arte e expressão · generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no...

21
Arte e expressão Primeira Parte – A arte como expressão A teoria expressionista da arte D urante séculos julgou-se que a representação era a característica essencial da arte, aquilo que a definia. A representação era vista em termos de imitação e o papel do artista era o de alguém que punha um espelho diante da natureza. Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên- cia dos objectos e as acções humanas. No sentido lato da palavra, a arte caracterizava-se pela atenção dada às propriedades objectivas do mundo «externo» – à natureza e ao comportamento observável. Mas, no Ocidente, com a passagem do século XVIII para o século XIX, alguns artistas ambiciosos – tanto na teoria como na prática – começaram a voltar-se para o interior. Passaram a preocupar-se menos com captar a aparência da natureza e dos costumes da sociedade e dirigiram a atenção para as suas próprias experiências subjectivas. Embora continuassem a retratar paisagens, estas estavam agora imbuídas de um significado que transcendia as suas características físicas. Estes artistas procuraram também registar as suas reacções – o que sentiam – perante a paisagem. Apesar de as teorias miméticas da arte dizerem que os artistas se preocupavam com espelhar o mundo objectivo, no início do século XIX os artistas passaram a prestar mais atenção ao mundo das experiências subjectivas ou «interiores». Um exemplo importante deste abalo nas ambições artísticas foi o movimento romântico. Em 1798, no prefácio da sua obra Lyrical Ballads, Wordsworth defende que a poesia é «o fluxo espontâneo de sentimentos poderosos». Ou seja, que a função do poeta não é, essencialmente, espelhar as acções de outras pessoas, mas explorar os seus próprios sentimentos. O romantismo valoriza sobretudo o sujeito e as suas experiências individuais. O poeta contempla uma qualquer cena exterior, mas não a descreve por causa do seu valor intrínseco, fá-lo porque ela é um estímulo para examinar as suas próprias reacções emocionais ao que vê. O mundo é apresentado de um ponto de vista pleno de emoções, e as perspectivas emocionais do poeta são mais importantes do que simplesmente descrever aquilo que as originou (tal como uma cotovia ou um vaso grego).

Upload: others

Post on 13-Oct-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

Arte e expressão

Primeira Parte – A arte como expressão

A teoria expressionista da arte

Durante séculos julgou -se que a representação era a característica essencial da arte, aquilo que a definia. A representação era vista em termos de imitação e o papel do artista era o de alguém que

punha um espelho diante da natureza. Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido lato da palavra, a arte caracterizava -se pela atenção dada às propriedades objectivas do mundo «externo» – à natureza e ao comportamento observável.

Mas, no Ocidente, com a passagem do século XVIII para o século XIX, alguns artistas ambiciosos – tanto na teoria como na prática – começaram a voltar -se para o interior. Passaram a preocupar -se menos com captar a aparência da natureza e dos costumes da sociedade e dirigiram a atenção para as suas próprias experiências subjectivas. Embora continuassem a retratar paisagens, estas estavam agora imbuídas de um significado que transcendia as suas características físicas. Estes artistas procuraram também registar as suas reacções – o que sentiam – perante a paisagem. Apesar de as teorias miméticas da arte dizerem que os artistas se preocupavam com espelhar o mundo objectivo, no início do século XIX os artistas passaram a prestar mais atenção ao mundo das experiências subjectivas ou «interiores».

Um exemplo importante deste abalo nas ambições artísticas foi o movimento romântico. Em 1798, no prefácio da sua obra Lyrical Ballads, Wordsworth defende que a poesia é «o fluxo espontâneo de sentimentos poderosos». Ou seja, que a função do poeta não é, essencialmente, espelhar as acções de outras pessoas, mas explorar os seus próprios sentimentos. O romantismo valoriza sobretudo o sujeito e as suas experiências individuais. O poeta contempla uma qualquer cena exterior, mas não a descreve por causa do seu valor intrínseco, fá -lo porque ela é um estímulo para examinar as suas próprias reacções emocionais ao que vê.

O mundo é apresentado de um ponto de vista pleno de emoções, e as perspectivas emocionais do poeta são mais importantes do que simplesmente descrever aquilo que as originou (tal como uma cotovia ou um vaso grego).

Page 2: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

76 FILOSOFIA DA ARTE

Para o poeta romântico, o artista não se dedicava à imitação servil ou à representação do mundo externo e objectivo, e sim à apresentação de um mundo interno, subjectivo – os seus sentimentos e emoções. Também na música as obras de compositores como Beethoven, Brahms e Tchaikovsky, entre outros, passaram a ver -se como a projecção de sentimentos profundos.

O romantismo exerceu uma enorme influência no curso da arte, que ainda hoje se faz sentir. Talvez a imagem do artista mais comum nos nossos dias continue a ser a do criador (compositor, pintor, etc.) inquieto que busca o contacto com as suas emoções e sentimentos. Muitos movimentos artísticos do século XX, do expressionismo alemão à dança moderna, podem encarar -se como descendentes directos do romantismo. Ao distanciarem -se cada vez mais dos cânones rígidos da imitação – usando a distorção e a abstracção como meios para se exprimirem – tornaram ainda mais evidente a inaptidão das teorias miméticas e representacionalistas da arte.

Estas inovações não serviam apenas como contra -exemplos das teorias da arte vigentes, encorajavam também um novo olhar sobre o passado. Pôde, então, notar -se que o romantismo e as suas vicissitudes não eram algo de totalmente inédito e que a expressão de sentimentos tinha estado desde sempre associada à arte. Não seriam expressivos os sonetos de Shakespeare? Assim, tanto essa nova arte (o romantismo e o surgimento da música absoluta) como a do passado exigiam um novo tipo de teoria, mais inclusiva e mais sensível à expressão de emoções do que as teorias representacionalistas. É neste contexto que emergem as teorias expressionistas da arte.

As teorias representacionalistas tratam a obra do artista como se fosse a do cientista. De certa forma, ambas procuram descrever o mundo externo. Mas, chegando ao século XIX, qualquer comparação entre o cientista e o artista poria este último numa posição de desvantagem em termos das des-cobertas feitas acerca do mundo ou do retrato da natureza. Neste campo, a ciência leva um inegável avanço.

Havia pressão social para que a arte encontrasse uma função que a distinguisse da ciência e, ao mesmo tempo, lhe conferisse igual relevância. A ideia de que a arte se especializava na expressão de emoções era, por isso, particularmente apelativa. A arte restituía à ciência o que lhe perten-cia – a exploração do mundo objectivo –, reservando para si um território igualmente importante – o mundo interior dos sentimentos. Se a ciência colocava um espelho diante da natureza, a arte voltava -o para o sujeito e as suas experiências.

No início do século XX, a filosofia da arte estava preparada para uma mudança de maré. De um ponto de vista puramente intelectual, as teorias representacionalistas da arte mostravam -se caducas, totalmente incapazes de descrever a arte – tanto a recente como a que estava para trás. Ao colo-car a arte no mesmo plano que a ciência, estas teorias conduziam a arte à

Page 3: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

ARTE E ExpRESSãO 77

obsolescência. Desse modo, as teorias, as práticas e as exigências sociais contribuíram para que o mundo da arte se voltasse para filosofias da arte de cariz expressionista.

Ao longo do século XX, propuseram -se muitas versões de teorias expres-sionistas da arte. Até meados desse século, teorias deste género eram a abordagem mais comum. A base de todas as teorias expressionistas é a ideia de que uma coisa só é arte se expressar emoções. «Expressão» vem de uma palavra latina que significa «pressionar do interior para o exterior» – tal como se espreme o sumo de uma uva. E o que as teorias expressionistas afirmam é que a arte procura trazer os sentimentos à superfície, impelindo--os de dentro para fora, para que o artista e o público os percepcionem.

Apesar de as várias teorias expressionistas diferirem em muitos aspectos, existe um tipo de teoria da arte – tornada célebre por Lev Tolstói – que vê a expressão como uma forma de comunicação. Quando o sujeito se exprime a outro, comunica com ele. Mas, claro, nem toda a comunicação é arte. Então, como se distingue a comunicação artística de outros tipos de comunicação? Segundo este tipo de teoria, o que define a arte é o facto de a sua principal preocupação ser a expressão ou a comunicação de sentimentos. Na arte, há um estado emocional que é exteriorizado, que é trazido à superfície e transmitido aos espectadores, leitores e ouvintes.

Mas como se explica esta noção de transmissão de uma emoção? O conceito de transferência é essencial à ideia de transmissão. Transmitir algo é transferi -lo. Mas o que transfere uma obra de arte? Segundo a teoria expressionista, o que se transmite é uma emoção. Um artista olha para uma paisagem e sente -se triste. Desenha então a paisagem de modo a que o observador experimente esse mesmo sentimento de tristeza. Neste caso, dizer que «o artista exprime a sua tristeza» é dizer que ele possui um sentimento de tristeza que transmite ao seu público, ou provoca nele, ao desenhar de uma determinada maneira.

Este conceito de expressão implica muitas coisas. Primeiro, o artista deve ter algum sentimento ou emoção. Talvez este sentimento ou esta emoção diga respeito a uma paisagem ou a um acontecimento, como uma vitória militar. Mas seja qual for o motivo do sentimento, a teoria expressionista da arte requer que o artista experimente um qualquer estado emocional. O artista exprime este estado – trá -lo para fora de si, por assim dizer – ao procurar uma configuração de linhas, formas, cores, sons, acções e/ou pala-vras que se ajustem (ou combinem) com o sentimento. Em seguida, estas configurações suscitarão o mesmo tipo de estado emocional no público.

No filme Amistad, Steven Spielberg exprime a sua indignação perante a escravatura. Ou seja, cria algo que permite aos espectadores sentir o mesmo tipo de indignação perante a escravatura que ele sente. Note -se que nesta variante da teoria expressionista é necessário que o público seja

Page 4: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

78 FILOSOFIA DA ARTE

levado a sentir o mesmo (tipo de) sentimento. Segundo esta perspectiva, tem de existir um artista, um público e uma emoção que ambos partilhem. Assim, x só é arte se um artista transmitir o mesmo estado emocional que sentiu a um público.

Aqui, temos três condições necessárias para a arte – um artista, um público e um estado emocional comum. Mas isto é, sem dúvida, insufi-ciente para definir a arte. Suponhamos que me sinto muito desanimado. Suponhamos que acabei de perder o emprego. Choro, os meus ombros sacodem -se e falo devagar e atabalhoadamente. O leitor vê -me e, por assim dizer, é contagiado pela minha tristeza. Suponhamos que o leitor começa a pensar na hipótese de perder o seu emprego – já que, no nosso local de trabalho, seria o próximo a ser despedido – e sente -se também triste. Sem dúvida que experimento tristeza e que o meu comportamento levou o leitor a sentir -se também triste – possivelmente sente -se triste em face do seu futuro da mesma maneira que me sinto triste perante o meu. Mas não criei uma obra de arte, pois não?

Não; e pelo menos um motivo para o afirmar é que, ao chorar, não pre-tendo criar uma obra de arte, ou sequer partilhar a minha dor. Estou tão infeliz que não me importa o que o leitor sente. Estou transtornado, mas não é minha intenção transferir esse sentimento para outras pessoas. Quando um artista exprime os seus sentimentos, fá -lo intencionalmente. É esse o seu objectivo. Ele pretende trazer os seus sentimentos para o exterior, onde todos, incluindo o próprio, possam contemplá -los. Uma coisa só é uma obra de arte se houver uma transmissão intencional do mesmo estado emocional que o artista sentiu para o público.

E que dizer dos cartões de felicitações? Ou dos cartões de condolências, por exemplo? Suponhamos que a nossa profissão é escrever aquelas frases que se encontram no interior destes cartões. Somos, por isso, artistas? Esses cartões exprimem sentimentos. Mas são sentimentos bastante genéricos. É por isso que estes cartões podem ser produzidos e vendidos em larga escala. São bastante impessoais. Mesmo que as pessoas que os compõem se sintam tristes e que os destinatários se sintam tristes também, dificilmente lhes chamamos obras de arte. Porquê?

Talvez porque as emoções que comunicam sejam demasiado gerais. Os românticos valorizavam muitíssimo a expressão da experiência individual. Mas a expressão transmitida por um cartão de condolências não é indivi-dualizada. Poderá dizer respeito a um familiar falecido, mas também a um amigo ou a um mero conhecido. Porém, esperamos que os artistas digam coisas originais e específicas, não pré -fabricadas. Adicionemos, então, à nossa lista de condições necessárias que uma obra de arte é uma transmis-são intencional do mesmo estado emocional individual que o artista sentiu para o público.

Page 5: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

ARTE E ExpRESSãO 79

Isto ainda não é uma definição adequada da arte por um motivo evidente. Suponhamos que um pintor recebe uma ordem de despejo enquanto o leitor visita o seu estúdio. Ele pega numa lata de tinta vermelha e atira -a à parede, praguejando profusamente ao lançá -la. Está zangado e a sua raiva é muito específica – está a sujar a parede – o que é uma táctica astuta para prejudicar o senhorio, e os impropérios acerca do peso, das tendências sexuais e das origens étnicas do senhorio são -lhe dirigidas e a mais ninguém. Imagine que a ira do pintor contra o senhorio o contagia. Consistirá este episódio numa das obras de arte do artista?

É pouco provável. O defensor da teoria expressionista da arte, tipicamente, procurará explicar esta conclusão, dizendo que há uma distinção entre a expressão artística de uma emoção e o mero exprimir de uma emoção. A arte não é uma questão de fúria, mesmo que a nossa fúria leve outros a sentirem a mesma fúria que nós. Exprimimos muitas vezes as nossas emoções a entes queridos que chegam a partilhá -las. Mas isto não é arte. E por que não?

Um artista examina as suas emoções; não está simplesmente possuído por elas. Para o artista, o seu estado emocional é como o modelo que posa para um retrato. Ele esforça -se por encontrar a sua textura e os seus contor-nos. Ao reflectir sobre o seu estado emocional, age de forma controlada. O artista explora -o deliberadamente e procura a palavra exacta – ou a cor ou o som – para o descrever; busca alternativas. Se é poeta, primeiro experi-menta uma palavra e depois substitui -a por outra que se ajusta melhor ao que sente. Criar uma obra de arte não é uma questão de explodir, vociferar ou de meramente exprimir; é um processo de clarificação.

Habitualmente, o artista começa uma obra – um poema, uma canção ou um quadro – com um sentimento insistente, ainda que vago. Procura confe-rir um relevo bem delineado a esse sentimento. Trabalha nele, tornando -o mais claro e definido. Em parte consegue -o, porque o exterioriza – ao experimentar diferentes modos de o expressar. Um bailarino combinará diversas posições, um pintor diversas pinceladas, um compositor diversos acordes, e depois recuará por instantes para verificar se está certo – visto que «certo» significa «sentir que isso bate certo» ou «que acerta na emoção». Este processo torna a emoção mais clara para o autor, ao mesmo tempo que ela o inspira e transforma as suas escolhas.

O artista pensa a emoção ao procurar enunciá -la através dos meios que utiliza; faz o que todos nós fazemos, quando nos interrogamos sobre o que realmente sentimos relativamente a alguma coisa. As primeiras ideias pro-feridas podem ser vagas e fragmentárias, mas revemo -las sucessivamente, procurando ser mais exactos. Um pintor entra no mesmo jogo, só que usando linhas, formas e cores em vez de palavras. De que cor é a minha emoção? É irregular ou lisa? Tenta uma linha, mas depois encurta -a. O quadro deixa -se guiar pela emoção, mas, à medida que adquire mais pormenores, o mesmo

Page 6: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

80 FILOSOFIA DA ARTE

acontece com a emoção. Pintar é apenas uma maneira de chegar àquele sentimento particular, um modo de tornar mais claro aquilo que ele é – um modo de clarificar aquilo que o artista sente.

Este é um processo controlado, não é uma explosão. O artista estuda a sua emoção como um biólogo estuda uma célula; manipula -a de diferentes modos, usando movimentos da mesma forma que um biólogo usa reagentes. Examina -a de diferentes ângulos, usando várias técnicas, aproximando -se cada vez mais daquilo que a torna especial. Quando termina, se for bem sucedido, o artista terá captado com rigor o seu sentimento e permitido aos observadores, ouvintes ou leitores fazerem o mesmo. O artista expe-rimentou os complexos matizes da sua emoção e possibilitou que outros fizessem o mesmo.

Por exemplo, no seu soneto LXXIII (That time of year thou mayst in me behold), Shakespeare clarifica a experiência de intensificação que sen-timos pelos nossos entes queridos, quando tomamos consciência de que um dia partirão. Ao longo dos versos, Shakespeare apresenta diferentes metáforas da morte, do fim e da passagem, infundindo assim no leitor um certo sentimento, um sentimento que se vai tornando mais preciso à medida que as metáforas se sucedem, esboçando com o seu colorido um estado emocional complexo, não apenas abatido mas com um toque de vitalidade também.

É claro que o público não experimenta a «mesma» emoção que o artista; a emoção do artista ocorre dentro dos limites do seu corpo, ao passo que nós experimentamos a nossa emoção em nós próprios. Contudo, o que se partilha é o mesmo tipo de emoção clarificada. Mais, segundo esta pers-pectiva, interessamo -nos por arte, porque ela nos dá a oportunidade de experimentar, se não novas emoções, pelo menos emoções mais elaboradas, estruturadas e precisas do que o habitual. A arte permite ao público descobrir possibilidades emocionais e reflectir acerca delas. Assim, temos de juntar a noção de clarificação à definição de arte proposta pelos defensores da teoria expressionista. Admitamos, então, que algo só é arte se consistir na transmissão deliberada a um público do mesmo estado emocional individual que o artista experimentou e clarificou.

Escusado será dizer que um artista pode clarificar os seus sentimentos, bastando -lhe para isso concentrar -se neles mentalmente. Ou seja, uma pessoa pode, pelo menos hipoteticamente, clarificar o seu estado emocio-nal simplesmente pensando nele. A emoção, nesse caso, seria clarificada, embora não exteriorizada. Mas será que uma obra de arte pode realmente existir, por assim dizer, dentro da cabeça de alguém? Isto contradiria a ideia que habitualmente temos da arte, que vê as obras como uma coisa pública. Seria também incompatível com a noção de expressão, que assenta fun-damentalmente na ideia de algo «interior» a ser trazido para o «exterior».

Page 7: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

ARTE E ExpRESSãO 81

Assim, para evitar casos de obras de arte inteiramente mentais, o defensor da teoria expressionista terá de dizer também que o processo de clarificação e transmissão de emoções deve ser assegurado por meio de linhas, formas, cores, sons, acções, e/ou palavras. Isto garantirá que a obra de arte é, pelo menos em princípio, publicamente acessível – que está encarnada num qualquer meio ao alcance do público.

Aqui, será útil notar que esta exigência foi formulada em termos de um meio acessível ao público – linhas, formas, cores, sons, acções, e/ou palavras – e não em termos de meios artísticos. Procedeu -se desta forma para não incorrer em circularidade na definição, pois a teoria expressionista procura definir a arte, e se o defensor desta teoria referir «arte» (meios artísticos) na definição estará a presumir o próprio conceito que deveria explicar.

Analogamente, o apologista da teoria expressionista não dirá que o pro-cesso de transmissão e clarificação se deve dar por meio de música, literatura, teatro ou qualquer outra manifestação artística, porque este modo de expor a questão pressupõe que sejamos capazes de isolar manifestações artísticas, antes de definirmos o conceito de arte. Assim, para escapar à circularidade, os defensores desta teoria, como Tolstói, procuraram caracterizar a arte, enumerando os meios utilizados na criação artística, sem evocar o conceito de arte, quer explícita, quer implicitamente.

Somando todas estas considerações, podemos, então, formular uma versão bastante representativa da teoria expressionista da arte:

x é uma obra de arte se e só se x for (1) uma deliberada (2) trans-missão ao público (3) do mesmo (tipo de) (4) estado emocional (5) individualizado (6) que o artista experimentou (7) e clarificou (8) por meio de linhas, formas, cores, sons, acções e/ou palavras.

Podemos chamar a esta versão da teoria expressionista a «teoria da trans-missão», porque ela exige (na condição n.º 2) que a emoção clarificada seja comunicada ao público. Pode obter -se outra versão desta teoria se abdicarmos desta exigência, permitindo assim que algo seja uma obra de arte desde que implique a clarificação de uma emoção, independentemente de se pretender ou não que ela seja transmitida ao público. Podemos chamar a isto a «teoria expressionista a solo», pois defende que uma coisa é uma obra de arte desde que o seu criador possua um estado emocional clarificado (ainda que ape-nas para si mesmo) por meio de linhas, formas, cores, e assim por diante. A teoria expressionista da transmissão e a teoria expressionista a solo são duas das teorias expressionistas da arte mais difundidas.

As teorias expressionistas afiguram -se superiores às teorias represen-tacionalistas. Parecem mais abrangentes. Não só estão mais preparadas para acolher as subjectividades estilísticas de muita arte vanguardista do

Page 8: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

82 FILOSOFIA DA ARTE

romantismo em diante, como também se adequam à maioria da arte anterior a esse período. O romantismo chamou a nossa atenção para o papel do artista na criação de uma obra de arte – para o facto de uma obra de arte encarnar as atitudes, os sentimentos, as emoções e/ou os pontos de vista do artista para com o tema que escolheu. O romantismo foi peremptório na ênfase dada a estas dimensões da obra de arte. Mas tendo chamado a atenção para o lado subjectivo das criações do seu tempo, as pessoas também constataram essas mesmas características na arte do passado.

Talvez os artistas do passado tenham julgado que se limitavam a espe-lhar a realidade. Mas, em retrospectiva, depois do romantismo pudemos passar a ver que as suas obras estavam imbuídas de pontos de vista e que manifestavam posturas, sentimentos e emoções para com o objecto que retratavam. Talvez o defensor da teoria expressionista acrescente «E como não?». A teoria expressionista da arte não é apenas uma admirável teoria da arte romântica e do seu legado, como ainda lida bem, se não melhor, com a arte pré -romântica. O modo como aborda a música, por exemplo, não parece de modo algum tão forçado como o das teorias da imitação e da representação. Mesmo falar de música puramente instrumental como exprimindo sentimentos mostra -se adequado, ao passo que falar dela, na generalidade, em termos de representação parece quase uma tolice.

Em questão de abrangência, as teorias expressionistas são superiores às suas rivais, as teorias da imitação e da representação. Além disso, as teorias expressionistas também atribuem um papel importante à arte, tão importante que a sua missão é comparável à da ciência. Se a ciência explora o mundo exterior da natureza e do comportamento humano, a arte, segundo esta perspectiva, explora o mundo subjectivo dos sentimentos. A ciência faz descobertas acerca da física e dos mercados. A arte faz descobertas acerca das emoções. O naturalista identifica novas espécies; o artista identifica novas variações emocionais e as suas tonalidades. Assim, a teoria expres-sionista da arte não só explica de forma mais abrangente do que as teorias rivais que a precederam o que torna uma coisa arte, como ainda explica por que motivo a arte é importante para nós. Estas são duas consequências que tornam a teoria recomendável.

Objecções à teoria expressionista da arte

A teoria expressionista tem exercido grande influência. Muita gente, incluindo alguns artistas, ainda pensa que esta é a melhor descrição da natureza da arte. Quando se criticam obras de arte por serem demasiado impessoais ou quando se diz que o artista não tem voz própria, o mais provável é que estas críticas tenham raízes na presunção implícita de que a teoria expressionista

Page 9: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

ARTE E ExpRESSãO 83

da arte está correcta. Mas ainda que estas teorias sejam influentes, devemos perguntar -nos se elas são ou não convincentes.

A teoria expressionista da transmissão diz que uma coisa só é uma obra de arte se consistir na transmissão intencional de uma emoção ao público. Como vimos, uma outra teoria, a teoria expressionista a solo, nega que seja necessário inculcar a emoção do artista no público. Assim, um bom ponto para iniciar o nosso questionamento das teorias expressionistas da arte será perguntar se criar uma obra deliberadamente para um público é ou não uma condição necessária para que algo seja considerado arte.

O defensor da teoria expressionista a solo defende que é possível criar arte sem ter em mente a intenção de a comunicar ao público. Uma pessoa pode criar uma obra de arte para si própria. Sabe -se que Franz Kafka e Emily Dickinson não pretendiam que a sua obra se tornasse pública. Será que não posso criar uma obra de arte – digamos, um quadro – e fechá -la a cadeado num armário, garantindo desse modo que nunca ninguém a verá? Será que é menos obra de arte por estar fechada? E no caso de decidir queimar a minha obra depois de a terminar? Certamente que é uma obra de arte, pois, se tivesse optado por exibi -la, todos o afirmariam. Não parece arbitrário dizer que não é uma obra de arte só porque não pretendo expô -la?

No fim de contas, o quadro que não se expôs é o mesmo que se exporia. São perceptualmente indiscerníveis. Se o mostrasse a outras pessoas, elas diriam «isso é arte». Por que motivo deverá o meu quadro ser relegado para o estatuto de não -arte pelo simples facto de não querer mostrá -lo a ninguém? Isso seria bastante caprichoso. É assim que o defensor da teoria expressionista a solo poderia argumentar contra o defensor da teoria transmissionista. E se o partidário da teoria expressionista a solo tiver razão, este é um argumento que qualquer pessoa pode usar contra a teoria transmissionista tal como a formulámos na secção anterior.

Inicialmente, o argumento de «não ser necessário um público -alvo» soa bem. Um poeta fará uma obra de arte, ainda que a rasgue depois de a compor. E, se a rasgar logo em seguida, a sua intenção é certamente a de que mais ninguém a veja – por ela não ser para os olhos de um público qualquer. Mas, apesar das aparências, a acção do poeta ao escrever o poema poderia ainda – pelo menos num certo sentido – indicar a intenção de o comunicar a outras pessoas.

Em que sentido? Vejamos, o poeta escreveu o seu poema com pala-vras de uma língua natural, consentâneas com a gramática dessa língua. Isto torna o poema publicamente acessível. Se alguém visse o seu poema antes de ser rasgado ou o colasse posteriormente, o poema comunicaria. O poeta criou a sua obra de arte num idioma que, pela sua natureza, é acessível aos outros – ou seja, que foi concebido para comunicar com os outros. Ao adoptar um meio acessível pelo público, o poeta demonstra

Page 10: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

84 FILOSOFIA DA ARTE

uma intenção de comunicar, pois escolheu criar algo comunicável. Criou um objecto que se destina ao público. Ainda que não queira um público para a sua obra, o artista criou uma coisa que, em princípio, pede um público. Tanto Kafka como Emily Dickinson escreveram obras que o público poderia compreender (e compreende), ainda que os seus autores não tenham querido publicá -las.

Neste caso, as acções do poeta falam mais alto do que as suas palavras. Ele diz que não quer um público, mas, ao empregar uma linguagem natural, cria uma coisa que se destina a ser assimilada pelo público. Na melhor das hipóteses, as suas intenções a este respeito parecem confusas ou mesmo contraditórias. Por um lado, age de forma a garantir que ninguém veja o seu trabalho; por outro, cria um objecto que, em princípio, foi pensado para se dirigir ao público. O poeta agiu de maneira a que o poema não fosse lido por outros, mas também agiu intencionalmente – ao optar por escrever numa língua publicamente acessível de forma a criar algo que, em princípio, é comunicável –, ou seja, que está ao alcance de um potencial público.

E talvez isto seja suficiente para mantermos a condição do público, presente na teoria transmissionista – o que resultaria na seguinte afirmação emendada: x só é uma obra de arte se nela houver a intenção, pelo menos em princípio, de transmitir algo a um público. Isto resolveria os casos de Kafka e de Emily Dickinson, bem como outros em que o autor ensaia a sua obra apenas para efeitos de treino. Este acrescento à teoria afigura -se muito adequado pois, geralmente, os artistas só em princípio criam as suas obras para o público, não tendo em mente determinados públicos já existentes.

Talvez alguns leitores não se sintam persuadidos com este argumento. Ele assenta na presunção de o artista em causa utilizar quaisquer meios publicamente acessíveis – linguagem, ou talvez certos géneros de música ou pintura já definidos. Porém, segundo o argumento, ao mobilizar um meio acessível ao público, o artista dirige -se implicitamente a ele – ou, pelo memos, a um potencial público. Contudo, o leitor poderá objectar: e se o poeta, para evitar sequer a possibilidade de um público, escrever de modo totalmente inacessível, num idiolecto (uma linguagem privada) por si inventado e impenetrável por qualquer outra pessoa? Seria tal poema uma obra de arte que mostrasse que a condição de existência de público não é universal?

Quanto a isto, há que dizer duas coisas. Em primeiro lugar, se alguém criasse alguma coisa absolutamente ininteligível para todas as outras pessoas, dificilmente a veríamos como uma obra de arte. A arte parece exigir algum grau de acessibilidade pública, ainda que reduzido. Se uma coisa criada por um artista fosse absolutamente ininteligível para qualquer pessoa, por que motivo a veríamos como uma obra de arte? Talvez esta seja a verdade por trás da exigência de um público -alvo.

Page 11: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

ARTE E ExpRESSãO 85

Segundo, se o poema fosse escrito numa linguagem completamente privada, podemos perguntar -nos se ele seria sequer acessível ao poeta. Se a linguagem fosse realmente privada, como poderia ele lembrar -se do significado das palavras de uma leitura para a outra? E se nem o poeta nem o público tivessem acesso ao poema, seria a sua composição realmente um poema?

A linguagem é, em princípio, uma coisa pública, e a possibilidade da existência de uma linguagem privada – de palavras, imagens, sons ou for-mas – levanta dúvidas. Quando o artista se vale de um meio publicamente acessível, trabalha com a intenção de criar alguma coisa que seja, pelo menos em princípio, transmissível a um público, ainda que depois a destrua.

Mesmo que o artista aniquile a sua obra de arte, pode ainda argumentar -se que não era só em princípio que a obra se destinaria a um público potencial e que ela teve um público efectivo, a saber, ele próprio. O artista não é apenas o criador, é também o primeiro público das suas obras. Tipicamente, o poeta dá um passo atrás, contemplando a sua criação, para se poder aperceber do seu efeito e, ao fazê -lo, torna -se a sua primeira assistência.

Ser artista exige que o autor desempenhe o papel de público para que possa prosseguir, para que possa rever e corrigir o seu trabalho. Ele é o seu primeiro crítico e, para ser auto -crítico, o artista tem de tomar o lugar do espectador. Se nos lembrarmos de que o próprio artista é, essencialmente, um membro da assistência, temos de conceder que uma obra de arte é algo que se destina a um público.

Se estes argumentos estiverem correctos, então deve preferir -se a teo-ria transmissionista em lugar da teoria expressionista a solo. A arte deve destinar -se, pelo menos em princípio, a um qualquer público potencial.

Além de exigir que as obras de arte se destinem a um público, a teoria transmissionista também exige que o artista transmita ao público o mesmo sentimento que experimentou. O artista tem de ser sincero. Aqui, há duas condições necessárias: primeiro, o artista tem de experimentar uma deter-minada emoção e, posteriomente, de transmitir essa mesma emoção ao público. Chamemos as estas condições, respectivamente a «condição expe-rimentalista» e a «condição identitária». Serão elas condições necessárias para considerarmos algo uma obra de arte?

A condição identitária não parece satisfatória. Decerto que as obras de arte podem suscitar no público emoções que o artista não sentiu. Um actor que desempenha o papel de Iago pretende que a audiência sinta ódio pela sua personagem; mas ele não tem de sentir o mesmo por Iago de modo a consegui -lo. O actor utiliza diversas técnicas de representação para despertar animosidade no público. Se o actor sentisse pela sua personagem a mesma aversão que a do público, provavelmente esquecer -se -ia das suas deixas – ou até se suicidaria! Os actores e o público não têm de partilhar os mesmos estados emocionais; o actor destruiria a sua actuação se assim fosse. Muitos

Page 12: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

86 FILOSOFIA DA ARTE

actores (a maioria?) estão demasiado preocupados com o efeito emocional que provocam no público para serem capazes de eles próprios sentirem emoção. Portanto, a condição identitária não se aplica universalmente.

De forma análoga, muitos géneros artísticos assentam em determinadas estratégias formais para suscitarem emoções no público. As histórias de suspense, por exemplo, utilizam certas técnicas narrativas já conhecidas para causar ansiedade no público. Para deixar o público na nervosa expectativa sobre o que vai acontecer, o autor só tem de empregar estas fórmulas da maneira adequada. O autor não tem de sentir o mesmo enquanto manipula a expectativa do público. Pelo contrário, pode mesmo sentir prazer à medida que o fim se aproxima, dizendo para si próprio «Isto vai fazer com que se contorçam». Pelo menos algumas histórias de suspense serão arte, mas suscitar suspense no público não obriga a que o autor em questão sinta o mesmo que os leitores, espectadores ou ouvintes.

Diz -se que Beethoven levava o público às lágrimas com as suas impro-visações, rindo -se depois da tolice da assistência e do seu poder sobre ela. Neste caso, o artista e o público não partilham, seguramente, o mesmo sentimento.

Grande parte da arte é encomendada. Os filmes de suspense são um exemplo entre outros. No passado, os artistas eram muitas vezes contrata-dos para comemorar todo o tipo de acontecimentos – de casamentos reais a feriados religiosos, passando por vitórias militares. Não há razão para pensarmos que um artista teria de se sentir emocionado com o motivo do festejo para que suscitasse emoção noutras pessoas. Um artista pode ser cínico. Um índio norte -americano pode realizar um comovente filme de cavalaria nutrindo, simultaneamente, desprezo pelo seu público. Alguns anúncios publicitários podem ser arte, apesar de as pessoas que os criaram não sentirem o mesmo entusiasmo pela Alka ‑Seltzer ou pelo Burger King que pretendem suscitar nos consumidores.

Pode dizer -se que estas pessoas não são realmente artistas e que não passam de mercenários. Porém, isso não é um argumento, é apenas cha-mar nomes a alguém. Um cínico pode, sem dúvida, produzir uma obra de arte comovente. Dizer que alguém que não transmite os seus verdadeiros sentimentos não é um artista é incorrer numa petição de princípio – torna a condição identitária verdadeira por definição, em vez de levar em conta todas as possibilidades.

Estes problemas com a condição identitária também põem em evidên-cia problemas relativos à condição experimentalista, pois indicam que um artista não tem de partilhar as mesmas emoções com o público. Pode expe-rimentar outro sentimento – regozijo em vez de suspense. Mas, além disso, pode ainda dar -se o caso de o artista não sentir qualquer tipo de emoção enquanto cria a obra de arte.

Page 13: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

ARTE E ExpRESSãO 87

Como atrás se disse, em muitos géneros artísticos, suscitar emoções no público pode ser apenas uma questão de seguir certas fórmulas já esta-belecidas. Se o artista conhece o funcionamento destas fórmulas – se o actor já sabe que gestos inspiram comiseração –, então não tem de sentir coisa alguma, muito menos o que o público sente, para levar a assistência às lágrimas.

Aqui pode objectar -se que, para inspirar pena, o artista não tem de a ter sentido quando criou a sua obra de arte, mas que tem de a ter sentido algures no passado. Será isto mesmo necessário?

Vejamos o caso do terror. Imaginemos um escritor deste género. Talvez nunca se tenha sentido assustado com uma história de terror em toda a sua vida, mas sabe como assustar as outras pessoas. Isto é imaginável. E podemos igualmente supor que quando faz o que tem de fazer para assustar os leitores não dá risadas sorrateiras. Para o autor, é apenas uma questão de trabalho. Ele pode achar curioso que as pessoas se sintam assustadas com as suas his-tórias. Mas escreve -as, porque tem de pagar a renda e alimentar a família. E que fundamentos temos para supor que os psicopatas – de quem se diz que suscitam sentimentos nos outros sem nada sentirem – não darão bons actores?

De nada serve dizer que artistas desprovidos de emoções não podem criar boa arte ou que não podem sequer criá -la. Só é possível averiguá -lo caso a caso. Assim, não podemos excluir necessariamente a possibilidade de haver algumas obras de arte que não obedecem à condição experimenta-lista. É claro que o defensor do argumento transmissionista pode responder que, dada a natureza humana, é impossível criar uma obra de arte sem que haja sentimentos, uma vez que os seres humanos experimentam sempre um qualquer estado emocional e que, por conseguinte, não existe tal coisa como um artista desprovido de emoções.

Mas isto é problemático por vários motivos. Primeiro, não parece ser verdade que experimentamos permanentemente um qualquer estado emo-cional e, portanto, não há razões para pensar que um artista experimente a todo o momento determinado estado emocional. E mesmo que um artista experimentasse constantemente certo estado emocional, isso não serviria de muito ao defensor da teoria transmissionista, pois além de afirmar que o artista experimenta constantemente esse estado emocional, o apologista desta teoria diz ainda que o artista está interessado em clarificá -lo. Contudo, um artista pode encontrar -se num qualquer estado de espírito enquanto cria a sua obra, sem que esteja empenhado em clarificá -lo. Pode não estar consciente desse estado de espírito. Um cantor pode estar preocupado com os seus impostos, e ter consciência disso, enquanto entoa uma canção alegre; como não se demora na análise desse estado de espírito, não o clarifica.

Mas a condição da clarificação não se limita a dificultar a defesa da condição experimentalista, ela própria também levanta problemas. Segundo

Page 14: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

88 FILOSOFIA DA ARTE

a teoria transmissionista, os artistas, essencialmente, clarificam as suas emoções; não as servem em estado bruto. Mas este não parece ser o fito de toda a arte. Algumas formas artísticas, como a poesia beat e a arte punk, parecem buscar a emoção pura, ainda por pensar, e procuram exteriorizá -la sem filtros. Ou seja, para algumas formas de arte, o propósito estilístico é colher as emoções o mais próximo da raiz possível. Pensá -las pode inclu-sivamente ser visto como uma traição, como uma impostura. Nesse caso, a condição da clarificação não é uma condição necessária, já que há certas manifestações artísticas, tidas como válidas, que a dispensam.

Nem todos os contra -exemplos são de anos recentes. Diz -se que o poema «Kubla Khan» de Coleridge lhe chegou durante um devaneio. Apareceu -lhe de uma assentada, sem qualquer clarificação. Transcreveu o poema quase mecanicamente, tal como este lhe surgiu – como se fosse um transe, um transe que foi interrompido (e é por isso que apenas temos um fragmento do poema). Coleridge não se dedicou ao processo de clarificar os seus senti-mentos quando escreveu o poema «Kubla Khan»; ele chegou -lhe de repente e desapareceu tão depressa como havia surgido. Não havendo dúvidas de que o poema «Kubla Khan» é arte, concluímos que a arte pode ocorrer, sem que haja qualquer processo de clarificação.

O defensor da teoria transmissionista parte do princípio de que a cla-rificação de emoções é a finalidade de toda a arte. Mas não é verdade. Há arte criada para projectar emoções vagas. A arte simbolista do final do século XIX enquadra -se nesta descrição: lida com estados de espírito vagos, ambíguos e até amorfos; pretende sugerir estados emocionais, em vez de os clarificar. Nem o artista nem o público desejam a clarificação emocional. O simbolismo é uma arte da alusão, em que os sentimentos são valorizados pela sua fugacidade. Uma vez que as obras simbolistas são obras de arte, a clarificação não pode ser uma condição necessária de toda a arte.

Os surrealistas também constituem um obstáculo à teoria transmissio-nista. Uma das suas técnicas criativas chamava -se «Cadáver Esquisito». Uma pessoa escrevia a primeira linha de um poema, dobrava a folha de papel e passava -a a outra pessoa que, sem ler a linha anterior, escrevia a linha seguinte. Este procedimento pode gerar poemas de extensão variável, mas não se pode chamar clarificação ao processo em si, pois não existe um estado emocional que tenha de ser partilhado por todos os autores. Ou seja, não há um estado de espírito que o poema pretenda clarificar. E, contudo, este método gerou obras de arte. Parece que estamos, novamente, perante um contra -exemplo histórico da condição da clarificação.

Na verdade, o método do Cadáver Esquisito não constitui uma dificul-dade apenas para a condição da clarificação, levanta também problemas a outras condições da teoria transmissionista da representação. Como não é necessário que exista uma única emoção que dê origem ao produto final,

Page 15: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

ARTE E ExpRESSãO 89

e uma vez que as emoções causadas pelo produto final podem divergir das dos autores que contribuíram para a sua criação, a poesia baseada na técnica do Cadáver Esquisito põe em causa a condição identitária da teoria da transmissão. Além disso, como nenhum dos autores de um Cadáver Esquisito tem de experimentar um estado de espírito, este tipo de poesia torna também a condição experimentalista insuficientemente englobante.

O Cadáver Esquisito é um exemplo de arte aleatória – arte criada por actos fortuitos. Pode fazer -se poesia deste modo, mas também pintura, música e dança. Merce Cunningham e John Cage criaram obras de arte lançando as varetas do I Ching. Pretendiam assim causar um curto -circuito nos seus processos de decisão, substituindo -os por um procedimento objectivo, completamente aleatório. Muitos artistas, incluindo Cunningham e Cage, recorreram com o mesmo objectivo a programas informáticos de proba-bilidades. Fizeram -no para se ausentarem do processo de composição em certos aspectos importantes.

Obras aleatórias deste género são vistas como arte. Mas se estas obras são arte, então não pode ser verdade que as obras de arte tenham como finalidade transmitir os sentimentos dos seus autores ao público, pois há casos em que a influência da experiência emocional do artista é excluída, como sucede com as técnicas aleatórias. Aqui, é o acaso que determina a forma final da obra e não a experiência subjectiva do artista. As obras de arte aleatórias são concebidas para fugir à expressão, tal como ela é proposta pela teoria transmissionista da arte. As técnicas aleatórias põem em causa a necessi-dade de uma condição de identidade, de uma condição de experiência e de uma condição de transmissão, rejeitando simultaneamente a noção de que o artista pretende transmitir alguma coisa determinada pelas suas próprias experiências. A experiência do autor foi removida do processo; adoptam -se estratégias de aleatoriedade de modo a tornar impossível a concretização de qualquer intenção de comunicar experiências próprias.

Segundo a teoria da transmissão, as emoções comunicadas por obras de arte são individuais, não genéricas. As telenovelas servem diariamente ao espectador os mesmos sentimentos – uma personagem com a qual simpatizamos é atingida por uma doença e sentimo -nos tristes desta vez como nos sentimos da outra. É uma rotina absolutamente monótona. Mas, supostamente, a arte genuína explora emoções individuais. A complexa teia de sentimentos suscitada pela personagem da mãe no romance Beloved de Toni Morrrison será, provavelmente, inédita para a maioria dos leitores.

Há, sem dúvida, algumas obras de arte que exploram estados emocionais invulgares e bastante individualizados. Contudo, é exagerado dizer que é assim com toda a arte. Durante séculos, os artistas pintaram a imagem de Cristo como o Sagrado Coração. Talvez alguns tenham sido capazes de expressar os seus próprios sentimentos muito particulares para com Jesus.

Page 16: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

90 FILOSOFIA DA ARTE

Mas muitos mais ficaram -se pelo tom reverencial. Os sentimentos de fé comunicados por estes artistas, embora presumivelmente sinceros, são muitas vezes repetitivos.

Na verdade, os patronos que encomendavam estas obras esperavam, de certa forma, que os artistas transmitissem o tipo de espanto e reverência habitualmente próprios do Cristianismo. Tais obras contam -se entre os tesouros artísticos do Ocidente e, contudo, no que à individualização diz respeito, não eram menos rotineiros do que são as telenovelas. Podem ter um valor superior ao das telenovelas, mas não porque lidam com emoções menos genéricas. Uma vez que os exemplos apontados são claramente obras de arte, não é possível que uma condição necessária para algo ser uma obra de arte seja lidar exclusivamente com o tipo de emoções individualizadas, que interessam aos defensores da teoria transmissionista.

A exploração de emoções altamente especializadas é uma característica muito apreciada em certos géneros, como o teatro moderno. Mas essa não é uma característica de toda a arte. O Mahabharata e o Ramayana recorrem a emoções generalizadas e são obras de arte clássicas. O defensor da teoria da transmissão confunde uma característica de algumas obras de arte que as torna boas (lidar com emoções específicas ou clarificar sentimentos) com uma condição necessária para toda a arte. Isto é confundir o que torna uma obra arte boa com o que faz de uma coisa uma obra de arte, ou, noutras palavras, é confundir a questão do elogio com a questão da classificação.

Um poema contemporâneo que comunique e clarifique os sentimentos íntimos do autor pode ser bom por esse motivo, mas isso não implica que para que uma coisa seja considerada uma obra de arte deva cumprir esses ideais de excelência. Não só há muitos cânones de excelência alternativos e não convergentes entre as diferentes formas de arte, como há obras que são inegavelmente más e ainda assim são arte, talvez por as suas emoções não serem individuais quando, no género a que pertencem, existia essa expectativa. Mas má arte é ainda arte; se o facto de não lidar com sentimentos especiais torna um poema mau, isso não o desqualifica automaticamente como arte.

Outro inconveniente da ideia de que as obras de arte devem comunicar emoções específicas é o facto de a própria noção de especificidade ser ambígua e, talvez, até incoerente. A maioria dos estados emocionais tem algo de genérico. Para sentir medo, tenho de julgar que o causador do meu estado de espírito cumpre determinadas condições necessárias – que seja capaz de causar dano, por exemplo. Todo o medo é parecido, pelo menos neste aspecto. Assim, que quer ao certo dizer que as emoções têm de ser específicas? Sendo a maioria das emoções, até certo ponto, genéricas, qual seria a fronteira (não arbitrária) entre as que são altamente particulares e as que não o são? Não é possível traçar essa linha divisória dizendo que as muito particulares são absolutamente únicas. Isso seria incoerente, pois

Page 17: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

ARTE E ExpRESSãO 91

a maioria das emoções pertence a tipos de emoção – como o medo – que obedecem a condições necessárias.

Nesta altura, o defensor das teorias expressionistas da arte pode dizer que todo o nosso exercício crítico se ocupou apenas de pormenores (como os requisitos para algo ser considerado uma emoção clarificada e espe-cializada) respeitantes às teorias transmissionistas e da expressão a solo. Pode ainda dizer que questionar estes pormenores não afecta o âmago da teoria expressionista, porque a ideia base de qualquer teoria expressionista (incluindo a da transmissão e a da expressão a solo) é a de que uma coisa só é arte se expressar emoção (quer seja ou não uma emoção sentida com sinceridade pelo artista). Até que se demonstre que há algo de errado nesta pressuposição, a teoria expressionista da arte continua a ser uma proposta válida como teoria geral da arte.

Mas não é plausível defender que a expressão de emoção é uma condição necessária para a arte. Talvez haja arte, porventura a maioria, que se dedi-que à comunicação e/ou à exploração de ideias. Um bom exemplo disto é a pintura moderna, que ao longo de grande parte do século XX se debruçou sobre a própria natureza da pintura.

As obras de Frank Stella, por exemplo, procuram frequentemente chamar a nossa atenção para o papel constitutivo das bordas do quadro no estruturar da composição. Muitas das experiências neodadaístas de Warhol levantam a questão filosófica acerca do que distingue as obras de arte das coisas banais. M. C. Escher oferece -nos enigmas conceptuais que incitam à reflexão sobre as particularidades do nosso sistema visual, com especial ênfase na maneira como ele se relaciona com as representações pictóricas; poderia dizer -se que as suas obras são acerca da representação pictórica. Mas não são sobre emoções. São algo de cognitivo, não emocional.

Do mesmo modo, muitas coreografias de autores pós -modernos na década de 1960, como Yvonne Rainer e Steve Paxton, pretendiam levantar a questão «Que é a dança?». Não estavam preocupados com a organização dos seus sentimentos nem com o suscitar de emoções no público. Estes coreógrafos queriam levar a audiência a pensar, não a sentir. Em particular, pretendiam que o público reflectisse sobre o que é considerado dança e porquê. Estas pretensões por parte dos artistas parecem perfeitamente legítimas e muitos trabalhos por elas motivados tornaram -se obras clássicas, reconhecidas como tal por historiadores da arte, críticos, executantes e públicos esclarecidos. Assim, dado que obras «intelectuais» são arte, a expressão de emoção não é uma condição necessária para termos arte. A arte não tem de ser sobre sentimentos; pode eleger ideias, incluindo inter -relações de ideias, como tema.

Neste ponto, o adepto da teoria expressionista pode resistir a esta conclusão de duas maneiras possíveis: negando que os exemplos aqui apresentados são arte ou argumentando que, apesar das aparências, as obras em causa dizem

Page 18: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

92 FILOSOFIA DA ARTE

respeito à expressão de emoção. A primeira via de contra -argumentação revela -se frágil, sendo difícil evitar uma petição de princípio. O mundo da arte parece aceitar esta obra como arte, e isso constitui, pelo menos à pri-meira vista, um bom motivo para pensarmos que assim é. Por outro lado, se o defensor da teoria expressionista invocar a sua teoria para justificar a conclusão de que o trabalho em causa não é arte, limita -se a assumir aquilo que deveria provar.

Alternativamente, o adepto da teoria expressionista pode argumentar que as obras de Stella, Warhol, Escher, Rainer, Paxton e outros se dedicam à expressão de emoções, mesmo que os artistas não estejam cientes disso, porque toda a acção humana exprime emoção. Os seres humanos colocam as suas emoções em tudo o que fazem e é impossível que não deixem essas marcas por onde passam.

Afirmam -se assim duas coisas: primeiro, que tudo o que fazemos é pontuado por uma atitude, estado de espírito, com determinados sentimen-tos, a partir de qualquer ponto de vista, e assim por diante; segundo, que é impossível não deixar marcas das emoções em tudo o que criamos. Por isso, estas obras exprimem os sentimentos e a personalidade do artista, mesmo contra a sua vontade, e, portanto, na verdade, a teoria expressionista da arte não ostraciza estas obras.

Ambos os pressupostos destes argumentos se revelam falsos. Ao somar uma coluna de números, não tenho de experimentar qualquer humor, disposição, sentimento ou emoção. E, se tiver um ponto de vista (o ponto de vista matemático?), não será um ponto de vista relevante para a teoria expressionista da arte. Além do mais, se é possível analisar uma coluna de números sem emoção, por que motivo havemos de supor que é impossível calcular desapaixonadamente a disposição de colunas arquitectónicas?

Contudo, e ainda mais importante, mesmo que seja o caso (bastante duvi-doso) que todos os momentos da existência humanas sejam acompanhados de um qualquer estado emocional, humor, etc., isso não é suficiente para acreditarmos que esse estado emocional, humor, etc. estará presente nos produtos das nossas acções. Nada podemos dizer acerca do estado emocional de Newton a partir da lei do inverso do quadrado, nem conseguimos adivi-nhar os sentimentos de Einstein a partir da teoria da relatividade especial. Não há motivo para pensarmos que, com a arte, as coisas são de outro modo.

Pode julgar -se que há uma diferença; que os cientistas procuram excluir as suas emoções, humores, etc. dos resultados das suas investigações e que, quando o conseguem, se tal ocorrer, é porque utilizam procedimentos e técnicas que assim o permitem, e que o mesmo não acontece com os artistas. Alegadamente.

Mas por que havemos de partir deste princípio? Também os artistas têm técnicas para pôr as suas emoções de parte. As estratégias aleatórias são

Page 19: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

ARTE E ExpRESSãO 93

uma delas e já a analisámos, mas há outras. Tal como os cientistas, também os artistas são capazes de manter os frutos do seu trabalho estritamente intelectuais. Os artistas podem conceber as suas obras de maneira a que a única resposta possível do espectador empático seja raciocinar sobre ela. Talvez a forma mais eficaz de convencer um adepto da teoria expressio-nista acerca disto seja confrontá -lo com uma coreografia como Trio A, de Yvonne Rainer, e perguntar -lhe que emoção seria plausível presumir que a peça representa? Encaremos o seu silêncio como mais uma prova contra o argumento de que uma coisa só é arte se expressar emoção.

O argumento contra a perspectiva de que a emoção é uma condição necessária da arte não assenta apenas em exemplos do que se poderia cha-mar uma «ideia» vanguardista da arte. Há muita arte tradicional que não expressa emoção. Parte dela foi criada apenas para agradar aos espectadores ou aos ouvintes. Chame -se a esta arte a arte do belo, em que a beleza tem a capacidade de deleitar através da manipulação das aparências – tanto visuais como auditivas.

Há música que nos cativa pela sua perfeição, apesar de nos ser difícil identificar que emoção exprime. O padrão de um tapete oriental feito à mão fascina -nos, mas não o associamos a nenhuma emoção particular. Para defender o seu ponto de vista, o partidário da teoria expressionista poderá alegar que, nestes exemplos, a emoção que se exprime é o prazer. Mas isso não parece correcto. O prazer não é uma emoção, apesar de poder acom-panhar algumas emoções, e, em muitos casos, estas peças não exprimem prazer, suscitam -no. Grande parte da arte tradicional é simplesmente bela, sem ser expressiva. Conclui -se, então, que a expressão de uma emoção não é uma condição necessária para se ser uma obra de arte.

A última condição necessária da teoria expressionista é as obras de arte terem de exprimir emoções por meio de linhas, formas, cores, sons, acções e/ou palavras. Esta condição diz, com efeito, que as obras de arte devem existir num meio físico. Em espírito, este requisito parece promissor, embora talvez não na letra, pois está ligado à exigência, bastante razoável, de as obras de arte terem de ser publicamente acessíveis (pelo menos em princípio) – o que implicaria que elas fossem fisicamente detectáveis. Contudo, há mais do que um potencial problema com esta afirmação, que valerá a pena analisar.

A primeira objecção é um tanto controversa. Existe um tipo de arte con-temporânea chamada arte conceptual que talvez ofereça contra -exemplos à exigência em causa. Como o nome sugere, a arte conceptual é importante devido às suas ideias. Estas ideias são, muitas vezes, sobre a natureza da arte. De um modo geral, os artistas conceptuais opõem -se àquilo a que chamam a mercantilização da arte. Para resistirem à dita mercantilização, especializam -se em obras que não podem ser vendidas – obras de arte que consistem em ideias, e não em objectos vendáveis.

Page 20: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

94 FILOSOFIA DA ARTE

Neste sentido, um artista pode dizer que a sua obra de arte é o conjunto de todas as ideias que teve acerca da arte antes de tomar o pequeno--almoço. Ora, se isto for arte, refutará tanto a letra como o espírito do requisito de que uma obra de arte tem de exprimir emoções por meio de linhas, formas, cores, sons, acções, palavras e/ou qualquer outro meio físico. A questão é saber se um exemplo de arte conceptual como este é, na verdade, arte.

Um motivo para respondermos negativamente é o facto de esta obra não ser publicamente acessível. Mas pode sê -lo. Muitas vezes, os únicos vestígios da arte conceptual resumem -se à documentação. Talvez o artista referido no último parágrafo exiba documentação da sua performance mental – uma lista dactilografada que descreve todas as ideias relevantes que lhe ocorreram durante aquele período de tempo determinado. Isto poderá levar o leitor a dizer: mas então isso não é um contra -exemplo, pois a lista é feita de palavras. Mas a obra de arte não é a lista – são os pensamentos. Além disso, em simultâneo, a obra de arte não é inacessível – podemos contemplar o que o artista diz ter feito (mentalmente). Assim, a obra é acessível, apesar de não ser, em sentido estrito, física – supondo que os seus pensamentos não são verbais, mas que são descritos, e não transcritos, na sua lista. Se obras como esta forem arte, então não é verdade que as obras de arte necessitem de encarnar qualquer meio físico.

Esta é, claro, uma questão discutível, e muitos não se deixarão convencer por ela. Contudo, há outro problema com a condição. Se ela for obrigatória, sê -lo -á apenas em espírito, e não na letra, já que a lista – linhas, formas, cores, sons, acções e/ou palavras – terá de permanecer incompleta.

Mesmo que as obras tenham de encarnar algum meio publicamente acessível, não é possível antecipar todos os meios que um artista escolherá empregar e, portanto, não podemos completar a lista.

Mais, podem existir maneiras de comunicar ao público a mesma emoção, individual e clarificada, experimentada pelo artista que não veríamos como obras de arte. Suponhamos que o artista fabrica comprimidos que cumprem essa função, ou que ele comunica por telepatia. Duvido que considerássemos artísticos estes métodos. Mas como justificar a exclusão destes casos da nossa lista sem cair em circularidade?

Enquadrar adequadamente a última condição da teoria transmissionista mostra -se problemático. Não parece haver maneira de completar a lista, nem de impedir que lhe sejam adicionadas outras possibilidades. Seria bom poder dizer que uma coisa só é uma obra de arte se empregar meios artísticos, mas se soubéssemos o que abrangem todos os meios artísticos, e só eles, já teríamos ao nosso dispor uma definição de arte.

Até aqui só analisámos as teorias expressionistas da arte em termos das suas várias hipotéticas condições necessárias. Não vimos ainda se todas

Page 21: Arte e expressão · Generalizando, a ênfase das teorias miméticas da arte incidia toda no aspecto exterior das coisas – a aparên-cia dos objectos e as acções humanas. No sentido

ARTE E ExpRESSãO 95

as condições somadas são conjuntamente suficientes. Bastará um exemplo para concluirmos que não.

Imagine que acabou de terminar uma relação amorosa. Neste momento, detesta o seu ex -namorado ou a sua ex -namorada. Senta -se e escreve uma carta que exprime o seu desprezo. É uma carta longa, escrita numa linguagem publicamente acessível e usa o espaço disponível para clarificar profusamente as suas emoções. A carta é individualizada, pois regista graficamente as acusações do autor. É uma carta muito eficaz, que leva o seu ex -namorado ou a sua ex -namorada a detestar -se tanto como é detestado por si. Essa é a intenção. Todavia, duvido que classificássemos cartas deste tipo como arte. Nem tão -pouco veríamos uma discussão deste género que se desenrolasse num restaurante como uma parte da história da arte performativa. E, no entanto, todos estes casos cumprem as condições exigidas pela posição trans-missionista. Assim, a teoria transmissionista da representação não oferece condições conjuntamente suficientes para identificar a arte. Se alterarmos ligeiramente o modo como o argumento está redigido, pode demonstrar -se a mesma incapacidade no que respeita à teoria da expressão a solo.

Casos como os que se apontaram não são excepções. Muitos compor-tamentos quotidianos são expressivos de acordo com todas as exigências das teorias expressionistas, sem, contudo, serem arte. Isto é especialmente evidente se reduzirmos a teoria à afirmação de que uma coisa só é arte se expressar emoção, pois há inúmeras coisas que não são arte e exprimem emoção.

Figurando em diferentes teorias expressionistas da arte, parece que o único requisito com alguma hipótese de sucesso é o de que as obras têm de ser direccionadas ao público; e esta condição não tem, em si mesma, de estar relacionada com a expressão da emoção. Todas as outras condições das teorias expressionistas da arte que vimos mostraram não ser necessárias. As teorias expressionistas da arte, como a transmissionista, revelam -se demasiado exclusivas. Há muita arte que não se enquadra nelas. Simultaneamente, as teorias expressionistas mostram -se também demasiado inclusivas; quando somadas, as condições que enumeram não são suficientes. Mesmo juntas, permitem que muitos comportamentos do dia -a -dia sejam considerados arte, quando isso não deveria acontecer. Isto prova que as teorias expressio-nistas da arte estão longe de ser suficientemente rigorosas. Embora sejam superiores às teorias representacionalistas, não são capazes de abranger a arte em toda a sua variedade e especificidade.