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VOLTAR A VOLVER: ALGUNS COMENTÁRIOS PARA PENSAR OS GÊNEROS 1 Luís Henrique Sacchi dos Santos* Resumo O texto faz uma leitura do filme Volver, de Pedro Almodóvar (2006), inspirado por uma perspectiva feminista com aportes pós-estruturalistas. Trata-se, “em verdade”, de uma leitura “quase livre” do filme, na qual destaco alguns movimentos nele presentes. Num primeiro momento busco situar Volver na esteira de uma tradição almodovariana, qual seja, a de um cineasta “de mulheres” e de um diretor- roteirista que compõe seus filmes a partir de fragmentos inusitados. A seguir, a partir da própria ideia de distintos volveres, mostro como o filme recupera ou reapresenta uma série de “retornos” realizados por Almodóvar nesse filme, em especial a volta da atriz Carmen Maura e das mulheres como personagens principais depois de dois filmes que retrataram perspectivas “mais masculinas”. Por fim, a partir do próprio filme, de inúmeros textos e das entrevistas apresentadas junto ao DVD, enumero uma série de outras temáticas presentes no filme (solidão; morte; assassinatos; abuso sexual; incesto e ocultação de cadáver). Palavras-chave: Perspectiva feminista e pós-estrutura- lismo. Gênero. Cinema. Educação. Abstract e text does a reading of the film Volver, by Pedro Almodóvar (2006), inspired by a feminist perspective with post-struturalist contributions. It is, “in truth”, a reading “almost free” of the film, in which I detach some movements presented in it. In a first movement, I look forward to place * Professor Adjunto DEC/PPGEDU/FACED-UFRGS. Pesquisador do GEERGE. E-mail: [email protected] Educ. foco, Juiz de Fora, v. 14, n. 1, p. 61-72, mar/ago 2009

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VOLTAR A VOLVER: ALGUNS COMENTÁRIOS PARA PENSAR OS GÊNEROS1

Luís Henrique Sacchi dos Santos*

ResumoO texto faz uma leitura do fi lme Volver, de Pedro Almodóvar (2006), inspirado por uma perspectiva feminista com aportes pós-estruturalistas. Trata-se, “em verdade”, de uma leitura “quase livre” do fi lme, na qual destaco alguns movimentos nele presentes. Num primeiro momento busco situar Volver na esteira de uma tradição almodovariana, qual seja, a de um cineasta “de mulheres” e de um diretor-roteirista que compõe seus fi lmes a partir de fragmentos inusitados. A seguir, a partir da própria ideia de distintos volveres, mostro como o fi lme recupera ou reapresenta uma série de “retornos” realizados por Almodóvar nesse fi lme, em especial a volta da atriz Carmen Maura e das mulheres como personagens principais depois de dois fi lmes que retrataram perspectivas “mais masculinas”. Por fi m, a partir do próprio fi lme, de inúmeros textos e das entrevistas apresentadas junto ao DVD, enumero uma série de outras temáticas presentes no fi lme (solidão; morte; assassinatos; abuso sexual; incesto e ocultação de cadáver).

Palavras-chave: Perspectiva feminista e pós-estru tura-lismo. Gênero. Cinema. Educação.

AbstractTh e text does a reading of the fi lm Volver, by Pedro Almodóvar (2006), inspired by a feminist perspective with post-struturalist contributions. It is, “in truth”, a reading “almost free” of the fi lm, in which I detach some movements presented in it. In a fi rst movement, I look forward to place

* Professor Adjunto DEC/PPGEDU/FACED-UFRGS. Pesquisador do GEERGE. E-mail: [email protected]

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Volver as an example of Almodóvar tradition, which is, the one from a fi lm maker “of women” and from a director and a script writer, who composes his fi lms from unusual fragments. After, from the idea of diff erent volveres, I show how the fi lm recuperates and represents a series of “returns” realized by Almodóvar in this fi lm, in special the return of the actress Carmen Maura and of the women as main characters after two fi lms that revealed “more masculine” perpectives. Finally, from the fi lm itself, from several texts and from the interviews presented together with the DVD, I ennumerate a sequence of other themes presented in the fi lm (loneliness; death; murders; sexual abuse; incest and corpse occultation).

Key words: Feminist and post-struturalist perspective.Gender. Cinema. Education.

Tradição almodovariana

É preciso, sem sombra de dúvidas, situar Volver dentro daquilo que se pode chamar de “tradição almodovariana”, qual seja, a de um “cineasta de mulheres”. À exceção de Má Educa-ção e Fale com Ela, em grande medida, quase toda a fi lmografi a Almodovariana2 conhecida no Brasil, especialmente a partir de Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988), pode ser, grosso modo, classifi cada como de um cineasta que é apaixonado pela fi -gura feminina, por seus dramas, suas histórias, seus mundos. São mulheres loucas, nervosas, exuberantes, misteriosas, coloridas, sensuais, assassinas, apaixonadas. São também homens transgre-dindo as fronteiras de gênero ao tornarem-se mulheres, sempre com certo exagero (como em A lei do desejo, em que o fi lho abu-sado pelo pai vai para Marrocos e muda de sexo; Salto Alto, em que o delegado se traveste e dubla a cantora Beck Del Paramo vivida por Marisa Paredes; Tudo sobre minha mãe, em que Lola e, especialmente, Agrado despontam quase tanto quanto as demais “estrelas” presentes no fi lme; e Má Educação, em que Ignácio, depois de ser abusado pelo padre Manolo no seminário durante a sua infância, “vira” a travesti Sahara na juventude e na vida adulta).

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Almodóvar faz, sobretudo, fi lmes de mulheres fortes. Segun-do ele, tais mulheres são sua mãe, suas tias, suas vizinhas; mulheres com as quais ele conviveu na sua infância – povoada de mulheres (que fi cavam em suas casas, na região da Mancha, que se visitavam umas às outras, que lavavam roupas na beira do rio, que contavam e cantavam “coisas” da Mancha – seus primeiros contatos com a fi cção narrativa). Trata-se de uma infância povoada de mulheres e esvaziada de homens, que saíam para trabalhar em outras regiões ou, quando estavam no povoado, saíam para beber nos bares e fi ca-vam pouco em casa – uma clara divisão entre o público e o privado; embora Almodóvar refi ra que lá havia uma estrutura matriarcal na qual os homens eram os símbolos, eram as mulheres que realmente mandavam. Os homens são pura ausência e se vive apesar deles.

Para Almodóvar, Volver e Má Educação (fi lme imediata-mente anterior a esse) são tributos à sua infância (à qual ele regres-sa como adulto e constrói um fi lme a partir de memórias vividas e outras inventadas), à Mancha e à sua mãe (para Almodóvar voltar à Mancha é sempre voltar ao seio materno3), às suas tias e vizinhas, às suas irmãs (em grande medida incorporadas às personagens de Volver; uma curiosidade: toda a comida apresentada no fi lme foi preparada pelas irmãs do diretor4), bem como às suas memórias disso tudo. Má Educação, diz ele, corresponde ao lado mais pe-sado, mais sombrio, vivido depois do tempo a que ele se refere em Volver; trata-se do tempo em que fi cou longe de sua mãe e viveu no seminário. Volver, pelo contrário, (embora tenha vários elementos “pesados”, tal como explorarei a seguir) diz respeito às suas lembranças mais leves e luminosas, mais felizes desse tempo de infância na Mancha5. Nessa direção, ele diz:

ao escrever o roteiro, não sabia que fazia uma volta à minha infância, nem que falava de todas as mulheres que me rode-aram quando criança. O fi lme me proporcionou uma certa serenidade, mas também me emocionou muito. Tenho a sen-sação de ter cumprido um ciclo, algo que teria de fazer. Não sei se os fi lmes podem ter caráter curativo para quem os faz (muitas vezes são repulsivos), mas este teve para mim. Não gostaria de voltar muito mais, porque ao falar da morte me dei conta que tenho muito presente na memória a de meus pais. Apesar de fazer seis anos da morte de minha mãe e 26 da de meu pai, ainda não as superei, afi rma Almodóvar6.

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Também é preciso pensar Volver no registro de um processo de fazer fi lme que tem a marca desse diretor. Processo esse que fi ca, de certo modo, evidente, tal como uma autoreferência de seu próprio cinema, nas primeiras cenas de Má Educação. Nesse fi lme, o autor/roteirista personagem do fi lme (Enrique) coleciona fatos bizarros no-ticiados em jornais (como, por exemplo, o homem morto, congelado em cima de uma bicicleta, que continua andando por quilômetros e quilômetros) para montar suas próprias histórias7. Os fi lmes de Al-modóvar são mais ou menos assim: distintos recortes de muitas his-tórias, praticamente improváveis, frequentemente dramatizados por mulheres... Volver não foge a essa regra, do drama com “pitadas” tra-gicômicas. Assim, podemos perguntar, tomando por base as palavras da crítica Adriana Derosa, “Qué fragmento de los infi nitos mundos posibles es que decidió pintar a tinta roja, como quien escribe con el último hálito de su vida la mayor de las verdades del universo”?8

Alguns críticos consideram Volver um “fi lme menor” na tra-jetória de Almodóvar, mas também um fi lme mais maduro.

Almodóvar e também vários comentaristas dizem que o fi l-me trata de maternidade, mais do que de morte9. Jorge Mourinha, por exemplo, refere que “as mães fazem muita falta e que as fi lhas não têm outro remédio se não improvisarem-se mães”10: Agustina torna-se uma ‘mãe’ para a tia de Soledad e Raimunda; Raimun-da tem sua própria fi lha para cuidar; Soledad faz-se mãe de Irene, a mãe-fantasma; e Irene permanece mãe quando prepara os doces para as fi lhas e coloca os seus próprios nomes.

Muitos volveres

Volver também precisa ser visto na direção de muitos “vol-veres”, dentro e fora do fi lme. Fora do fi lme, como já anunciei, temos Almodóvar voltando a fazer um fi lme de mulheres e (mais) de humor, depois de Má Educação e, em grande medida, Fale com ela, no qual os personagens principais eram homens; a volta de Carmen Maura, musa do diretor na década de 1980 (atuando, por exemplo, em Pepi, Luci e las Otras chicas..., O Matador, A Lei do Desejo e Mulheres à beira de um ataque de nervos), depois de dezes-sete anos sem fi lmarem juntos; a volta de Penélope Cruz ao cine-ma espanhol depois de uma temporada (nos Estados Unidos) em papéis vistos como menores pela crítica; temos também Almodó-

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var voltando à sua infância e, em termos de sua própria fi lmogra-fi a, um retorno às “subversões iconoclastas do melodrama clássico, tal como aquelas que ele produziu em O que fi z para merecer isto? (1984) e Mulheres à beira de um ataque de nervos” (1988)11.

Dentro do fi lme temos também inúmeros “volveres”. O prin-cipal e talvez o mais óbvio deles seja a “volta” de uma mulher supos-tamente morta (Irene, mãe de Raimunda e Sole, vivida por Carmen Maura). Mas são, também, muitos outros “volveres”: a) do não se dar bem com os homens (marca da mãe e das fi lhas) – Irene diz à Sole que nenhuma das três teve sorte com os homens, que seu marido a traiu até o fi m; b) do abuso da fi lha (Paula) por parte de seu suposto pai, assim como o de Raimunda (sua mãe) por seu próprio pai, motivo dela ter saído de casa, grávida de Paula e também, presume-se, por ter parado de cantar; c) do assassinato do pai de Raimunda por parte de sua mãe (Irene) e do “acobertamento” e cumplicidade de Raimunda por parte da morte de Paco por Paula (seu suposto pai). Nesses três casos, pode-se também ler o fi lme como um “volver” a fazer a vida sem o “peso” do masculino. Raimunda, por exemplo, não lamenta, em momento algum, a morte de Paco, a sua ausência. Pelo contrá-rio, ela parece que “volta” a viver. Ela assume o restaurante (e deixa de fazer faxinas em inúmeros lugares enquanto Paco desempregado fi cava em casa sem fazer nada) e tem sucesso cozinhando. Ela “volta” a cantar, tal como cantara na infância e na juventude, e com isso en-canta a todos (isso rende também um dos momentos mais bonitos do fi lme, quando Raimunda ‘interpreta’ a música título do fi lme, Volver, cantada por Estrella Morente, jovem cantora de fl amenco). Parece que as coisas “voltarão” a fi car bem, mas o fi lme termina e fi cam só as mulheres, sozinhas.

Penso que também há no fi lme um “volver” ao pueblo (o fi ctício Alcanfor de las Infantas). Ao longo do fi lme, entretanto, isso não se confi gura exatamente em um “volver” para fi car, mas na pos-sibilidade de um “ir e vir” constante e que, por vezes, se anuncia como uma possibilidade de fi car no pueblo (como em A fl or de meu segredo), visto que nele as relações são de outra ordem – as pessoas conhecem umas às outras; os vizinhos atendem uns aos outros; a vida corre mais devagar e mesmo a morte é vivida de forma dife-rente, digamos, “mais integrada” ao próprio viver. Na Flor de meu segredo, por exemplo, volta-se ao pueblo para envelhecer e morrer... Volver é retornar, mas também reincidir – voltar ao ciclo.

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A solidão das grandes cidades e uma morte sem companhia – temáticas de fundo em Volver

Aqui será preciso fazer dois breves comentários, um sobre as vizinhas (todas as boas vizinhas do mundo), que Almodóvar homena-geia através da personagem Agustina (dedicada, que cuida de tia Paula e que planta maconha para seu próprio consumo) e outro na direção da morte. Todos devem lembrar que a primeira cena do fi lme tem iní-cio em um cemitério, onde mulheres (e somente mulheres, posto que elas vivem mais do que os homens – esse é um comentário de Sole em relação às perguntas de Paula) limpam os túmulos e colocam fl ores sob uma forte rajada de vento (os ventos presentes na Mancha, ventos “causadores de loucura”). Algumas inclusive limpam e cuidam de seus futuros túmulos (pelo que se entende, isso se constitui como uma tra-dição local).

É necessário lembrar Phillip Áries (2003), que, em seu li-vro História da Morte no Ocidente, refere como a civilização ociden-tal expurgou paulatinamente a morte para cada vez mais longe, de modo cada vez mais rápido, de forma que os velórios, anteriormen-te realizados em casa (durante dias), foram cedendo lugar, em espe-cial nos grandes centros, às cerimônias “programadas” em capelas de cemitério, ou mais recentemente nas de crematório. Também os cemitérios, antes junto às igrejas, foram, a partir dos discursos sanitaristas, sendo colocados cada vez mais afastados dos centros das cidades, de modo a manter uma maior separação entre os vivos e os mortos – talvez possamos dizer assim.

Enfi m, digo tais coisas porque elas estão presentes no fi l-me de Almodóvar. Em certa medida, é disso que ele está falando também, do quanto as cidades estão cheias e do quanto as pessoas, a despeito disso, estão cada vez mais sozinhas – os vizinhos de porta não conhecem uns aos outros –, e morre-se cada vez mais assepticamente, vela-se cada vez mais rapidamente, e o sentimen-to parece ser o de que a vida que levamos nos faz esquecer cada vez mais aceleradamente de “nossos mortos”. Praticamente não há “luto fi gurado”, quero dizer, vestido/vivido como anunciação aos outros e nós mesmos, e “precisamos” nos reintegrar novamente à “vida normal” após cada morte.

Se assistirmos à entrevista de Almodóvar, bem como a de Carmen Maura, junto ao DVD do fi lme12, podemos pensar que

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Volver é também uma crítica a esses modos de viver nas cidades e de morrer contemporaneamente – ambos solitários. Para Almodóvar, Volver fala de não morrer sozinho também, de ter uma companhia para esperar a morte e que na Mancha tem-se a impressão de que as pessoas nunca morrem porque os seus familiares os mantêm muito presentes (eles limpam os túmulos até três vezes por semana porque lá venta muito). O diretor refere que “Volver é uma homenagem aos ritos sociais que as pessoas de seu povo vivem em relação à morte e os mortos” – que nunca morrem13.

Assassinatos, abuso sexual, incesto, ocultação de cadáver ... – temáticas ainda mais profundas em Volver

Mas Volver também pode ser lido num outro nível, por ve-zes difuso, quase num segundo plano, embora não escondido. As coisas estão ali, enredando-se, montando-se em um quebra-cabeça tal como aparece naquelas primeiras cenas de Má Educação, à qual fi z referência anteriormente. Volver se passa como um fi lme qua-se leve, tragicômico, como algumas vezes os fi lmes de Almodóvar são qualifi cados, mas no “fundo”, ou num segundo plano, ele trata de questões “bastante pesadas”. Penso que Volver também pode ser pensado na mesma direção daquilo que o próprio diretor diz em relação a Fale com ela:

Se você pensar sobre a história, é uma história que lida com hospitais e mulheres em coma, um assunto que pode ser bastante assustador, mas quis lidar com isso de uma manei-ra completamente diferente. Queria que fosse uma história de amor que tivesse um tom completamente oposto do as-sunto principal que você esperaria ao lidar com um tema como esse. Não queria lidar com a dor, e não queria fazer um retrato de um hospital como o lugar onde reina a dor. (...) Estes elementos foram escolhidos a partir de coisas que eu adoro – de fi lmes que vi a outros espetáculos de dança que gostei. Mas acho que no geral é difícil discutir a origem deste fi lme porque ele é formado por várias camadas de vá-rios elementos independentes, o oposto de se pegar uma simples idéia. E foi roteirizado de uma forma que somente tomou corpo depois de um tempo, enquanto tomava notas de todos esses assuntos separadamente. Chegou num ponto que eu disse “Agora posso juntar tudo”14.

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É também como diz Sônia Maluf (2002) relativamente a Tudo sobre minha mãe: “o mais surpreendente é a naturalidade com que o escândalo e a transgressão aparecem e vão se tornando eles mesmos objetos de atração e, por que não, de identifi cação dos telespectadores” (p. 144). Assim, é surpreendente que um fi l-me que fale de abuso sexual, de assassinatos, de ocultação e de troca de “cadáveres” (afi nal, quem está morta é a mãe de Agustina no lugar de Irene) nos passe de modo tão tranquilo.

Segundo entendo, isso acontece porque as próprias persona-gens, a própria trama, não nos levam para outras direções e tudo se passa como se fosse “normal”: limpar a cozinha depois do assassinato; levar o freezer para enterrar na beira do rio; a morta voltar a viver en-tre os vivos, mesmo que entendida como uma aparição, que vem para ajudar os doentes ou para pedir que se faça algo para “libertar” sua alma. Arriscaria dizer que jamais encontraríamos isso no “cinemão” norte-americano; no mínimo teríamos a culpa se abatendo sobre as personagens, psiquiatras, e, com certeza, detetives e algumas cenas em um tribunal. Em Volver não vemos nada disso... Quando Agustina fala sobre o desaparecimento de sua mãe, que tinha um caso com o pai de Raimunda, ela refere também que não foi à polícia porque eles fariam muitas perguntas e que “roupa suja se lava em casa”.

Pelo contrário, em Volver vemos a manutenção de determi-nados segredos sobre os quais as vidas das pessoas são construídas e mantidas, e isso de modo cotidiano, familiar. E esses segredos – é claro – trazem consequências para a vida de todas elas: a solidão de Agustina, que, em sua doença, espera saber da mãe supostamente desaparecida no mesmo dia em que os pais de Raimunda morreram no incêndio; a tentativa de estupro de Paula por parte de Paco, até então visto como seu pai legítimo; o “ódio” de Raimunda por Irene, que não via o que se passava sob seus olhos – o fato de ser abusa-da pelo pai; a saída de Raimunda do pueblo, grávida de seu pai; a reclusão de Irene, condenada a viver como um animal/um fantas-ma (num purgatório), depois de ter ateado fogo à cabana em que seu marido a traía com a mãe de Agustina; a suposta interrupção na provável carreira de cantora de Raimunda; a morte de Paco por parte de Paula e assumida por Raimunda, mantida como um segre-do apenas entre as duas; a preferência dos pais por um dos fi lhos, quando Irene, por exemplo, diz que “voltou” para pedir perdão à Raimunda (sua fi lha preferida), mas também para fi car com Sole (a

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fi lha preterida); quando Irene “volta como espírito” para cuidar de Agustina nas últimas cenas do fi lme e lhe pede que não conte para ninguém que ela “voltou” para cuidar dela; entre outros segredos possíveis de serem elencados.

Volver fala sobre aquilo que Almodóvar chama de Espanha negra, isto é, de uma porção da Espanha subdesenvolvida, rural, onde o estupro e o incesto são vistos como mais presentes. Ele tam-bém diz que tentou fazer um fi lme otimista, luminoso, cheio de vida, em que as mulheres sobrevivem com dor, mas que também têm uma enorme força apesar desses “acontecimentos terríveis”15. Ele igualmente destaca que não pretendeu dizer que todos os ho-mens são perversos como nesse fi lme. Entretanto, caso assumamos que os gêneros se constituem de modo relacional, teremos, neces-sariamente, que contrapor o diretor e dizer que, sim, quando ele fala das mulheres de uma dada forma ele está também falando dos homens (vide MEYER, 2003).

Não é possível falar de tudo em Volver, então é preciso ainda:

a) falar dos imponderáveis, isto é, dos cheiros e da presença dos mortos entre os vivos. Tanto Raimunda quanto Sole sentem o cheiro da mãe, nos ambientes, nas roupas, no “cheiro de pum”. Volver, como refere Penélope Cruz16, trata também da vontade que todos temos de que nossos mortos queridos voltem a nos fazer compa-nhia. É claro, isso se torna cômico nas mãos de Almodóvar quando, por exemplo, Irene se faz passar por uma russa, resgatada na rua, como uma sem-teto, por Sole. Ou quando Sole vê Irene, mas não se espanta com isso, acreditando que ela voltou porque quer que se faça algo que não pôde ser feito em vida por ela;

b) fazer referências à Mancha, ao rio17, onde Raimunda enterra Paco (que também é o local onde se conheceram na ju-ventude) e grava sua lápide numa árvore. À paisagem monótona como cenário, com os cata-ventos girando ao início e ao fi nal do fi lme, lembrando-nos dos ventos que assolam a região;

c) dizer que há quem diga que depois que foi a Madrid, ou à Espanha, de um modo geral, que não estranha tanto as persona-

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gens de Almodóvar porque elas “existem mesmo”, andando pelas ruas. De qualquer modo, é preciso dizer que Volver traz, de modo mais elaborado, mas ainda presente, aquilo que Adriana Calcanhoto denomina de “cores de Almodóvar”18. Raimunda, sobretudo, usa várias cores e rende, de algum modo, homenagem à Sofi a Loren e Ana Magnani (embora seu traseiro seja postiço)19 – aliás, Almodó-var faz isso recorrentemente em seus fi lmes, como em Tudo sobre minha mãe, em que a peça encenada é um Bonde chamado desejo, o fi lme é All about Eve, com Bette Davis, e a cena de Manoela, num táxi, circulando em um trecho obscuro na noite de Barcelona rende homenagem a Fellini.

d) destacar as recorrências nos fi lmes de Almodóvar – os programas de televisão, como aquele em que Agustina vai (que se chama “onde quer que esteja”) para procurar por sua mãe (uma hip-pie desaparecida), aos moldes daqueles que passam na televisão bra-sileira à tarde (tipo Márcia Goldsmith); também o segredo quanto à paternidade de Paula em Volver assim como a de Estevão em Tudo sobre minha mãe; a presença de mulheres, em alguma das cenas, fazendo xixi, entre tantas outras;

e) fazer referência às três imagens de Raimunda com a faca na mão ao longo do fi lme. Primeiro lavando-a depois de ter cozi-nhado, depois limpando-a do sangue de Paco, e, por fi m, no restau-rante cortando (com a mesma faca) os pimentões vermelhos para a festa de despedida da equipe de produção de um fi lme. Há também que destacar os olhos d’água de Penélope Cruz, no papel que alguns classifi caram como “o de uma vida”20;

Por fi m, talvez devamos dizer que, a cada novo fi lme deste homem das terras de Dom Quixote, ele produz um cinema de autor, com sua marca e que chega a todos21.

Notas

1 Este texto foi apresentado como meus comentários acerca do fi lme Volver no Ciclo de Cinema promovido pelo Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero (GEERGE), em 29 de novembro de 2007, o qual contou, também, com o profes-sor Fernando Seff ner como comentarista.

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2 2006 - Volver (Volver, Esp.); 2004 - A Má Educação (La Mala Educación, Esp.); 2002 - Fale com Ela (Hable con Ella, Esp., Fra.); 1999 - Tudo Sobre Minha Mãe (Todo sobre mi madre, Esp., Fra.); 1997 - Carne Trêmula (Carne trémula, Esp., Fra.); 1995 - A Flor do Meu Segredo (La fl or de mi secreto, Esp., Fra.); 1993 - Kika (Kika, Esp., Fra.); 1991 - De Salto Alto (Tacones lejanos, Esp., Fra.); 1990 - Ata-me! (¡Átame!, Esp.); 1988 - Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (Mu-jeres al borde de un ataque de nervios, Esp.); 1987 - A Lei do Desejo (La Ley del deseo, Esp.); 1986 - Matador (Matador, Esp.); 1985 - Tráiler para amantes de lo prohibido (media metragem para o programa da TVE c); 1984 - ¿Qué he hecho yo para merecer esto?; 1983 - Maus Hábitos (Entre tinieblas, Esp.); 1982 - Labirinto de Paixões (Laberinto de pasiones, Esp.); 1980 - Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón; 1978 - Folle... folle... fólleme Tim!; 1978 – Salomé; 1977 - Sexo va, sexo viene; 1976 - Muerte en la carretera; 1976 - Sea caritativo; 1975 – Blancor; 1975 - La Caída de Sódoma; 1975 – Homenaje; 1975 - El Sueño, o la estrella; 1974 - Dos putas, o historia de amor que termina en boda; 1974 - Film político (vide http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Almod%C3%B3var, acessado em 21/11/2007).

3 Vide http://clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/almodovar/volverlapelicula/enpalabras02.htm, acessado em 14/11/2007.

4 Vide http://clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/almodovar/volverlapelicula/enpalabras05.htm, acessado em 14/11/2007.

5 Vide entrevista de Pedro Almodóvar no DVD Volver (Videolar, 2006).6 Vide http://www.allmodovar.com.br/news/news.htm, acessado em 14/11/2007.7 Esse mesmo processo é referido pelo diretor em relação ao fi lme Fale com Ela: “... é

um roteiro muito complexo e com tantos elementos que não vêm somente de uma idéia, mas de várias. Neste caso eu quis falar sobre algo doloroso o bastante para fazer um homem chorar. Por outro lado, eu tinha tomado notas sobre diferentes casos que li na imprensa sobre mulheres em coma. Em um deles, uma mulher tinha sido estuprada por um assistente num hospital, e em outro caso uma mulher acorda depois de passar 16 anos em coma. Então decidi juntar esses elementos. ‘Fale com Ela’ se tornou este argumento” (Vide http://www.zetafi lmes.com.br/in-terview/pedroalmodovar.asp?pag=pedroalmodovar, acessado em 15/09/2007). As-sim como também em relação à escolha da atriz Lola Dueñas. Ao que parece, antes de fazer o teste para o fi lme Fale com ela (primeiro que fez com o diretor antes de viver Soledad em Volver), a atriz foi ao povoado manchego em que vivia a família do diretor, limpou a lápide de sua mãe e pediu à sua antepassada que a ajudasse a ser escolhida para o elenco. Almodóvar não soube de tal fato por parte da atriz, mas certamente teria gostado de saber, porque, no dia seguinte, a primeira linha da primeira página do roteiro dizia: “Seqüência 0. Cemitério manchego. Raimunda e Sole limpam a lápide.” (Vide http://www.allmodovar.com.br/news/news.htm, acessado em 14/11/2007.

8 Vide http://www.noticiasyprotagonistas.com/es/464/cultura/1212/, acessado em 20/11/2007.

9 Vide http://www.noticiasyprotagonistas.com/es/464/cultura/1212/, acessado em 20/11/2007.

10 Vide http://cinecartaz.publico.clix.pt/criticas.asp?id=156943&Crid=49&c=3816, acessado em 19/11/2007.

11 Vide http://cinecartaz.publico.clix.pt/criticas.asp?id=156943&Crid=49&c=3816, acessado em 19/11/2007.

12 Vide entrevista de Pedro Almodóvar no DVD Volver (Videolar, 2006).13 Vide http://clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/almodovar/volverlapelicu-

la/enpalabras02.htm, acessado em 14/11/2007.14 Vide http://www.zetafi lmes.com.br/interview/pedroalmodovar.asp?pag=pedroalmodovar,

acessado em 15/09/2007.

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Luís Henrique Sacchi dos Santos

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 14, n. 1, p. 61-72, mar/ago 2009

15 Vide entrevista de Pedro Almodóvar no DVD Volver (Videolar, 2006).16 Vide entrevista de Penélope Cruz no DVD Volver (Videolar, 2006).17 Vide http://clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/almodovar/volverlapelicula/

enpalabras03.htm, acessado em 14/11/2007.18 Refi ro-me à música Esquadros, de Adriana Calcanhoto – CD Senhas. Sony Mu-

sic, 1992.19 Vide http://www.noticiasyprotagonistas.com/es/464/cultura/1212/, acessado em

20/11/2007.20 Vide http://www.rascunho.net/critica.asp?id=980, acesso em 27/11/2007.21 Vide http://www.rascunho.net/critica.asp?id=980, acesso em 27/11/2007.

Referências:

ÁRIES, Phillippe. História da morte no Ocidente - da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

MALUF, Sônia Weidner. Corporalidade e desejo: Tudo sobre minha mãe e o gênero na margem. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 143-153, 2002.

MEYER, Dagmar E. Gênero e Educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira Lopes; NECKEL, Jane Felipe; GOELLNER, Silvana Vilodre (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade – um debate contemporâneo em educação. Petrópolis: Vozes, p. 9-27, 2003.

Recebido em: fevereiro 2009Aceito em: março 2009