas gera-ções de sacerdotes católico-romanos nesta pas-sagem de século/milênio. Também por isso, ig-norar o fenômeno padre Marcelo como fato co-municacional seria uma omissão historicamenteinjustificável.

A figura do padre Marcelo, como personagemmediatizada eletronicamente, parece contribuir

para a produção de sentido na vida de muitas pes-soas, católicas ou não. Padre Marcelo não é umpadre da novela das oito, não é um ator global,não é personagem de uma produção ficcional.Ainda não. Por outro lado, para sempre mais pes-soas ele já assume o papel referencial de um cená-rio eclesial e de uma forma de celebrar que oaproximam muito, quase confundem, com umapersonagem. No carnaval carioca de 1999, foisintomático o fato de a Escola de Samba Salguei-ro, cantar uma música gravada pelo padre Marce-lo (não é de sua autoria, é uma canção dos anos60) no seu aquecimento, antes de adentrar napassarela do samba da Marquês do Sapucaí.Aquele não parecia ser apenas um momento deaquecimento; parecia ser, muito mais, uma ora-ção para que alguma divindade abençoasse aapresentação da Escola. Oração que, como sabe-mos, foi apenas relativamente eficaz...

Se alguém perguntar, hoje, a uma criança deseis anos, uma jovem de 18, um empresário de40, um político, um artista, um jogador de fute-bol, uma empregada doméstica ou um moto boy seconhece Leonardo Boff, Frei Beto, padre Zezi-nho, a absoluta maioria não saberia responder oudiria que nunca ouviu falar. Mas se perguntar:“Conhece o padre Marcelo?” Possivelmente to-das as pessoas abordadas responderão que o co-nhecem e algumas, talvez, até tentem cantar umadas canções de algum dos seus CDs. O primeirodeles vendeu, em alguns meses, mais de três mi-lhões de cópias.26

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24 A Renovação Carismática Católica (RCC) acentua o “católico” de sua denominação e sua prática para não ser confundidacom outros movimentos carismáticos de corte neopentecostal. A RCC é um movimento relativamente recente aprova-do pelas autoridades eclesiásticas e se caracteriza por sua forma de celebrar, alegre, descontraída, com muitas palmas,cantos, gestos e movimentos corporais; por outro lado, a maioria de suas lideranças e seus membros é avessa à organi-zação e participação sociopolítica, separando o espaço da fé e suas manifestações do espaço e compromisso sociotrans-formador.

25 Obviamente, esta Igreja popular nada ou muito pouco tem a ver com a Igreja dita popular, identificada com as lutas e uto-pias inspiradas na teologia da libertação. Por isso, seria mais correto falar de Igreja “populista”, festiva, folclórica, sacra-mentalista, intimista, sem nenhuma preocupação sociotransformadora ou de posicionamento político com base na fé.

26 In Zero Hora, Porto Alegre, 20/01/99: “O padre Marcelo poderá ser o compositor que tenha suas músicas cantadas pormais gente no carnaval de Salvador, Bahia. No último fim de semana, muitos dos 25 trios elétricos que participavam dafesta Farol Folia, tocavam os sucessos do religioso. Normalmente, os trios e bandas incluem no seu repertório carnava-lesco as músicas de maior sucesso no Brasil. Vai ser um santo carnaval...”

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Padre Marcelo é um padre jovem, paulista,alto, forte, olhos azuis, esportista27, um constan-te e pacífico sorriso no rosto magro e atlético,que começou a aparecer na mídia no ano de 1997,particularmente com uma nova modalidade deterço que ele chama de “bizantino”28. Além delotar estádios29, ele tem sido, seguramente, umdos rostos mais universalmente presentes na tele-visão, conseguindo o incrível recorde de apare-cer, num mesmo dia, nas três principais redes na-cionais de televisão aberta no Brasil (Globo, SBTe Bandeirantes), com presença de uma hora, horae meia, em alguns casos.

O discurso do padre Marcelo é típico dosmembros da citada “Renovação Carismática Ca-tólica (RCC)”. Da RCC recebeu o primeiro apoioe são os carismáticos seu público mais numeroso,fiel e constante. Nas suas massivas celebraçõessemanais, das quais participam de quatro a cincomil pessoas, há crentes de todos os níveis sociais,homens e mulheres de todas as idades. E jovens,muitos jovens. Há os que vêm em carro importa-do do ano e os que tomam dois ou três ônibuspara chegar ao local e participar de celebraçõeslongas, de duas a três horas, ortodoxas nas nor-mas litúrgicas, mas com muita expressão corpo-ral, canções, dança, gestos, palmas, risos. E bên-

çãos: já é marca característica do padre Marcelojogar água benta sobre a multidão, utilizando umimenso e rústico balde do cotidiano familiar. Nascelebrações, não são usados folhetos ou impres-sos de qualquer tipo, nem para a liturgia, nempara os cantos. É preciso estar livre de coisas paracelebrar com todo o corpo e com toda a alma. Elouvar o Senhor na aeróbica da fé...

Padre Marcelo e seu estilo pop star, em grandeparte produto da própria mídia, está fazendo es-cola no Brasil: já há vários sacerdotes, igualmentebastante conhecidos, que o imitam na forma decelebrar e no conteúdo de seus discursos. Tam-bém seminaristas e estudantes, que se preparampara o sacerdócio, pensam viver seu ministérioneste estilo e prática celebrativa e pastoral.

Se nas mídias (telenovelas, filmes, etc.) temospadres ficcionais como referentes para o consu-mo massivo da prática religiosa de uma igreja vir-tual, eletrônica, mediatizada, Marcelo Rossi é umpadre real que incorpora um personagem de pa-dre mediatizado e se torna referencial para ummodelo de igreja igualmente virtual, mediatizadapela mídia. Mesmo quando acontece o encontropresencial, esta igreja continua movendo-se noespaço virtual: ela não se preocupa em criar umprocesso de organização e vida comunitárias.

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27 Sua formação superior é em Educação Física, com curso seminarístico em Teologia.28 A única semelhança do terço bizantino com o tradicional terço católico é o visual. Serve, também, para contar o número

de invocações que substituem a recitação das 50 “Ave Marias”.29 Na Festa de Pentecostes de 1998, mais de cem mil pessoas participaram de uma missa animada pelo padre Marcelo no

Estádio do Morumbi, São Paulo. Em 1999, Marcelo animou celebrações que chegaram a um milhão de pessoas.

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6 Terminando sem concluir

Parece ponto pacífico que a virtualização dareligiosidade dilui a força e a profundidade que arelação presencial propicia, seguindo, tambémneste âmbito, os ditames de uma nova ordemglobalizada na qual o indivíduo é valorizado namedida e proporção de sua capacidade de consu-mo. No caso, o consumo de bens e produtos reli-giosos. Este consumo e a sua visibilização seriamos sinais distintivos de pertença e fidelidade a estaneo-religião midiática.

Como se afirmou antes, a migração de comu-nidades organizadas, que celebram sua fé em es-paços institucionalmente consagrados, para umconsumo individual e mediatizado dos bens dafé, é um fenômeno que parece exigir uma análisemais profunda de ordem psicossocial e de rela-ções comunicacionais. É certamente intriganteentender o porquê da abdicação de um crescentenúmero de fiéis que passam de atores da sua fénas comunidades presenciais para espectadoresde expressões religiosas, dando-se por satisfeitosem aplaudir os novos protagonistas da sua fé.Este aplauso aos novos protagonistas sociais reli-giosos e no consumo de suas produções caracte-riza o que se poderia chamar uma neo-religiãovirtual ou comunidade midiática de fé.

Repetindo: as expressões religiosas midiáticas,que vêm se transformando em “comunidades vir-

tuais de fé”, parecem sinalizar uma religião globali-zada, de uma mesma divindade, sem instituiçõeseclesiais, sem normas institucionais nem identifica-ção ou compromisso (fidelidade) com determinadacomunidade, mais filosofia espiritualista que igreja(Nova Era). Pela ausência quase total de alusão ouestímulo à participação em comunidades organiza-das, os atores sociais midiáticos estariam contribu-indo para uma religião midiática global.

Na contribuição que aqui é oferecida a estedebate amplo, complexo, tensionante e polêmi-co, cabe uma pergunta final: mesmo com todas aspossibilidades oferecidas pelas modernas tecno-logias de comunicação, é possível uma religiãoglobal “com uma só fé, uma só esperança, um sóSenhor e Deus”? Ou este sonho de Jesus de Na-zaré há dois mil anos ficará sempre e necessaria-mente como uma desafiadora utopia no horizon-te do ser/existir humano?!

Embora o tema clame por um aprofunda-mento maior, mais complexo e abrangente, po-demos dizer que as relações estabelecidas pelasreligiosidades e suas expressões nas mídias vêmse tornando, mais e mais, uma alternativa parauma agenda pública de construção de sentidospara uma significativa representação da popula-ção brasileira, com todas as suas reais ou aqui in-duzidas contradições.

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