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A CONSTRUÇÃO DO “SER” CRIANÇA NA SOCIEDADE CAPITALISTA
Marta Regina Furlan1
João Luiz Gasparin2
RESUMO
As experiências e pesquisas sobre a infância vêm evidenciar a necessidade de analisar-
se a concepção de infância como categoria histórica e não somente como categoria
biológica. Sabe-se que a criança nem sempre foi vista da mesma forma pela sociedade,
pelo adulto. Conforme se processavam as mudanças sociais, econômicas, históricas, ela
foi adquirindo imagens diferentes, de acordo com essas mudanças. Nesse sentido, a
análise do trabalho teve como preocupação situar a criança dentro dessas
transformações sociais, percebendo-a sempre como sujeito histórico que constrói
história. Nessa perspectiva, destaca-se a necessidade de um olhar especial para a criança
na contemporaneidade, analisando sua presença no uso da tecnologia, no mercado de
trabalho, na família, na sua relação com o adulto, na sua forma de pensar, sentir, agir,
diante do mundo que a cerca. Para isso, tomou-se como categoria de análise o trabalho e
as respectivas mudanças no mundo econômico e social. O estudo é uma reflexão sobre o
sujeito - criança na sociedade capitalista.
Palavras-chave: infância; sujeito-criança; mudanças sociais, econômicas e históricas.
1 Mestre em Educação (UEM – Maringá) 2 Orientador da disssertação (UEM – Maringá)
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As mudanças no mundo do trabalho alteram a compreensão da sociedade mudando
significativamente o modo de ser das pessoas. Valores e comportamentos humanos são
modificados em virtude dessa nova realidade. Em conseqüência, muda-se também a
concepção de ser criança.
Vive-se, hoje, um momento crucial da história, um tempo em que há uma espécie de
culto ao novo. As noções de pós-moderno, pós-industrial, em níveis diversos, afirmam
uma nova era, e os cenários mistificadores indicam o momento globalizado e
reestruturado, qualitativamente, pela terceira revolução industrial.
Nesse sentido, verifica-se um conjunto de conhecimentos a serviço da produção e do
consumo. Essa sociedade apela incansavelmente para o consumo, criando no indivíduo
a necessidade de consumir mercadorias.
Marcuse (1997) afirma que essa sociedade é a que mais enaltece o individuo; usa de
todos os meios para que este usufrua da mercadoria para seu próprio conforto;
entretanto, é a que menos permite que o indivíduo aja como sujeito singular que tem
vontades, sentimentos, sensações e idéias próprias.
Essa mesma sociedade faz com que esse indivíduo adulto tenha a liberdade de
consumir, escolher, comprar. E em meio a essa liberdade, verifica-se também a presença
da criança como cliente passível de consumir mercadoria. Esse consumismo provoca no
indivíduo, seja adulto seja criança, a satisfação por ter o produto; no entanto, o
indivíduo não tem mais controle sobre interesses e necessidades próprias. Não tem
espaço para ser de outra maneira, a não ser a que o mercado propõe. Há a renúncia do
eu em prol do todo e a única busca acaba se restringindo à busca da felicidade por meio
do consumo.
Tanto adultos quanto crianças vivem e convivem diariamente com a possibilidade da
obtenção de prazer, que, conforme Palangana (1998, p. 153) é um “[...] prazer
pervertido, cujo fundamento é deslocado para o consumo. O prazer, aquele anunciado
pelos Iluministas, que as condições factuais permitem, mas a sociedade posterga,
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permanece como possibilidade posta entre parênteses, ainda que como possibilidade
cada vez mais real. A manipulação se vale do cálculo de probabilidade para induzir o
indivíduo a acreditar que as chances de ser ele o próximo a tirar a sorte grande são
reais”.
No caso da criança, essa só se satisfaz se tiver o produto que é anunciado em
propagandas. Só se sente satisfeita se possuir a roupa do super-homem, ou o
computador da Sandy e Junior; ou mais ainda, só brinca se for com brinquedos
eletrônicos e industrializados.
Marcuse (1997, p. 29) entende que nessa sociedade “as criaturas se reconhecem em suas
mercadorias, encontram sua alma em seu automóvel, casa em patamares, utensílios de
cozinha”.
Em meio a tanta transformação na esfera econômica e social e tanta novidade,
questiona-se: Em que lugar as crianças estão? O que fazem? Quem são elas? Como
estão? De que forma reagem a tantas mudanças? Que certezas e incertezas vêm trazendo
para o mundo atual? Essas inquietações permitem pensar de forma crítica como as
crianças têm reagido a essas alterações.
Percebe-se, então, que esses questionamentos são condições para o encaminhamento da
reflexão sobre este tema, no intuito de esclarecer o significado social da criança na
atualidade. Procura-se perceber a infância, em específico a criança, dentro de um
contexto social, vendo-a sempre como um ser histórico que constrói e reconstrói a
história e que participa ativamente dessa conjuntura social e econômica.
Esta investigação orientou-se pelo seguinte questionamento: Como vem sendo
construída a imagem de “ser” criança na sociedade de consumo?
Perceber a criança em sua subjetividade ajuda a responder as inquietações que possa ter.
Por sua condição de fraqueza e de promessas, a criança configura forças no seio da
sociedade, seja atraindo as atenções de empresas como público consumidor ou como
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força de trabalho, seja prefigurando uma imagem de gestação.3 Frases como as
seguintes são ouvidas diariamente: “as crianças precisam ser educadas para competir no
mercado global do futuro”, ou “as crianças têm que ter acesso ao computador, pois não
queremos que elas fiquem para trás”.
Na condição de participante da família, a criança se coloca no mercado de bens, quer
como força de trabalho, no caso das famílias de baixa renda, quer como público
consumidor nas famílias de renda alta e média.
Outra questão pertinente da imagem da criança na atualidade é a de que, em razão da
família ter mudado significativamente nas sociedades industriais mais avançadas,
reduzindo-se numericamente, as instituições educacionais já se fazem presentes
prematuramente na vida das crianças. Também ocorreram mudanças radicais no espaço
urbano e as crianças já não têm os espaços informais coletivos para brincar com outras
crianças, como havia antes (rua, quintal...). A criança acaba tendo que freqüentar, desde
pequena, uma instituição educativa (creches, jardim) para a socialização, e para
desenvolvimento das potencialidades intelectuais e psicomotoras. No entanto, a parte
afetiva ainda deve ser responsabilidade da família.
Ghiraldelli Júnior (1997) contribui para a compreensão da infância na atualidade,
afirmando que a modernidade vem criando a concepção de criança como um ser
diferente, em contraposição a concepção de criança como adulto em miniatura. Afirma
ainda que se vive num mundo onde crianças não têm infância, sendo obrigadas a se
tornarem o trabalhador precoce, a vítima precoce, o réu precoce.
Acredita-se que os adultos criam uma imagem do que é ser criança. Ela é o espelho
onde projetam o que acreditam que ela seja, e, portanto, é a expressão de uma certa
concepção da intersubjetividade.
3 Vale (2001 p.13) afirma existir a infância precoce, como consumidora ou força de trabalho. As meninas, no caso, procuram imitar referências femininas (mães, tias, professora), vestindo roupas da moda, usando saltos, maquiagem e até fazendo regime. É praticamente a geração de meninas precoces que criam o hábito de usar roupas justas e curtas, batons e outros acessórios femininos. No entanto, esse tipo de comportamento recebe respaldo no mercado, que se coloca à disposição das crianças, “[...] versões em miniatura das tendências de moda consumida pelas mães [...]”. Afirma ainda que os babadinhos, bordados e estampas coloridas dão lugar ao jeans decorado, às peças com brilho, transparências e até decotes. São meninas que se transformam gradativamente em pequenas cópias de mulheres adultas.
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As argumentações de Ghiraldelli Júnior (1997) fazem pensar que, no mundo
contemporâneo, se estabelece, a cada dia, uma nova situação na qual o destino da
criança é tornar-se o adulto em miniatura. É nesse sentido que alguns acreditam que no
atual momento histórico a infância desaparece, todavia, o que realmente acontece é que
ela simplesmente recebe uma concepção diferente daquela do passado.
Trata-se aqui da infância em que a criança veste as asas do anjo da história. O que você
vai ser quando crescer? Crescer. Futuro. As asas abertas talvez signifiquem promessas
de vôo. Seriedade, prontidão, amadurecimento, pressa, rotina: escola de inglês, judô,
informática, natação. Tudo sendo preparado para o grande futuro que está para chegar.
Crianças vivendo na rua, trabalho infantil, erotização, postituição, objeto de consumo,
apressamento da infância. É nessa direção que a criança é empurrada e é seduzida cada
vez mais, para o futuro, para o mundo adulto, contemplando o passado e acumulando
ruínas a seus pés: brinquedo, fantasia, peraltice, imaginação, brincadeira,
espontaneidade, prazer, burburinho. Em contrapartida ouve-se: “Já é mocinha”. “É
homem feito”. E o tempo? O tempo, assim como diz Souza e Pereira (1997), passou na
janela e a gente não viu, relembrando uma canção popular.
É necessário, portanto, construir instrumentos teóricos que permitam pensar nessa nova
concepção de criança que se vem constituindo a cada dia. Pode-se ainda pensar na
criança pequena com agenda lotada. A televisão que se transforma em babá. Os pais
ausentes. Erotização da infância. Sexualidade, publicidade, cultura do consumo.
Individualismo desencadeado pela ausência do outro. Apagamento da relação de
alteridade. Criança sozinha. Criança que manda nos pais. Estes são alguns dos
fragmentos que compõem a infância hoje, dentre os quais destaca-se a ruptura do
contato e do diálogo entre adultos e crianças como uma questão que precisa ser
analisada posteriormente com maior profundidade.
A criança contemporânea tem como destino transitar entre adultos que não sabem mais
o que fazer com ela. Segundo Souza e Pereira (1997, p. 38): “[...] as crianças passam
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assim a compartilhar entre si suas experiências mais freqüentes, as quais se limitam, na
maioria das vezes, ao contato com o outro televisivo, remoto, virtual e maquínico”.
Assim, a produção do conhecimento acerca da infância faz com que ela ganhe um novo
status nessa nova realidade. Acaba sendo vista como uma eficiente tradutora, para o
adulto, de algo criado por ele; mas que ainda lhe soa como desconhecida. Muitas vezes,
são as crianças que solucionam os impasses que os adultos têm diante do computador,
por exemplo. O mesmo acontece quando a criança, ante a uma câmera de vídeo, se
mostra à vontade e interage com a máquina como com seu semelhante.
Narodowski (2000) também afirma existirem nesse cenário dois grandes pólos de
infância. Um é o pólo da infância hiper-realizada, da infância da realidade virtual.
Trata-se de crianças que realizam sua infância com a Internet, os computadores, os
sessenta e cinco canais da TV a cabo, os videogames. Costumam ser consideradas como
pequenos monstros por pais e professores e parecem não necessitar de suscitar carinho
ou ternura, ao menos não esse carinho que era reservado tradicionalmente para a
infância moderna.
O outro ponto de fuga é constituído pelo pólo que está conformado pela infância des-
realizada. É a infância que é independente, que é autônoma, porque vive na rua, porque
trabalha desde muito cedo. São também as crianças da noite que puderam reconstruir
uma série de códigos que lhes dão uma certa autonomia cultural e lhes permitem
realizarem-se, ou melhor, des-realizarem-se, esta é a palavra certa, como infância. É a
infância não da realidade virtual, mas da realidade concreta.
Pode-se pensar: a internet não existiu desde sempre, no entanto, as crianças pobres, de
rua, essas sim, existiram sempre. Assim, entre a infância des-realizada, encontra-se a
maioria das crianças que conhecemos. É verídico que existem dois pólos de atração, a
infância da realidade virtual e a infância da realidade concreta. Uma infância da
realidade virtual aparentemente harmônica e equilibrada e uma infância da realidade
concreta desarmônica. Todavia, entende-se que ambas são violentas.
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É possível, então, pensar numa infância não em termos de reforma, mas em termos de
desafio, da necessidade de um novo pensamento, denso e capaz, num novo olhar para a
criança pequena.
Olhar para a criança é percebê-la em sua subjetividade, enquanto ser humano,
valorizando seus pensamentos, sentimentos, emoções, ações, diante do mundo que a
cerca.
É diante dessa realidade que se reconhece a infância como um sujeito-objeto cultural,
mostrando com isso como o sujeito criança é fabricado pelos olhos adultos, pelos meios
de comunicação de massa, pelos discursos institucionais. É uma invenção da
modernidade, na qual uma série de fenômenos políticos, econômicos, demográficos
marcam o início dos tempos modernos com o aumento das populações urbanas e a
crescente divisão do trabalho. A organização capitalista da acumulação e da propriedade
e, posteriormente, a organização dos estados nacionais concorrem para inaugurar um
modo novo de ver indivíduos e populações. Às novas formas de organização social,
política e econômica correspondem as sutis transformações na maneira como os sujeitos
são percebidos, categorizados, diferenciados e conformados.
Não é de estranhar, portanto, que estejam dadas as condições para que o adulto e a
criança se diferenciem e se distanciem cada vez mais, principalmente, no contexto
familiar. Paralelamente a esses acontecimentos, e impulsionadas pelas novas
configurações da sociedade e da família, organizam-se e se consolidam as chamadas
instituições educacionais modernas, muitos das quais encarregadas das crianças
pequenas desde a mais tenra idade. Assim, o surgimento das instituições de educação
configura-se, no entender de muitos estudiosos/as, como tributário da afirmação de um
novo sentimento de infância. A infância, segundo este entendimento, passa a ser um
campo privilegiado de intervenção social de exercício de poder e de saber.
Para Spigel (1998) e Kuhlmann-Junior (1998), a criança tem sido vista numa
perspectiva que a diferencia do adulto, um ser em falta, imaturo, alguém que depende de
decisões alheias – alguém que precisa adquirir o conhecimento que foi legitimado por
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outros mais velhos e inteligentes, alguém cujos modos de ser e estar no mundo podem
ser revelados através de experimentação e observação. As crianças passam a ser uma
preocupação social, objetos de interesse, pontos focais de discursos, construções
históricas modeladas por condições sociais concretas.
É diante dessas argumentações que o propósito deste estudo consistiu em mostrar como
os fenômenos associados à infância (suas representações, seus códigos, suas
identidades) não são naturais, dados ou inevitáveis, são sim produto de um complexo
processo de definição. Portanto, os significados atribuídos à infância são o resultado de
um processo de construção social; dependem de um conjunto de possibilidades que se
conjugam em determinado momento da história, são organizados socialmente e
sustentados por discursos nem sempre homogêneos e em perene transformação.
É nesse sentido que não se pode afirmar que haja o desaparecimento da infância, visto
que ela não deixa de existir, mas apenas se configura socialmente de forma diferenciada
diante de cada momento histórico.
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REFERÊNCIAS GHIRALDELLI JUNIOR, Paulo (Org.). Infância, escola e modernidade. São Paulo:
Cortez; Curitiba: Ed. Universidade Estadual do Paraná, 1997.
KUHLMANN JUNIOR, Moysés. Infância e educação infantil: uma abordagem
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MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
MARCUSE, Herbert. Algumas implicações sociais da tecnologia moderna. Praga –
Revista de Estudos Marxistas, São Paulo, n. 1, p. 113-140, 1997.
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de
Freud. Zahar: Rio de Janeiro, 1972.
NARODOWSKI, Mariano. Adeus à infância (e à escola que educava). In: SILVA, Luiz
Heron (Org.). A escola cidadã no contexto da globalização. Vozes: Petrópolis, 2000.
PALANGANA, Isilda C. Individualidade: afirmação e negação na sociedade capitalista.
São Paulo: Plexus/EDUC, 1998.
SPIGEL, Lynn. Seducina the innocent. In: JENKINS, Henry (Ed.). The children’s
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VALE, Rosangela. Infância interrompida. Folha de Londrina, Londrina 12 out. 2001.
Caderno Folha da Sexta, p. 12-14.