arte, história e história da arte: uma relação possível? entrevista com carla mary s. oliveira

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11   Arte, História e História da Arte: uma relação possível? 11  Temporalidades    Revista Discente do Programa do Programa de Pós-graduação em História da UFMG, vol. 3 n. 1.  Janeiro/Julho de 2011   ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/tempora lidades  Arte, História e História da Arte: uma relação poss ível? Entrevista com Carla Mary S. Oliveira 1  Entrevistadores:  André Cabral Honor, Luís Fernando Amâncio Santos, Mateus Alves Silva Temporalidades:  Como surgiu seu interesse por Arte dentro da História? Carla Mary S. Oliveira:  Na verdade, primeiro veio o interesse pela Arte, e desde bem cedo, ainda na minha infância. Minha mãe é artista plástica, trabalhou muito tempo na Bloch como ilustradora e diagramadora e em diversas agências de publicidade no Rio e, depois que ela e meu pai se separaram, fui morar com minha avó materna em Friburgo, aos sete anos. Nas férias descia a serra para o Rio e os passeios que ela programava comigo não tinham nada de infantis: íamos ver as esculturas da Praça da República que, aliás, ainda prefiro chamar de Campo de Santana; visitávamos o MAM; o Museu Nacional de Belas Artes; o Museu Nacional; algumas vernissages  de amigos dela em galerias de arte em Ipanema e no Leblon; visitávamos a feirinha hippie da praça de Nossa Senhora da Paz para ver os caras que faziam retratos a carvão na hora; íamos ver  performances  no Parque Lage. Era coisa totalmente fora do normal, totalmente alternativa como minha mãe ainda é até hoje. Além disso, eu adorava ler e reler os livros de arte que ela tinha no apartamento dela e às vezes deixava comigo em Friburgo. Sem modéstia, aos 10 ou 11 anos eu já tinha lido o  A História da Arte  do Gombrich de cabo a rabo umas 6 ou 7 vezes. Obviamente não entendia nem 1% do que estava lá escrito, mas as imagens me fascinavam profundamente. Para mim era como se uma janela se abrisse para outro mundo, cheio de beleza e sem problema algum. Certamente era uma fuga, dessas que todos nós inventamos na infância e na pré-adolescência para escapar de nossos medos, angústias e inseguranças, mas me reconfortava muito, além de ter ido construindo, aos poucos, um certo olhar estético em mim. Depois, no colégio 2 , ainda em Friburgo, me incomodava que nas aulas de História só se falasse daqueles grandes vultos e tudo se baseasse em datas e nomes. Eu odiava aquilo tudo, e na verdade me dava muito melhor com as disciplinas das exatas, como Matemática, Álgebra e Física, onde as coisas eram mais palpáveis. Aí na 5ª ou 6ª série a coisa mudou radicalmente: surgiu uma professora nova de História, de quem não lembro o nome, que dava suas aulas fechando as cortinas e projetando slides de fotos e pinturas, estas na 1  Currículo lattes: <http://lattes.cn pq.br/6118364027975117>. 2  Colégio Estadual de Nova Friburgo, rebatizado em 1979 como Colégio Estadual Jamil El-Jaick. A Profª Carla Mary estudou nele entre 1978 e 1986.

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8/13/2019 Arte, História e História da Arte: uma relação possível? Entrevista com Carla Mary S. Oliveira

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 Arte, História e História da Arte: uma relação possível? 11 

 Temporalidades  –  Revista Discente do Programa do Programa de Pós-graduação em História da UFMG, vol. 3 n. 1. Janeiro/Julho de 2011 –  ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades 

 Arte, História e História da Arte: uma relação possível?

Entrevista com Carla Mary S. Oliveira1 

Entrevistadores:  André Cabral Honor, Luís Fernando Amâncio Santos, Mateus Alves Silva

Temporalidades:   Como surgiu seu interesse por Arte

dentro da História?

Carla Mary S. Oliveira: Na verdade, primeiro veio ointeresse pela Arte, e desde bem cedo, ainda naminha infância. Minha mãe é artista plástica,

trabalhou muito tempo na Bloch como ilustradora ediagramadora e em diversas agências de publicidadeno Rio e, depois que ela e meu pai se separaram, fuimorar com minha avó materna em Friburgo, aos seteanos. Nas férias descia a serra para o Rio e ospasseios que ela programava comigo não tinhamnada de infantis: íamos ver as esculturas da Praça daRepública que, aliás, ainda prefiro chamar de Campode Santana; visitávamos o MAM; o Museu Nacionalde Belas Artes; o Museu Nacional; algumas vernissages  

de amigos dela em galerias de arte em Ipanema e noLeblon; visitávamos a feirinha hippie da praça deNossa Senhora da Paz para ver os caras que faziamretratos a carvão na hora; íamos ver  performances   no

Parque Lage. Era coisa totalmente fora do normal, totalmente alternativa como minha mãe aindaé até hoje. Além disso, eu adorava ler e reler os livros de arte que ela tinha no apartamento dela eàs vezes deixava comigo em Friburgo. Sem modéstia, aos 10 ou 11 anos eu já tinha lido o  A

História da Arte  do Gombrich de cabo a rabo umas 6 ou 7 vezes. Obviamente não entendia nem1% do que estava lá escrito, mas as imagens me fascinavam profundamente. Para mim era como

se uma janela se abrisse para outro mundo, cheio de beleza e sem problema algum. Certamenteera uma fuga, dessas que todos nós inventamos na infância e na pré-adolescência para escapar denossos medos, angústias e inseguranças, mas me reconfortava muito, além de ter ido construindo,aos poucos, um certo olhar estético em mim. Depois, no colégio2, ainda em Friburgo, meincomodava que nas aulas de História só se falasse daqueles grandes vultos e tudo se baseasse emdatas e nomes. Eu odiava aquilo tudo, e na verdade me dava muito melhor com as disciplinas dasexatas, como Matemática, Álgebra e Física, onde as coisas eram mais palpáveis. Aí na 5ª ou 6ªsérie a coisa mudou radicalmente: surgiu uma professora nova de História, de quem não lembro onome, que dava suas aulas fechando as cortinas e projetando slides de fotos e pinturas, estas na

1 Currículo lattes: <http://lattes.cnpq.br/6118364027975117>.2 Colégio Estadual de Nova Friburgo, rebatizado em 1979 como Colégio Estadual Jamil El-Jaick. A Profª Carla Mary estudou nele

entre 1978 e 1986.

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 Temporalidades –  Revista Discente do Programa do Programa de Pós-graduação em História da UFMG, vol. 3 n. 1. Janeiro/Julho de 2011 –  ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades 

maior parte pinturas de História, e acho que foi aí que comecei a me interessar pela junção dasduas coisas, ainda bem precocemente. Eu era meio CDF e logicamente sentava na primeira fila, e,

como tinha devorado o Gombrich e um monte de outros manuais que minha mãe possuía,sempre sabia que quadro ou foto essa professora estava projetando, e isso me custou o que hojetodos chamam de bullying . Tudo porquê corrigi, numa daquelas projeções, uma garota bem mais

 velha do que eu, enorme, um verdadeiro brucutu, que já estava repetindo aquela série pela 2ª ou3ª vez... A danada passou a me perseguir em todos os recreios, para me encher de pancada... Daíem diante e até a garota deixar o colégio, coisa que só aconteceu uns dois anos depois, passavameus recreios na biblioteca, lendo desde a Barsa  e a Conhecer  até a coleção inteira do Grandes Nomes

da Pintura , da Abril, ou aqueles romances clássicos em edições infanto-juvenis, como Robinson

Crusoé , as Aventuras de Gulliver , O Conde de Montecristo,  A Ilha do Tesouro, Os Três Mosqueteiros  (cujotítulo nunca entendi direito, já que eles eram quatro)... Lia e relia tudo, várias vezes. Achava issomuito melhor do que ficar com um olho roxo ou um dente quebrado...Quando estava com uns 12 ou 13 anos minha mãe se casou com Jorge Dias, irmão caçula doartista plástico Antonio Dias, da geração Opinião 65 3. Passei a frequentar a cobertura dele emCopacabana, e a primeira vez que fui lá tive meu primeiro grande estranhamento com uma obrade arte: na sala de jantar, lado a lado, um Warhol e um Lichtenstein sobre o criado mudo. Fiqueicompletamente impactada, de verdade, toda embasbacada. Tempos depois, quando Antoniopercebeu meu interesse por Arte numa das minhas idas ao apartamento dele, fez algo que nunca

 vou esquecer e sempre guardarei com muito carinho na lembrança: no meio de um almoço, melevou para seu ateliê, abriu um armário enorme, cheio de caixas e mais caixas de papelão preto

etiquetadas, pegou uma que estava separada das outras, sentou no chão, me chamou para sentarao seu lado e abriu a bendita caixa. Eu não acreditei... Meu Deus! Era uma série completa daTauromaquia 4, as gravuras de Picasso que eu já adorava então, com uns 15 anos de idadesomente... Acho que só tive impacto semelhante quando conheci a Capela Sistina, em 2008. FoiSíndrome de Stendhal5 pura, nas duas ocasiões.

 A junção com a História, de forma consciente, só veio mesmo quando entrei na Graduação daUFPB, já morando em João Pessoa, em 1988. Naquela época ainda havia muito de militância deesquerda extremamente marxista entre os estudantes e, of course , eu levava a pecha de

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  Exposição organizada pela marchand e jornalista Ceres Franco e pelo galerista Jean Boghici. O evento integrou ascomemorações do IV Centenário da cidade do Rio de Janeiro, ocupando o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro -MAM/RJ, entre 12 de agosto e 12 de setembro de 1965, com obras de vinte e nove artistas, sendo treze europeus e dezesseisbrasileiros. A ideia central dos organizadores era estabelecer um contraponto entre a produção nacional e estrangeira,promovendo uma avaliação do grau de atualização da arte brasileira a partir das pesquisas então desenvolvidas em torno dasnovas figurações. Junto a Antonio Dias (1944), participaram também da coletiva Carlos Vergara (1941), Rubens Gerchman(1942 - 2008), Roberto Magalhães (1940), Ivan Freitas (1932) e Adriano de Aquino (1946), todos expoentes da artecontemporânea brasileira a partir da segunda metade da década de 60 do século passado.

4 La Tauromaquia  é uma série de 26 gravuras em água-tinta –  técnica em água forte que imita os efeitos da aquarela  –  ilustrando umdos temas mais importantes da cultura espanhola, a arte da tourada. Picasso criou este conjunto de imagens em 1957 como umahomenagem a um livro do século XVII sobre o mesmo tema, escrito pelo famoso matador José Delgado.

5 Também conhecida como Síndrome da Sobredose de Beleza. Constitui-se em um distúrbio psicossomático raro, cuja primeiracrise geralmente tem como gatilho o contato excessivo ou opressor do indivíduo com obras de arte, fundamentalmente emespaços fechados. Seus sintomas clínicos incluem a aceleração do ritmo cardíaco, seguida de vertigem, falta de ar e até mesmoalucinações. Seu nome deriva do fato de ter sido o escritor francês Stendhal quem, em 1817, primeiro descreveu detalhadamente

o conjunto de sensações e efeitos que a longa observação de alguns afrescos em sua viagem pela Itália teve sobre ele mesmo. Tais sintomas, claramente definidos pelo literato em seu livro Nápoles e Florença: uma viagem de Milão a Reggio, hoje se constituemem especialidade clínica no Hospital de Santa Maria Nuova, em Florença, onde se chega a prestar atendimento a cerca de 10 ou12 turistas acometidos pelo mal a cada ano.

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“burguesinha” por que gostava de História da Arte e morava na praia, num bairro de classe médiaalta, Tambaú... e sempre que podia, fazia meus trabalhos e seminários puxando o tema para estelado, o da Arte... Ainda tenho alguns trabalhos daquela época guardados, e às vezes me divirtorelendo-os... Apesar de então a grade curricular vigente no curso não privilegiar a HistóriaCultural ou temas semelhantes, alguns professores estimularam bastante este enfoque que eudava àquilo que fazia. Não posso deixar de citar dois nomes, que realmente entenderam o que euqueria já naquela época: Silvio Frank Alem e Joana Neves, o que não deixa de ser interessante, jáque os dois tinham uma posição marcadamente militante e de esquerda, marxista mesmo, nauniversidade. Depois, por um ano e meio, morei em Brasília e transferi o curso para a UnB, ondetive aulas maravilhosas com Mario Bonomo, que lecionava História da Arte para turmasconjuntas de História e Arquitetura num bloco por trás do minhocão. Quando voltei para aParaíba em 1994 e retomei a licenciatura, na disciplina de Metodologia da História a própria

professora Joana Neves me ajudou a dar cara àquilo que viraria meu projeto de mestrado naSociologia, focando o Barroco na Paraíba. Daí em diante, fui abrindo meu caminho nesta junçãoentre Arte e História...

Temporalidades:  Atualmente, existe um aumento considerável no número de pesquisas que abordam a Arte

como fonte historiográfica. Como a professora vê o campo para o historiador que trabalha com Arte no Brasil?

Carla Mary S. Oliveira: Creio que o grande problema no Brasil, neste tipo de pesquisa, ainda é aformação teórica insuficiente destes pesquisadores. Para se trabalhar com a Arte como fontehistórica, queira-se ou não, é preciso construir durante anos uma certa erudição, que não surge do

nada. Como gosto de dizer a meus alunos e orientandos, é preciso muita “ralação”  para seconseguir chegar frente a uma obra de arte e “decifrá-la” com o olhar de um historiador. CarloGinzburg já apontava isso na obra dele sobre Piero Della Francesca, Peter Burke tambémretorna, volta e meia, a esta questão. E nossos graduandos e até mesmo pós-graduandos leem,hoje, quase nada em outro idioma, mesmo tendo às mãos o gigantesco acervo de textosacadêmicos, artigos, revistas e livros disponíveis na web. Muitos não sabem nem mesmo fazeruma busca básica no Google, o que dirá no Google Books ou no Google Acadêmico. O portal deperiódicos da Capes ainda é uma quimera até mesmo para muitos docentes da pós-graduação nasHumanas, e ele dá acesso gratuito ao acervo de editoras e portais editoriais importantíssimos para

a História e para a História da Arte, como a JSTOR, a Blackwell, além das editoras dasUniversidades de Cambridge e de Oxford e das bibliotecas da Universidade de Harvard e dacidade de Nova York, apenas para ficar nas mais famosas. É um acervo incalculável, ainda muitosubutilizado por aqui na História e, menos ainda, na História da Arte. Sem o aprofundamentoteórico que estes acervos podem propiciar, a discussão sobre a relação entre Arte e História tendea ficar, quase sempre, na superfície. Além disso, no Brasil há somente duas ou três revistasacadêmicas de qualidade dedicadas à História da Arte, poucos dossiês são organizados emrevistas de enfoque mais aberto e os eventos na área são pouquíssimos e restritíssimos, o queinibe, em meu entendimento, a ampliação da interface entre História e Arte, especialmentetomando as obras artísticas como fontes históricas/ historiográficas. Em síntese, este campo/

enfoque, na História, ainda é uma seara inóspita em nosso país, infelizmente.

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Temporalidades:  Durante algum tempo, muitos historiadores da Arte, ao analisar seu objeto, pouco extraíam

das imagens propriamente ditas. Seus estudos restringiam-se a informações que outras fontes forneciam e a Arte

entrava como ilustração. A ideia de pensar uma cultura visual chegou tardiamente à História. Você acha que a produção recente tem se esquivado desse problema?

Carla Mary S. Oliveira: Sim, e muito. Já dei esse exemplo num de meus artigos: as diversas telasde Frans Post mostrando engenhos de açúcar no litoral do Nordeste são imagens quase queobrigatórias em livros didáticos, mas nunca vi ninguém questionar o fato de que em NENHUMAdessas imagens produzidas pelo artista flamengo no século XVII há algum instrumento de torturaou algum índio ou africano escravizado sendo castigado. Isso por acaso queria dizer que osengenhos da WIC6 durante sua ocupação no Brasil eram mais corteses no trato com a escravaria?Obviamente que não! Além disso, a análise formal de uma obra de arte não se esgota em si, épreciso percebê-la em seu Zeitgeist , em seu tempo, em seu contexto, a partir da técnica utilizadaem sua construção, tentar imiscuir-se nos motivos de sua feitura, aproximar-se do universo e dacultura artística e histórica vivida por seu autor. Poucos historiadores fazem isso hoje no Brasil.Gosto muito do que a professora Maraliz Christo, da Federal de Juiz de Fora, fez com oTiradentes Esquartejado do Pedro Américo em sua tese de doutorado7. É um belo exemplo de comoum historiador deve mergulhar numa obra de arte para tentar compreendê-la aos olhos daHistória.

Temporalidades:   Em alguns países (França, Estados Unidos, Itália ou Portugal, por exemplo), há a

separação entre departamentos de História e departamentos de História da Arte. O que a professora acha destadivisão?

Carla Mary S. Oliveira: Não me parece uma boa solução, assim como também não sou fã doscursos específicos de graduação em História da Arte que têm surgido no Brasil nos últimos anos.Em meu entendimento, com esta divisão se perde o que deve ser essencial para a base da análisehistórica de uma obra de arte: a visão de conjunto. A arte não surge apartada dos outros camposda vida cotidiana, como a economia, a política, a religião, a educação, as subjetividades... Estudá-la per si , e somente per si , para mim, empobrece as possibilidades de aprofundamento da pesquisa,tolhe os movimentos possíveis ao historiador num intrincado tabuleiro que, sem elementos

destes outros campos, podem tornar os detalhes de tais obras imperceptíveis, impenetráveismesmo em seus sentidos e significados mais profundos e instigantes. Além disso, é preciso certamaturidade intelectual e pessoal para trabalhar com uma obra de arte e acho que isso só começa ase construir durante a pós-graduação. Obviamente, se pode e se deve fazer primeiras tentativas aolongo da graduação, ir tateando o terreno, mas como diz o historiador francês Antoine Prost,“(...) é necessário ser já historiador para criticar um documento (...)”8, e vejo as obras de artecomo documentos, é claro. Para mim, então, um pesquisador só está pronto para fazer sua

6 West Indische Compagnie, mais conhecida como Companhia das Índias Ocidentais.

7 CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Pintura, história e heróis no século XIX:   Pedro Américo e „Tiradentes esquartejado‟. Tese(Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. Disponível em: <http://cutter.unicamp.br/>. 

8 PROST, Antoine. Doze lições sobre a História . Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p.57.

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primeira tentativa válida de análise de uma obra de arte, portanto, no seu mestrado ou até mesmono doutorado, quando já pode acumular uma bagagem intelectual e uma erudição minimamentesuficientes para se dedicar a tal empreitada: aí é que ele deve se especializar em História da Arte,depois de ter tido a formação geral em História na graduação...

Temporalidades:  Existe alguma diferença entre trabalhar com arte como fonte histórica longe do eixo das

 pesquisas do Sudeste do Brasil?

Carla Mary S. Oliveira: É claro! Pra começar, os acessos a acervos, documentação, arquivos emuseus são muito mais difíceis. Financiamentos, então, são um verdadeiro conto de fadaspraticamente inalcançável. Depois, somos pouquíssimos a pesquisar História da Arte fora do eixoRio/ São Paulo/ Minas. Basta entrar no sítio eletrônico da ANPUH e fazer uma busca no

“Quem é quem” para comprovar isso. No meu caso específico, que trabalho com o Barroco doNordeste, tenho que me contrapor, desde o mestrado, a uma fortuna crítica que coloca oBarroco/ Rococó de Minas como paradigma para todo o Brasil, e isto ainda me incomodabastante, por que especificidades locais são deixadas completamente de lado, artistas que seequiparam ou mesmo superam Aleijadinho ou Athayde, como o Sepúlveda em Pernambuco, o

 José Joaquim da Rocha na Bahia ou o Mestre Valentim no Rio, por exemplo, continuamdesprezados por pesquisadores já de renome na área. É o eterno embate entre centro e periferiade que fala Ginzburg...

Temporalidades:   A professora possui Doutorado e Mestrado em Sociologia. Como sua base sociológica

influencia os seus trabalhos?

Carla Mary S. Oliveira: Fui parar na pós de Sociologia, na própria UFPB, por contingênciaspessoais: não havia mestrado em História na Paraíba em 1997 e eu não tinha condiçõesfinanceiras, naquele momento, de encarar uma mudança para Recife ou mesmo para o Rio ouSão Paulo. Mas essa acabou sendo uma escolha feliz, pois abriu meu campo de visão e me jogouno colo a teoria das práticas e campos de Bourdieu, além de diversos escritos e conceitos deFoucault e Norbert Elias, que continuo a usar até hoje. No doutorado eu queria ter ido para oRio, fazer Antropologia Social no Museu Nacional, mas novamente as condições da vida prática

me impediram e mudaram o rumo de minhas escolhas. Eu estava recém-casada e ia começar aprimeira turma de doutorado da pós de Sociologia da UFPB, daí novamente a escolha porpermanecer na Paraíba. Mas desta vez a pesquisa não teve nada a ver com Arte: foquei minhatese sobre uma revista9 que era publicada pela colônia portuguesa no Rio de Janeiro na década de30, pois possuía alguns exemplares dela que herdara da coleção de meu bisavô materno, imigranteportuguês chegado ao Rio ainda molecote, por volta de 1890. A tese foi um tributo a ele e à sualuta para vencer num lugar tão distante do seu. Só depois de terminada a tese retornei à Históriada Arte e ao Barroco. Contudo, a base dos conceitos de Bourdieu, Elias e também de Foucaultcontinuam a permear meus escritos até hoje, mesclados aos autores que admiro na História, naHistória da Arte e em outras áreas: Carlo Ginzburg, Michel de Certeau, Walter Benjamin, Peter

9 Trata-se da revista Lusitania , publicada entre 1929 e 1934.

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Burke, Simon Schama, Lília Schwarcz, João Adolfo Hansen, Roy Strong, Francis Gaskell,Svetlana Alpers, Erwin Panofsky, Ernst Hans Gombrich, Giulio Carlo Argan, Omar Calabrese...

Temporalidades:  A professora possui um sítio eletrônico pessoal (http://cms-oliveira.sites.uol.com.br/), com

artigos, vídeos e outras informações, além de blog e página em rede social. Como é essa experiência de interação

acadêmica pela internet?

Carla Mary S. Oliveira: Bem, o sítio surgiu em 2000, para dar apoio às aulas de História da Arteque eu ministrava numa faculdade particular em João Pessoa, e a intenção inicial era apenascolocar lá resumos das aulas e links para revistas e sítios institucionais de museus ou bibliotecas eacervos disponíveis na web, assim como chamadas para eventos e publicações. A coisa aospoucos foi crescendo, juntei uma Biblioteca Virtual de História Colonial quando entrei na UFPBcomo docente, em 2004, e isso deu uma projeção a ele que nem eu mesma imaginava. Em 2007ele inclusive chegou a ser premiado pelo portal UOL. Aí começaram a surgir pedidos de cópiasde meus artigos, e resolvi colocá-los lá também. Os programas de curso foram o passo seguinte,assim como links para os trabalhos de graduação e pós que orientei. O último acréscimo foi umaseção com vídeos de entrevistas e/ ou palestras de historiadores que admiro ou que trazemcontribuições interessantes às discussões historiográficas da atualidade. O blog(http://volourdes-delicias.blogspot.com/) já é pura diversão: acho que sou aquilo que hojechamam de  gourmand , ou seja, coleciono livros de gastronomia, adoro fazer experiênciasgastronômicas e partilhá-las com os amigos em minha casa, e as coloco lá, no blog, para que

outros amigos possam também repeti-las. Infelizmente, não tenho o tempo que desejaria tantopara usar mais minhas panelas e as receitas de meus livros como também para postar maisbrincadeiras ali no blog. Já quanto às redes sociais, as uso com muitíssima parcimônia. Só aceitomesmo os convites de pessoas que realmente conheço e fazem parte de minha vida, tanto quetenho pouco mais de cinquenta em minha lista, dos quais cerca de vinte são da minha famíliamesmo. Além disso, restrinjo o acesso às minhas fotos, vídeos e postagens somente a estaspessoas. Meu contato com os alunos é feito por e-mail, quando necessário, e entendo meu sítioeletrônico como uma fonte de pesquisa que pode auxiliá-los nas disciplinas que ministro nagraduação e na pós. Ainda não dei o upgrade  para uma interação maior com os alunos por meio da

 web. Ainda a vejo mais como um maravilhoso instrumento de pesquisa que, como já disse aqui,

ainda é muito subutilizado nas Humanas.

Temporalidades:  Dentre seus inúmeros trabalhos encontramos também pesquisas em História da Educação.

Como a professora vê a relação entre educação e arte nas pesquisas que realiza?

Carla Mary S. Oliveira: Sou muuuuito novata ainda nesse campo. Comecei desenvolvendo umpouco um tema que ficara de lado em minha tese, o modo como a História de Portugal apareciana Lusitania , como essa cultura histórica era transmitida a seus leitores, especialmente aos luso-descendentes nascidos no Brasil e ainda em idade escolar, já que os textos da revista com este

tema eram voltados “aos pequenos”10

. Depois, ao participar de uma banca de mestrado na

10 Trabalho apresentado em 2008, no VII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, realizado no Porto, em Portugal.

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UFRPE, em 2009, conheci por meio da dissertação que avaliava11 um músico recifense do séculoXVIII, o pardo Luís Álvares Pinto, que teve uma trajetória espetacular, e atuou tanto comoprofessor de música como professor régio de primeiras letras, o que me levou a fazer uma brevepesquisa sobre ele12. Os amigos que trabalham com História da Educação na UFPB,especialmente a professora Cláudia Engler Cury e o professor Antônio Carlos Ferreira Pinheiro,me incentivaram, então, a ingressar no GHENO  –   Grupo de Pesquisa História da Educação no

 Nordeste Oitocentista 13, onde estou começando uma pesquisa sobre a trajetória escolar e deformação profissional e intelectual do pintor paraibano Pedro Américo14. Penso que este deve vira ser o viés de minha abordagem nas pesquisas futuras neste campo, da relação entre a Históriada Educação e a Arte ou seja: a trajetória de formação escolar e profissional de determinadossujeitos, atuantes no campo artístico brasileiro dos séculos XVIII e XIX.

Temporalidades:  Em recente pesquisa, seu trabalho focou as relações entre a arte produzida em Minas Geraise no litoral do Nordeste, entre o século XVIII e começos do XIX. Quais foram os principais desafios encontrados

durante sua execução?

Carla Mary S. Oliveira: Bem, a pesquisa sobre este tema foi parte de meu Estágio Pós-Doutoralna UFMG, que realizei entre agosto e dezembro de 2009, sob a supervisão da professora Adalgisa

 Arantes Campos. Sempre me inquietou que tomassem o Barroco, no Brasil, como um paradigmaestabelecido a partir de Minas. Mas eu não podia fazer uma reflexão mais aprofundada sobre issosem conhecer as igrejas mineiras do século XVIII e algumas do início do século XIX.Oportunamente, o nosso Programa de Pós-Graduação em História firmou um convênio com o

PPGH da UFMG, financiado pela Capes, no final de 200815. Neste convênio o tema principal sãoos patrimônios e suas conexões históricas, essas conexões são as linhas de força que definem oenfoque das pesquisas com ele envolvidas. Desse modo, o que eu queria fazer, que era construiruma base de imagens e dados sobre as principais igrejas Barrocas e Rococós de Minas, a fim deembasar uma análise que as contrapusesse em relação às igrejas e prédios religiosos do litoralnordestino compreendido entre o Recôncavo Baiano e a Paraíba, edificados no período colonial,se tornou viável. Apresentei algumas análises decorrentes deste trabalho no Seminário do Grupode Pesquisa liderado pelo professor Eduardo França Paiva em abril do ano passado, em Niterói, ea coletânea com o texto acabou de ser lançada16. Também está para sair um artigo meu sobre as

portadas barrocas no Brasil colonial, em que faço uma comparação entre Minas e o Nordeste.Este texto será publicado na revista ArtCultura , da Federal de Uberlândia, também ainda este ano.Na verdade, o material que coletei é enorme, mais de 3.500 fotos, isso fora os livros e artigos que

11 Trata-se da dissertação de José Neilton Pereira,  Além das formas, a bem dos rostos: faces mestiças da produção cultural barroca recifense(1701-1789), disponível para download em: <http://www.dominiopublico.gov.br/>.

12 Trabalho aceito para apresentação em 2010, no VIII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, realizado em SãoLuís, no Maranhão. Foi publicado nos anais eletrônicos do evento, em CD-ROM.

13 Sítio eletrônico disponível em: <http://gheno-ufpb.sites.uol.com.br/>.14 A pesquisa intitula-se Pedro Américo: de menino do Brejo a doutor em Bruxelas (trajetória escolar e formação intelectual de um pintor de História

no Brasil oitocentista), e recebeu uma bolsa de iniciação científica do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica daUniversidade Federal da Paraíba, financiada pelo CNPq (PIBIC/UFPB/CNPq).

15  O projeto que possibilitou o convênio intitula-se Patrimônios  –   Conexões Históricas , e foi contemplado pelo Edital Capes

PROCAD-NF nº 008/2008, devendo estender-se até dezembro de 2012. A professora Carla Mary o coordena, em conjuntocom a professora Adriana Romeiro, da UFMG.16 Trata-se de Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços , coletânea organizada por Eduardo França Paiva, Márcia Amantino

e Isnara Pereira Ivo (São Paulo; Belo Horizonte: Annablume; PPGH-UFMG, 2011, 284 p.).

8/13/2019 Arte, História e História da Arte: uma relação possível? Entrevista com Carla Mary S. Oliveira

http://slidepdf.com/reader/full/arte-historia-e-historia-da-arte-uma-relacao-possivel-entrevista-com 8/8

18 Entrevista com Carla Mary S. Oliveira

18

 

 Temporalidades –  Revista Discente do Programa do Programa de Pós-graduação em História da UFMG, vol. 3 n. 1. Janeiro/Julho de 2011 –  ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades 

consegui adquirir nas livrarias e sebos de BH e os mais de 7.500 Km que percorri com meu carro,indo e vindo ao longo da Estrada Real, entre Tiradentes e Diamantina. Não posso dizer que tive

dificuldades em realizar as pesquisas, pois tanto a professora Adalgisa como seus colegas doPPGH-UFMG me receberam de braços abertos e facilitaram o acesso a muitos locais que eu nemimaginava existir. Isso fora as trocas extremamente profícuas que tive com os alunos de mestradoe doutorado que cursaram a disciplina optativa que ministrei, tratando da Cultura do Barroco. Na

 verdade aquele foi um período muito prazeroso, de mergulho na arte religiosa, nas paisagens e naculinária de Minas. Tenho saudades de meus almoços de domingo em Sabará e de minhasescapadas para Ouro Preto, que foram muitas. Esta temporada foi algo que me marcou muito, etenho a sorte de dizer que deixei diversos amigos nas alterosas montanhas mineiras...

Temporalidades:  Para finalizar a entrevista juntamos duas perguntas: quais temas tem lhe interessado para

 pesquisas futuras? Se tivesse de escolher um livro que você gostaria de ter escrito, qual seria?

Carla Mary S. Oliveira:  Bem, agora estou começando um mergulho no universo do Pedro Américo, mas há também um artífice pernambucano de fins do XVIII e começos do XIX,Manoel de Jesus Pinto17, que está na minha listinha de interesses futuros, assim como uma análisemais acurada dos conventos franciscanos do litoral nordestino, já que não podemos dar conta detudo o que nos interessa ao mesmo tempo, infelizmente. Também sou apaixonada porCaravaggio, e certamente queria ter a erudição e experiência de Sebastian Schütze, que acaba delançar um catalogue raisonné   maravilhoso sobre este polêmico artista lombardo pela editora

 Taschen18

, da Alemanha. O livro, em formato gigante, capa dura e com reproduções que chegama mostrar o craquelado das telas, é uma preciosidade e, confesso, tenho certa inveja de quem tema capacidade de fazer um trabalho como aquele. Quisera eu tê-lo feito.

17 A professora Carla Mary acredita ser este artífice pernambucano o autor da pintura do forro da nave da igreja conventualfranciscana de João Pessoa, cuja autoria, até hoje, continua incerta. Em 2009 ela publicou um artigo sobre este tema na Fênix  –  

Revista de História e Estudos Culturais , periódico online da Universidade Federal de Uberlândia. O texto está disponível em:<http://www.revistafenix.pro.br/PDF21/ARTIGO_03_Carla_Mary_S._Oliveira.pdf>.18 Ver: SCHÜTZE, Sebastian. Caravaggio: as obras completas. Tradução de João Bernardo Paiva Boléo. Köln: Taschen, 2010. 306

p.