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A Bíblia e a Política ISSN 2316-1639 (online) Teologia e Espiritualidade vol. 4 • n o 07 • Curitiba • Junho/2017 • p. 119-144 119 A BÍBLIA E A POLÍTICA Eder Silva 1 “Nos deuses acreditamos, e dos homens sabemos que, por uma lei necessária de sua natureza, governam sempre que podem”. (Tucídides) RESUMO É proposto neste ensaio engendrar alguns diálogos envolvendo o fenômeno da política, enquanto inserida no contexto da Bíblia Sagrada, levando-se em conta exemplos contidos na história da humanidade a partir da era cristã. Serão agregados aos exemplos expostos uma abreviada revisão de conceitos e referências literárias que tratem do assunto proposto, procurando facilitar a compreensão de fatores relacionados a estes dois campos – o político e o bíblico – na sociedade contemporânea. O esforço se concentrará em identificar responsabilidades que o cristão deva ter para com a sociedade, em se tratando da sua participação na política. Para possibilitar o desenvolvimento deste estudo, analisaremos somente a presença do fenômeno da fé no campo político e suas correlações com a importância da Bíblia Sagrada em seu papel fundamental, enquanto instrumento distinto e apto a propor mudanças sociais. Vale ressaltar a complexidade deste assunto diante de uma variedade de preconceitos e rejeições tidas, inclusive, por muitos cidadãos confessionais, instigando-os refletir acerca de indagações tais como: cabe ou não ao cristão pautar-se nos preceitos bíblicos de modo a propor projetos na agenda política, na esperança de trazer benefícios à sociedade? Assim, procurar-se-á direcionar a argumentação de maneira mais direta e simples possível, evitando exaustivas análises de cunho dogmático, confessional, reforçar doutrinas ou instituir definições de certo ou errado. Palavras-chave: política, bíblia, cidadania, democracia, era pós-cristã. 1 Especialista em Sociologia Política (UFPR), Bacharel em Teologia pela Faculdade Cristã de Curitiba (FCC) e Bacharel em Turismo (Universidade Positivo).

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A BÍBLIA E A POLÍTICA

Eder Silva1

“Nos deuses acreditamos, e dos homens sabemos que, por uma lei necessária de sua

natureza, governam sempre que podem”. (Tucídides)

RESUMO

É proposto neste ensaio engendrar alguns diálogos envolvendo o fenômeno da política, enquanto inserida no contexto da Bíblia Sagrada, levando-se em conta exemplos contidos na história da humanidade a partir da era cristã. Serão agregados aos exemplos expostos uma abreviada revisão de conceitos e referências literárias que tratem do assunto proposto, procurando facilitar a compreensão de fatores relacionados a estes dois campos – o político e o bíblico – na sociedade contemporânea. O esforço se concentrará em identificar responsabilidades que o cristão deva ter para com a sociedade, em se tratando da sua participação na política. Para possibilitar o desenvolvimento deste estudo, analisaremos somente a presença do fenômeno da fé no campo político e suas correlações com a importância da Bíblia Sagrada em seu papel fundamental, enquanto instrumento distinto e apto a propor mudanças sociais. Vale ressaltar a complexidade deste assunto diante de uma variedade de preconceitos e rejeições tidas, inclusive, por muitos cidadãos confessionais, instigando-os refletir acerca de indagações tais como: cabe ou não ao cristão pautar-se nos preceitos bíblicos de modo a propor projetos na agenda política, na esperança de trazer benefícios à sociedade? Assim, procurar-se-á direcionar a argumentação de maneira mais direta e simples possível, evitando exaustivas análises de cunho dogmático, confessional, reforçar doutrinas ou instituir definições de certo ou errado.

Palavras-chave: política, bíblia, cidadania, democracia, era pós-cristã.

1 Especialista em Sociologia Política (UFPR), Bacharel em Teologia pela Faculdade Cristã de Curitiba (FCC) e Bacharel em Turismo (Universidade Positivo).

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ABSTRACT

It is proposed in this essay engender some dialogs involving the phenomenon of politics, while inserted in the context of the Holy Bible, taking into account examples contained in the history of mankind from the Christian era. Will be aggregated to the examples exposed a short review of concepts and literary references that address the subject proposed, seeking to facilitate the understanding of factors related to these two fields - the political and the scriptural - in contemporary society. The effort will focus on identifying responsibilities which the Christian should have to society, in terms of their participation in politics. To enable the development of this study, we will examine only the presence of the phenomenon of faith in the political field and its correlation with the importance of the Holy Bible in its fundamental role, while separate instrument and able to propose social changes. It is worth to emphasize the complexity of this subject before a variety of prejudices and had rejections, besides, for many confessional citizens, prompting them to reflect on questions such as: It is worth or not the christian will be guided in biblical precepts to propose projects on the political agenda, in the hope of bringing benefits to society? Thus, an attempt shall be made to direct the argument more direct and simple as possible, avoiding exhaustive analysis of a dogma, confessional, reinforce doctrines or establish definitions of right or wrong. Key-words: Politics, bible, citizenship, democracy, post-Christian era. INTRODUÇÃO

Há quem afirme – e não poucos – que o homem já nasce

um animal político, aos moldes da conceituação aristotélica do zoon politikon2; pois, ao não conseguir realizar nada sozinho, torna-se dependente da sociedade para que sua existência faça algum sentido. Porém, há outros que afirmam sua crença, alicerçando sua fé na cosmovisão bíblica. Creem que, ao renascer espiritualmente, o homem torna-se nova criatura, despojado de sua antiga natureza, de suas inclinações anteriores: morrendo o velho homem, renasce outro, agora voltado para atender ao

2 Conceito adaptado de Aristóteles de Estagira no livro “Política”, livro I, cap. I, Ed. UnB, 1985, 1342p.

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chamado do Criador em sua vida. Textos do Novo Testamento, como por exemplo Mc 8.35; 1 Co 5.17; Cl 2.20, poderão muito bem sustentar esta compreensão.

Sobre as duas inferências acima (a primeira filosófica e a segunda teológica), indaga-se se é possível ao homem “despojar-se” de suas inclinações, ambições e desejos pessoais (influências que a sociedade lhe apregoa como valor), e viver, a partir de então, caminhando conforme as orientações do seu Criador encontradas na Bíblia Sagrada. Pode haver harmonia na interação entre estas duas cosmovisões (política e bíblico-cristã) na composição do perfil humano? Se sim, até que ponto uma pode dar suporte à outra, sem haver prejuízos para a integridade de ambas?

A partir de questionamentos como estes, procurar-se-á tecer reflexões na esperança de provocar no leitor reflexões, no sentido de trazer-lhe à tona um assunto de relevância ao cotidiano do cristão que crê na Bíblia Sagrada como alimento para sua alma diante de uma sociedade confusa em seus valores. Certamente, um dos objetivos destas reflexões será o de indagar até que ponto vale a pena a presença do cristão neste mundo, sem, contudo, corromper-se com a (des) ordem deste mundo.

Recorrer-se-á ao poder3 como um dos elementos relevantes a possibilitar compreender as aproximações e distanciamentos entre fé bíblica e ação política. É notório que há mais elementos a serem agregados no constructo argumentativo. Ainda que as reflexões deste ensaio recaiam em maior relevância a cristãos que buscam na Bíblia Sagrada, razões para as suas variadas formas de conduta civil, pretende-se também que venham encontrar interesse aqueles que se preocupam compreender as interações entre estes dois campos: a fé bíblica e a política.

3 Nesta nossa abordagem sobre o campo do poder, não faremos relação com definições teóricas submetidas à Sociologia ou Antropologia Política, mas tão somente descrever situações envolvendo a iniciativa humana na escolha de sua representatividade, ou seja, quando o poder é percebido através da dominação que é exercida com ou sem consentimento e legitimidade, desta forma, mais próximo às abordagens e observações de Max Weber.

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Delimita-se então, a argumentação, evitando exaustivas definições e conceituações, mesmo porque, trata-se de um estudo fragmentário e singelo, que compõe apenas um dos capítulos deste livro. Para tal, o leitor encontrará exemplificações contidas na Bíblia Sagrada apresentadas de forma sucinta e, por vezes, contextualizadas temporalmente pela história da humanidade, a partir do advento da era cristã; reflexões adjacentes à trajetória do homem contemporâneo, na esfera de sua fé bíblica e de suas responsabilidades sociais, principalmente sua inevitável participação no campo da Política, seja voluntária ou coercitivamente.

1. UM POUCO DE HISTÓRIA

“Os tiranos, uma vez saciada sua ferocidade, tornam-se inofensivos; tudo voltaria ao normal se os escravos, ciumentos, não pretendessem também saciar a sua. A aspiração do cordeiro a converter-se em lobo suscita a maioria dos acontecimentos. Quem não tem presas, sonha com elas; deseja devorar por sua vez e o consegue pela brutalidade do número. A história, esse dinamismo das vítimas!” (Cioran).

Acredita-se que o fenômeno da política exista desde as mais

remotas eras da antiguidade: nas mais rústicas sociedades tribais, passando pelas patriarcais, culminando nas complexas formas de organização social do mundo contemporâneo. Como instrumento de organização social, a política foi e continua sendo necessária; algumas vezes, até desejada pelas sociedades; mas também rejeitada por indivíduos ou grupos que compõem estas mesmas sociedades. Queira ou não, assuntos relacionados à política continuam tendo destaque nos diversos círculos de conversas.

Nas religiões monoteístas que adotam código de leis na forma escrita, como, por exemplo, o judaísmo, o islamismo e o cristianismo, observam-se situações em que a própria divindade delega a indivíduos funções e cargos representativos (cf. Gn 45:8-9), exercidos de maneira carismática ou totalitária. O sociólogo Max Weber definiu as formas de poder, enquanto

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instrumentalizadas, a partir dos mecanismos de “legitimidade”4, a saber: ela acontece na ocasião em que os dominados se dispõem aceitar determinada autoridade, visando o bem comum. O teólogo Wayne Grudem, citando o pastor Greg Boyd, explica claramente sobre este mecanismo de dominação, ao dizer que

sempre que uma pessoa ou grupo exerce poder sobre outros [...] está presente uma versão do reino do mundo. Embora se manifeste de muitas formas, o reino do mundo é, em essência, um reino de poder imposto. Este reino do mundo já teve versões democráticas, socialistas, comunistas, fascistas e totalitárias, mas todas elas apresentam uma característica em comum: o exercício de poder sobre as pessoas.5

Nos relatos da criação contidos no livro do Gênesis, há uma

ordem divina, no sentido de que a humanidade domine espécies diferentes da sua, como os animais e a natureza (Gn 1:26-28). Porém, não é encontrada ordem explícita, provinda de Deus, no sentido de que deva haver domínio entre os homens. Urge aqui um primeiro paradoxo em relação da Bíblia e da Política: interação bem vista e desejada por uns e malvista e rejeitada por outros.

Presume-se que Deus tenha permitido o uso da política devido a uma lacuna deixada pelo homem, por causa de sua queda. Ao perder o domínio sobre a criação, passa a buscar outra forma de exercer seu papel como administrador e mordomo das coisas criadas pelo Senhor. Mas há quem prefira acreditar que, mesmo se o homem não sucumbisse ao pecado original, Deus haveria ainda de instituir uma forma de governo, contrariando o raciocínio de que o governo civil exista apenas em função da presença do mal no mundo, mas que também se tornaria útil na promoção do bem-estar da sociedade.

4 WEBER, 2000. 5 GRUDEM, 2014, p. 52.

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Em consonância com esta última hipótese, torna-se ainda conveniente recorrer ao que aponta Wayne Grudem sobre a política, quando diz que

uma de suas responsabilidades seria promover o bem comum da sociedade por meio de atividades como a construção e regulamentação de estradas, a instituição de pesos e medidas padronizados, a manutenção dos registros públicos, a instituição de leis para segurança (como limites de velocidade e normas para materiais de construção), a padronização da energia elétrica e a definição de uma moeda a ser usada para transações dentro de determinado país.6

Na realidade, a partir de sua queda, o homem

constantemente passa a buscar meios para se reafirmar; tentar esconder a vergonha do seu erro (Gn 3:7-8), transferindo sua culpa (Gn 3:11-14), e, não obstante, estabelecendo estruturas de poder e hierarquias na esperança de readquirir o domínio que outrora havia perdido (Gn 11:4-7). Estes sintomas persistem até os dias atuais, indistintamente: desde as mais simples como as mais complexas sociedades.

Ao longo das eras houve rupturas na configuração das relações de poder. O Espírito de Deus agiu e ainda age na humanidade; propicia manifestações paradoxais às mais variadas formas do exercício de poder. Enquanto isso, o cristianismo encontra sua função social, conforme o testemunho e relato dos Evangelhos, ao projetar na vida dos seguidores novas atitudes, sugerindo tratar-se da maior ruptura já realizada no vicioso ciclo da alienação humana. Destarte, o cristianismo bíblico traz outra percepção da realidade, tanto nas interações sociais como na maneira de canalizar o poder dentro das sociedades.

A voz do Espírito divino se faz presente através das declarações de Jesus Cristo, invertendo os modos de vida, intervindo nas trevas e iluminando a todos que almejam novos

6 Op.Cit, pp. 116-7.

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rumos! Estas declarações encontram autoridade e legitimidade bíblica, no sentido e ao passo que agora o maior deva, via de regra, servir o menor, pois: “os reis deste mundo têm poder sobre o povo, e os governadores são chamados de “Amigos do Povo”. Mas entre vocês não pode ser assim. Pelo contrário, o mais importante deve ser como o menos importante; e o que manda deve ser como o que é mandado” (Lc 22:25-26).

Isto tem gerado incompreensões ao longo dos tempos, servindo de produto para perseguições aos que preferem seguir à voz de Deus do que aos modismos. Porém, mesmo em meio a opressões, o fato é que, desde os primórdios da era cristã os que professam a fé bíblica continuam oferecendo algum tipo de resistência às soberbas e ambiciosas inclinações de indivíduos que almejam o poder, principalmente nas sociedades onde a forma do poder político é “sacralizado”, a exemplo do período romano dos césares, os quais reivindicavam status divino.

Na era medieval também houve perseguição a grupos de cristãos que, ao invés do conformismo à vigente religiosidade corrompida, arriscavam-se posicionar contrariamente, fazendo-se arautos propagadores da ira divina contra os maus governantes e seus vícios. Eram notados por suas convicções nos valores bíblicos. Denunciavam a opressão exercida pelo clero e pelos principados, que se revestiam de passagens bíblicas isoladas para legitimar suas ambições ao poder 7 . Estes arautos foram perseguidos, massacrados e oprimidos pela própria igreja oficial, financiada por governos caracterizados pela união entre poderes político e religioso.

No período da coroa inglesa, principalmente sob os governos absolutistas de Carlos I e Jorge III, que exerceram uma espécie de padroado 8 e impuseram nas colônias inglesas,

7 Também chamado de teoria da origem divina do poder real ou absolutismo. 8 Ou também chamado de “regalismo”. Doutrina criada pelo Papa Calixto III (1456) que defende a ingerência do chefe de Estado em questões religiosas conferindo benefícios eclesiásticos ao rei.

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principalmente na Escócia e Irlanda, o sistema anglicano9, os opositores foram impulsionados a buscar abrigo no novo continente, a América. Para se entender melhor o que deu início a estas perseguições, ressalta-se que o sistema religioso e político inglês, no período de colonização americana, era tipicamente monárquico absolutista, ou seja, sustentado pela ideia de que o Rei era o vigário de Deus, visto como a personificação da própria vontade divina, no tocante aos interesses da sociedade, modelo oriundo do sistema romano cesarista dos primeiros séculos da era cristã. H. J. BLACKHAM contribui na compreensão desta proposição afirmando que

Roma é o maior e o primeiro exemplo de religião política. A diferença entre religião política e eclesiástica está claramente demonstrada na distinção entre a deificação dos soberanos ptolomaicos do Egito no período greco-romano e o culto ao imperador no Império Romano. O culto ptolomaico revivia a tradição segundo a qual o faraó, sacerdote por excelência, aperfeiçoava e mantinha uma ordem cósmica divina. O culto do imperador, em Roma, mantinha uma ordem política [...] Por estes motivos o clero tinha enorme importância dentro da ordem civil, e o seu controle era objeto de ambições políticas.10

Mas as honras e as glórias do “ancient regime” tinham

seus dias contados. Com a crescente migração para a colônia, os costumes tomariam novos rumos. Depois de se estabelecerem nas 13 colônias, os dissidentes instituíram novas formas de organização social, política, religiosa e econômica. Ao contrário dos colonizadores portugueses no Brasil, mais preocupados a espoliar recursos na colônia, os dissidentes ingleses pretendiam fixar e levantar uma territorialidade livre de injustiças e servidão – um tipo de messianismo no qual, décadas mais tarde, se

9 O que se entende por sistema anglicano é justamente uma transição do governo eclesiástico, que ora pertencera ao pontífice romano, passando, desde então, às mãos do soberano rei da Inglaterra. 10 BLACKHAM, 1967, p. 7.

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converteria em um expansionismo ufanista, buscando hegemonias.

O período que compreende esta transição caracterizou-se por grandes enfrentamentos entre cidadãos do mesmo sangue. Apoiados pelo iluminismo francês, e impulsionados por uma convicção bíblica, resolutos a sacrificar suas próprias vidas em prol da liberdade de crença e da fé individual, um exército visivelmente mais fraco fez com que a maior potência militar do planeta sucumbisse, ocasionando independência às colônias que se tornaram os Estados Unidos da América do Norte. Referindo-se a este “messianismo libertário” contido na identidade e nos ideais dos colonizadores americanos, Richard Horsley acrescenta que

ao emigrar da Inglaterra e estabelecer-se em Plymouth, Boston e Providence, os Peregrinos e Puritanos identificavam-se com os relatos bíblicos do antigo êxodo de Israel em sua fuga do Faraó do Egito e nas narrativas da aliança de Israel com Deus, no Monte Sinai. [...] Assim como as doze tribos de Israel haviam recebido a aliança no Sinai como modelo de governo civil e farol para a história que se desenvolveria, agora os treze Estados formavam um novo modelo de aliança de governo civil como protótipo para outras sociedades.11

Exemplo mais atual pode ser visto em políticas extremistas,

por parte de alguns países que fazem parte da região denominada “janela 10 por 40”, onde a difusão da Bíblia Sagrada é terminantemente proibida, sob o pretexto de representar ameaça às hegemonias culturais, políticas e religiosas destas territorialidades. A despeito de inúmeras formas de intolerância a valores bíblicos, por outro lado, houve época em que governos nutriam simpatia por sua difusão, como na ocasião em que arautos como Martinho Lutero e John Knox, encontraram apoio por parte de políticos, como Guilherme de Orange (Inglaterra) e Frederico III da Saxônia.

11 HORSLEY, 2004, p. 7.

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Mais recentemente, no século XVIII, liberdades de fé bíblica foram agregadas aos ideais democráticos, momento registrado na história da humanidade por meio da “Declaração de Independência dos Estados Unidos da América do Norte”, documento redigido sob a pena de intelectuais políticos que adotaram a Bíblia como fonte de inspiração, servindo de incentivo à independência de outras tantas colônias.

Mais tarde, quando muitos dos ideais desta declaração foram esquecidos, surge Henry David Thoreau, poeta transcendentalista e intelectual ativista que, impulsionado por suas percepções acerca dos erros praticados pela ordem cultural dominante, se posicionou contra o expansionismo americano. Enclausurou-se na natureza selvagem para redigir protestos, resultando no seu livro denominado “Desobediência ao Governo Civil”.

Andando na contramão de seus conterrâneos ianques, Thoreau apregoava sua denúncia contra a propaganda de um governo que arrecadava impostos e os destinava a investimentos em armas, cujo objetivo era dominar e até mesmo exterminar indígenas e países vizinhos, prometendo aos “fiéis” cidadãos americanos a redistribuição das terras conquistadas em troca de sua fidelidade com os impostos. Seguindo sua consciência, Thoreau enxergava além das vantagens prometidas pelo governo. Percebia deturpações aos valores nobres do espírito humano. Conclamava o povo à desobediência ao governo, pois sua autoridade não resplandecia mais os ideais que outrora havia lançado bases às liberdades adquiridas por meio da Declaração de Independência. Vale lembrar que sua experiência ocorreu no limiar da Revolução Industrial (metade do século XIX), as quais são relatadas em outro livro de sua autoria, “Walden ou A Vida nos Bosques”.

Já no século XX é encontrada semelhança nas atitudes de homens representativos que, influenciados por valores bíblicos, engajaram-se politicamente na luta por liberdades civis, por exemplo: Gandhi, Martin Luther King Jr., Mandela, entre outros

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que redesenhariam a história social no coração da humanidade. O fato é que, fruto de antipatia ou simpatia, a Bíblia tem exercido preponderante papel ao longo dos séculos, transformando indivíduos e sociedades, sejam através de fenômenos religiosos, políticos, científicos ou econômicos.

2. PASSANDO PARA A OUTRA MARGEM, DESEMBARCANDO NA REALIDADE CONTEMPORÂNEA

“Nós vivemos atualmente em um mundo evangélico onde a teologia é invertebrada, a moralidade é de água viva, uma religião gangorra, uma filosofia cambalhota que nos diz o que já sabemos em palavras, mas que não entendemos de fato.” (Robert G. Lee)

Rompendo rótulos e ideologias, deixados pela era dos

extremos e das incertezas12 – características de um longo período que arriscam-se denominar modernidade –, o homem contemporâneo 13 , cansado e desiludido de promessas por progresso, tenta rebuscar na sua espiritualidade algo que lhes dê sentido. Mas desta vez, os motivos que impulsionam a humanidade pelo transcendente são diferentes dos do período que antecedeu o ceticismo e o empirismo da era moderna. Travestido sob uma “espiritualidade narcísica”, o homem entende que pode expressar-se livremente; absorve do meio em que vive elementos que comporão suas identidades e suas ressignificações; percebe e faz-se perceber diante de uma sociedade pluralista, despojada da rigidez ideológica, firmada nas complexidades superficiais e periféricas do cotidiano individualizado. O filósofo Gilles Lipovetsky traça este perfil sugerindo que

12 Especificamente neste estudo a “era dos extremos” refere-se ao período de descrédito às democracias abertas e consequente criação dos “ismos”; enquanto que a “era das incertezas” é caracterizada pelo desmoronamento dos “idealismos” e instituições, dando lugar à abertura para um futuro incerto, segundo a compreensão de alguns teóricos como Hobsbawn e Galbraith. 13 Procura-se evitar o termo “pós-moderno” ou “pós-modernidade”, no intuito de não provocar reflexões filosóficas paralelas (temporalidade ou sobreposição de valores culturais).

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a sedução surge como uma atmosfera soft, imperativa e sem surpresas, que distrai epidermicamente um público que está muito longe de ser tão ingênuo e passivo [...] A época é a do desprendimento do Estado, das iniciativas locais e regionais, do reconhecimento dos particularismos e identidades territoriais [...] A autogestão cujo projeto consiste em suprimir as relações burocráticas de poder, em fazer de cada indivíduo um sujeito político autônomo, representa um outro aspecto da sedução.14

Pode-se dizer que a sociedade está desenganada das utopias

libertárias, mas erigida “superficialmente” em uma forma de espiritualidade auto induzida, à deriva de suas mesquinhas inclinações; orientada a suprir, primordialmente, desejos individuais: momentânea conveniência do espírito humano com ares de uma “fisiolatria”, onde o que mais importa são vantagens para si mesmos e não o que é necessário para a sociedade. Não há mais estímulos para se buscar na alteridade as ressignificações pessoais. Desacreditando ideologias, que outrora formavam grupos conforme suas afinidades, a tendência agora é o amor próprio, o satisfazer-se momentaneamente, alistar-se à sociedade de consumo: consumo do poder, da persuasão, da aparência, do “self”, da fé na fé. Nada mais é vivenciado, apenas consumido, perdendo-se na própria experiência, a exemplo do mito de narciso.

Não se parece diferente o atual contexto político. Pode-se até dizer que as ideologias partidárias não mais convencem boa parte da opinião pública. Todavia, a exemplo de sua espiritualidade, o homem contemporâneo busca o que lhe é mais conveniente dentro da política, o que lhe ofereça alívio imediato. Esta transição é percebida por Michel Maffesoli, quando menciona que

o Estado, nas suas diversas abstrações burocráticas, não representa mais nada. O rei está nu, e já se começa a

14 LIPOVETSKY, 1983, pp. 25-6.

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perceber isso. [...] a pós-modernidade nascente não se reconhece mais nas palavras que racionalizaram e legitimaram a sociedade moderna. A democracia, a cidadania, o contrato social, são, certo, um belo ideal. Mas é preciso reconhecer que eles foram totalmente desmonetarizados por uma intelligentsia que os usou de modo intempestivo e já não significam nada para quem lhes tirou a vida, ou seja, todos nós, participantes do derrisório jogo do poder. Por aí se anuncia, em particular, o desgaste do político e a suspeita em relação à política.15

Em épocas de eleições tais inferências, como as apresentadas

anteriormente, podem ser percebidas em comportamentos generalizados, por exemplo:

Fisiologismo: Fulano vota em Ciclano porque prometera asfaltar a rua onde Fulano mora. Mas Fulano não se interessa pesquisar propostas políticas de Ciclano, nem sua trajetória militante, ou averiguar a conduta e idoneidade do candidato.

Proselitismo: vota-se em alguém por causa “da sua unção”. Assim, ao elegê-la, haverá boas chances de políticos serem contagiados e que venham transformar o Brasil em nação santa. É como assegura Gedeon Alencar: “Depois da versão militar: “Brasil, ame-o ou deixe-o”, agora temos a versão gospel: “O Brasil é do Senhor, declare isso””.16

Clientelista: ao eleger uma pessoa de mesma confissão de fé, acredita-se que esta venha favorecer determinadas comunidades evangélicas.

Também há outro tipo, o Coronelista, onde se vota nos que já possuem em sua família um legado ministerial eclesiástico, um tipo de “sagrado nepotismo”.

No fim das contas, quando o eleitor nota a falência de suas expectativas, percebendo que nenhuma das promessas lhe favoreceu, não vê outra saída senão ignorar assuntos de política. O crítico H. L. Mencken o define como

15 MAFFESOLI, 2001, pp. 20-1. 16 ALENCAR, 2014, p. 12.

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Homo Boobus, ou homem inferior – ou seja, o cidadão normal, típico e predominante de uma sociedade democrática. [...] As ideias que lhe entopem a cabeça são formuladas por um processo de pura emoção. [...] O que o agrada mais no departamento de ideias – e daí o que ele tende a aceitar mais como verdadeiro – é apenas o que satisfaz os seus anseios principais. [...] Em outras palavras, o que ele exige das ideias é o mesmo que exige das instituições – ou seja, que o deixem livre da dúvida, do perigo e daquilo que Nietzsche chamou de os acasos do labirinto. Acima de tudo, livre do medo, aquela emoção básica de todas as criaturas inferiores em todos os tempos e lugares. Por isso este homem é geralmente religioso, porque a espécie de religião que conhece é apenas um vasto esquema para alivia-lo da luta vã e penosa contra os mistérios do Universo. E por isto ele é também um democrata, porque a democracia é um esquema para protegê-lo contra a exploração dos seus superiores em força e sagacidade. E é também por isto que, na miscelânia de suas reações às ideias, ele abraça invariavelmente aquelas que lhe parecem mais simples, mais familiares, mais confortáveis – que se ajustam mais prontamente às suas emoções fundamentais e lhe exigem menos agilidade, resolução ou engenhosidade intelectuais. Em suma, ele é uma besta. 17

Apesar de cético quanto à religiosidade, Mencken não

estava enganado em tecer estes ácidos, mas realistas argumentos, sobre a alienação humana frente à opção pela ignorância política. Trazendo para o contexto institucional, nota-se que os partidos políticos já não se distinguem “ideologicamente por uma esquerda ou direita”. Há coalisões, coligações e relações de clientelismo18 no cenário político que, via de regra, é mais visto em países que

17 MENCKEN, 1988, p. 117. 18 Conceito adaptado da Sociologia Política que define o perfil de situações nas quais dirigentes buscam suas hegemonias por meio de agremiar alianças por meio de “trocas de favores” utilizando recursos públicos para tal.

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adotam a democracia representativa19 como forma de governo. Acerca de desdobramentos como estes, o ilustre teólogo Claudionor de Andrade, citando Hans Küng em seu diagnóstico sobre a sociedade atual, insta que

o Ocidente está diante de um vazio de sentido, de valores e de normas. Isto não é somente um problema de indivíduos, mas também um ponto político da maior relevância. A pergunta decisiva do momento não é se o Ocidente venceu definitivamente o Leste. A pergunta decisiva é se o Ocidente conseguirá resolver os imensos problemas econômicos, sociais, ecológicos, políticos e morais que ele mesmo produziu.20

Em consonância, segue-se que diversos valores bíblicos vêm

sofrendo contínuos ataques, tanto por parte desta ocidental “tendência à indiferença”, como também de grupos que se engendram na política, intentando efetuar mudanças nas constituições de países que compõe blocos democráticos. Caberia então inferir a existência de pelo menos dois tipos de transgressão: a primeira pela omissão daqueles que foram uma vez iluminados diante da Verdade, mas persistem esconder-se na escuridão das incertezas; a segunda, de natureza relacional, ou seja, aqueles que sequer desejam conhecer a Verdade, mas preferem ignorá-la ou distorcê-la, vivendo para si mesmos!

Há também os que militam fervorosamente um antropocentrismo, discursando lemas de inclusão social, gritos de guerra contra “supostas intolerâncias”. Estes grupos criam novas formas de intolerância, pautados em uma frívola e inconsequente ideologia: novas inquisições; tentativas de recriar uma “nova idade média”, sob novas roupagens, para uma velha forma de opressão. Estas são algumas das novas variações e métodos de terrorismo cultural, quase sempre legitimadas através de partidos políticos ou

19 Definiremos singelamente por democracia representativa o campo político onde o povo elege seus representantes afim de que estes determinem as possíveis ações voltadas ao bem comum. 20 ANDRADE, 2015, pp. 20-1.

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em personalidades que se promovem às custas da adesão passiva de uma parcela da sociedade, confusa e ignorante às noções básicas de política e cidadania.

A nova ordem tende a manipular o (in) consciente coletivo, deturpando valores através de persuasivos discursos midiáticos, buscando desestabilizar valores anteriormente conquistados, ameaçando as bases da moral civil e da família, a célula mater da sociedade. Assim, manifestações dentro do campo político e religioso refletem a luta de dois blocos: de um lado os que persistem manter valores convencionais já estabelecidos; de outro lado, um grupo organizado e muito bem articulado que almeja substituir valores que predominavam, revogando e lançando-os fora, sem ao menos medir as consequências que poderão suceder.

Já dizia Max Weber 21 que o político, para ser “vocacionado”, tem que ser “demagogo”, ter um bom discurso, saber os anseios ou inquietações do povo, explorar estes departamentos, “prometendo” (sem a necessidade de cumprir, é claro) aquilo que lhes vem ao encontro de seus desejos.

A certeza que nos resta é de que a era das incertezas já ficou para trás. Novos valores tendem estrangular o que outrora foi regra de conduta! Em todo caso, nunca é demais dar espaço à prudência, buscar a razão de existir; pois, sabe-se que

somos produtos de nossa formação social, mas não prisioneiros dela. [...] Quando o bem ajustar contas com o mal, não haverá armas ou lobbies, nem políticos corruptos ou canais de televisão, que permitam que, mais uma vez, tudo continue como estava.22

3. POSSIBILITANDO DIÁLOGOS

“... em nome do Senhor falai da Sua luz.” (Cântico cristão)

21 WEBER, 2013. 22 FRESTON, 1992, pp. 19,30.

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Já foi mencionado exemplos de pessoas que se utilizaram de

passagens bíblicas visando “legitimar” suas ambições ao poder. Porém, submetendo o raciocínio a uma cosmovisão teocêntrica, percebe-se que, mesmo havendo forte inclinação humana para a dominação depredatória, Deus, na sua soberania, ainda continua interrompendo e desconstruindo artifícios maléficos, refazendo sua obra perfeita na humanidade. Permite mecanismos de dominação nas sociedades, mas os reconduz para a manutenção da lei e da ordem no mundo, refreando o ímpeto de rebelião nas massas, possibilitando ainda uma aceitável organização nas interações sociais, mesmo que isto possa soar um tanto incompreensível ou inexplicável às nossas faculdades mentais.

Todavia, muitos negam este aspecto da soberania divina, evitando qualquer autoridade por parte do governo civil. Outros ainda, equivocadamente, acreditam que os reinos da terra foram entregues a Satanás, baseando suas frágeis convicções a uma simplista interpretação contida no quarto capítulo do Evangelho de Lucas (Lc 4:5-7). Mas, caso prestassem atenção em quem proferiu as palavras (no caso, o próprio Satanás), desistiriam imediatamente em dar crédito a esta precária interpretação. Não que não há ocasiões na qual se faz necessária a desobediência civil, mas desde que pautada na consciência remetida à razão bíblica, ou quando o governo civil puser em risco ou tentar substituir a primazia dos valores bíblicos.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Wayne Grudem percebe um aspecto bom da dominação, vendo-a como algo delegado por Deus. Ressalta que “o reino de Deus avança à medida que, por amor, os indivíduos se sujeitam a outros e, de modo abnegado, colocam-se a serviço deles”23. Uma dominação desprovida de ameaças, mas incutindo responsabilidades na prática do bem comum; um poder não coercitivo, mas igual

23 GRUDEM, 2015, p. 53.

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àquele demonstrado no calvário, por Jesus: poder influente de um amor que constrange e que regenera a consciência.

Amadurecendo melhor este pensamento, Francis Schaeffer, referindo-se a ao mencionar Samuel Rutherford, que em 1644 escreveu a Lex Rex, explica que esta frase “significa que a lei é rei – frase absolutamente abaladora. Antes disso tinha sido rex lex, ou seja, o rei é lei. Em Lex Rex ele escreveu que a lei, e ninguém mais, reina. Portanto, os chefes de governo estão debaixo da lei”24.

Argumentações como as de Rutherford influenciariam, mais tarde, os principais fundamentos da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América do Norte, percebidas primeiramente pelo deísta Thomas Jefferson, que fez referência a Deus como o Legislador por excelência, através da sua Lei: a Bíblia Sagrada. Esta premissa encontra semelhança na frase proferida anteriormente pelo inglês e co-fundador dos quakers25 William Penn, no século XVII, ao dizer: “Se não formos governador por Deus, então seremos regidos por tiranos”.

Observa-se que não houve nestas exemplificações a separação entre a fé e a conduta civil por parte daqueles que construiriam os alicerces para as mudanças do mundo contemporâneo. Assim o poder, quando relacionado ao campo do “sagrado” e, de fato, divinamente ordenado, pode receber conotações políticas apropriadas e benéficas ao seu uso. Mas, quando o poder é exercido por governos insubmissos à vontade divina, fatalmente falhará em atender necessidades do povo.

Trazendo a reflexão para os dias atuais, há exemplos de sociedades às quais são predominantemente caracterizadas por sua cultura política. Um caso distinto é o Estado de Israel, que traz em seu bojo anseios de retorno para uma sociedade teocrática, sistema que rejeita separar os campos político, religioso e econômico, mas que também lembra características de um

24 SCHAEFFER, 1983, pp. 35-6. 25 Religião fundada pelo puritano inglês George Fox, mas que encontrou melhor representatividade em solo americano, principalmente na Pensylvânia, onde tinha por premissa promover a tolerância religiosa, política e racial.

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messianismo nacionalista. Cabe mencionar pelo menos duas correntes que melhor expressam essa cultura política no Estado de Israel atualmente. O sociólogo francês Jean-Paul Willaime explica que

[...] o judaísmo se traduziu, no plano político, pelo avanço dos partidos ditos religiosos nas eleições de 1988, como o Agoudat Israel, que visam o predomínio das leis religiosas sobre as leis civis nas instituições e na vida do país. Os nacionalistas religiosos, em contrapartida, militam pela “Grande Israel”, que seria o povoamento irreversível dos territórios conquistados durante a Guerra dos Seis Dias em 1967. Essa corrente é encarnada pelo Le Goush Emounim, o “bloco da fé”.26

No Oriente Médio há outras correntes, como em um dos

tipos de islamismo, os quais “tomam a forma de contrassociedades e constituem recintos sectários mais ou menos isolados com relação à sociedade abrangente. [...] Esses grupos estruturam-se em torno de um chefe religioso carismático”27. Já na América Latina, principalmente no Brasil, encontram-se movimentos ideológicos que têm por característica politizar o fiel, como no caso da Teologia da Libertação, que exerceu maior militância nos anos 70 e 80. Neste sentido, Jean-Paul Willaime ao referir-se a Teologia da Libertação, assegura ainda que ela se trata

efetivamente, não somente de uma produção teórica reunindo a tradição cristã em função da “opção preferencial pelos pobres” e de perspectivas de emancipação sociopolítica das massas populares, mas de um verdadeiro movimento social formado pelas “comunidades eclesiais de base” [...] permitindo a grupos sociais dominados converterem-se em atores ativos”.28

26 WILLAIME, 2012, p. 112. 27 Op. Cit, p. 115. 28 Op. Cit. p. 117.

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Por outro lado, há no Brasil outro movimento que apresenta características diversas daquelas propagadas pela Teologia da Libertação, a saber, o Pentecostalismo, que, contrário à Teologia da Libertação (que opta militar pelos pobres através de um discurso ideologicamente fundamentado), por outro lado “são as igrejas pentecostais que se dirigem massivamente a essa categoria". Com o pentecostalismo, passamos da “emoção pelos pobres a uma emoção dos pobres”.29

Mas haveria uma maneira de separar a fé da política? Ou poderíamos colocar da seguinte maneira: há uma maneira de separarmos a fé das obras? Para responder, Jean-Paul Willaime afirma que “não existe um modo de falar com Deus que seja totalmente neutro sob o plano político, pois toda teologia veicula certa visão do mundo social, mesmo aquelas que não explicitam claramente essa visão”.30

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Que a eloquência seja lançada aos cães, em vez de permitir que as pessoas se encaminhem para o inferno”. (Charles Haddon Spurgeon)

Este ensaio refletiu sobre interações entre fatores políticos e

bíblico-cristãos com suas interferências nalgumas sociedades, ao longo da história humana. Mesmo havendo relutância, por parte de alguns pensadores, em considerar aspectos envolvendo a fé como parte essencial do processo civilizador, torna-se injusto descartar a ideia de que, tanto a fé como a política estiveram intrinsecamente ligadas ao homem, sendo um dos elementos a constituir esses dois campos o artifício do “discurso” que, quase sempre, nasce de interpretações diversas das fontes documentárias, e que culminam no que chamamos “demagogia” ou forma de poder usada como mecanismo de persuasão para se atingir certos fins. 29 idem. 30 Op. Cit. p. 118.

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A engrenagem sempre necessitou de combustível, sendo muitas vezes alimentada por enganos que, categoricamente “espiritualizados” nos discursos, sejam nas arenas ou nas catedrais, nos púlpitos ou nos palanques, contribuíram para que indivíduos ou sociedades decidissem dar mais crédito a promessas do que às atitudes. Repete-se uma velha tendência: a de usar folhas de figueira para tapar a vergonha diante de um Deus onisciente (Gn 3:7-11). Desprezando os constructos do Criador, recorre-se a mecanismos que conduzem a métodos variados de alienação, entre os quais, o falso conceito que se tem sobre a verdadeira fonte das “leis”, pois, a cultura popular atribui à política o dever de fomenta-las. Mas, sabe-se que as leis proveem primeiramente de valores bíblicos. Mesmo antes da queda, Deus já havia concedido um breve código de leis, necessárias para a vida, “constituição que é básica para qualquer sociedade até os dias atuais”31, conforme consta em Gn 2:15-17, composta por:

a) Deveres: “E tomou o Senhor Deus o homem e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar”.

b) Direitos: “E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda árvore do jardim comerás livremente”.

c) Restrições / Proibições: “mas da árvore da ciência do bem e do mal, dela não comerás”.

d) Punições: “porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás”.

A Bíblia Sagrada afirma que, mesmo “estando” no mundo, não “pertencemos a este mundo”. Desta forma, é direito do homem tentar esquivar-se de compromissos voltados à sua participação na sociedade, incluindo a esfera política? Na obra “O Príncipe”, Maquiavel induz o leitor a aceitar a ideia de que “os fins justificam os meios”. Diante dessa premissa, pode haver no meio cristão, pessoas que se infiltram na política com a finalidade de propagar valores bíblicos, mesmo que indiretamente? Se sim, 31 Tanto o conceito como os apontamentos referentes aos “Deveres, Direitos, Restrições / Proibições e Punições” foram retirados do periódico “Lições Bíblicas – Jovens”, 3º trimestre 2015, CPAD.

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até que ponto lhes valerá a pena contribuir politicamente na vida pública, mesmo que tal iniciativa venha lhes custar antipatias, rejeições e escárnios?

O apóstolo Paulo responde a estas indagações ao apelar para César (At 25:9-12), tendo por finalidade continuar propagando valores bíblicos, cumprindo sua missão de transformar a sociedade, levando a lei de Deus ao coração dos homens, indistintamente, até mesmo às elites do poder. Além do mais, a exemplo do sistema democrático atual, no qual difere muito daquele da Grécia Antiga, caracterizado pela ideia de “sorteio”32, pode-se dizer que a atual forma de democracia é melhor compreendida como representativa ou “aristocrática”, pois, é definida como o “governo dos melhores cidadãos” e não o “governo de todos os cidadãos”.

Assim como na vida pública, onde os cidadãos elegem seus representantes para cuidar de assuntos que lhes tragam certos benefícios, atualmente ocorre algo semelhante no bojo da religião cristã, a saber, uma fé bíblica “representativa”, onde o fiel delega à instituição ou a seus líderes realizar obras às quais a própria Bíblia Sagrada lhes incumbe individualmente de realizar. Portanto, não estaria também uma maioria de cristãos inseridos na condição de “Homo Boobus”, fazendo-se desentendidos no tocante às ordens bíblicas, no tocante aos cuidados com o próximo e com a sociedade? Richard Horsley relata sobre um cidadão que tinha esperanças na transformação da sociedade por meio da mensagem do Evangelho:

Walter Rauschenbusch, acreditava que o reino de Deus proclamado por Jesus podia perfeitamente inspirar uma transformação das instituições americanas. Segundo o que ele e outros pregavam sobre o evangelho social, o reino de Deus comportava dois aspectos complementares. Por um

32 O mecanismo utilizado hoje para apresentar os candidatos aos cargos de governo é muito diferente daqueles ocorridos na antiga “ágora”, pois lá os cidadãos eram escolhidos, primeiramente, por meio de sorteio, de modo a conseguirem espaço para participarem como candidatos e, ao mesmo tempo, como eleitores, desde que fossem oficializados como cidadãos.

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lado, o reino de Deus pairava como juiz sobre o pecado social e as forças sobre-humanas opressivas, especialmente as das instituições econômicas capitalistas que criavam injustiças cada vez maiores. Por outro, o reino podia estimular o povo americano a concretizar uma ordem político-econômica justa, a potencializar a sociedade para pôr as suas instituições econômicas e políticas a serviço da realização do reino de Deus.33

Diversas referências bíblicas podem servir como exemplos

de sucesso ou fracasso político dentro de uma sociedade. Positivamente, poderíamos citar o rei do Egito com relação a José, delegando-lhe todo o poder necessário para realizar políticas públicas (Gn 41:38-44), evitando mazelas que estavam por vir, segundo a revelação que o próprio Deus havia dispensado ao monarca egípcio. Por outro lado, o rei babilônico Belsazar, desprezando Deus na sua soberania ao não reconhecer os créditos que Nabucodonossor, seu antecessor, dera aos grandes feitos e revelações realizadas através de Daniel (Dn 2:46-49; 4:36-37), não só veio perder seu reinado como também comprometeu sua corte e até mesmo sua nação, condenando-os ao opróbrio (Dn 5:22-30).

Houve tempo em que o próprio Deus encarregou-se de exercer juízo à sociedade que não havia estabelecido políticas públicas em defesa de sua lei, que foi o caso da destruição de cidades Estado como Sodoma e Gomorra (Gn 19:24-25). No seio do cristianismo contemporâneo há correntes de pensadores que divergem acerca da presença do cristão na política, como por exemplo: - os que acreditam que o cristão deva exercer sua participação na agenda política, tanto elegendo como também sendo eleitos, influenciados pelas razões bíblicas, visando defender e propagar valores éticos e morais na sociedade; - os que utilizam conceitos bíblicos na defesa de que o cristão não deve submeter-se à ordem pública na ocupação de cargos políticos; e, ainda existem 33 HORSLEY, 2004, p. 8.

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- os que, indiferentemente, não se dispõe pensar sobre dilemas envolvendo estes dois caminhos, preferindo a zona de conforto à zona de confronto.

Visando o contexto bíblico aplicado à conduta humana, das três correntes acima citadas, apenas duas delas podem fundamentar biblicamente suas posições, ficando a última desprovida de amparo, pois declara Jesus: “Eu sei o que vocês têm feito. Sei que não são nem frios nem quentes. Como gostaria que fossem uma coisa ou outra! Mas porque são apenas mornos, nem frios nem quentes, vou logo vomitá-los da minha boca” (Ap 3:15-6). Jesus ainda insta que “os covardes, os traidores, os que cometem pecados nojentos, os assassinos, os imorais, os que praticam a feitiçaria, os que adoram ídolos e todos os mentirosos, o lugar dessas pessoas é o lago onde queima o fogo e o enxofre, que é a segunda morte”. (Ap 21:8).

Trazendo mais luz sob este dilema, Paul Freston lança um “desconfortável” desafio àqueles que almejam participar das transformações sociais que se fazem necessárias. Em sua lúcida exortação assegura que

pouco adiantará a afirmação da fidelidade bíblica se as propostas de vida individual e coletiva contrariarem frontalmente o espírito de Cristo. Tudo indica que os evangélicos vão ter considerável influência sobre a história do Brasil nos próximos cinquenta anos. Mas que faremos com essa responsabilidade?34

Percebe-se a complexidade de se chegar a um resultado

coerente quanto às novas tendências da condição humana, quando são envolvidos aspectos relacionados à fé e à conduta política. Não basta somente enunciar a Bíblia aos leigos, mas, primordialmente “vivenciar” a essência do Evangelho na vida cotidiana; fazer a diferença em um tempo de indiferenças. Usando ainda a voz de Paul Freston, “dizer que “nós somos a

34 FRESTON, 1992, p. 9.

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resposta” é confundir o imperativo com o indicativo. Devemos ser a resposta, devemos ser o sal da terra (Mt 5:13); mas 80% do versículo é sobre o que acontece quando o sal perde o sabor!”35. Ele ainda prossegue exortando que,

ao invés de fetichizar a Bíblia, honrando-a como símbolo, temos que leva-la a sério nas suas duas dimensões: como livro humano, produto histórico e cultural que participa do grande princípio da encarnação [...]; e como livro divino, normativo, que exige a meditação séria e a obediência criativa.36

Resta então a indagação: sobre quais fundamentos serão

construídos os pilares de esperança em uma época caracterizada pela vacuidade de desconstruções? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENCAR, Gedeon. Protestantismo tupiniquim: hipóteses sobre a (não) contribuição evangélica à cultura brasileira. São Paulo: Arte editorial, 2005.

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35 Op. Cit. p. 6. 36 Op. Cit. p. 13.

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