artaud

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Antonin Artaud – Biografia http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artescenicas/teacontemp/ teacontemp05.html Antonin Artaud nasceu em Marselha, no dia 4 de setembro de 1896, e faleceu em Paris, no dia 4 de março de 1948. Foi um poeta, ator, roteirista e diretor de teatro francês. Em 1937, Antonin Artaud, devido a um incidente, é tido como louco. Internado em vários manicômios franceses, cujos tratamentos são hoje duvidosos, ele é transferido após seis anos para o hospital psiquiátrico de Rodez, onde permanece ainda três anos. Em Rodez, Artaud estabelece com o Dr. Ferdière, médico-responsável do manicômio, uma intensa correspondência. Uma relação ambígua se estabelece entre os dois: o médico reconhece o valor do poeta e o incentiva a retomar a atividade literária mas, julgando a poesia e o comportamento de seu paciente muito delirante, ele o submete a tratamentos de eletrochoque que prejudicam sua memória, seu corpo e seu pensamento. Existe aqui um afrontamento entre dois mundos, o da medicina e razão social e o do poeta cuja razão ultrapassa a lógica normal do “homem saudável”. As cartas escritas de Rodez são para Artaud um recurso para não perder sua lucidez. Elas revelam um homem em terrível estado de sofrimento, nos falando de sua dor através de uma escritura mais íntima e mais espontânea. São os diálogos de um desesperado com seu médico e através dele com toda a sociedade. “Não quero que ninguém ignore meus gritos de dor e quero que eles sejam ouvidos”. Para Artaud, o teatro é o lugar privilegiado de uma germinação de formas que refazem o ato criador, formas capazes de dirigir ou derivar forças. Em 1935 Artaud conclui o "Teatro e seu Duplo" (Le Théâtre et son Double), um dos livros mais influentes do teatro deste século. Na sua obra ele expõe o grito, a respiração e o corpo do homem como lugar primordial do ato teatral, denuncia o teatro digestivo e rejeita a supremacia da palavra. Esse era o Teatro da Crueldade de Artaud, onde não haveria nenhuma distância entre ator e platéia, todos seriam atores e todos fariam parte do processo, ao mesmo tempo. Em Rodez, além de suas cartas (lettres au docteur Ferdière) ele elabora uma prática vocal, apurada dia a dia, associada à manifestações mágicas. A voz bate, cava, espeta, treme, a palavra toma uma dimensão material, ela é gesto e ato. Artaud volta a Paris em 1946, onde dois anos depois é encontrado morto em seu quarto no hospício do bairro de Ivry-sur-Seine. Neste período, além de uma importante produção literária ele desenha, prepara conferências e realiza a emissão radiofônica "Para acabar com o juízo de Deus" (Pour en finir avec le jugement de dieu), onde sua vontade expressiva se alia a um formalismo cuidadoso. Se nos anos 30 o teatro para Artaud é “o lugar onde se refaz a vida”, depois de Rodez ele é essencialmente o lugar onde se refaz o corpo. O “corpo sem órgãos” é o nome deste corpo refeito e reorganizado que uma vez libertado de seus automatismos se abre para “dançar ao inverso”. “A questão que se coloca é de permitir que o teatro reencontre sua verdadeira linguagem, linguagem espacial, linguagem de gestos, de atitudes, de expressões e de mímica, linguagem de gritos e onomatopéias, linguagem sonora, onde todos os elementos objetivos se transformam em sinais, sejam visuais, sejam sonoros, mas que terão tanta

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Biografia e Teatro

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Antonin Artaud Biografia

Antonin Artaud Biografia

http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artescenicas/teacontemp/teacontemp05.html

Antonin Artaud nasceu em Marselha, no dia 4 de setembro de 1896, e faleceu em Paris, no dia 4 de maro de 1948. Foi um poeta, ator, roteirista e diretor de teatro francs.

Em 1937, Antonin Artaud, devido a um incidente, tido como louco. Internado em vrios manicmios franceses, cujos tratamentos so hoje duvidosos, ele transferido aps seis anos para o hospital psiquitrico de Rodez, onde permanece ainda trs anos.

Em Rodez, Artaud estabelece com o Dr. Ferdire, mdico-responsvel do manicmio, uma intensa correspondncia. Uma relao ambgua se estabelece entre os dois: o mdico reconhece o valor do poeta e o incentiva a retomar a atividade literria mas, julgando a poesia e o comportamento de seu paciente muito delirante, ele o submete a tratamentos de eletrochoque que prejudicam sua memria, seu corpo e seu pensamento.

Existe aqui um afrontamento entre dois mundos, o da medicina e razo social e o do poeta cuja razo ultrapassa a lgica normal do homem saudvel.

As cartas escritas de Rodez so para Artaud um recurso para no perder sua lucidez. Elas revelam um homem em terrvel estado de sofrimento, nos falando de sua dor atravs de uma escritura mais ntima e mais espontnea. So os dilogos de um desesperado com seu mdico e atravs dele com toda a sociedade.

No quero que ningum ignore meus gritos de dor e quero que eles sejam ouvidos.

Para Artaud, o teatro o lugar privilegiado de uma germinao de formas que refazem o ato criador, formas capazes de dirigir ou derivar foras.Em 1935 Artaud conclui o "Teatro e seu Duplo" (Le Thtre et son Double), um dos livros mais influentes do teatro deste sculo. Na sua obra ele expe o grito, a respirao e o corpo do homem como lugar primordial do ato teatral, denuncia o teatro digestivo e rejeita a supremacia da palavra. Esse era o Teatro da Crueldade de Artaud, onde no haveria nenhuma distncia entre ator e platia, todos seriam atores e todos fariam parte do processo, ao mesmo tempo.

Em Rodez, alm de suas cartas (lettres au docteur Ferdire) ele elabora uma prtica vocal, apurada dia a dia, associada manifestaes mgicas. A voz bate, cava, espeta, treme, a palavra toma uma dimenso material, ela gesto e ato.

Artaud volta a Paris em 1946, onde dois anos depois encontrado morto em seu quarto no hospcio do bairro de Ivry-sur-Seine. Neste perodo, alm de uma importante produo literria ele desenha, prepara conferncias e realiza a emisso radiofnica "Para acabar com o juzo de Deus" (Pour en finir avec le jugement de dieu), onde sua vontade expressiva se alia a um formalismo cuidadoso. Se nos anos 30 o teatro para Artaud o lugar onde se refaz a vida, depois de Rodez ele essencialmente o lugar onde se refaz o corpo. O corpo sem rgos o nome deste corpo refeito e reorganizado que uma vez libertado de seus automatismos se abre para danar ao inverso.

A questo que se coloca de permitir que o teatro reencontre sua verdadeira linguagem, linguagem espacial, linguagem de gestos, de atitudes, de expresses e de mmica, linguagem de gritos e onomatopias, linguagem sonora, onde todos os elementos objetivos se transformam em sinais, sejam visuais, sejam sonoros, mas que tero tanta importncia intelectual e de significados sensveis quanto a linguagem de palavras.

O seu trabalho ainda inclui, ensaios e roteiros de cinema, pintura e literatura, diversas peas de teatro, inclusive uma pera, notas e manifestos polmicos sobre teatro, ensaios sobre o ritual do cacto mexicano peyote entre os ndios Tarahumara (Les Tarahumaras), aparies como ator em dois grandes filmes e outros menores. Artaud escreveu: "No se trata de assassinar o pblico com preocupaes csmicas transcendentes. O fato de existirem chaves profundas do pensamento e da ao segundo as quais todo espetculo lido coisa que no diz respeito ao espectador em geral, que no se interessa por isso. Mas de todo o modo preciso que essas chaves estejam a, e isso nos diz respeito" - em TEATRO E SEU DUPLO.

Teatro: Um Ato Total

Circunavegar esse mar mediterrneo do universo artaudiano veio para mim como um duplo desafio: por um lado, elucidar a concretude da proposta do Teatro e seu Duplo, de Antonin Artaud, em relao linguagem total do teatro; por outro lado, resgatar a obra de Artaud como o trajeto de um visionrio que no teve medo de se adentrar nos recnditos mais profundos da vida (da sua e da realidade de sua poca) e, de maneira particular, do teatro, sendo ele mesmo homem teatro, para ressurgir em OBRA VIVA, legando-nos um marco para a Esttica Teatral Contempornea. J dizia Barrault: "De longe, a coisa mais importante que se escreveu acerca do teatro no sculo XX".

necessrio considerar que no pretendo transformar a obra de Artaud num receiturio para a arte cnica. O legado que ele nos deixa no uma geografia que pode ser colonizada, mas pontos de partida, indicaes de caminhos, em que idias suscitam idias, em que a obra transcende a si mesma.

Esse homem-teatro , em si, uma obra de arte e, portanto, estar sempre fora de alcance, nunca poder ser esgotado. Como diz o prprio Artaud: "A verdadeira beleza nunca nos atinge diretamente. E assim que o pr- do- sol belo por tudo aquilo que nos faz perder" (...) idias claras so idias mortas e acabadas." Assim, pretendo evidenciar algumas sinalizaes que Artaud nos apresenta, a partir de suas crticas cultura, ao teatro de sua poca e de suas epifanias para o teatro, enquanto ato total: "uma projeo escaldante de tudo aquilo que pode ser retirado de um gesto, uma palavra, um som, uma msica e da combinao entre eles."

Este artigo um resumo da minha dissertao de mestrado, na USP, So Paulo, cujo tema foi "Em busca de uma Escritura Cnica a partir de Artaud". Para uma melhor compreenso da obra de Artaud e da sua proposta de teatro como ato total, o texto dividido em trs partes: Cultura - Vontade de Potncia; A Necessidade Implacvel da Criao; A Nova Linguagem do Teatro.

O meu encontro com Artaud veio confirmar a trajetria que eu j vinha percorrendo, na buscar de recuperar o verdadeiro sentido do teatro enquanto um ritual que exige de seus participantes rigor, disciplina, determinao, coragem, generosidade. Um ritual que ao e que acontece no tempo e no espao da cena e que s pode viver em cena, onde passado, presente e futuro se unem naquele instante preciso do ato total. Um teatro que saiba nomear e dirigir as sombras, trazendo luz do dia verdades que, de outra forma, permaneceriam ocultas. Um teatro que fale a sua linguagem concreta, linguagem fsica, linguagem materializada no corpo e na voz dos atores e em tudo o que acontece em cena, evocando um universo, onde tudo assume um sentido, um mistrio, uma alma.

esse o caminho que percorro na minha pesquisa e investigao teatral. Caminho que percorro por uma necessidade vital e que recebi de herana ancestral, legada por tantos outros sonhadores e fundadores de mundos para alm de mundos conhecidos. E que esse caminho possa, por sua vez, ser herana para tantos outros que esto e viro.

Cultura: Vontade de Potncia

Nomear e dirigir as sombras

"Para o teatro, assim como a cultura, a questo continua a ser a de nomear e dirigir as sombras". Artaud deseja mostrar a base orgnica das emoes e a materialidade das idias nos corpos dos atores, a transformao das concepes em eventos inteiramente "materiais", onde as facetas obscuras do "esprito" so reveladas numa projeo real, material. Captar o "manas", as foras que dormem em todas as formas, como os velhos ttens, que captam, dirigem e derivam foras e a efgie que tem sua sombra que a duplica, assim como o escultor que, enquanto modela, acredita liberar uma espcie de sombra cuja existncia dilacerar seu repouso. No uma contemplao das formas por si ss, mas uma identificao mgica com essas formas, como a pedra que se anima porque foi tocada como se deve.

Uma obra de arte s viva, na medida em que ela comunica algo alm da sua simples aparncia. Esse algo alm a sua sombra que a duplica, ou seja, quando o artista capaz de inscrever naquilo que ele molda o sopro de vida que o inspirou, como o Deus que moldou o homem com o barro da terra, depois o sopra (o sopro vital) tornando-o um ser vivente. O sopro esse exerccio de uma fora criadora, que apreende aquilo que, do interior, se inscreve na exterioridade - as aspiraes secretas, os fluxos secretos do desejo. Uma representao comovente habitada por marcas de sua prpria histria, escrita em sua prpria carne. Captar essa verdade no uma prtica insignificante, mas o exerccio de uma inspirao quase divinatria. Assim, s atingimos com a nossa arte o ser do homem, quando nos comunicamos em um outro plano, diferente daquele da realidade cotidiana, superficial e intil. Esse mundo arquetpico, onde se movimentam as aspiraes, sonhos, desejos, sentimentos, medos, angstias... as profundezas, as regies subterrneas do nosso ser humano universal. Lutas que se travam nas sombras e se fazem revelao, esse invisvel que se torna visvel, como dizia Klee: "a arte no reproduz o invisvel, mas torna visvel".

Quando deparamos com alguma obra de arte que carrega em si essa potncia, essa sombra, ela nos atinge, nos perturba, nos encanta, nos transfigura. No samos dali como entramos, algo foi acrescentado. o tempo privilegiado em que no apenas nos sentimos existir, mas onde passamos por uma experincia de recuperao material do ato de existir. Ao ir exposio de Camile Claudel (para citar um exemplo) vivi essa experincia. A sua obra possui uma fora misteriosa e ativa, abriga um fogo vital que jorra do prprio fundo da sua natureza, exalando de si mesma seu encantamento e em que a alma, como que com um hlito, cria seu prprio corpo. Uma obra capaz de nos transtornar e nos envolver.

Artaud nos diz que "se falta enxofre nossa vida, quer dizer, se lhe falta uma magia constante, porque nos apraz contemplar os nossos atos e nos perdermos em consideraes sobre as formas sonhadas de nossos atos, ao invs de sermos impulsionados por eles", ou seja, falta nossa vida fora, energia, vibrao, intensidade e estamos mergulhados no marasmo. Artaud critica esse homem civilizado, bem formado pelo sistema, que pensa por sistemas e formas convencionais, fechadas, sendo que a vida tenso, dinmica, em que o pensamento, a palavra e a ao buscam a sua unidade conflitual.

O verdadeiro teatro tambm tem suas sombras, que rompem com suas limitaes, duplica as formas, se expande, traz luz aquilo que recusamos ver, rompe a linguagem para tocar a vida. S que a "nossa idia petrificada do teatro encontra-se com nossa idia petrificada de uma cultura sem sombras onde, seja para que lado for que se volte, nosso esprito s encontra o vazio, quando na verdade, o espao est cheio".

" paradoxal que em nossas vidas,o vazio possa ser repleto,o negativo possa ser afirmativo,o vcuo possa ser o lugar em que a maioria das coisas acontecem."( Lao Ts )

Cultura em Ao

Artaud prope uma cultura que seja inseparvel da vida. A ao do homem inventa o homem, no conflito com o destino. Uma cultura que se constri continuamente e que no d para se encerrar e se fechar em livros "sobre a cultura." Uma cultura em vida, em movimento, em ao, que se faz e se refaz nesse "vir-a-ser que no conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansao - esse meu mundo dionisaco do eternamente criar a si mesmo, esse meu para alm do bem e do mal, sem alvo... vontade de potncia."

Nietzsche fala dessa vontade de potncia como um jogo de foras e ondas de foras, que , ao mesmo tempo, uno e mltiplo, "aqui acumulando-se e ao mesmo tempo ali minguando, um mar de foras tempestuando e ondulando em si prprias, eternamente mudando, eternamente recorrentes, com descomunais anos de retorno, com uma vazante e enchente de suas configuraes, partindo das mais simples s mais mltiplas, do mais quieto, mais rgido, mais frio, ao mais ardente, mais selvagem, mais contraditrio consigo mesmo, e depois outra vez voltando da plenitude ao simples, do jogo de contradies de volta ao prazer da consonncia."

Essa vontade de potncia se traduz, no teatro artaudiano, como um jogo de envolvimento e afastamento mtuo, em que o constitudo se confunde com o constituinte, onde nada pode aparecer como acabado, como claro e distinto, como realizado, em que nenhuma transformao e nenhum acontecimento definitivo. Um conflito permanente entre o uno e o mltiplo, cujas operaes simblicas e fsicas transbordam e lutam entre si.

O sbio Herclito de feso j acreditava num mundo em perptua mudana, em eterno vir-a-ser, onde tudo se torna o contrrio de si mesmo, onde as transformaes no mundo derivam da interao dinmica e cclica dos opostos: o dia vira noite, o inverno, primavera; o doce, amargo; o pequeno, grande; o grande diminui; o quente esfria; o frio se aquece...Seu princpio universal era o fogo, um smbolo para o contnuo fluxo e a permanente mudana em todas as coisas. Imagem do fogo que se acende e se apaga na mesma medida e que pode ser destruio, mas, tambm, criao.

Um teatro contra o que na vida h de constitudo, de manifesto, e que pretende para si a eficcia da magia e dos ritos. O olho do artista, como diz Thomas Mann, "tem um vis mtico sobre a vida; por isso, precisamos abordar o mundo dos deuses e demnios - o carnaval de suas mscaras e o curioso jogo do "como se', no qual o festival do mito vivo abole todas as leis do tempo, permitindo que os mortos voltem vida e o "era uma vez" se torne o prprio presente - com o olho do artista." E Joseph Campbell completa: "a mscara em um festival primitivo venerada e vivenciada como uma verdadeira apario do ser mtico que ela representa - apesar de todo mundo saber que foi um homem quem fez a mscara e que um homem que a est usando. Mas, durante o tempo do ritual do qual a mscara faz parte, aquele que a estiver usando tambm identificado com o deus." Mas essas festas religiosas celebradas nos rituais primitivos no acontecem em total iluso. H uma conscincia de que as coisas "no so reais." Campbell esclarece essa questo com uma citao de Marett : " o selvagem um bom ator que sabe envolver-se no seu papel, como uma criana brincando e tambm como uma criana, um bom espectador que pode ficar morto de medo de um rugido que sabe muito bem no ser de um verdadeiro leo."

essa vida que se desenvolveria sob o signo da verdadeira magia, que Artaud quer evocar, advertindo-nos que a intensidade da existncia est intacta e que, por medo, vivemos no estado de impotncia em possu-la. Por isso nos prope revermos nossas idias sobre a vida, numa poca em que nada mais adere vida. Colocamos a cultura em uma espcie de Panteo: de um lado fica a cultura (idolatrada em seus pantees) e, de outro, a vida. No entendemos que a verdadeira cultura um meio apurado de compreender e exercer a vida, onde o mundo no condenado e evitado como um pecado, mas voluntariamente assumido como um jogo ou dana, onde o esprito brinca. Ele faz uma crtica idia ocidental da arte, em que arte e cultura no podem andar juntas, onde a arte coloca o esprito numa atitude separada da fora, sendo que a verdadeira cultura age por sua exaltao e sua fora. No teatro oriental, diz Artaud, "as formas apoderam-se de seu sentido e de suas significaes em todos os planos possveis; ou se preferirem, suas conseqncias vibratrias no se fazem sentir num nico plano, mas em todos os planos do esprito ao mesmo tempo", sendo capaz de nos transtornar e encantar e no se detendo nos aspectos exteriores das coisas, mas trazendo luz do dia, atravs de gestos ativos, essa parte de verdade oculta sob as formas em seus encontros com o Devir.

nesse espao virtual, diz Artaud, que se instaura o teatro. Um jogo ligado ao imprevisvel onde as regras nascem dele mesmo, nascem da lgica do acaso, onde cada lance lana suas regras, abolindo as certezas, abrindo novas questes, num olhar sempre inaugural sobre o mundo, emergindo no perigo, no desejo invencvel do vir-a-ser: "manifestar e ancorar inesquecivelmente em ns, a idia de um conflito perptuo e de um espasmo onde a vida se dilacera a cada minuto, onde tudo na criao se ergue contra nosso estado de seres constitudos".

a roda infinita do Devir, na qual o caos condio necessria da produo da forma. Desconstruir, descentrar, desintegrar, construir, equilibrar, integrar. O ir-se abrindo e se metamorfoseando. Ciclo de caos e cosmo em devir permanente. Dioniso e Apolo. "Teremos chegado muito a favor da cincia esttica se chegarmos certeza imediata da introviso de que o contnuo desenvolvimento da arte est ligado duplicidade do apolneo e do dionisaco, da mesma maneira como a procriao depende da dualidade dos sexos, em que a luta incessante e onde intervm peridicas reconciliaes", diz Nietzsche. O elemento apolneo relacionado Poesis - estado de alma. Saber - fazer potico.Gozo oriundo da obra feita pela prpria pessoa, possibilitando uma tentativa de combate para um conhecer deste mundo, distinto do conhecimento oferecido pela cincia. O elemento dionisaco relacionado Asthesis - gozo esttico do ver e reconhecer. Circula pela sensibilidade, operando sobre o conceito do conhecimento pelos sentidos, privilegiando o sentimento e a sensao. A experincia da densidade do ser, como diz Sartre. A atividade da asthesis (elemento dionisaco) pode e deve levar poesis (elemento apolneo), na medida em que o ato criativo pode e tem de abandonar sua atitude puramente contemplativa e participar da criao da obra em seu contedo e forma.

Uma matria em ebulio na direo de um possvel. A busca de dar forma (simbolizar) quilo que no tem forma (o afeto, os sentimentos, as emoes). O desvelar desses movimentos obscuros, em que o invisvel ganha visibilidade, em que as produes do inconsciente (do ato embriagador da criao) iro materializar-se no potico (eficcia simblica). O partir do sensvel, do espao cnico, do caos dionisaco, para se chegar ao apolneo, ao matemtico, partitura. A cultura "esse sem espao nem tempo" ligada ao inconsciente, produzindo cataclismas, que ressurgiro com redobrada energia, incitando - nos a retornar natureza, a reencontrar a vida.

Contra a cultura da Europa que supervaloriza a razo, Artaud vem propor a unio entre corpo e esprito, numa viso do homem com um ser integral, orgnico e no multifacetado. O homem construindo a cultura e a cultura transformando o ser do homem em sua profundidade. Como nos diz Vera Lcia Felcio: "uma cultura que no escrita, pois, escrever impedir o esprito de se movimentar no meio das formas como uma vasta respirao", mas que vai sendo inscrita nesse movimento incessante da vida, desaparecendo a dicotomia homem e natureza, vida e regras de viver. no Mxico que Artaud vai encontrar aquilo que ele chama de cultura viva: "ligada ao sol, perdida nas correntes da lava vulcnica, vibrante no sangue ndio, h no Mxico a realidade mgica de uma cultura, cujas chamas de pouca coisa precisariam para se reacender materialmente. Falando do Mxico, no por acaso que sou levado a falar do fogo. Se toda a civilizao comeou pelo fogo, a idia do fogo est subjacente e alimenta sempre toda a realidade mexicana. O fogo, imagem da civilizao, permaneceu no Mxico mais que uma imagem atravs dos tempos, incorporando-se ativamente nos Mitos pelos quais a civilizao do Mxico manifesta a sua vivacidade".Para Artaud, a cultura tem que ser em carne viva, queimar organismos. Ele diz que no h cultura sem fogueiras e o Mxico parece deter o meio de reavivar sem fim fogueiras de culturas vivas. As imagens mticas dos quatro elementos: fogo, cu, gua, terra parecem ser intrnsecas ao Mxico, "nelas est todo o Mxico ao nu " (...) "e assim como toda a matria existente passa num dado momento por esses quatro pontos, assim como a fsica moderna reencontrou energias e princpios que no so outros, em linguagem clara, seno smbolos da antiga alquimia, e ao Mercrio corresponde o movimento, ao Enxofre a energia, ao Sal a massa estvel, assim tambm a atividade dos princpios manifesta em imagens no Mxico, os seus poderes perpetuamente renovados".

A ida ao Mxico permite perceber que no h civilizao nem cultura vlidas sem a idia aceita e partilhada de um mito que continua a vivificar os organismos, permitindo.-lhes confrontar-se magntica e constantemente com smbolos universais. No Mxico, o homem visto no como separado da natureza, mas em unssono com ela, com o universo e, que, se encontrando perto das foras da natureza, participa de seus segredos. Da sua experincia com os Tarahumaras, Artaud nos diz que falsa a idia de que eles no tenham civilizao, pois eles possuem a mais elevada idia do movimento filosfico da natureza..."captaram os segredos deste movimento atravs de Nmeros-Princpios, tal como Pitgoras o fez". Artaud descreve que diante de cada aldeia Tarahumara e nos quatro pontos da montanha, h uma cruz, que nada tem a ver com a cruz catlica, mas representa o homem esquartejado no espao, ou seja, o homem de braos abertos, ligado aos quatro pontos cardeais. Uma idia ativa do mundo, uma idia geomtrica qual a prpria forma do homem est ligada.

"O que a cultura mexicana propicia o restabelecimento da idia de uma grande harmonia, onde esprito e matria no so mais rivais" e uma civilizao que pe o corpo de um lado e o esprito do outro arrisca-se, como nos diz Artaud, a "ver quebrarem-se os laos que unem estas duas realidades dissemelhantes".

O artista chamado a ser um Tarahumara, aquele que abriga no fundo do seu corao o corao de sua poca...aquele que porta-voz...aquele que est ligado, que possui uma percepo mais apurada da vida, que no apenas v, mas tem viso, um visionrio. E que no ato de realizar a sua arte d vazo s angstias de sua poca, interferindo neste mundo e transformando-o, atravs da recuperao dessa magia, dessa comunicao constante entre o interior e o exterior, o ato e o pensamento, a matria e o esprito.

Artaud contra essa cultura onde apenas as pessoas ditas cultas participam, pois uma civilizao assim "j no tem nada a ver com as suas fontes primitivas de inspirao", perdeu a sua magia, a sua ligao com a profundidade da vida.

no teatro que Artaud busca a recuperao dessa verdadeira cultura: "O teatro pode ajudar-nos a recuperar uma cultura e dar-nos dela imediatamente os meios: a cultura no est nos livros, mas nas foras que emanam dos livros, ela est nos nervos, nos rgos sensveis, numa espcie de manas que dorme e que pode mostrar o esprito imediatamente na atitude de receptividade a mais alta, de receptividade total... este manas, o teatro tal como eu o concebo, desperta-o..."

Teatro Ocidental e Teatro Oriental

Bali - Dana Ketchak

no contato com o teatro de Bali que Artaud vai encontrar aquilo que mais se aproxima sua busca do verdadeiro sentido da cultura e do teatro. Assim como a cultura no ocidente est ligada instruo acadmica, desligada da essncia do ser e da vida que o circunda, o teatro seguindo esta mesma direo, encontrava-se em estado de estagnao psicolgica e literria (era visto como um ramo da literatura), incapaz de nos transtornar e nos encantar. "A enfermidade espiritual do ocidente, que o lugar por excelncia onde foi possvel confundir a arte com o estetismo, est em pensar que poderia existir uma pintura que s servisse para pintar, uma dana que seria apenas plstica, como se algum tivesse desejado cortar as formas da arte, separ-la de todas as ligaes com todas as atitudes msticas que podem assumir ao se confrontarem com o absoluto." (...) " por no se deter nos aspectos exteriores das coisas num nico plano que o teatro oriental no se limita ao simples obstculo e aproximao slida desses aspectos com os sentidos; por no parar de considerar o grau de possibilidade mental de que se originam que ele participa da poesia intensa da natureza e conserva suas relaes mgicas com todos os graus do magnetismo universal." Para Artaud o uso da palavra no teatro ocidental no contm uma fora ativa, no rompe a aparncia para se chegar ao esprito, mas fica somente no nvel exterior de um pensamento perfeito que se degrada ao se exteriorizar. J no teatro balins sente-se um estado anterior linguagem e que pode escolher sua linguagem: msica, gestos, movimentos, palavras. E essa a linguagem expressiva, diz-nos Rousseau..."aquela em que o signo diz tudo antes que se fale" (...) "onde o objeto oferecido, antes da palavra, acorda a imaginao, excita a curiosidade, mantm o esprito em suspenso".

Bali - Dana Barong

O teatro oriental , para Artaud, a concretizao dessa linguagem - "o saber conservar um certo valor expansivo das palavras, uma vez que, na palavra, o sentido claro no tudo e sim, a msica da palavra que fala diretamente ao inconsciente". Uma linguagem no da palavra articulada, discursiva (como acontece no ocidente), mas uma linguagem de gestos, atitudes e signos. Uma linguagem que no se define a no ser pelas possibilidades da expresso dinmica e no espao, em oposio s possibilidades da expresso pela palavra dialogada. Uma palavra que no ser mais conotada mas detonada. Ele prope uma linguagem que circule pela sensibilidade e que, abandonando as utilizaes ocidentais da palavra, faz das palavras, encantaes: "ela emite uma voz, utiliza vibraes e qualidade de voz; faz os ritmos se repetirem apaixonadamente; calca sons; procura exacerbar, exaltar, encantar, deter a sensibilidade".

Atravs desta linguagem, que assume uma nova espcie de presena e, atravs dos movimentos dos atores, criamos uma "poesia natural", uma "poesia no espao", a verdadeira poesia sensvel do teatro. Aquela que utiliza todos os meios de expresso utilizveis em cena, como a msica, a dana, artes plsticas, pantomina, gestos, entonaes, iluminao, cenrio. Isso na medida em que eles se revelam capazes de aproveitar as possibilidades fsicas imediatas que a cena lhes oferece para substituir as formas imobilizadas da arte por formas vivas e ameaadoras - "tentao fsica da cena".

Ao falar do Teatro Ocidental, Artaud afirma a perda da nossa sensibilidade para com a manifestao do sagrado, onde o mundo profano transcendido, onde se torna possvel a comunicao com os deuses: "perdemos aparentemente nossa sensibilidade para com essas encarnaes csmicas".O teatro ocidental, atado s suas preocupaes cotidianas, esqueceu a teatralidade dos monstros, o puro frmito dramtico derivado da simples vista da monstruosidade, esse medo metafsico (quando os nossos apoios normais so dissolvidos, quando se coloca em cheque a nossa segurana, "quando perdemos a terceira perna do nosso trip estvel") e ancestral (respeito pela manifestao de algo). O teatro para Artaud, deve ser um ATO TOTAL, sendo, a vida, o lugar por excelncia, onde essa linguagem se enraza: "eu no concebo a obra como desligada da vida" e, o palco, o lugar em que, de maneira orgnica e profunda, essa linguagem dinmica e objetiva se inscreve (o significado que vai nascer a partir da sua construo - materialidade do significante), tornando a encenao uma linguagem particular. Um teatro que nos reata com a vida em lugar de nos separar dela, pois um teatro provocador, revelando tudo que a vida dissimula ou no pode expressar. S assim, poderemos "acreditar num sentido de vida renovado pelo teatro onde o homem torna-se senhor daquilo que ainda no existe, e o faz nascer". Um teatro que se prope a ser renovao da vida, renovao do homem...do homem integral e no s do homem racional: "acima de tudo precisamos acreditar no que nos faz viver e que algo nos faz viver". Um teatro que seja como "terra do fogo, lagunas do cu, batalha dos sonhos" e que nos levar a uma aproximao com a vida ardente, a vida em estado puro, onde poderemos encontrar alguma coisa de verdadeiramente essencial no ser. Cristina Tolentino ( [email protected] )

A necessidade implacvel da criao

A necessidade implacvel da criao ou necessidade implacvel de afirmao da vida. Ningum mais do que Artaud lutou incansavelmente contra a imensa presso da morte. Suas dificuldades se transformaram em desafios, suas angstias e dores em uma busca incessante, seu aprisionamento em procura de uma sada. Em sua dificuldade de se expressar, Artaud deixa uma obra que vem revolucionar a cultura e a arte de seu tempo, s valorizada anos mais tarde; em suas angstias e dores, Artaud liberta suas energias latentes e cria em funo dessa revolta; em seu aprisionamento, Artaud luta desesperadamente por uma transformao de todas as estruturas da vida. Uma vida espontnea e uma cultura fascinante, movida por uma fora de unificao que se reproduziria a todos os nveis e a todos os instantes.

com essa mesma fora de afirmao da vida inerente em Artaud, que ele vai construir as bases materiais de seu teatro, ou seja, o teatro e seus duplos: a peste, a alquimia, a crueldade.

A Peste

O teatro para Artaud deve ter a fora de uma epidemia; deve ser uma combusto que vai trazer tona, a essncia do ser; deve ser um ato de entrega total essa necessidade inelutvel de criao contnua.

Uma verdadeira pea de teatro perturba o repouso dos sentidos e impe s coletividades reunidas, sua volta, uma atitude herica e difcil. Artaud deseja que o teatro se abata entre uma multido de espectadores com o mesmo e pavoroso horror da peste bubnica, a peste negra da Idade Mdia. Um teatro vivido a partir do epidmico, da peste epidmica. Diante da morte (de uma destruio total) no tenho mais voz, mais vez, mais estao, mais porto seguro. A febre interior aponta que estou em combusto, estou expelindo como um vulco, como uma tempestade orgnica, como lava, erupo. Uma espcie de exorcismo, de purgao. O organismo descarrega sua podrido - ou voc vive ou voc morre - no h meio termo. Uma crise completa aps cuja passagem resta apenas a morte ou a purificao total. "Tambm o teatro um mal porque o equilbrio supremo que s se pode conseguir atravs da destruio. Ele requer, do esprito, a participao num delrio que intensifica suas energias".O palco, lugar do mal absoluto, mas tambm o crivo da vida. Anrquico e epidmico, produz formas, aes, sentimentos e idias num confronto originrio de vida e morte. Reabre o espao virtual das formas e dos smbolos, alimentando e expandindo os conflitos, onde a realidade no se apaga, mas tambm no se desliga do fluxo produtor da vida.

O teatro como a peste, no s por atuar sobre a coletividade e por transtorn-la, mas porque existe no teatro, como na peste, algo de vitorioso e de vingativo ao mesmo tempo: o homem rebelado contra a fatalidade e que, em lugar de padec-la, se insurge contra ela e cria em funo dessa revolta. "A ao do teatro como a da peste benfazeja, pois levando os homens a se verem como so, faz cair a mscara, pe a descoberto a mentira, a tibieza, a baixeza, a hipocrisia; a ao do teatro sacode a inrcia asfixiante da matria; e revelando para as coletividades seu prprio poder obscuro, sua fora oculta, ela as convida a assumir uma atitude herica e superior, que, sem isso, jamais assumiriam".(...) "o teatro existe para furar abcessos coletivamente, pois vamos ao teatro para reencontrarmos aquilo que temos, no propriamente de melhor, mas de mais raro e mais crivado". Artaud nos fala que esse teatro possibilitar a ressurreio de uma fora espiritual que cresce em intensidade, em densidade e se afirma medida que se propaga.

Dele sairemos no como espectadores passivos que se limitam a um olhar artstico sobre as formas, mas como supliciados que se queimam e que fazem signos em suas fogueiras. Ou seja, a funo do teatro perturbar o espectador para que ele, saindo do marasmo a que foi induzido pela cultura (ocidental), possa reencontrar sua essncia profunda e sua real capacidade de criao.

A Crueldade

Contra um teatro de divertimento, de entretenimento "digestivo", Artaud nos prope um teatro que busque alcanar as regies mais profundas do indivduo, agindo sobre ele, como as vibraes de uma msica capaz de entorpecer a serpente. "Ela se dirige diretamente aos rgos da sensibilidade nervosa, assim como os pontos de sensibilizao da medicina chinesa incidem sobre os rgos sensveis e as funes diretrizes do corpo humano" (...) "um ambiente de luzes e de rudos criados por dispositivos especiais, uma palavra que escapa no momento preciso, pode enlouquecer um homem, deix-lo louco. Tudo isso para voltar idia de que o teatro atua, basta saber manej-lo".(...) "um teatro onde as formas, os sentimentos, as palavras compem a imagem de uma espcie de turbilho vivo e sinttico, no meio do qual o espetculo toma o aspecto de uma verdadeira transmutao".

Foi a revelao das foras misteriosas que comandam o universo, atravs de seus estranhos movimentos e roupagem hiertica, a msica miraculosa que acompanha suas danas, a presena de fora csmica em seus gritos inarticulados, que fizeram da descoberta dos atores-bailarinos balineses um acontecimento decisivo na vida de Artaud e o levaram a compreender a verdadeira natureza do teatro como instrumento potencial para a redeno da humanidade..."no sou um daqueles que julgam necessria a mudana da civilizao para que o teatro mude: creio, porm, que o teatro, utilizado no sentido mais alto e mais difcil de todos, tem o poder de influenciar a natureza e o desenvolvimento das coisas".

Na concepo de Artaud, esse teatro, cujas foras csmicas, manifestadas por meios corporais que alcanam e tocam as energias fsicas no-verbais e subconscientes das massas, o que ele intitula Teatro da Crueldade.

Artaud deixa claro que a expresso Teatro da Crueldade no se refere a sadismo, a sangue, pelo menos de modo exclusivo. No um culto ao terror. O teatro da Crueldade , antes de tudo, extremamente violento contra ns mesmos. Trabalha o auto - desnudamento, nos transforma, exige que ns nos reformulemos, "jorra sangue metaforicamente", diz Vera Lcia Felcio.

E no plano de representao, "no se trata da crueldade que infligimos um ao outro, cortando mutuamente nossos corpos, serrando nossas anatomias pessoais, ou como imperadores assrios, mandando uns aos outros, pelo correio, pacotes de orelhas humanas, narizes ou narinas bem cortadas, mas daquela crueldade muito mais terrvel e necessria que as coisas podem exercer sobre ns. No somos livres. Os cus ainda podem cair sobre nossas cabeas. E o teatro existe, em primeiro lugar, para nos ensinar isso".

Como Artaud, no podemos negar que a vida, naquilo que ela tem de devoradora, de implacvel, se identifica com a crueldade. E isso no somente no plano fsico e visvel, onde a crueldade est por todo lado, mas tambm e, principalmente, no plano invisvel e csmico, onde o simples fato de existir, com a imensa soma de sofrimentos que isto supe, aparece como uma crueldade... "uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, rigor csmico e necessidade implacvel, no sentido de turbilho de vida que devora as trevas, no sentido dessa dor de necessidade inelutvel, fora da qual a vida no saberia exercitar-se; o bem desejado, ele resultado de um ato, o mal permanente. Quando cria, o Deus oculto obedece necessidade cruel da criao que se impe a si mesma, e assim ele no pode deixar de criar, portanto no pode deixar de admitir, no centro do turbilho voluntrio do bem, um ncleo do mal, cada vez mais reduzido. E o teatro, no sentido de criao contnua, de ao mgica inteira, obedece a essa necessidade. Uma pea onde no exista essa vontade, esse apetite de vida cego, capaz de passar por cima de tudo, visvel em cada gesto e em cada ato, e do lado transcendente da ao, ser uma pea intil e fracassada".

Assim, o teatro, na medida em que pra de ser uma arte puramente digestiva e de divertimento fcil, em que volta a ser ativo e reencontra os poderes da ao direta sobre a sensibilidade e, atravs da sensibilidade, sobre o esprito, redescobrindo sua ligao com as foras, retoma "seu carter perigoso e mgico, e se identifica com essa espcie de crueldade vital que a base da crueldade" (...) "onde a criao e a prpria vida s se definem por uma espcie de rigor, portanto, de uma crueldade bsica que leva as coisas a seu fim inelutvel, seja qual for o preo".

Artaud diz "crueldade", como poderia ter dito "vida" ou "necessidade", porque quer indicar que o teatro ato e emanao eterna, que nele nada existe de fixo, identificando-o a um ato verdadeiro e que, portanto, vivo, mgico. Uma prtica que se d no presente, no imediato - o ato, e que deve ter a fora de um acontecimento. "Vida- Manifestao: Teatro - manifestao e crueldade - rigor, pois intensidade, pois presena de vida." E esta "presena de vida", diz-nos Vera Lcia Felcio, "liga-se a catstrofes como tremores de terra, erupo de vulces, de uma forma denominada de "Sublime", no sentido empregado por Artaud, quando diz que existe Sublime e Poesia no crime, na natureza de certos crimes de causas indescritveis. Esta energia csmica ou esta fora encontrar sua expresso integral no teatro, de um modo marcante, ntido e potico, isto , sob a forma de uma poesia mgica." A palpitao inata da vida, que colocar em movimento as grandes preocupaes e as grandes paixes essenciais, as quais, "o teatro moderno cobriu sob o verniz do homem falsamente civilizado".

Mscara - teatro-dana balins

Novamente aqui, o Teatro de Bali vem ser a concretizao dessa linguagem palpitante da vida: "em Bali, os temas provm, parece, das junes primitivas da Natureza que um Esprito duplo favoreceu. O que ele agita o Manifestado. uma espcie de Fsica primeira, da qual o Esprito nunca se afastou" (...) "suas realizaes so talhadas em plena matria, em plena vida, na plena realidade. H nelas algo do cerimonial de um rito religioso, no sentido que extirpam do esprito de quem as observa toda idia de simulao, de imitao barata da realidade". Em Bali, uma realidade fabulosa e obscura acionada, soerguida, alcanada sem delongas e sem rodeios. Tudo isso, diz Artaud, "parece um exorcismo para fazer nossos demnios AFLUREM".

Alquimia O teatro, assim como a alquimia, nos permite reascender ao sublime, mas com drama, ou seja, antes de chegar operao teatral de fazer ouro ou operao de fazer ouro teatral, necessrio passar pelo embate de foras lanadas umas contra as outras, at chegar decantao bruta, pureza absoluta, concebida como "uma espcie de nota limite, apanhada em pleno vo e que seria como a parte orgnica de uma indescritvel vibrao".

No teatro no haver um material pronto, pr-parado, mas se desenvolver e se construir como uma matria em ebulio na direo de um possvel: "decantar e operar a transfuso da matria, evocar a transfuso ardente e decisiva da matria pelo esprito, fundindo todas as aparncias em uma expresso nica que devia ser semelhante ao ouro espiritualizado". Pelo duplo, o teatro quer tornar sensvel essa unidade mltipla da vida, onde ser possvel juntar a diviso, a contradio, o perigo, fazendo do teatro a "gnese da criao "- extraindo ordem da brutalidade ciclnica da natureza: no eterno retorno ao caos do princpio, a regenerao da vida, do mundo, do cosmo. "O verdadeiro teatro nasce, assim como a poesia, mas por outras vias, de uma anarquia que se organiza, aps lutas filosficas que so o lado apaixonado dessas primitivas unificaes".

O Teatro da Crueldade e a Alquimia, ambos so artes virtuais..."assim como a alquimia, com seus smbolos, como o Duplo espiritual de uma operao real, tambm o teatro deve ser considerado como o Duplo no desta realidade cotidiana e direta, da qual ele, aos poucos, se reduziu a ser uma cpia inerte". Artaud, ao dizer que "o teatro um duplo da vida e a vida um duplo do verdadeiro teatro", no est tratando da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas duma "espcie de frgil e turbulento ncleo no qual as formas no tocam". Assim, como diz Artaud, "o pblico acreditar nos sonhos do teatro com a condio de consider-los, de fato, como sonhos e no como decalque da realidade; com a condio de que os sonhos permitam liberar no pblico essa liberdade mgica do sonho, que ele s pode reconhecer enquanto marcado pelo terror e pela crueldade."

O teatro que Artaud prope nada tem a ver com teatro social que muda com as pocas, mas um teatro que atue, um teatro que no se detm no aspecto individual da vida, mas que tem como verdadeiro objetivo o criar mitos, possibilitando traduzir a vida sob seu aspecto universal e extraindo dessa vida imagens nas quais gostaramos de nos reconhecer.

Como na alquimia, a cena no teatro (o ouro) no se encontra pronta, ela vai sendo construda no dinamismo da ao, extraindo as foras latentes, depurando-as at encontrar os gestos e sons primordiais, essenciais, a pedra filosofal, a sntese. Nesta cena no haver desperdcio, a exatido com a qual cada ao ser desenhada no espao, a preciso com a qual cada trao ser definido, uma srie de pontos de partida e de chegada fixados exatamente de impulsos e contra-impulsos, os quais, permitiro, que a massa da vida se faa revelao.Um teatro que condensa, destila a essncia mesma da realidade, portanto, um teatro de pesquisa...uma pesquisa dos sentidos eficazes do teatro. Eficazes naquele que realiza e eficazes naquele que olha, o espectador. O teatro balins , para Artaud, esse sentido eficaz, onde poesia e matemtica, magia e cincia se tornam uma mesma realidade, se encontram.

A peste enquanto possibilidade de redeno; a crueldade enquanto rigor csmico, necessidade inelutvel da criao; a alquimia enquanto purificao da matria, vo possibilitar, segundo Artaud, a construo de um novo sujeito, inteiro, essencial. O verdadeiro objetivo do teatro no imitar a vida, mas refazer a vida.

A nova linguagem do Teatro

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INCLUDEPICTURE "http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artescenicas/teacontemp/teacontemp05d3.jpg" \* MERGEFORMATINET O Marat interpretado por Artaud no Napoleo de Gance bastante conhecido.Repare na mobilidade do rosto de Artaud e da gama de suas expresses.

O corpo e a voz no tempo e no espao de representao

Refazer a vida. Eis o verdadeiro objetivo do teatro. A vida, no nos fatos e acontecimentos exteriores, mas naquilo que ela tem de mais profundo e de mais sagrado. Assim, Artaud quer arrancar o teatro literrio de seu torpor, recriar algo vivo - um acontecimento: "convida-se essa linguagem a dirigir-se no apenas ao esprito, mas tambm aos sentidos, a atingir regies ainda mais ricas e fecundas da sensibilidade em pleno movimento". A nova linguagem do teatro: um instrumento superior de comunicao para alm do uso discursivo de conceitos, linguagem e palavras, estabelecendo um vnculo pelo qual a totalidade da emoo poder fluir livremente de corpo a corpo, de ator a espectador.

Linguagem da poesia. Utilizar aspectos concretos da linguagem que se comunicam diretamente ao corpo, como a qualidade musical das palavras, a natureza sensual dos sons de que so feitas, a qualidade rtmica do poema que ativa os ritmos prprios do corpo: o latejar do sangue e a enorme multido de associaes no-verbais inerentes linguagem e ativadas pelas palavras.

As inumerveis sensaes corpreas sentidas continuamente: odores que nos invadem e que formam um permanente fundo de nossas vidas, a presso das roupas que usamos contra a pele, a multido de sons que nos cercam ou que andam ao sabor da nossa imaginao, o gosto amargo e doce dos alimentos e da prpria vida, alegria e medo, a beleza de um pr do sol, amor e dio, o ritmo do pulsar do corao, a respirao, a tenso ou relaxamento dos msculos, o cheio ou o vazio dos nossos estmagos...

Artaud argumenta que esses elementos no verbais da conscincia tm importncia fundamental para um poeta. Eles esto intimamente ligados prpria matria e substncia da poesia: a emoo humana. Emoo que pode ser evocada atravs das palavras, mas no em si mesma verbal. Todas essas emoes so experimentadas como sensaes corpreas: "toda emoo tem bases orgnicas. cultivando sua emoo em seu corpo que o ator recarrega sua densidade voltaica. Saber, antecipadamente, quais pontos do corpo preciso tocar significa jogar o espectador em transes mgicos. dessa espcie preciosa de cincia que a poesia, no teatro, h muito se desacostumou."

Se olharmos o projeto corpo, ainda carregamos a m digesto de Descartes: "penso, logo existo"- separa o pensamento da existncia, o corpo da mente, sendo que o lugar do pensamento no corpo inteiro. Carregamos o preconceito de que aquilo que o corpo experimenta fica s no corpo, separamos cabea e corpo, razo e emoo e esquecemos que o que sentimos comandado pelo sistema nervoso central, pelos neurnios. O modo como o corpo organiza as informaes como se estivesse organizando o pensamento. O corpo o lugar mais adequado para se perceber que no existe diferena entre natureza e cultura... "o homem o nico organismo vivo que tem uma noo consciente e dirigida das coisas e que pode, por sua vontade, modific-las. Resta apenas um lugar no mundo, um s, onde podemos alcanar esse organismo e dele nos servir de uma maneira ativa: o teatro, desde que renunciemos nossa concepo europia e consideremos o teatro como o lugar onde se manifesta uma vida consciente e excitada". E o palco, o lugar onde se poder reconstituir a unio do pensamento, do gesto, do ato.

Um teatro que fala, atravs de todos os sentidos, ao homem total. Uma metafsica que comea na pele, indo do gesto ao pensamento, passando pelos rgos, como se o corpo fosse o ideograma ontolgico crucial (sinal do ser humano crucial).

O que pode um corpo? Essa pergunta no pela essncia, mas pelas potencialidades de produo. que, no teatro, o corpo no est dado e constitudo. Todo o trabalho do ator repousa sobre uma hiptese que, seja ou no correta, sempre verificvel: "a de que a alma fisiologicamente um novelo de vibraes. possvel ver esse espectro de alma como intoxicado pelos gritos que ela propaga, se no pelo que corresponderia aos mantras hindus, essas consonncias, essas acentuaes misteriosas, onde o avesso material da alma, acuado at em seus mais ocultos antros, vem contar seus segredos luz do dia". Isto permite ao ator tomar seu corpo como espao material, onde essas foras se desdobram e se produzem; e cabe a ele saber captar e irradiar as vibraes, aprender a refazer seus trajetos e pontos de confluncia e disperso, produzindo conflito, expandindo-o, levando-o s ltimas conseqncias, para criar um espectro plstico e infinito, consumindo e criando formas e imagens; e isso nada tem a ver com delrio descontrolado. Entrar em transe atravs de mtodos calculados. o que Artaud observa diante dos danarinos balineses: "tudo, nesse teatro, de fato calculado com uma mincia adorvel e matemtica, que exige rigor, aplicao, determinao". O transe no se apodera do ator, dotado de um estatuto rigoroso e de um mtodo cientfico. A tcnica como algo que garante qualidade, rigor, preciso. Exige severidade, constncia e disciplina na formao do ator. Os atores-danarinos de Bali comeam a sua formao desde criana, assim como os atores-danarinos do Kathakali, em Kerala, na ndia. Existe toda uma codificao do corpo em gestos e movimentos, existe um conhecimento cientfico das possibilidades de expresso do corpo, no com o objetivo de alcanar um virtuosismo tcnico, mas, sim, de tornar o corpo um receptculo dos movimentos ntimos da alma humana, fazendo com que esse corpo adquira uma temperatura interior que torne incandescentes as aes do ator, possibilitando-o locomover-se, construir-se e se tornar uma presena ativa em cena. Em Bali o drama no evolui entre sentimentos, mas entre estados de alma, entre estados de esprito, "ossificados e reduzidos a gestos - esquemas" (...) "um certo nmero de convenes bem aprendidas e, sobretudo, magistralmente aplicadas. A utilizao por esses atores de uma quantidade precisa de gestos seguros, de mmicas experimentadas que tm sua razo de ser mas, acima de tudo, na envelopagem espiritual, no estudo profundo e matizado que orientou a elaborao desses jogos de expresso, desses signos eficazes e cuja eficcia parece no ter-se esgotado nestes milnios todos".

"O teatro o estado, o lugar, o ponto, onde se aprende a anatomia humana e, atravs dela, se cura e rege a vida". Para Artaud, o verdadeiro teatro o exerccio de um ato perigoso e terrvel, porque "visa total transformao orgnica e fsica do corpo humano". Um outro corpo construdo, diferente do corpo cotidiano, um corpo "em vida", um corpo "extra - cotidiano", dilatado, energtico... "o teatro no essa parada cnica onde se desenvolve virtual e simbolicamente um mito, mas esse cadinho de fogo e de verdadeira carne onde, anatomicamente, pela triturao de ossos, de membros e de slabas os corpos se refundem e se apresenta fisicamente e ao natural o ato mtico de fazer um corpo."

Assim, para retomar o contato com a verdadeira base metafsica da existncia humana, o corpo que deve ser redespertado e reativado, ou, em outras palavras, para alcanar a esfera metafsica preciso que nos tornemos mais fsicos e "o teatro o dado fsico acessvel da magia, propondo ao pblico uma linguagem potica, mtica, diferente do teatro ocidental europeu, psicologista". Esse estado de vida potica, proposta ao espectador, pode conduzi-lo a precipcios, mas, mesmo assim, prefervel vida psicolgica simples, sob a qual, segundo Artaud, "sufoca o teatro de sua poca". O teatro ocidental se tornou uma arte decorativa e intil. Precisamos de uma ao verdadeira, de um teatro de ao, espetculo de tentao onde o entendimento tem tudo a perder e o esprito tem tudo a ganhar, um teatro que nos desperte, nervos e corao. a que o teatro deve se reencontrar. O palco um lugar onde se est em perigo constante. Ali, a cada noite se passa algo nico, que leva a ganhar corporalmente alguma coisa, tanto a quem atua quanto a quem assiste. O teatro uma iluso que pe em movimento a iluso da realidade. Por isso ele a produo do perigo, pois "uma outra linguagem, a das paixes nasceu".

Para Artaud, o corpo o espao energtico que produz e movimenta as aes e as paixes, na e pela respirao, lanando a vida em sua realidade insuspeita. "Alcanar as paixes atravs de suas foras ao invs de consider-las como puras abstraes, confere ao ator um domnio que o iguala a um verdadeiro curandeiro".

do mundo afetivo que o ator deve tomar conscincia: dos msculos roados pela afetividade, do jogo entre as respiraes, desencadeando essa afetividade potencial, aumentando a densidade interior e o volume de seu sentimento. O ator "como um atleta do corao". E para servir-se de sua afetividade, preciso ver o ser humano como um duplo; como um espectro eterno, um espectro plstico e nunca acabado. E, como todos os espectros, esse duplo tem uma memria... a "memria do corao", que durvel. com o corao que o ator pensa. Esse mundo afetivo comporta um sentido material. preciso acreditar em uma "materialidade fludica da alma. Saber que uma paixo matria, que ela est sujeita s flutuaes plsticas da matria, d sobre as paixes uma ascendncia que amplia nossa soberania".

Artaud fala da importncia de se conhecer o "segredo do tempo das paixes", uma espcie de "tempo musical" que rege seu batimento harmnico. Ele diz que esse tempo pode ser encontrado na respirao, e que a produo da respirao vai provocar, no organismo que trabalha, o nascimento de uma qualidade correspondente de esforo. A respirao "reacende a vida", "atia-a em sua substncia", acompanha o sentimento, como tambm entra no sentimento pela respirao. Mas sob uma condio, "a de saber discriminar, entre as respiraes, aquela que convm a esse sentimento". Neste sentido, podemos perceber que Artaud no prope ao ator o se deixar ficar emocionado, o se deixar ser levado e dominado pela emoo.

Esse sentimento que deve ser acionado pelo ator em momentos precisos da sua ao fsica, ele o alcana atravs do desenvolvimento da sua sensibilidade. O ator deve ser sensvel e no emocional. A emoo gera tenso e angstia, impossibilitando ao ator construir-se livre e organicamente em cena. A sensibilidade abre os canais de percepo do ator, possibilitando-lhe ser a obra e, ao mesmo tempo, ser o escultor dessa obra; ser a partitura musical e, ao mesmo tempo, ser o seu compositor.

Para refazer a cadeia, a antiga cadeia na qual o espectador se identifique com o espetculo, preciso permitir que esse espectador se identifique com o espetculo, respirao a respirao e tempo a tempo. Mas Artaud nos adverte que no basta que essa magia do espetculo acorrente o espectador, pois ela s o aprisionar realmente se souber faz-lo. Por isso ele d um basta s magias ocasionais, a uma poesia que no tem cincia a sustent-la: "no teatro, daqui para frente, poesia e cincia devem identificar-se".

Artaud quer encontrar uma nova linguagem a partir da sensibilidade, mas, ao mesmo tempo, no identifica a nova linguagem ao arbitrrio, pelo contrrio, "o Teatro da Crueldade rigoroso e antipsicolgico" (...) "sem matar a espontaneidade prpria a cada ator, o tom da voz, a gesticulao, os movimentos de conjunto sero todos calculados a fim de obedecer a um ritmo onde tudo toma seu lugar prprio", como uma partitura musical. Assim, o corpo, como uma escritura hieroglfica de um teatro sagrado, impe as formas e a imagem de sua sensibilidade, irradiando certas foras que tm seu trajeto material de rgos e nos rgos, onde o avesso material da alma vem contar seus segredos luz do dia. O espetculo ser, para o esprito, um meio de reconhecimento, de vertigem, de revelao.

Artaud quer abandonar o hbito de um teatro falado, onde a clareza e a lgica constrangem a sensibilidade. Ele acrescenta que no se trata de suprimir a palavra, mas dela "se servir em um sentido mgico esquecido ou desconhecido. Trata-se, sobretudo, de suprimir um certo lado puramente psicolgico e naturalista do teatro e de permitir poesia e imaginao retomar seus direitos" (...) "essa famosa poesia, que o pblico menospreza, no sabendo o que ela , e que ela ainda a nica coisa que o toca sem que ele possa dizer como isso acontece, essa poesia est na base de toda ao dramtica". Uma poesia em ao, uma poesia realizada, concreta, que remete o teatro a seu verdadeiro plano, aquele de base metafsica, ou seja, universal.

Podemos perceber, ento, que a poesia qual Artaud deseja dedicar-se transcende o puramente verbal e, tanto o instrumento a ser utilizado na transmisso dessa espcie de poesia, quanto o seu receptor, de fato o CORPO HUMANO: "a gramtica dessa nova linguagem deve ser encontrada. O gesto a sua matria e sua cabea e, se quiserem, seu alfa e mega. Ela parte da NECESSIDADE da fala mais do que da fala j formada. Encontrando na palavra um impasse, ela volta ao gesto de modo espontneo. De passagem, essa linguagem roa em algumas leis da expresso material humana.

Mergulha na necessidade. Refaz poeticamente o trajeto que levou criao da linguagem". Chama a matria ao nascimento, vida. diretamente atuante...como diz Peter Brook: " palavras destinadas a sair, sob formas de sons, dos lbios de gente viva, com um tanto de entonao, de pausa, de ritmo, e gesto" (...) "uma palavra no comea sendo uma palavra - o produto final iniciado como um impulso, estimulado por atitude e comportamento, por sua vez ditados pela necessidade de expresso" Uma linguagem que, na sua origem, nasce dessa necessidade de comunicar sua paixo ao outro. Nasce do afeto e no do racional. "L onde os outros propem obra, eu mostro o meu esprito", diz Artaud. Uma linguagem de fogo, acendedora de incndios que, atravs de gritos, onomatopias, signos, atitudes e lentas, abundantes e apaixonadas modulaes nervosas, utilizada em todos os planos do espao, faz esse espao falar... " longe de restringir as possibilidades do teatro e da linguagem, sob o pretexto de que no encenarei peas escritas, eu amplio a linguagem da cena, multiplico suas possibilidades." Artaud nos fala que essa linguagem falada no ser fixada a priori, mas determinada em cena; ser feita em cena, criada em cena, em correlao com a outra linguagem, as atitudes, signos, movimentos e objetos, onde a palavra surgir como uma necessidade. S assim, diz Artaud, "o teatro voltar a ser uma operao autntica e viva, conservando essa palpitao emotiva sem a qual a arte gratuita e sem sentido". Ele acrescenta ainda que tudo isso vai desembocar numa obra, numa "composio inscrita, fixada em seus menores detalhes, e anotada com novos meios de notao. A composio, a criao, ao invs de dar-se no crebro de um autor, se dar na prpria natureza, no espao real, e o resultado definitivo ser to rigoroso e determinado quanto qualquer obra escrita".

Artaud nos convida a voltar para as fontes respiratrias, plsticas, ativas da linguagem, a relacionar as palavras com os movimentos fsicos que lhe deram origem, a abandonar o aspecto lgico e discursivo da palavra, a recuperar o seu sentido fsico e afetivo, a no considerar as palavras apenas pelo que dizem gramaticalmente e sim sob o seu ngulo sonoro, nas correntes subterrneas de impresses, de correspondncias, de analogias, onde sero percebidas como um movimento. A partir da, a linguagem da literatura se recompor, se tornar viva, e poderemos inscrever uma poesia no espao.

Em "Para Acabar com o Julgamento de Deus", uma emisso radiofnica que Artaud escreveu e gravou pouco antes de morrer, a qual tive a felicidade de escutar em uma aula da professora Vera Lcia Felcio, quando cursei a disciplina "O Teatro da Crueldade enquanto metafsica concreta, relao entre o sensvel e o inteligvel" e que ainda ressoa vividamente em mim, pude perceber de maneira bem concreta aquilo que Artaud chama de linguagem viva, incandescente, sonora, vibratria, encantatria, para alm do simples uso discursivo das palavras. Uma atrocidade potica, a voz como uma fora que se materializa, sons inabituais, orgnicos, inumanos, que vo do mais grave ao mais agudo, do suave, ao subterrneo, ao grito, palavras que tm o poder de escavao...que tm a capacidade de perfurar o tempo e o espao. impossvel ouvir essa gravao sem que ela nos toque de maneira profunda, sem que ela no perturbe os nossos sentidos, sem que ela no nos atinja direta e totalmente.

Uma metafsica em atividade. Uma linguagem que, segundo Artaud, "desenvolve todas as suas conseqncias fsicas e poticas em todos os planos da conscincia e em todos os sentidos" (...) "fazer a metafsica da linguagem articulada fazer com que a linguagem sirva para expressar aquilo que rotineiramente ela no expressa: us-la de um modo novo, excepcional, incomum, devolver-lhe suas possibilidades de comoo fsica, dividi-la e distribu-la ativamente no espao, tomar as entonaes de uma maneira concreta absoluta e devolver-lhe o poder que teriam de dilacerar e manifestar realmente alguma coisa, voltar-se contra a linguagem e suas fontes rasteiramente utilitrias, seria possvel dizer, alimentares, contra suas origens de fera acuada, enfim considerar a linguagem sob a forma de encantamento".

Quero me tornar "um corpo sem rgos", assim Artaud preconiza o seu teatro, entendido como a ao do corpo no tempo e no espao. Um corpo que no seja reduzido pela cincia, em partes. Um corpo que no pensa o homem como fragmentrio, mas como um ser inteiro...e esse ser inteiro que se torna uma presena viva e atuante no espao da representao, como nos diz Grotowski: "o ator-performer que unifica, em si mesmo, as qualidades de um guerreiro, de um danarino, de um cantor e de um homem de sabedoria, atingindo as razes (de seu prprio ser) e observando-as em ao, como uma testemunha muda de si mesmo"... e Artaud: "eu conheo-me, conheo-me porque me assisto, assisto a Antonin Artaud."

Concluso

As colocaes de Artaud no so apenas vises de um grande poeta ou visionrio. Ele nos coloca em contato com o verdadeiro teatro, enquanto ritual e mgico, porque nos transforma e faz ganhar alguma coisa queles que nos vem assistir, tornando infinitas as fronteiras do que chamamos realidade e onde o homem impavidamente torna-se o senhor daquilo que ainda no existe e o faz nascer. Artaud escreve com sua prpria carne ("l onde outros propem obras, eu mostro o meu esprito"), por isso s podemos entend - lo melhor se experimentamos os seus escritos na ao concreta e com o nosso prprio corpo. Foi assim que, aos poucos, me aproximei do universo artaudiano e como ele, tenho buscado construir as bases materiais da arte teatral como uma linguagem no espao e em movimento, onde a poesia s poder ser eficaz se for concreta, se produzir alguma coisa atravs de sua presena ativa em cena.

Uma trajetria, na qual o importante no assentar-se no que foi acumulado, no capitalizar as habilidades tcnicas e as teorias, nem passar por provas de genialidade ou de talento divino, mas no enfrentar o desafio dirio em abraar os seus limites, as suas precariedades, as suas contradies, transformando-os em matria expressiva. Uma arte em vida, dinmica, em movimento, em ao. A procura de uma representao habitada por marcas de sua prpria histria, gravada em sua memria, escrita em sua prpria carne.

Um trabalho orgnico, onde o ator coloca a sua humanidade no de maneira desatinada e descontrolada. Uma matemtica criadora, embasada por uma tcnica que garante qualidade, rigor, preciso e que vai possibilit-lo locomover-se, construir-se e se tornar uma presena ativa em cena, onde o ator possa ser, ao mesmo tempo, material e organizador de seu trabalho. Ele deve ser um compositor a cada dia, esculpindo e compondo a sua obra: ele mesmo, obra viva do teatro.

Isto exige um ato de extrema generosidade, pois requisita do ator que ele seja um arteso apaixonado pelo seu ofcio, criando novas maneiras de perceber o mundo e pensar a experincia humana - experincia de recuperao material do ato de existir.

Retomo alguns princpios artaudianos que, alis, s fui compreender mais claramente, na medida em que os mesmos se fizeram ao. Quando Artaud diz que o teatro no imitao da vida, mas duplo da verdadeira vida, aquilo que est antes da forma, um caos que se organiza em meio a conflitos, em meio s foras que se jogam umas contra as outras, uma matria em ebulio, um vir a ser...todas essas colocaes me levaram a investigar o processo do ator, anterior a qualquer representao, ou seja, toda a preparao do ator para que ele possa, atravs de meios seguros, trazer luz do dia, verdades que de outra forma, permaneceriam ocultas.

O ator est comprometido com a verdade e no com a simples realidade. Assim, necessrio que ele possa, durante o seu processo de formao, entrar em contato mais profundo com o seu ser, com as suas potencialidades e limitaes, encarar a sua verdade e o desafio constante de auto-superar-se. S assim ele vai poder estar presente de forma integral no palco, ou seja, no apenas fisicamente, mas fundindo corpo e mente, numa relao de correspondncia interna e externa, que vai possibilitar-lhe uma ao real, consciente, voluntria, precisa e orgnica. Uma ao acreditvel, mas no realista. Uma ao consciente, justificada e funcional que vem de impulsos interiores, por isso no mecnica, no esttica. Uma ao dinmica, em vida, sempre em ebulio. Aqui se encontra a dramaturgia do ator, o seu estado pr - expressivo, que vai possibilit-lo produzir aes no palco, vai coloc-lo em condies de saber agir em cena, mover-se, sentindo o movimento, com uma conscincia ntima desse movimento, um duplo organismo - fsico e afetivo - um atleta do corao, como diz Artaud, nessa dialtica do processo artificial e processo orgnico.

Para que esse ator possa trabalhar sobre si mesmo (dimenso vital- organicidade) necessrio que ele tenha um quadro estruturado, uma partitura, um cho, uma tcnica. Caso contrrio o processo do ator corre o srio risco de se transformar em uma "sopa emotiva", como diz Grotowski. E assim que Artaud, ao observar o Teatro de Bali, deixa claro essa questo, quando diz que os atores-bailarinos balineses entram em transe atravs de mtodos calculados. Ao observar as grandes tradies espirituais, milenares, podemos perceber que as mesmas sempre tiveram necessidade de estruturas, de formas, isto , todas essas tradies se manifestam dentro de um ritual preciso e rigoroso. S assim possvel a representao visvel do invisvel, em que o ator conduz coerentemente gesto e pensamento, corpo e esprito, compondo a arte de tecer as aes em cena, ou seja, a dramaturgia do ator que acontece em dois nveis: pr - expressivo e expressivo.

esse nvel pr - expressivo que fundamenta a minha pesquisa junto ao Grupo Bayu, ou seja, a construo da presena cnica do ator - uma educao permanente, anterior apresentao, aquilo que no se v em cena (como o alicerce de um prdio), mas que constri o "bios cnico" do ator, como diz Eugnio Barba. Um trabalho que pressupe conscincia e vontade, em que ser possvel conciliar fluxo de vida e forma, espontaneidade e disciplina, pois no adianta uma composio bem feita, mas vazia, nem uma improvisao calorosa, mas sem forma. no Oriente que novamente vamos encontrar esse equilbrio, um teatro que capaz de reacender em ns a chama da vida e que tem por trs um corpo tcnico rigoroso. Por isso Artaud ficou to impressionado com o Teatro de Bali e viu no mesmo a expresso concreta do teatro que ele buscava levar ao palco. Uma cultura ligada vida. Mas qual vida? A vida colhida na sua dimenso mais profunda, a sua existncia, a sua realidade corprea e no a imitao da aparncia da vida de todos os dias, da superficialidade do cotidiano, que nada acrescenta ao nosso ser. Como diz Peter Brook: "no palco, indivduos que oferecem suas verdades mais ntimas para outros indivduos na platia lotada, partilhando com eles uma experincia coletiva" (...) "a intensidade, a honestidade e a preciso de seu trabalho deixam como legado um desafio. No por algumas semanas, no por uma vez na vida, mas diariamente".

E fao minhas, as palavras de Adolphe Appia: "e, onde quer que nos encontremos, onde quer que desejemos encontrar -nos, iluminemos o espao com aqueles que l se encontrem; a chama despertar clares desconhecidos, projetar sombras reveladoras... e preparemos, assim, o Espao vivo para os nossos seres vivos".