art. história oral - por thompson

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História oral e contemporaneidade* Paul Thompson** Tradução de Andréa Zhouri e Lígia Maria Leite Pereira*** ARTIGOS NO LIMIAR DE UM NOVO SÉCULO, qual poderia ser nossa visão das poten- cialidades futuras da história oral? Hoje eu gostaria de oferecer, a par- tir de minhas próprias experiências de trabalho com história oral ao longo de trinta anos, algumas respostas mais amplas para esse desafio. A formulação de uma questão como esta imediatamente provoca uma segunda pergunta, qual seja, o que entendemos por “história oral”? Devo dizer, desde logo, que tenho forte preferência por uma definição mais ampla: entendo por “história oral” a interpretação da história e das mutáveis sociedades e culturas através da escuta das pes- soas e do registro de suas lembranças e experiências. Não creio que se possa avançar muito tentando definir história oral de modo estreito, * Este texto resulta originalmente de uma palestra realizada na Universidade Fede- ral de Minas Gerais, em Belo Horizonte, a 29 de agosto de 2000. Agradeço parti- cularmente a Andréa Zhouri – com quem já havia trabalhado anteriormente na Universidade de Essex, na Inglaterra – e a Lígia Maria Leite Pereira, professoras da UFMG, pela organização desse evento e também pela tradução de meu texto. ** Professor de História Social da Universidade de Essex, Inglaterra. *** Professoras da Universidade Federal de Minas Gerais.

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História Oral

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  • Histria oral e contemporaneidade*

    Paul Thompson**

    Traduo de Andra Zhourie Lgia Maria Leite Pereira***

    ARTIGOS

    NO LIMIAR DE UM NOVO SCULO, qual poderia ser nossa viso das poten-cialidades futuras da histria oral? Hoje eu gostaria de oferecer, a par-tir de minhas prprias experincias de trabalho com histria oral aolongo de trinta anos, algumas respostas mais amplas para esse desafio.

    A formulao de uma questo como esta imediatamente provocauma segunda pergunta, qual seja, o que entendemos por histriaoral? Devo dizer, desde logo, que tenho forte preferncia por umadefinio mais ampla: entendo por histria oral a interpretao dahistria e das mutveis sociedades e culturas atravs da escuta das pes-soas e do registro de suas lembranas e experincias. No creio que sepossa avanar muito tentando definir histria oral de modo estreito,

    * Este texto resulta originalmente de uma palestra realizada na Universidade Fede-ral de Minas Gerais, em Belo Horizonte, a 29 de agosto de 2000. Agradeo parti-cularmente a Andra Zhouri com quem j havia trabalhado anteriormente naUniversidade de Essex, na Inglaterra e a Lgia Maria Leite Pereira, professoras daUFMG, pela organizao desse evento e tambm pela traduo de meu texto.

    ** Professor de Histria Social da Universidade de Essex, Inglaterra.

    *** Professoras da Universidade Federal de Minas Gerais.

    AlunoHighlight

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    como um processo de habilidades com regras fixas, ou como uma sub-disciplina separada.

    Primeiramente, ela um mtodo que sempre foi essencialmenteinterdisciplinar, um caminho cruzado entre socilogos, antroplogos,historiadores, estudantes de literatura e cultura, e assim por diante. Defato, ao longo de minha vida de pesquisador, sempre observei comodeterminadas disciplinas podem ser transformadas por novos modosde pesquisa, e vejo como uma fora crucial da histria oral que ela per-manea como uma forma fundamental de interao humana que trans-cende essas fronteiras disciplinares.

    Meu prprio trabalho com histria oral surgiu desse contextointerdisciplinar, pois tive uma formao de historiador social e, em1964, fui ensinar no Departamento de Sociologia da Universidade deEssex. Foram meus colegas socilogos de l que, quando fui encarre-gado de escrever a histria social da Gr-Bretanha nas duas primeirasdcadas do sculo vinte o que resultou no livro The Edwardians (1975) primeiro me encorajaram a entrevistar homens e mulheres que vive-ram naquele perodo. Muito do mtodo que utilizei, inclusive o uso deuma amostra por cota e um guia de entrevista extensa, veio da influn-cia sociolgica. Por outro lado, no estgio em que eu via esse mtodo era mtodo ento, pois nunca tnhamos ouvido o termo histriaoral , como o uso de entrevistas para fazer histria social, meu inte-resse era antes no passado dos entrevistados que em sua vida mais re-cente. A conseqncia foi que nenhum dos 444 homens e mulheres queentrevistamos foram perguntados sobre suas experincias depois de1920, uma omisso que torna seus depoimentos menos valiosos do quepoderiam ter sido, tanto histrica quanto sociologicamente, o que emretrospecto, lamento muito.

    Trabalhar no contexto da sociologia, e particularmente a influn-cia de colegas socilogos como Daniel Bertaux, conduziram-me a umaabordagem mais ampla, que funde o interesse pelo passado e pelo pre-sente por meio do uso de uma nica entrevista de histria de vida, oude grupos intergeracionais de entrevistas realizadas com determinadasfamlias. Dois de meus livros mais recentes que exemplificam essaabordagem so Pathways to Social Class (1997) e Growing up in Step-families (1997). Eu deveria enfatizar que estes estudos so ao mesmotempo histricos e sociolgicos. Com relao ao livro sobre famlias de

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    enteados (stepfamilies), gravamos entrevistas de histria de vida com 50homens e mulheres, todos nascidos em 1958, e tendo vivido o novo ca-samento de um dos pais na idade de 16 anos. Eles foram escolhidos apartir de uma pesquisa nacional oficial, de forma que tinham sido en-trevistados, em intervalos, durante suas vidas inteiras. Mas nunca ti-nham sido entrevistados em profundidade. E embora estivessem ape-nas na casa dos trinta anos quando gravamos as entrevistas, foi muitoespantoso como aquelas infncias ainda bastante recentes claramentepertenciam a uma era j extinta por exemplo, de pouca droga, plenoemprego, divrcios raros o que j os tornava histricos.

    Vejo tambm laos muito estreitos entre o trabalho de histriaoral e a antropologia. Existe, naturalmente, uma longa e distinta tradi-o do trabalho com histria de vida na antropologia nas Amricas,incluindo clssicos como Pedro Martinez, de Oscar Lewis, ou Worker inthe Cane, de Sidney Mintz. Embora seja de se lamentar o fato de queessas entrevistas nem sempre tenham sido gravadas, e tambm queLewis tenha sido atacado por suas idias simplistas sobre a cultura dapobreza, esses livros foram incrivelmente poderosos em transmitir aexperincia de outras culturas para amplas audincias no ocidente. Poroutro lado, no meu prprio trabalho fui influenciado pela antropolo-gia, tanto na interpretao quando no mtodo. Assim, tornei-me cres-centemente interessado no poder do mito na formao de nossas vi-das dirias e nas influncias transgeracionais no interior das famlias(The Myths We Live By, 1990, e Between Generations, 1993). Usei tambm ao lado de entrevistas gravadas abordagens antropolgicas, taiscomo a observao participante, em Living the Fishing e no meu atualtrabalho sobre as famlias jamaicanas transnacionais: saindo nos barcosde pesca em busca da cavala, sentando no caf do porto conversandocom velhos capites do mar aposentados, ou vivendo com uma famlianum vilarejo rural jamaicano, participando de um velrio mas sem-pre guardando os detalhes chave em mente para anotar em meu cader-no de campo. Eu acredito que essa combinao interdisciplinar de m-todos representa o maior potencial para a pesquisa do futuro.

    H tambm importantes conexes entre histria oral e o trabalhosocial ou em programas de desenvolvimento. A equipe de pesquisa deGrowing up in Stepfamilies era multidisciplinar: eu, como historiador so-cial e socilogo, dois terapeutas de famlia e um psiquiatra. Queramos

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    que o livro fosse no apenas uma interpretao retrospectiva, como queoferecesse tambm sugestes prticas para futuros pais e crianas en-trando na vida familiar como padrastos e enteados. De modo geral,acredito que os historiadores orais podem ganhar muito na interpreta-o das histrias de vida que registram se forem sensveis s questespsicolgicas. A esse respeito, se claro que existem importantes insightsa partir da psicanlise sobre memria e represso, sexualidade e, es-pecialmente afetividade , na prtica eles so geralmente muito difceisde se articularem evidncia da histria oral, que lida antes com aquiloque lembrado do que com o que reprimido, e com a vida na infn-cia e na fase adulta mais que com a infncia propriamente dita. Por es-sas razes, freqentemente mais fcil retirarmos a evidncia da pes-quisa psiquitrica sistemtica, tal como fez Michael Rutter ou GeorgeBrown, ou de teorias e insights prticos de terapeutas de famlia, que in-terpretam a famlia como sistemas estruturais entrelaados, simultanea-mente emocionais e sociais.

    Muitas vezes surpreendo-me pela resistncia, particularmente dossocilogos, a essa dimenso psicolgica. Muito recentemente, estivediscutindo com uma amiga brasileira sua pesquisa sobre o turismo se-xual. Elementos cruciais na situao so obviamente a desigualdadeeconmica, a pobreza das mulheres brasileiras locais e a riqueza dosturistas visitantes, e as imagens quase contrrias que tm um do outro:os turistas imaginando as mulheres brasileiras como altamente sexuais,tropicais, enquanto as mulheres achando que os homens so frios epouco exigentes sexualmente. Mas enquanto essas presses estruturaiscompem o contexto para o turismo sexual, elas no explicam porquecertas mulheres se tornam prostitutas e outras no. Poderamos suporque outros fatores psicolgicos estejam envolvidos, tais como o aban-dono na infncia, uma me distante e fria ou o abuso sexual por partedo pai ou av. Creio que tanto as perspectivas sociais quanto as psico-lgicas so igualmente relevantes para a interpretao.

    Na Gr-Bretanha, em termos de trabalho social, o desenvolvi-mento mais importante da histria oral desde os anos setenta tem sidoa terapia da reminiscncia. Esta se originou de uma conseqncia aci-dental observada em nossas primeiras entrevistas: muitas vezes umapessoa idosa que estava doente, sofrendo ou parecendo triste, depoisda entrevista tinha ficado, conforme soubemos por relatos posteriores

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    de um parente, fisicamente melhor e mais alegre. O trabalho de remi-niscncia foi desenvolvido na Gr-Bretanha principalmente atravs daliderana de Joanna Bornat, que estudou comigo em Essex nos anossetenta. Centra-se nas discusses em grupo de experincias de vidacompartilhadas, que geralmente so estimuladas por uma combinaode fotografias antigas, msica e memrias gravadas dos perodos ante-riores da vida dos participantes. Descobriu-se que para muitas pessoasidosas, e particularmente para aqueles que se encontram isolados oudeprimidos, at mesmo a ponto de terem perdido a fala ou se tornadomudos, esses grupos de reminiscncia podem constituir uma virada vi-tal e reacender um interesse ativo na vida e nas relaes sociais com osoutros, e por essa razo o trabalho de reminiscncia tornou-se ampla-mente utilizado por aqueles que realizam trabalhos sociais e em hospitais.

    Quanto ao trabalho na rea de desenvolvimento, como HugoSlim e eu discutimos em Listening for a Change (1993), a necessidade departirmos da experincia de histria de vida do povo local, prsperoou pobre, homens ou mulheres, crucial se quisermos ter alguma es-perana de termos programas de ajuda apropriados e planejados comsucesso1. Assim, por exemplo, um programa de ajuda para a indstriade pesca em Kerala concentrou-se inteiramente no financiamento debarcos maiores, porque essa foi a demanda dos pescadores. Mas oshomens eram apenas uma parte da indstria: o processamento do peixe eo mercado eram inteiramente conduzidos pelas mulheres das mesmasfamlias. A escuta subseqente de suas histrias trouxe tambm o reco-nhecimento de que havia igual necessidade de investimento em acomo-daes e equipamento para a limpeza, preservao e venda de peixe.

    Em segundo lugar, creio que a melhor pesquisa de histria de vidaabrange tanto a compreenso e a interpretao das vidas individuais,quanto a anlise das sociedades mais amplas. Em outras palavras, elaune, ao mesmo tempo, a evidncia da pesquisa qualitativa e quantitati-va. Minha prpria prtica tem sido esta: por exemplo, nossas step-families foram retiradas de uma amostra nacional, enquanto que para

    1 Por trabalho na rea de desenvolvimento, o autor refere-se aos estudos sobrepobreza no terceiro mundo e aos programas de ajuda bilaterais ou multilateraisoferecidos pelos pases do primeiro mundo aos pases do terceiro (N.T.).

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    The Edwardians construmos nossa prpria amostra nacional por cota.Mas muitos pesquisadores sociais concentram-se exclusivamente em umaou outra. Assim, por um lado, existem pesquisadores estatsticos usan-do surveys nacionais, que podem nunca ter realizado um trabalho decampo com entrevista em vinte anos; por outro, pesquisadores qualita-tivos envolvidos com uma dzia de preciosas entrevistas que eles pr-prios realizaram, incapazes de tirar quaisquer concluses provveis, eportanto, levados a se restringir e realizar anlises puramente narrati-vas, ou a uma reflexo pessoal sobre a relao de entrevista. A histriaoral que dispensa ateno amostragem, ou melhor, que est vinculada aamostras de survey mais amplas, tem um importante potencial para preen-cher esse hiato, e assim fazendo, fortalecer ambos os tipos de pesquisa.

    Obviamente, existem limites definidos para o que podemos apren-der s com as estatsticas. Migrao, por exemplo, uma questo degrande importncia para o Brasil, e mesmo globalmente. Temos nume-rosas estatsticas sobre de onde as pessoas vm, a proporo de ho-mens e mulheres, seus salrios relativos, etc. (Mesmo essas estatsticasoficiais podem ter severas limitaes: por exemplo, nos Estados Uni-dos estima-se que pode existir o dobro dos indianos ocidentais em re-lao aos que entraram legalmente, e as estimativas para os mexicanosso ainda mais duvidosas). Mas a informao que obtemos s a partirdas estatsticas no pode explicar porque as pessoas de algumas cultu-ras migram freqentemente e outras no. Para isso, os testemunhosnarrativos so essenciais. Por exemplo, na Inglaterra, algo como 90%dos restaurantes indianos so dirigidos por famlias originrias dapequenssima cidade de Sylhet, em Bangladesh, no delta do Ganges.A partir de suas histrias de vida pudemos descobrir que essas pesso-as, tradicionalmente peritas em navegar na vasta rede de canais dos riose vrzeas sazonais, tornaram-se marinheiros com a marinha mercan-te britnica nos anos 1920-1940. Alguns se fixaram nos portos brit-nicos, e uns poucos montaram restaurantes para servir a suas prpriascomunidades nascentes. Seu sucesso desencadeou a cadeia dramticade migrao na ltima parte do sculo. A partir das estatsticas pode-seestimar o nmero das famlias de Bangladesh, se homens e mulherestm trabalho remunerado, e mesmo sua renda e pobreza relativa. Mas,sem relatos em profundidade, impossvel compreender porque eles,mais do que outros vizinhos e parentes, foram para a Inglaterra; como

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    experimentaram a mudana entre duas culturas totalmente diferentes;o que significa ser uma mulher de Bangladesh coberta pelo vu nas ruasde um pas ocidental altamente sexualizado; quais so suas esperanase aspiraes para o futuro. A histria oral pode nos contar isso, no ssobre esses grupos, como tambm sobre uma interminvel gama degrupos migrantes, no Brasil ou em qualquer lugar do mundo.

    Um segundo exemplo da fora da combinao de ambos os tiposde evidncia a dinmica da mudana demogrfica. A maioria dos pa-ses no mundo sofre da ansiedade, seja como em muitos da Europa de estagnao de sua populao e medo de seu declnio, seja, maiscomumente, dos rpidos nveis de crescimento que ameaam conden-los pobreza eterna. As tentativas governamentais de influenciar astendncias da populao raramente tiveram um impacto claro. Porexemplo, tanto os fascistas italianos quanto os comunistas russos fize-ram repetidas tentativas de aumentar a taxa de nascimento em seus pa-ses, mas foram totalmente ineficazes. Mais uma vez, inmeras estats-ticas sobre esse tpico esto h muito disponveis. Mas as questes queelas colocaram foram baseadas nas suposies de senso comum doshomens de classe mdia. Nos anos 1970, Diana Gittins conduziu umapesquisa de histria oral como parte de um mestrado em Essex, sobrea transmisso de conhecimento de tcnicas de controle de nascimentoentre mulheres da classe trabalhadora. At ento supunha-se que o co-nhecimento de controle de fertilidade era detido, primeiramente, pelasclasses mdias educadas e, por meio delas, difundido para o restante dapopulao. A partir de suas vinte primeiras entrevistas, entretanto,Gittins descobriu que as mulheres da classe trabalhadora mais prxi-mas das classes mdias, tais como as empregadas domsticas, de for-ma alguma adquiriam esse conhecimento atravs delas; e que as maisinformadas eram as mulheres que trabalhavam juntas em fbricas e es-critrios, e que trocavam informao entre si completamente indepen-dentes da burguesia.

    Houve, portanto, mais do que uma corrente de influncia de clas-se social na reduo do tamanho da famlia na Gr-Bretanha, entre ofinal do sculo XIX e meados do sculo XX. Em suma, a importnciada cultura burguesa nesta transformao tinha sido grosseiramentesuperestimada. Havia tambm a suposio de que os agentes cruciaisna introduo da contracepo eram os homens. Isso se refletiu nas

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    prprias estatsticas, que davam os nveis de fertilidade s pelas ocupa-es dos maridos. Com a hiptese sugerida por suas primeiras entre-vistas de histria oral, Gittins pde analisar novamente as estatsticaspara seu livro Fair Sex, e provar que para o tamanho da famlia da clas-se trabalhadora, a ocupao das mulheres era to crucial quanto a doshomens.

    De uma outra perspectiva, como historiadores orais, nunca deve-ramos ficar satisfeitos com abordagens aleatrias para escolher aque-les que iremos ouvir, pois isso enfraquece seriamente as concluses quepodemos tirar de nossas entrevistas. Em todo projeto precisamos darateno especial formulao de estratgias apropriadas de amos-tragem. Existem, claro, muitos tipos diferentes de amostragem pos-sveis. Para criar uma amostra plenamente representativa, deveramosretirar uma sub-amostra de um survey existente, ou produzir uma novaamostra aleatria ou por cota, local ou nacional. Outra alternativa, es-pecialmente para interpretar a mudana social, tomar uma amostra defamlias, e entrevistar duas ou mais geraes na mesma famlia. Oupodemos partir para as abordagens mais flexveis, tais como amos-tragem estratgica ou intencional, em que o plano de amostragem de-senvolve-se em resposta aos achados das primeiras entrevistas. Proje-tos diferentes, com diferentes objetivos e dificuldades demandamdiferentes solues. O ponto chave que os historiadores orais deveri-am sempre pensar sobre as implicaes quantitativas de sua pesquisa,e ter uma estratgia de amostragem que se adapte a seus propsitos: eassim visar a um poder explanatrio que ao mesmo tempo qualitati-vo e quantitativo.

    Em termos de temas, quais so as foras e potencialidades especiais dotrabalho de pesquisa com histria oral? Quero enfatizar quatro: vozesocultas, esferas ocultas, tradies orais, e conexes atravs das vidas.

    Primeiro, vozes ocultas. De fato, todo homem e toda mulher tmuma histria de vida para contar que de interesse histrico e social, emuito podemos compreender a partir dos poderosos e privilegiados proprietrios de terra, advogados, padres, empresrios, banqueiros, etc.Mas a histria oral tem um poder nico de nos dar acesso s experinciasdaqueles que vivem s margens do poder, e cujas vozes esto ocultasporque suas vidas so muito menos provveis de serem documentadas

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    nos arquivos. Essas vozes ocultas so acima de tudo de mulheres e por isso que a histria oral tem sido to fundamental para a criao dahistria das mulheres; mas existem muitas outras, tais como os traba-lhadores que no esto organizados em sindicatos, os muito pobres, osdeficientes, os sem-teto ou grupos marginalizados. No Brasil isso in-clui particularmente os povos indgenas, as comunidades rurais de ex-escravos que viviam nos quilombos e, acima de tudo, as famlias das fa-velas das grandes cidades.

    Em segundo lugar, as esferas ocultas: os aspectos da vida da maio-ria das pessoas que raramente so bem representados nos arquivos his-tricos. Talvez a esfera mais importante de todas seja a das relaes fa-miliares, incluindo as diferentes experincias da infncia em todos osestratos sociais, dos privilegiados com serviais domsticos at crian-as de rua das cidades. Mas h tambm um descuido por parte doshistoriadores orais e tambm pelos outros das experincias de enve-lhecimento. A velhice uma experincia surpreendentemente oculta-da. freqentemente concebida como uma fase de calma retiradaou declnio, mas como descobri a partir das entrevistas para meu li-vro I Dont Feel Old (1990), , ao contrrio, um perodo muito desafia-dor de mudana radical, quando as pessoas tm que se respaldar criati-vamente em suas experincias de vida anteriores para combater adepresso e a doena. Foi surpreendente como alguns dos mais vigo-rosos se lanaram em novos hobbies, a exemplo de uma arranjadora deflores, que via essa nova atividade como um elo de ligao com seu paiartista; ou os que se casaram novamente e estavam vivendo suas vidasdanando e amando.

    Outra esfera oculta a do crime, da violncia e das drogas. O tra-balho contemporneo sobre isso difcil e muitas vezes perigoso, mastem sido um dos principais temas das histrias de vida da escola deChicago. tambm possvel entrevistar ex-criminosos mais idosos; etm surgido muitos livros importantes baseados em depoimentos dehomens que ainda esto na priso.

    Uma terceira esfera oculta a cultura informal de trabalho: desdea fbrica de automveis at a plantao e usina de acar. Em meu tra-balho sobre uma fbrica inglesa de automveis nos anos oitenta, fiqueisurpreso ao constatar at que ponto os trabalhadores eram capazes demanter uma cultura secreta no trabalho que seus supervisores nunca

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    compreenderam: jogando xadrez, lendo, caando coelhos nas linhas dotrem, promovendo festas de aniversrio e festivais de Natal. No Natal,eles pilhavam sobras de peas dos carros para criarem grandes sistemasgiratrios de luzes faiscantes nas linhas de montagem dos carros umjogo que eu conclu que tinha tambm a inteno de mostrar que mes-mo condenados rotina do trabalho na linha de montagem, ainda ti-nham habilidades de homens realmente especializados.

    Mais recentemente, em minhas entrevistas gravadas com a elitefinanceira do Centro Financeiro de Londres para City Lives (1996), des-cobri que jogos igualmente surpreendentes tinham sido comuns pelomenos at fins dos anos setenta, entre os financistas na City of London.Na Bolsa de Valores, por exemplo, eram freqentes os incidentes dejogar dardos de papel uns nos outros, ou atear fogo nos papis de tra-balho uns dos outros, assim como jogos verbais, gritos e vaias. Quasetodos os corretores tinham sido educados em internatos masculinos, ecomo adultos continuavam a brincar no mesmo estilo que faziam naescola. A atmosfera de clube s foi quebrada, e maneiras mais sriastornaram-se norma, quando foram forados a admitir mulheres.

    Outro lado desse mundo financeiro foi recentemente estudadopor Junko Sakai, que acabou de terminar sua pesquisa em Essex sobreos banqueiros japoneses em Londres. Seu estudo fascinante. Ela ob-servou que os membros do staff japons do sexo masculino e os ingle-ses sustentavam culturas de trabalho completamente separadas. Excep-cionalmente, alguns japoneses foram influenciados pela insistnciainglesa em ir para casa pontualmente s 17:30 hs, e tambm comea-ram a deixar o escritrio mas eles retornavam secretamente uma horamais tarde. Em geral, contudo, os ingleses e os japoneses achavam acomunicao direta extremamente difcil, resultando em que o traba-lho dos bancos dependia inteiramente do papel de ponte desempenha-do pelas mulheres japonesas, bancrias que tinham sido contratadas emLondres e que, em sua maior parte, tinham escolhido emigrar para aInglaterra e se casar com ingleses a fim de escapar s restries sociaisenfrentadas pelas mulheres no Japo. A dividida cultura de trabalhofornece uma explicao para o tremendo fracasso desses bancos japo-neses em prosperar no contexto ocidental.

    Em terceiro lugar, existe a esfera dos mitos e das tradies orais. Mi-tos e tradies podem ser vistos de muitos ngulos diferentes: como

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    instncias da constituio social da memria, como folclore, como defor-maes da verdade histrica, como invenes da tradio, etc. Paramim, eles so mais valiosos quando diretamente relacionados experin-cia de vida contempornea. Tanto na Amrica do Norte quanto naAmrica do Sul, as tradies orais tornaram-se uma forma chave deevidncia nas lutas pelos direitos da terra pelos amerndios e tambmpelos negros livres dos quilombos. O meticuloso estudo oral de HughBrodys em Maps and Dreams, sobre os territrios de caa de um grupode ndios canadenses, exemplar desse trabalho. E como Raphael Samuele eu argumentamos em The Myths We Live By (1990), mitos e tradiespodem ser cruciais tambm para a identidade e a luta cotidiana emmuitas esferas: entre protestantes e catlicos na Irlanda, ainda marchandoem paradas por batalhas de 1680, ou judeus e palestinos no OrienteMdio; entre homens e mulheres no trabalho; entre geraes nas famlias.

    As influncias familiares transgeracionais constituem um exemplofascinante de como as tradies podem ser uma mistura, por um lado,de modelos observveis diretamente tal como uma av que oferece sua neta um exemplar de maternidade independente , e de outro, demitos simblicos que, no entanto, podem ser influncias poderosas naformao da identidade. Por exemplo, em minhas atuais entrevistascom as famlias jamaicanas transnacionais, at agora nem uma s pes-soa traou sua linha genealgica a um escravo negro. O nico ancestralnegro mencionado foi at os Maroons, que abriu o caminho deles paraa liberdade. Por outro lado, a maioria cita um ancestral branco, incluin-do, numa famlia, um escocs Highlander derrotado e transportado paraa Jamaica como um condenado poltico. Existem membros dessas fa-mlias ainda cultivando a terra da famlia, que lhes foi transmitida di-retamente dos primeiros ex-escravos de sua prpria famlia em meadosdo sculo XIX, de forma que seus nomes poderiam facilmente ter pas-sado adiante; e todos eles devem ter tido mais ancestrais escravos quelivres. Mas como famlias migrantes transnacionais, so pessoas quevivem com grande independncia e determinao: o que eles precisamsaber e o que eles recordam no sua herana escrava, e sim sua des-cendncia de homens livres.

    Um dos exemplos mais notveis da influncia das tradies defamlia no comportamento dos dias de hoje me foi contado por JohnByng-Hall, numa entrevista que inclumos em The Myths We Live By.

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    Ele descendente do Almirante britnico Byng, que famoso por terperdido a ilha de Majorca em meados do sculo XVIII, aparentementepor sua ao covarde. Como punio, foi morto a tiros no convs deseu prprio navio. Byng-Hall sustenta que desde essa humilhao p-blica, em todas as geraes pelo menos uma pessoa demonstrou cora-gem quase insana como seu prprio av, que como Governador daNigria debelou uma rebelio permanecendo desarmado, vestido comuma roupa branca, no topo de uma montanha (o que funcionou, poisos rebeldes o tomaram por um fantasma), ou o pai de John, preso suaremota fazenda em meio ao terror Mau Mau, dormindo sempre com obrao em volta de sua espingarda. O prprio John percebeu como essemito tinha sido internalizado por ele tambm quando, ainda jovem,voltando da frica para a Inglaterra por navio, foi atingido pela plio,e em seu delrio sonhou que tinha sido ferido na lateral por uma balade canho abatido como seu ancestral dois sculos antes.

    Finalmente, em termos de potencial temtico, eu enfatizaria opoder especial das entrevistas de histria de vida e da histria oral emestabelecer conexes atravs das vidas. A maioria da documentao tendea ser separada em diferentes categorias que no so fceis de se conec-tar. Assim, em termos de migrao, enquanto pode haver informaoabundante sobre o contexto original e o novo, somente uma histriade vida pode conectar os dois numa explicao narrativa que faz senti-do para as duas extremidades do processo: que tipo de pessoas escolhepartir e por que, o que elas conseguem e o que isso significa para elas,por que decidem ficar ou voltar?

    Tenho estado particularmente interessado nas conexes entrefamlia e trabalho, e esse foi um tema essencial em meu estudo sobrecomunidades de pesca na Esccia, Living the Fishing. Enfoquei quatrodiferentes reas, cada uma com variaes notveis em termos de estru-tura familiar e empresarial, e cheguei concluso de que as duas esta-vam intimamente ligadas. A pesca mais bem sucedida era em reascomo as Ilhas Shetland ou Moray Firth, que tinham barcos de famlia,e onde as crianas foram educadas em famlias igualitrias que as enco-rajava a pensar por si prprias desde a tenra idade. Isso parece que ge-rou pescadores trabalhadores e inventivos, que modificavam ou desen-volviam equipamentos, e buscavam novos mercados e novos locais depesca. Em contraste, em outras partes, como nas Western Isles, onde

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    as famlias eram mais patriarcais, as crianas eram severamente discipli-nadas e ensinadas a seguir os mais velhos, e os adultos eram desen-corajados a inovar, encontrei estagnao ou declnio e uma boa parcelade alcoolismo entre os homens e violncia nas famlias. Lembro-me emparticular de um homem das Western Isles contando-me que ao voltarde um perodo no Canad, onde tinha apreendido novas idias, seu avcomprou um barco maior e a maior carroa do vilarejo e em poucotempo comeou a ir bem. Mas depois de uns dois anos na colheita elefoi morto quando sua carroa virou sobre ele; o comentrio dos mora-dores foi que sua morte fora uma retribuio divina, pois ele tinha sidomorto pelo peso de seus bens terrenos.

    As razes sociais da criatividade individual permanecem um dosprincipais interesses de meu trabalho com histria oral. Mais recente-mente, entrevistei pesquisadores sociais pioneiros. Mais uma vez, a his-tria de vida completa pode permitir conexes espantosas: por exem-plo, quando gravei Peter Towsend, que foi o pioneiro pesquisadorbritnico sobre a pobreza, a velhice e a famlia nos ltimos cinqentaanos, descobri que ele prprio tinha sido filho nico, criado por umame solteira, de modo que para ele, o papel da famlia nas crises foi umaquesto desde sempre. Da mesma maneira, na National Life StoryCollection, na British Library, em Londres, estivemos montando uma co-letnea de entrevistas de histria de vida em profundidade com pinto-res e escultores, e mais recentemente artistas e artesos, explorandocomo suas trajetrias de vida moldam sua criatividade.

    Quando vim ao Brasil pela primeira vez, dez anos atrs, encon-trei um ceramista extraordinrio em Pernambuco, Manuel Galdino, quecombinava tcnicas tradicionais com a inventividade temtica de umescultor, e era tambm um repentista incrivelmente fluente. A historia-dora oral recifense, Ana Dourado, e eu planejamos um livro sobreManuel combinando fotografias de seu trabalho com textos de suapoesia oral e de sua prpria vida: ele estava entusiasmado, e Ana Dou-rado comeou a entrevist-lo, mas ento, um tanto repentinamente, edevido a sua pobreza, ele acabou morrendo por uma doena sem im-portncia. Mas eu acho que existem muitos artistas pouco conhecidosno Brasil que igualmente valeria a pena registrar, tanto por eles mes-mos quanto para uma compreenso mais profunda das pobres pormcriativas comunidades das quais eles se originaram.

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    Passo agora a alguns dos desafios chave que a histria oral ir enfren-tar no futuro.

    O primeiro um problema persistente, a questo da verdade: anatureza da memria, pode-se acreditar nela? Essa questo ser semprefundamental para os historiadores orais, por isso dediquei uma sessointeira a ela em The Voice of the Past (captulos 4 e 5), e portanto nodesejo elabor-la aqui. Grosso modo, os depoimentos combinam doistipos de contedo. De um lado, eles podem fornecer uma grande quan-tidade de informaes factuais vlidas, por exemplo, sobre onde a pes-soa viveu, suas estruturas familiares, tipos de trabalho, etc. informa-es que de vrios modos pode-se provar como sendo amplamenteconfiveis; mas ao lado disso, eles tambm sustentam a igualmentereveladora marca da moduladora fora da memria, e tambm da cons-cincia coletiva e individual. Existem os silncios, primeiramente ob-servados por Luisa Passerini nas memrias daqueles que viveram sobo fascismo, que pode ser um indcio de como eles sofreram, assimcomo as crianas podem reprimir memrias de abuso sexual por umdos pais. E existe a transformao ativa da memria para dar sentidoao passado vivido, ou mesmo para lig-lo a sonhos perdidos, o queAlessandro Portelli demonstrou de modo to eloqente a partir de suasentrevistas com os velhos comunistas de Terni, na Itlia central.

    Portelli mostrou quantos mas deve-se observar que certamentenem todos dos ativistas locais tinham suprimido a memria de umagreve anterior em que a polcia matou um manifestante, uma grevecontra a adeso a OTAN, com memrias de greves posteriores contrademisses nos trabalhos das siderrgicas; presumivelmente porque aadeso OTAN provou ser uma questo transitria, enquanto a lutapara manter o trabalho foi sustentada por dcadas. Portelli relata tam-bm como um velho comunista, que teve que superar a revoluo quenunca aconteceu, contou sua histria de um passado que poderia tersido: quando os comunistas tomaram a deciso crucial de participar dasprimeiras eleies ps-guerra ao invs de lutar como Partisans armados,ele prprio conversou com o lder nacional, Togliatti, e alertou-o con-tra a perda de oportunidade do momento, dizendo a Togliatti: Comodiz Marx, quando o pssaro est voando o momento de atirar. Narealidade, ele nunca teve a chance de ter essa conversa pessoal com o

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    lder, nem Marx disse qualquer coisa parecida sobre pssaros voadores;ele estava se pautando num provrbio campons tradicional na Itliacentral. Mas embora em ambos os exemplos as lembranas coletadaspor Portelli no fossem factualmente verdadeiras, em cada caso elesfornecem precisamente atravs da maneira como eles deturpam ouinventam memrias da experincia evidncia viva de como a cons-cincia dos ativistas comunistas locais desenvolve-se em resposta aeventos, e tambm como eles foram capazes de entrelaar seu marxis-mo com a cultura popular mais antiga de sua regio.

    Essa reconfigurao pode tambm ser reveladora em termos dosvalores familiares, e especialmente provvel de emergir entrevistan-do-se mais de uma gerao de uma mesma famlia. Por exemplo, recen-temente entrevistei uma mulher jamaicana madura na Gr-Bretanha,que tinha trabalhado como enfermeira e tem sido uma figura muito ati-va em uma das igrejas. Ela me deu um relato honesto de seu casamen-to com um pastor e de seus filhos. Mas foi s mais tarde, quando en-trevistei seu neto, que percebi que ela tinha tido seu filho mais velhocomo me solteira, antes de encontrar o pastor, embora eles tivessemcriado essa criana como se fossem deles, e tambm que aps a mortedo pastor ela tinha tido um breve e mal sucedido segundo casamento.No contexto mais amplo da Jamaica, uma histria de famlia como estaseria perfeitamente normal de fato, a maioria das mulheres teve fi-lhos fora do casamento; mas para ela, alguma edio da histria clara-mente ajudava para sua identidade e respeitabilidade como uma lderde igreja.

    Em suma, mais uma vez, temos tanto a aprender da reformulaoda memria quanto dos fatos e nesse caso, ambos vm das lembran-as orais. O tema da memria ser sempre uma questo fundamentalpara os historiadores orais, mas acho que deveramos abord-lo positi-vamente, com confiana na dupla fora da histria oral, tanto objetivaquanto subjetiva.

    Um segundo e mais recente desafio vem atravs do novo entu-siasmo pela leitura das entrevistas como narrativas. Existem muitasfontes para essa abordagem, variando desde as tcnicas especiais deinterpretao desenvolvidas por Gabriele Rosenthal para entrevistarnazistas alemes, at anlises literrias de discurso e gneros autobio-grficos, e insights antropolgicos de como contexto e gnero moldam

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    lembranas, o que Elizabeth Tonkin to bem argumenta em Narratingour Pasts. Achei fascinantes os insights oferecidos pela abordagem nar-rativa e, juntamente com Mary Chamberlain, recentemente editei umvolume de artigos sobre o tema, Narrative and Genre (1998).

    No h dvida de que muito pode ser aprendido a partir da leitu-ra de entrevistas com esse tipo de sensibilidade. muito surpreenden-te, por exemplo, as diferenas na linguagem e no estilo de uma histriade vida quando o narrador est acostumado a apresentaes pblicas:as frases bblicas no ativista de igreja, por exemplo, ou a habilidade paracontar anedotas do homem que passou noites a fio no bar local. Numsentido mais geral, existem tambm contrastes marcantes entre a for-ma como homens e mulheres narram suas histrias de vida: os homensapoderando-se do ativo eu, colocando-se no centro do palco, en-quanto as mulheres muito mais freqentemente enfatizam o grupo,usando o pronome ns ou os pronomes neutros. Um relato especi-almente divertido de como homens e mulheres diferem na conversacotidiana pode ser encontrado em Deborah Tanner, You Just DontUnderstand.

    Mas se tudo isso perfeitamente vlido, existe um perigo muitosrio. Muitos historiadores orais ficaram to absorvidos em ler o quecoletam acima de tudo como narrativas, enfocando como eles dizem oque eles dizem, que no tm tempo para refletir sobre o que os entre-vistados realmente dizem. Ento, sim, h que se tornar sensvel nar-rativa, sem contudo ir longe demais! Pois, se assim o fizer, perder to-das aquelas potencialidades e propsitos originais da histria oral.

    Um terceiro e tambm novo desafio consiste nas oportunidadesde compartilhar nosso material. Existe, claro, uma seo substancial dotrabalho de histria oral, especialmente nos Estados Unidos, que ba-seada em arquivos, e consiste de projetos voltados principalmente paraa criao de recursos biogrficos pblicos. Mas muitas outras entrevis-tas so realizadas para propsitos especficos de pesquisa, e uma vezque o livro do pesquisador publicado as fitas so esquecidas numaprateleira, em casa ou no escritrio, indisponvel para outros, e prov-veis de serem jogadas fora quando o pesquisador se muda ou se apo-senta. Freqentemente essas entrevistas em profundidade so condu-zidas por socilogos e tambm por historiadores orais, mas so devalor potencial equivalente para outros usos.

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    Originalmente, essa situao interessou-me porque decidimos or-ganizar as transcries das entrevistas para The Edwardians como umarquivo informal em Essex, e um nmero muito grande de pessoas ti-nha usado essas entrevistas: eu diria que mais umas dez publicaesfeitas por outros pesquisadores vieram do material que eu tinha pro-duzido, e isso foi para mim uma fonte inesperada de recompensa e deprazer. Assim, no final dos anos oitenta eu estava preparado para mon-tar the National Life Story Collection no British Library National SoundArchive, criando, pela primeira vez, um centro nacional para arquivarhistria oral, que se tornou um arquivo que tanto produz como reco-lhe material.

    Foi possvel realizar um breve survey com pesquisadores sociais,que mostrou que das entrevistas e das notas dos cadernos de campode todos os projetos significativos a partir dos anos cinqenta, apenasum dcimo tinha sido arquivado, e a maior parte j tinha sido destrudaou corria srio risco. Posteriormente, em 1994, o Economic and SocialResearch Council financiou a montagem do Qualidata, atravs do qualns temos alocado e recuperado muito material anterior precioso, as-sim como estabelecido uma poltica para proteger o futuro material depesquisas com entrevistas.

    claro que o risco colocar esforo demais na gerao ou pre-servao de entrevistas que ningum vai usar no futuro. Existe umanecessidade urgente de partilhar internacionalmente experincias sobreisso. Estou particularmente impressionado com as polticas suecas paragerar material autobiogrfico numa base regular, como um recurso dis-ponvel em todas as bibliotecas pblicas, sistemas universitrios e es-colares. Mas a partir de nossa prpria experincia na Gr-Bretanha,parece que os conjuntos de entrevistas de histria oral mais provveisde serem usados so, primeiramente, os baseados em algum tipo deamostra regional ou nacional; em segundo lugar, histrias de vida com-pletas em bastante profundidade, cobrindo ampla gama de temas; e emterceiro, entrevistas transcritas e sumariadas, organizadas tematica-mente e indexadas. Com novos materiais, todos os textos sero legveispor mquina, e a gravao provvel de ser tambm digital, de modoque uma vez escolhidas e organizadas, existiro novas possibilidadessem precedentes de tornar esse tipo de material disponvel atravs dossistemas educacionais, de bibliotecas e de pesquisa.

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    Aqui j encontramos nosso quarto desafio: as novas tecnologias decomunicao. Devemos abra-las como uma oportunidade maravilhosa,ou devemos reconhec-las como os mensageiros de nosso futuro es-quecimento? Afinal, a histria oral como a conhecemos era indubita-velmente uma criana da idade de ouro do som, quando o rdio era aprincipal forma da comunicao de massa uma era passada j distan-te. E eu no penso que, at o momento, historiadores orais tm apre-sentado um registro muito expressivo de afinidades com os avanostcnicos. Muitos vdeos de histria oral que foram produzidos so te-diosamente formais e repetitivos para se ver, por que seus criadoresno reconhecem a necessidade de tcnicas bastante diferentes a fim defazer com que o trabalho audiovisual prenda os que o assistem e trans-mita sua mensagem. E, lamentavelmente, a mesma fraqueza tem se re-petido na maior parte dos CD-Roms de projetos de histria oral quetenho visto.

    Mas, por outro lado, a audincia potencial e a influncia ao alcan-ce da histria oral atravs da mdia contempornea poderiam ser enor-mes. Por exemplo, um programa recente produzido por Steve Hum-phries, de filmes testemunhais na Gr-Bretanha, contava as histrias demulheres que tinham sido mandadas para as Magdalene homes na Irlan-da, geralmente acusadas de irregularidades sexuais. Muito freqen-temente, de fato, elas foram vtimas de abuso por figuras locais proe-minentes, como homens do clero, que precisavam encarcer-las a fimde silenci-las. Mas, pior ainda foi o tratamento que as esperava, diasinfindveis de trabalho duro pontuados pela brutalidade fsica das frei-ras e os assaltos sexuais dos sacerdotes visitantes. Quando o programaestava sendo filmado, nenhuma mulher que vivia na Irlanda ousou per-mitir que suas memrias fossem transmitidas, de forma que o docu-mentrio teve que ser baseado nas mulheres que mais tarde tinhamemigrado para a Inglaterra. Mas uma linha telefnica foi providencia-da pela televiso durante trs dias aps a transmisso, e umas 400 cha-madas foram recebidas de mulheres da Repblica Irlandesa relatandoexperincias similares. Este foi um caso em que a transmisso de vozesocultas realmente mudou a conscincia nacional.

    Existem tambm novas excitantes possibilidades para difundir ahistria oral atravs da multimdia e da internet. Dispositivos de multi-mdia tm um potencial especial para integrar som, imagens visuais e

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    texto, e eles podem ser um importante caminho de atrao para umaaudincia mais jovem. Criar sites de memria na internet, e combinar di-ferentes tipos de documento, so novas formas igualmente importan-tes. Muitos projetos de histria oral na Europa e nas Amricas se lan-aram nessas novas formas, mas muito freqentemente, de um jeito umtanto sem graa, sem qualquer design cintilante. A esse respeito, no Bra-sil o trabalho do Museu da Pessoa em So Paulo, sobre uma gamacompleta de temas incluindo sindicatos, grandes negcios, mercados,clubes de futebol, usurios do metr, etc. tem uma elegncia e sofis-ticao pioneiras.

    Nosso desafio final ser esclarecer o papel da histria oral na for-mao da identidade numa era global. Eu acho que a influncia daglobalizao, e as tendncias em direo a uma cultura mundial homo-geneizada, que dada pela nossa crescente integrao na economia glo-bal, fazem com que tendamos a fortalecer nossas razes locais. Um sen-tido de razes, de identidade comum e de comunidade pode ser crucialpara permitir a ao social local. A histria oral pode sem dvida darsua contribuio para isso. Em Listening for a Change, relatei um estudode caso de duas favelas em Recife, Braslia Teimosa e Casa Amarela,onde a criao de uma histria coletiva agora ensinada nas escolaslocais de como a rea foi ocupada e com que justificativas morais,tornou-se um estmulo muito importante para a bem sucedida campa-nha pela propriedade da rea e para o abastecimento de gua e energia,reivindicaes que foram finalmente atendidas pelo prefeito da cidade.

    Acredito tambm que a histria oral pode ter um potencial paragerar uma compreenso humana entre naes. Em alguma medida ela tambm usada dessa maneira pelas ONGs que buscam contribuiespara fundos de catstrofes. Podemos tambm usar a histria oral paracompreendermos mais sobre pessoas que j vivem transnacionalmente algo que os membros do staff das ONGs igualmente representam,como Andra Zhouri mostrou em seu estudo sobre os ativistas brit-nicos que trabalham pela preservao da floresta amaznica. De modomais ambicioso, em breve, com a computadorizao da traduo, po-deria ser possvel criar um banco internacional multilingustico de his-trias de vida na internet, que poderia ser um meio para pesquisa, mastambm simplesmente uma forma para que as pessoas comuns de dife-rentes naes pudessem saber mais umas sobre as outras e o quanto

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    elas tm em comum. Mais dramaticamente ainda, pois depois de ver os(algumas vezes terrveis) depoimentos de apartheid televisados diaria-mente para a nao inteira durante as audincias da Comisso da Ver-dade da frica do Sul, se poderia imaginar um papel para a histria oralem interligar conflitos to profundamente enraizados como na Irlandado Norte ou no Oriente Mdio?

    Em concluso, portanto, estou convencido do rico potencial quepermanece aberto para a histria oral, no Brasil e internacionalmente,hoje e no futuro. Aprender a ouvir uma habilidade humana funda-mental: para aqueles que importam, a histria oral est a para nos aju-dar a compreender melhor nossos passados e para criar memrias na-cionais muito mais ricas, mas tambm para nos ajudar a construir umfuturo melhor, mais amvel, mais democrtico.

    RESUMO: Neste artigo o autor oferece sua viso das potencia-lidades futuras da histria oral no limiar do novo sculo, a partirde suas prprias experincias de trabalho com o mtodo ao lon-go dos ltimos trinta anos. O autor parte de duas premissas bsi-cas: primeiramente, a histria oral um mtodo essencialmenteinterdisciplinar; em segundo lugar, a melhor pesquisa de histriaoral une, ao mesmo tempo, a evidncia da pesquisa qualitativae quantitativa. Em termos de temas, so abordadas quatro reasem que o trabalho com histria oral mostra potencialidade e for-a especiais: vozes ocultas, esferas ocultas, tradies orais, e co-nexes atravs das histrias de vida. Por fim, o autor enfoca al-guns dos principais desafios que a histria oral ir enfrentar nofuturo.

    PALAVRAS-CHAVE: Histria oral; potencialidades; desafios

    ORAL HISTORY AND CONTEMPORANEI TY

    ABSTRACT: In this article, the author presents a discussion about thefuture prospects of oral history in the awake of the new century,based on his own experiences over thirty years work with thismethod. His premisses are twofold: firstly, oral history is an essen-cially interdisciplinary method; secondly, the best oral history re-search combines the evidence of both qualitative and quantita-tive research. In terms of issues, he identifies four areas in whichthe work of oral history shows its potential strength: hidden voices,hidden spheres, oral traditions and conection through life stories.Last but not least, the author raises some of the main challengesoral history will face in the future.

    KEYWORDS: Oral history, prospects, challenges