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Artigos Fernanda Oliveira Fernando de Holanda Barbosa Helio Tollini Joisa Dutra José Roberto Afonso Juliana Jerônimo Smiderle Kleber Pacheco de Castro Lia Baker Valls Pereira Nelson Marconi Rubens Penha Cysne Samuel Pessôa Editada desde 1947 • www.conjunturaeconomica.com.br • Abril 2018 • volume 72 • nº 04 • R$ 16,00 Entrevista Joisa Campanher Dutra Diretora do Centro de Regulação em Infraestrutura (FGV CERI) Ponto de Vista Será que o Brasil está finalmente vacinado contra o populismo econômico? Carta da Conjuntura Possibilidade de juros reais neutros mais baixos descortina novos cenários fiscais Arrumar a casa para garantir o futuro Demanda mundial ajuda, mas ampliação de mercado para a agropecuária brasileira depende de uma lista de tarefas domésticas que definirão sua competitividade

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Page 1: Arrumar a casa para garantir o futuro...fgv.br/analista-rio ANALISTA FGV Para quem busca uma formação mais específica na área do conhecimento. O programa tem duração de 6 meses

ArtigosFernanda Oliveira

Fernando de Holanda BarbosaHelio Tollini Joisa Dutra

José Roberto AfonsoJuliana Jerônimo SmiderleKleber Pacheco de Castro

Lia Baker Valls PereiraNelson Marconi

Rubens Penha CysneSamuel Pessôa

Editada desde 1947 • www.conjunturaeconomica.com.br • Abril 2018 • volume 72 • nº 04 • R$ 16,00

Entrevista Joisa Campanher Dutra

Diretora do Centro de Regulação em Infraestrutura (FGV CERI)

Ponto de Vista Será que o Brasil está finalmente vacinado contra o populismo econômico?

Carta da ConjunturaPossibilidade de juros reais neutros mais baixos descortina novos cenários fiscais

Arrumar a casa para garantir o futuroDemanda mundial ajuda, mas ampliação de mercado para a agropecuária brasileira depende de uma lista de tarefas domésticas que defi nirão sua competitividade

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ANALISTA FGVPara quem busca uma formação mais específica na área do conhecimento. O programa tem duração de 6 meses.

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N E S T A E D I Ç Ã O

Instituto Brasileiro de Economia | Abril de 2018

A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 3

Carta da Conjuntura8 Possibilidade de juros reais neutros mais baixos

descortina novos cenários fiscais

Se, num exercício hipotético, se

supuser que os juros reais neutros

brasileiros estejam se aproximando

do nível de 3% a 3,5%, por exemplo,

a equação da sustentabilidade

da dívida pública muda de figura.

Neste caso, talvez um pequeno superávit primário,

algo de até 1% do PIB, já seja suficiente para estancar o

crescimento da relação dívida/PIB.

Ponto de Vista12 Será que o Brasil está finalmente vacinado contra o

populismo econômico?

O intervencionismo é fruto da

interpretação dos economistas

heterodoxos brasileiros de que o

desenvolvimento e a superação da

armadilha da renda média pelos

países de crescimento elevado do

Leste da Ásia devem-se à intervenção do Estado na economia.

Entrevista14 “Reforma ainda não permite identificar uma nova

governança para o setor elétrico”

O setor elétrico brasileiro vive um importante processo

de transição de modelo que pretende enterrar o mau

momento vivido desde 2012, quando a soma de ativismo

regulatório e hidrologia desfavorável deu início a um

acúmulo de desequilíbrios operacionais e prejuízos

bilionários para agentes dessa indústria. Em entrevista à

Conjuntura Econômica, Joisa Dutra, diretora do Centro de

Regulação em Infraestrutura (FGV Ceri), analisa a estratégia

do atual governo para ordenar o setor e os possíveis

impactos da saída do ministro de Minas e Energia,

Fernando Coelho, em abril, para disputar eleições.

Macroeconomia34 Saúde pública tem remédio?

A falta de planejamento e a ausência de coordenação

na execução de políticas públicas são problemas que

não afetam apenas a saúde, mas são sensivelmente

mais onerosos neste caso devido às características

econômicas do setor.

Capa | Agronegócio40 Arrumar a casa para garantir o futuro

Embora o cenário internacional

tenha ajudado, o agronegócio

brasileiro, para aumentar sua

participação no comércio

mundial, precisa equacionar

um leque de questões internas

que reduzem sua competitividade. Do crédito à inovação

tecnológica, passando pela logística e infraestrutura, só

para mencionar os mais prementes.

Comércio exterior 54 Brasil na OCDE: esperanças e controvérsias

O Ministério da Fazenda está

empenhado no processo de

entrada do Brasil na OCDE,

entendendo que, entre outras

coisas, a adesão representará

um “selo de qualidade” para

as políticas econômicas do país e, consequentemente,

acesso mais fácil a financiamentos. As principais

organizações empresariais apoiam a iniciativa, mas

ainda há controvérsias relacionadas com a posição que

o Brasil pretende ocupar no cenário internacional e com

as perspectivas futuras de o país, uma vez aceito, adotar

políticas ativas de desenvolvimento econômico.

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4 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

FundadorRichard Lewinsohn

Editor-ChefeLuiz Guilherme Schymura de Oliveira

Editor-ExecutivoClaudio Roberto Gomes Conceição

EditoraSolange Monteiro

Editoria de arte: Marcelo Nascimento Utrine e Teresinha Fátima de FreitasCapa e projeto gráfico: Marcelo Nascimento UtrineIlustração da capa: istockphotoRevisão: Mariflor RochaImpressão: Edigráfica

Colaboram nesta edição: Fernanda Oliveira, Fernando de Holanda Barbosa, Helio Tollini, Joisa Dutra, José Roberto Afonso, Juliana Jerônimo Smiderle, Kleber Pacheco de Castro,, Lia Baker Valls Pereira, Luiz Guilherme Schymura, Nelson Marconi, Rubens Penha Cysne e Samuel Pessôa

Secretaria e apoio administrativoMelissa Novaes Martin DinizRua Barão de Itambi, 60 – 7o andarBotafogo – CEP 22231-000 – Rio de Janeiro – RJTel.: (21) 3799-6840 – Fax: (21) [email protected]

Conjuntura Econômica é uma revista mensal editada pelo Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas, desde novembro de 1947.

As manifestações expressas por integrantes dos quadros da Fundação Getulio Vargas, nas quais constem a sua identificação como tais, em artigos e entrevistas publicados nos meios de comunicação em geral, representam exclusivamente as opiniões dos seus autores e não, necessariamente, a posição institucional da FGV.

A reprodução total ou parcial do conteúdo da revista somente será permitida com autorização expressa dos editores.

Assinaturas e renovaçõ[email protected] Rio de Janeiro: (21) 3799-6844Outros estados: 08000-25-7788 ligação gratuita

CirculaçãoBernardo Nunes CheferTel.: (21) 3799-6848 – Fax: (21) 3799-6855

DistribuiçãoDINAP - Distribuidora Nacional de Publicacoes – LTDAAv. Doutor Kenkiti Shimomoto, 1678Osasco – SP – CEP: 06045-390

Publicidade(21) 3799-6840/41

ISSN 0010-5945Conjuntura Econômica. – Vol. 1, n. 1 (nov. 1947)-.- Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1947-v. il.; 28cm. Mensal.Órgão oficial de: Instituto Brasileiro de Economia. Diretores: Nov. 1947-mar. 1952, Richard Lewinsohn; Maio 1952-dez. 1968, José Garrido Torres; Jan. 1969-mar. 1974, Sebastião Marcos Vital; Abr. 1974-mar. 1979, Antonio Carlos Lemgruber; Abr. 1979-abr. 1994, Paulo Rabello de Castro; Maio 1994-set 1999, Lauro Vieira de Faria; Out. 1999-nov. 2003, Roberto Fendt; Dez. 2003-jun. 2004, Antonio Carlos Pôrto Gonçalves; Jul. 2004, Luiz Guilherme Schymura de Oliveira. ISSN 0010-59451. Economia — Periódicos. 2. Brasil — Condições Econômicas — Periódicos. I. Fundação Getulio Vargas. II. Instituto Brasileiro de Economia.CDD 330.5

Instituição de caráter técnico-científico, educativo e filantrópico, criada em 20 de dezembro de 1944, como pessoa jurídica de direito privado, tem por finalidade atuar no âmbito das Ciências Sociais, particularmente Economia e Administração, bem como contribuir para a proteção ambiental e o desenvolvimento sustentável.

Praia de Botafogo, 190 – CEP 22250-900 – Rio de Janeiro – RJCaixa Postal 62.591 – CEP 22257-970 – Tel.: (21) 3799-4747

Primeiro Presidente e FundadorLuiz Simões Lopes

PresidenteCarlos Ivan Simonsen Leal

Vice-presidentes: Francisco Oswaldo Neves Dornelles, Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, Sergio Franklin Quintella

Conselho DiretorPresidente: Carlos Ivan Simonsen Leal

Vice-presidentes: Francisco Oswaldo Neves Dornelles, Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, Sergio Franklin Quintella.

Vogais: Armando Klabin, Carlos Alberto Pires de Carvalho e Albuquerque, Cristiano Buarque Franco Neto, Ernane Galvêas, José Luiz Miranda, Lindolpho de Carvalho Dias, Marcílio Marques Moreira, Roberto Paulo Cezar de Andrade

Suplentes: Aldo Floris, Antonio Monteiro de Castro Filho, Ary Oswaldo Mattos Filho, Eduardo Baptista Vianna, Gilberto Duarte Prado, Jacob Palis Júnior, José Ermírio de Moraes Neto, Marcelo José Basílio de Souza Marinho, Mauricio Matos Peixoto

Conselho CuradorPresidente: Carlos Alberto Lenz César Protásio

Vice-presidente: João Alfredo Dias Lins (Klabin Irmãos & Cia.)

Vogais: Alexandre Koch Torres de Assis, Andrea Martini (Souza Cruz S/A), Antonio Alberto Gouvêa Vieira, Eduardo M. Krieger, Estado da Bahia, Estado do Rio de Janeiro, Estado do Rio Grande do Sul, José Carlos Cardoso (IRB-Brasil Resseguros S.A), Luiz Chor, Luiz Ildefonso Simões Lopes, Marcelo Serfaty, Marcio João de Andrade Fortes, Miguel Pachá, Murilo Portugal Filho (Federação Brasileira de Bancos), Pedro Henrique Mariani Bittencourt, Ronaldo Vilela (Sindicato das Empresas de Seguros Privados, de Previdência Complementar e de Capitalização nos Estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo), Willy Otto Jordan Neto

Suplentes: Almirante Almirante Luiz Guilherme Sá de Gusmão, General Joaquim Maia Brandão Júnior, José Carlos Schmidt Murta Ribeiro, Luiz Roberto Nascimento Silva, Manoel Fernando Thompson Motta Filho, Nilson Teixeira (Banco de Investimentos Crédit Suisse S.A), Olavo Monteiro de Carvalho (Monteiro Aranha Participações S.A), Patrick de Larragoiti Lucas (Sul América Companhia Nacional de Seguros), Rui Barreto, Sergio Lins Andrade

Instituto Brasileiro de EconomiaDiretoria: Luiz Guilherme Schymura de Oliveira

Superintendência de Clientes Institucionais: Wagner Rezende de Oliveira

Superintendência de Estatísticas Públicas: Aloisio Campelo Junior

Superintendência de Estudos Econômicos: Marcio Lago Couto

Superintendência de Planejamento e Organização: Vasco Medina Coeli

Controladoria: Regina Célia Reis de Oliveira

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A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 5

Sumário

Depois de uma safra recorde que ajudou o PIB a crescer 1% no ano passado – sem a contribuição da agropecuá-ria teria aumentado apenas

0,4% –, e derrubou os preços dos alimentos, contribuin-do para forte queda da inflação, a agropecuária não deve repetir os excelentes resultados de 2017. No entanto, as previsões de safra este ano apontam para uma outra grande colheita, pouco inferior à do ano passado.

Mesmo ocupando lugar de destaque no cenário mundial o setor tem grandes desafios pela frente. Há consenso de que mercado potencial não é mercado ga-nho, e para continuar conquistando terreno o agrone-gócio não poderá negligenciar uma agenda doméstica principalmente nos campos de infraestrutura logísti-ca, tecnologia e financiamento, como foi amplamente discutido no I Seminário Desafios e Perspectivas do Agronegócio Brasileiro, promovido por Conjuntura Econômica, cujos principais pontos podem ser lidos a partir da página 40.

Os esforços para que o Brasil passe a fazer parte da OCDE são vistos pelo governo, principalmente pelo Ministério da Fazenda, como um “selo de qualidade”

para as políticas econômicas do país e, consequente-mente, mais facilidade para a captação de financia-mentos e de investimentos estrangeiros. Além de abrir mais a economia brasileira, podendo auxiliar num maior fluxo de negócios.

Dados do MDIC mostram que dos dez maiores im-portadores de produtos brasileiros no ano passado, sete eram membros da OCDE, estando fora apenas China, Argentina e Índia. Entre os dez maiores ven-dedores de produtos para o Brasil, oito são da OCDE. Mas os dados também mostram que o Brasil exporta principalmente produtos primários e importa basica-mente manufaturas, como pode ser visto a partir da página 54 desta edição.

Outro assunto bastante sensível à atividade econômi-ca, o do setor elétrico, é abordado na entrevista com Joisa Dutra, diretora da FGV Ceri – página 15 –, que alerta que, apesar de necessária, a reforma do setor poderá pe-nalizar o consumidor ao focar na garantia de capacidade em detrimento do processo de formação de preços.

Claudio Conceição [email protected]

Nota do Editor

Carta da Conjuntura8 Possibilidade de juros reais neutros mais baixos descortina novos cenários fiscais – Luiz Guilherme Schymura

Ponto de Vista12 Será que o Brasil está finalmente vacinado contra o populismo econômico? – Samuel Pessôa

Entrevista14 Joisa Campanher Dutra – Solange Monteiro

Macroeconomia20 Acesso universal à água e ao esgotamento sanitário até 2030: uma meta possível para o Brasil? Joisa Dutra, Juliana Jerônimo Smiderle e Fernanda Oliveira

22 Os mecanismos de transmissão da política monetária – Fernando de Holanda Barbosa

24 O impacto da política macro sobre as taxas de lucro setoriais – Nelson Marconi

28 Teto de gasto como regra permanente Helio Tollini

32 Um motivo adicional para os elevados juros reais no Brasil – Rubens Penha Cysne

34 Saúde pública tem remédio? – José Roberto Afonso e Kleber Pacheco de Castro

Fiscal38 Limar Arestas – Solange Monteiro

Capa – Agronegócio40 Arrumar a casa para garantir o futuro Solange Monteiro

Comércio Exterior54 Brasil na OCDE: esperanças e controvérsias Chico Santos

64 Volta dos superávits comerciais da indústria de transformação? – Lia Baker Valls Pereira

ÍndicesI Índices Econômicos

X Conjuntura Estatística

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Banco do Brasil. O maior parceiro do agronegócio.Porque o campo alimenta e faz o país crescer.

Quem é do campo sabe a importância de ter um banco parceiro, com soluções sob medida para todas as etapas da produção. Quem é da cidade reconhece a importância do agronegócio para o país.

É por isso que o Banco do Brasil é o maior apoiador do produtor rural.

bb.com.br/agronegocios

Mais que

Digital

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Banco do Brasil. O maior parceiro do agronegócio.Porque o campo alimenta e faz o país crescer.

Quem é do campo sabe a importância de ter um banco parceiro, com soluções sob medida para todas as etapas da produção. Quem é da cidade reconhece a importância do agronegócio para o país.

É por isso que o Banco do Brasil é o maior apoiador do produtor rural.

bb.com.br/agronegocios

Mais que

Digital

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8 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

CARTA DA CONJUNTURA

Desde 2015, o Brasil vive sob o sig-

no de uma crise fiscal latente, que se

interpõe entre o momento presen-

te e uma trajetória de crescimento

sustentável de médio e longo prazo.

No final de 2015 e início de 2016, o

quadro se tornou agudo, desestabili-

zando preços fundamentais da eco-

nomia, como câmbio e juros. De lá

para cá, os mercados se acalmaram

e a economia recentemente retomou

o crescimento. Ainda assim, há pra-

ticamente um consenso de que, sem

equacionamento do desequilíbrio

fiscal estrutural, em algum momento

o país novamente será engolfado por

crises econômicas.

A razão para esse diagnóstico é

simples. Desde 2011, o resultado

primário do setor público consolida-

do caiu 4,6 pontos percentuais (p.p.)

do PIB, de superávit de 2,94% em

2011 para déficit de 1,69% em 2017

(o déficit atingiu 2,49% do PIB em

2016). A grande recessão de 2014 a

2016 é, naturalmente, responsável

por parte dessa deterioração. Com

a retomada, espera-se que seja recu-

perada parcela do que se perdeu em

termos de resultado primário (e já há

indicações do início deste processo).

Contudo, ficou claro nos últimos

anos que o arcabouço institucional

por trás das despesas obrigatórias

ou rígidas da União condiciona um

aumento do gasto bem acima do PIB

em condições normais de temperatu-

ra e pressão. A receita tributária, por

sua vez, também cresceu acima do

produto durante o boom de commo-

dities, camuflando o desequilíbrio

estrutural, mas claramente esta fase

acabou. Assim, as estimativas dos

analistas apontam uma trajetória

explosiva de crescimento da dívida

bruta como percentual do PIB, que

já saiu de 51% em 2011 para 75%

em fevereiro de 2018. As estimativas

são de que siga crescendo, se drásti-

cas medidas fiscais não forem toma-

das, e de que se aproxime de 90% do

PIB em alguns anos.

A emenda do teto dos gastos em

tese interromperia essa expansão e

colocaria a relação dívida/PIB numa

trilha descendente. O problema, po-

rém, é que ninguém vê como a regra

possa ser mantida nos próximos anos

sem mudanças drásticas nos gastos

obrigatórios e rígidos, das quais, por

enquanto, não há nem sinais. Tudo

somado, a visão predominante é de

que há uma bomba-relógio fiscal

ticando enquanto a economia bra-

sileira prossegue funcionando num

ambiente de frágil estabilidade.

Luiz Guilherme Schymura

Pesquisador da FGV IBRE e doutor em economia pela FGV EPGE

Possibilidade de juros reais neutros mais baixos descortina novos cenários fiscais

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A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 9

CARTA DA CONJUNTURA

Quão estimuladora – e, portan-

to, quão abaixo do neutro estão os

atuais juros – já é uma questão mais

aberta ao debate. É fato que a eco-

nomia brasileira está em recupera-

ção, e que a política monetária é um

dos fatores deste processo. Por outro

lado, a retomada ainda é muito gra-

dual, e alguns cálculos indicam que

a liberação do FGTS no ano passado

respondeu por uma parcela signifi-

cativa do estímulo à demanda. Será

possível que o nível atual dos juros

reais esteja menos distante do neutro

do que crê a análise convencional?

Esta é uma questão em aberto.

O fato é que, se, num exercício

hipotético, se supuser que os juros

reais neutros brasileiros estejam

se aproximando do nível de 3% a

3,5%, por exemplo, a equação da

sustentabilidade da dívida pública

muda de figura. Neste caso, talvez

um pequeno superávit primário,

algo de até 1% do PIB, já seja sufi-

Existe, entretanto, uma variável

da equação fiscal que pode estar mu-

dando de forma significativa, e para

melhor: os juros reais da economia

brasileira, que impactam o custo fi-

nanceiro da rolagem da dívida públi-

ca. Como se sabe, o Brasil há décadas

exibe taxas reais de juros extrema-

mente elevadas, quando se tomam

comparações internacionais. A cha-

mada taxa real neutra é uma variável

não observável, mas ao longo dos úl-

timos anos trabalhou-se com a ideia

de que ela estaria em pelo menos algo

como 5% a 6% ao ano.

Num cálculo extremamente sim-

plificado, juros reais de 6% sobre

uma dívida de 70% do PIB geram

uma despesa de 4,2% do PIB. Su-

pondo-se que o PIB cresça 2% ao

ano em termos potenciais, é preciso

um superávit primário de pelo menos

2% do PIB, aproximadamente, para

estabilizar a dívida como proporção

do produto. Como hoje se projeta

um déficit primário em torno de 2%

do PIB para 2018, há uma distância

de 4 p.p. do produto a percorrer, en-

tre cortes de gastos e aumentos de

receitas, para frear a dinâmica ex-

plosiva da dívida pública.

A novidade recente é que se en-

xerga a possibilidade de uma queda

dos juros reais neutros no Brasil, que

pode já estar ocorrendo. Hoje, os

juros reais medidos pelas operações

de swap de um ano encontram-se em

torno de 2,5%, mas há consenso de

que este nível está claramente abaixo

do patamar neutro. Assim, a econo-

mia está sendo estimulada pela polí-

tica monetária, com a Selic já tendo

sido reduzida a 6,5%.

A chamada taxa real

neutra é uma variável

não observável, mas ao

longo dos últimos anos

trabalhou-se com a ideia

de que seria de pelo menos

algo como 5% a 6% ao ano

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CARTA DA CONJUNTURA

1 0 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

ciente para estancar o crescimento

da relação dívida/PIB. Neste cená-

rio, o “gap” de resultado primário

poderia estar em torno de 2% do

PIB, ou pouco mais, algo que pode-

ria ser preenchido quase que plena-

mente pelo simples processo de re-

cuperação cíclica da economia e da

receita tributária.

Bráulio Borges, pesquisador asso-

ciado da FGV IBRE, fez cálculos que

indicam que o resultado primário que

estabiliza a relação entre a dívida bru-

ta do governo geral e o PIB guarda

uma relação aproximada de um para

um com o diferencial, em p.p. do PIB,

entre a Selic real ex-post (deflaciona-

da pelo IPCA) e o crescimento em vo-

lume do PIB. Assim, para um mesmo

crescimento do PIB, a redução em 1

p.p. do PIB da Selic real significa uma

redução do superávit primário estabi-

lizador igualmente de 1 p.p. do PIB.

Existe, evidentemente, enorme

incerteza quanto ao nível exato dos

juros neutros no Brasil. Uma ques-

tão associada a essa é do hiato do

produto. Se a variável, também não

observável, estiver no extremo ne-

gativo das projeções, de 8% do PIB,

os juros abaixo do nível neutro po-

dem durar mais tempo, comparado

à hipótese de que o hiato esteja mais

perto de 3%, como quer a corrente

de analistas na outra ponta do inter-

valo de estimativas. Isto, evidente-

mente, também impacta a dinâmica

da dívida pública. Porém, enquan-

to a diferença do hiato do produto

num ou no outro extremo do inter-

valo de projeções é a de garantir um

ou dois anos a mais (ou a menos) de

juros abaixo do nível neutro, juros

reais neutros mais baixos podem

produzir uma redução do custo fi-

nanceiro de rolar a dívida pública

muito mais duradoura.

Mas quais fatores poderiam es-

tar levando a uma redução de longa

duração, ou até permanente, dos ju-

ros reais neutros no Brasil? José Jú-

lio Senna, pesquisador associado da

FGV IBRE, destaca o cenário inter-

nacional de baixos juros e elevado

apetite por risco, que levou a uma

queda generalizada de prêmios de

risco de países emergentes, incluin-

do o Brasil. Ele nota adicionalmente

que os salários e a inflação têm rea-

gido pouco à queda do desemprego

no mundo desenvolvido, o que pode

estar ligado a fatores tecnológicos e

às expectativas de inflação muito

baixas (inferiores às metas dos prin-

cipais bancos centrais). Sem infla-

ção, não há razão para que os juros

internacionais subam de forma mais

firme. Avanço tecnológico e expec-

Se, em exercício hipotético,

se supuser que juros

reais neutros do Brasil

vão para 3% a 3,5%, por

exemplo, a equação da

sustentabilidade da dívida

muda de figura

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CARTA DA CONJUNTURA

A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 11

tativas inflacionárias reduzidas são

fenômenos que podem ser bastante

duradouros – consequentemente, a

pressão baixista nos prêmios de ris-

co dos emergentes também pode ser

de longa duração, condizente com

juros reais neutros brasileiros em

níveis mais baixos por prazo bas-

tante dilatado.

Samuel Pessôa, pesquisador as-

sociado da FGV IBRE, destaca um

fator interno que também pode

comprimir os juros reais neutros

por bastante tempo. A partir do iní-

cio da década passada, o Brasil vi-

veu um longo período em que fato-

res fiscais, parafiscais e creditícios

criaram uma permanente pressão

expansionista na economia brasi-

leira, contrabalançada por juros

reais altos para segurar a inflação.

De um lado, o arcabouço institu-

cional e o bom momento econômi-

co faziam o gasto público crescer

aceleradamente acima do PIB. Por

outro, reformas nos instrumentos

de garantias no primeiro manda-

to de Lula deflagraram um boom

de crédito privado. Posteriormen-

te, o governo conduziu uma forte

expansão de crédito pelo BNDES e

outros bancos públicos.

A partir da grande recessão de

2014 a 2016, o regime descrito aci-

ma mudou radicalmente. A política

fiscal e parafiscal tornou-se necessa-

riamente contracionista, devido ao

retorno de sérios problemas de sol-

vência relativos à trajetória da dívi-

da pública como proporção do PIB.

O boom de crédito, por outro lado,

foi eliminado pela recessão, sendo

substituído por uma fase de desala-

vancagem e restrições ao crédito tan-

to do lado da demanda de famílias e

empresas quanto por parte da oferta

dos bancos. O mix fiscal, parafiscal

e de crédito, portanto, tornou-se

contracionista a partir de 2015, e

pode condicionar uma fase relativa-

mente longa de juros reais neutros

mais baixos – imaginando-se que

vai demorar até que haja condições

para uma política fiscal e parafiscal

expansionista e um novo boom de

crédito privado.

A combinação entre fatores exter-

nos e internos pressionando os juros

reais neutros no médio prazo, descri-

ta acima, leva a uma visão mais be-

nigna das perspectivas econômicas

brasileiras. Há mais tempo para re-

constituir o equilíbrio fiscal de longo

prazo, ao mesmo tempo em que esta

tarefa pode ser mais fácil e exigir

reformas menos drásticas. Ao mes-

mo tempo, juros reais neutros mais

baixos de forma duradoura podem

Combinação de fatores

externos e internos

pressionando juros reais

neutros no médio prazo

levaria à visão mais

benigna das perspectivas

econômicas brasileiras

mudar para melhor o funcionamen-

to da economia nacional, liberando

potencialidades e proporcionando

um ritmo de crescimento mais for-

te – o que também é positivo para a

relação dívida/PIB, numa espécie de

círculo virtuoso.

É aconselhável temperar esse

otimismo, entretanto, por diversas

razões. Tanto Senna quanto Pessôa

notam que os juros reais de prazo

muito longo das NTN-Bs resistem

em níveis em torno de 5%, num sinal

de que os mercados ainda esperam

que a bomba-relógio do desequilí-

brio fiscal estrutural seja desativada

antes de retirar do cenário o risco

de solvência do Brasil. Fernando

Veloso, pesquisador da FGV IBRE,

é particularmente cético quanto a

contar com juros reais neutros bai-

xos como uma variável provável nos

anos à frente. Para ele, é provável

que o prosseguimento da expansão

global sincronizada reative pressões

inflacionárias e nos juros nos países

ricos, assim como as incertezas elei-

torais no Brasil podem recolocar no

tabuleiro pressões sobre o risco país

e a taxa de câmbio. Nesta visão,

contar com o bônus de juros reais

neutros substancialmente mais bai-

xos é um risco que não vale a pena

correr quando se pensa numa estra-

tégia de política econômica para o

Brasil de hoje.

O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a con-fecção deste artigo.

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12 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

PONTO DE VISTA

Como já discutimos mais de uma vez

neste espaço, a profunda crise que se

abateu sobre a economia brasileira a

partir do segundo trimestre de 2014

– a taxa de investimento iniciou seu

processo de queda no quarto trimes-

tre de 2013 –, e que acabou por se

tornar a segunda maior perda de PIB

per capita e a mais longa crise dos

últimos 120 anos, resultou do esgo-

tamento de duas dinâmicas.

O contrato social da redemo-

cratização – o desejo da sociedade,

expresso no texto constitucional de

1988 e que tem sido repactuado e

referendado em todos os pleitos elei-

torais desde então, de construir no

Brasil um Estado de bem-estar social

do padrão europeu continental –

produziu uma profunda crise fiscal.

O gasto público cresceu a taxas

acima da expansão da economia de

1992 até 2014, saindo de 11% do

PIB para quase 20%. Esse crescimen-

to espetacular da despesa pública re-

sultou de diversas medidas, inclusive

de dispositivos não constitucionali-

zados que foram seguidamente vota-

dos e apoiados pelo sistema político,

como, por exemplo, o aumento real

do salário mínimo. Ou seja, a expan-

são do gasto público a uma veloci-

dade superior ao crescimento do PIB

resultou do funcionamento normal

de nossa economia.

Os problemas demoraram a apa-

recer porquê, entre 1999 e 2011, o

crescimento da receita de impostos e

contribuições acompanhou a eleva-

ção do gasto e, portanto, também se

manteve permanentemente acima da

expansão da economia.

Evidentemente os impostos cres-

cerem além da economia não é uma

situação que se possa sustentar in-

definidamente. Quando, a partir de

2012, o crescimento dos impostos

e contribuições passou a acompa-

nhar a expansão do PIB, começa-

mos a cavar nosso buraco fiscal.

Entre 2008 e 2014, o país saiu de

um superávit primário de 3,5% do

PIB para um déficit de 1,5% PIB.

Fantástica piora fiscal de cinco

pontos percentuais (p.p.) do PIB,

ou 0,83 p.p. por ano.

A deterioração fiscal promovida

pelo nosso contrato social da rede-

mocratização foi agravada por outra

agenda. Esta não era uma agenda da

sociedade, mas sim dos intelectuais

e economistas petistas. Tratou-se da

agenda intervencionista ou nacional-

desenvolvimentista.

O intervencionismo é fruto da

interpretação dos economistas

heterodoxos brasileiros de que o

desenvolvimento e a superação da

armadilha da renda média pelos

países de crescimento elevado do

Leste da Ásia devem-se à inter-

Será que o Brasil está finalmente vacinado contra o populismo econômico?

Samuel Pessôa

Pesquisador associado da FGV IBRE

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A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 13

PONTO DE VISTA

venção do Estado na economia. A

coluna pensa diferente. Para nós, a

excelente performance econômica

dessas sociedades deve-se ao ótimo

desempenho educacional e às eleva-

díssimas taxas domésticas de pou-

pança. Este segundo fator é fruto

da avareza do Estado de bem-estar

social daquelas nações.

Em função do entendimento que

os intelectuais e economistas petistas

tinham (ou têm) da experiência dos

tigres asiáticos, todo um pacote de

medidas foi por aqui tentado, princi-

palmente após a mudança de guarda

no Ministério da Fazenda, com a saí-

da de Antonio Palocci e a chegada de

Guido Mantega. Referimo-nos a ini-

ciativas como: recriação da indústria

naval; alteração do marco regula-

tório do petróleo; requerimentos de

conteúdo nacional; capitalização do

BNDES em mais de R$ 450 bilhões;

alteração do marco regulatório do

setor elétrico etc.

As medidas elencadas no pará-

grafo anterior geraram custos para

o Tesouro Nacional, muitas vezes

escondidos na forma de equalização

de taxas de juros – isto é, subsídio a

empréstimos não explicitados no or-

çamento. Dessa forma, foram políti-

cas que agravaram a piora fiscal que

já estava contratada pelo padrão de

escolha social de nossa sociedade.

Assim, podemos afirmar que a

formulação da política econômica

pela heterodoxia tinha dois enten-

dimentos sobre o funcionamento de

uma economia de mercado que agra-

varam a crise. O primeiro é um enor-

me otimismo em relação ao impacto

sobre o crescimento econômico da

política fiscal. Esse otimismo tirava

da equipe econômica o sentido de

urgência em combater a deteriora-

ção fiscal quase monótona que ocor-

reu entre 2008 e 2014, com exceção

do ajuste fiscal promovido por Dil-

ma em 2011.

O segundo é o entendimento de que

o desenvolvimento dos tigres asiáticos

resultou do intervencionismo.

A questão é saber: houve algum

aprendizado? Será que os economis-

tas e intelectuais petistas e, principal-

mente, os políticos do PT saem da

crise com um entendimento diverso

do funcionamento de uma economia

de mercado?

É importante notarmos que as

divergências de que tratamos – o

efeito da política fiscal sobre o cres-

cimento e os fatores que condicio-

naram o desenvolvimento e a supe-

ração da armadilha da renda média

pelos países asiáticos – são de na-

tureza positiva. Ou seja, são diver-

gências que os economistas e inte-

lectuais petistas têm com os demais

profissionais da ciência econômica

em relação à natureza do funcio-

namento da economia. Os ingleses

diriam que são diferenças de Eco-

nomics. Não se trata de diferentes

preferências sobre a forma de or-

ganizar a produção e a distribuição

da riqueza. Ou seja, em princípio as

diferenças de pensamento ocorrem

sobre temas em que há um lado cer-

to e um lado errado.

O nível de punição política do PT

pelo desastre econômico associado

à nova matriz econômica foi muito

elevado. Adicionalmente, há o reco-

nhecimento de diversos economistas

petistas da necessidade da Reforma

da Previdência. Nossa leitura do de-

bate público recente é que deve ter

havido algum grau de aprendizado

pelos economistas e intelectuais pe-

tistas. Certamente o petismo não

saiu ganhando com a desorganiza-

ção que foi promovida pela nova

matriz na economia.

Talvez tenha se reduzido a pres-

são por pautas populistas no pro-

cesso eleitoral de 2018. Neste caso,

o debate da campanha será mais re-

alista e racional do que o ocorrido

nas últimas eleições presidenciais,

especialmente na de 2014, em que

o nível de mistificação econômica

da candidatura vencedora foi avas-

salador. Uma campanha melhor

certamente é um prenúncio de um

governo mais capaz de lidar com os

imensos desafios brasileiros. Será

uma ótima notícia para todos se o

aprendizado discutido por esta co-

luna tiver efetivamente ocorrido.

Será que os economistas,

intelectuais petistas

e os políticos do PT

saem da crise com um

entendimento diverso do

funcionamento de uma

economia de mercado?

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ENTREVISTA

14 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

Conjuntura Econômica — Abril

marca a saída do ministro de Minas e

Energia, Fernando Bezerra Coelho Fi-

lho, em meio a dois processos impor-

tantes: a privatização da Eletrobras e

a reforma do setor elétrico. Considera

que esses projetos correm risco?

São temas efetivamente importantes, aos quais acrescentaria o novo marco regulatório do gás natural. O ministro de Minas e Energia foi uma grata sur-presa, pois foi capaz de arregimentar um conjunto de pessoas respeitadas. Paulo Pedrosa (até março, secretário executivo do MME), Luis Barroso (presidente da Empresa de Pesquisa Energética – EPE), já tínhamos o Rui Altieri à frente da Câmara de Comer-cialização de Energia Elétrica (CCEE) e o Luis Barata como diretor-geral do

O setor elétrico brasileiro vive um importante processo de transição de modelo que

pretende enterrar o mau momento vivido desde 2012, quando a soma de ativismo

regulatório e hidrologia desfavorável deu início a um acúmulo de desequilíbrios opera-

cionais e prejuízos bilionários para agentes dessa indústria. Em entrevista à Conjuntura

Econômica, Joisa Dutra, diretora do Centro de Regulação em Infraestrutura (FGV Ceri),

analisa a estratégia do atual governo para ordenar o setor e os possíveis impactos da

saída do ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho, em abril, para disputar eleições.

Nessa conversa, Joisa também alerta que, apesar de necessária, a reforma do setor elétri-

co poderá penalizar o consumidor ao focar na garantia de capacidade em detrimento

do processo de formação de preços. “Sem tratar da mecânica de funcionamento, do

processo da formação de preço, continuaremos empilhando coisas com impacto seve-

ro sobre o consumidor, seja ele residencial, comercial ou industrial, com prejuízo para a

economia e para a competitividade”, conclui.

Joisa Campanher DutraDiretora do Centro de Regulação em Infraestrutura (FGV Ceri)

Foto: Andre Telles

Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

“Reforma ainda não permite identificar uma nova governança para o setor elétrico”

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A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 15

ENTREVISTA Joisa Campanher Dutra

investimentos supercolateralizados e com uma alocação de risco ainda in-cipiente, fruto da própria arquitetura do setor – não só do ponto de vista de regulação setorial, mas de seguros, de mercado de capitais. Então esses elementos todos caracterizam um am-biente em que a percepção de risco ainda é muito grande.

Com a expansão de investimen-tos em geração, transmissão e distri-buição, conseguimos universalizar o acesso à eletricidade. Hoje mais de 98% da população conta com acesso

à energia elétrica, ainda que tenha di-ficuldade de pagar por ela. Mas come-ça a se criar um conjunto de impactos fruto das políticas distributivas. Sem juízo de mérito, a política de universa-lização quis abarcar toda a população do país com o mesmo custo de gera-ção para quem está no sistema inter-ligado ou no sistema isolado. Mas o custo de geração no sistema isolado é mais alto, pois é alimentado por com-

Operador Nacional do Sistema (ONS). Somando Pedro Parente (presidente da Petrobras) e Wilson Ferreira (pre-sidente da Eletrobras), é o dream team que muita gente pediria se encontrasse um gênio da lâmpada. Wilson e Pedro foram escolhas felizes porque não são apenas conhecedores de suas áreas, mas executivos muito testados. Pedro Parente esteve à frente da Câmara de Gestão da Crise de Energia no raciona-mento de 2001/2002, e Wilson condu-ziu a CPFL, onde fez transformações, atuando no centro da carga da ativi-dade econômica do país, investindo em energia renovável, testando novas tecnologias. Algumas organizações públicas são como submarinos, têm uma inércia que precisa se enfrentar e existe um conjunto muito pequeno de pessoas capazes de dar a guinada que essas empresas mereciam.

No caso do setor elétrico, essa ten-

dência à inércia se soma a um qua-

dro financeiro grave, não é?

Vale contextualizar o cenário que essa equipe encontrou em 2016 e suas ra-zões. A partir de 2004 o setor elétri-co fez uma reforma importante que permitiu expandir o sistema atraindo investimentos em geração de grande vulto, num primeiro momento não necessariamente renováveis, mas de-pois em grandes empreendimentos hidrelétricos distantes dos centros de cargas e, por questões ambientais, sem grande capacidade de reserva, mas a preços competitivos. E assim se viabi-lizou a capacidade de geração para os consumidores atendidos pelas distri-buidoras, no ambiente regulado, que representam mais de 75% do consu-mo de energia no país. Um dos susten-táculos dessa expansão foi o BNDES, que em um determinado modelo tinha

bustíveis fósseis. Criou-se um encargo setorial, a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), e buscou-se a ex-pansão das energias renováveis. Isso tudo vai gerando custos, que em 2012 são percebidos pelo consumidor in-dustrial como excessivamente onero-sos. Nesse momento, nossa economia já sofria os reflexos da crise econô-mica mundial de 2008/09 e os efeitos do barateamento da energia com a exploração do shale gas nos Estados Unidos, pressionando nossa indústria, que nesse momento se tornou um dos grandes vetores por pressão de au-mento da competitividade.

Como resposta a essa pressão, a presidente Dilma Rousseff oferece aos agentes a possibilidade de renovarem as suas concessões antecipadamente, ade-rindo a novas regras. E com a MP 579, que depois vira lei, se estabelece um ob-jetivo muito claro de promover ganhos de competitividade. Nesse momento, o Brasil começa a enfrentar dificuldades na operação do sistema, começa a ter que acionar geração termelétrica mais cara não contratada, que acabou por produzir um desarranjo que o governo, comprometido com a questão eleito-ral, não contorna adequadamente. Aí começa a fase que chamamos de ativis-mo regulatório, em que foram edita-das mais de 50 medidas, leis, decretos, MPs, portarias. O resultado, em 2016, é um quadro de fragilidade econômi-co-financeira, altamente judicializado, com empresas distribuidoras tendo que arcar com compromissos frutos de empréstimos contraídos após 2012 e um quadro de afluências mais irregular que encareceu a geração, entre uma sé-rie de dificuldades.

Como avalia a atuação inicial desse

dream team?

O BNDES, que até há

pouco foi pilar do

modelo de expansão,

agora tem uma nova

política operacional. A

forma como vai se inserir

será diferente

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ENTREVISTA Joisa Campanher Dutra

16 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

Para que os agentes que promoveram a judicialização do sistema renuncias-sem a esse direito, era preciso ter clare-za de qual proposta teriam em troca. E o problema foi que a nova equipe não conseguiu apresentar uma alternativa para resolver o problema emergen-cial. A proposta de reforma do setor elétrico só aparece numa minuta para consulta pública em julho de 2017, já como proposta legislativa, dando aos agentes 30 dias para contribuir. Para muita gente aquilo foi uma surpresa, todo mundo se mobilizou, somando centenas de contribuições. O problema é que, quando termina esse prazo de consulta, sai a proposta de privatiza-ção da Eletrobras, e depois a proposta para o gás. E agora o ministro sairá na primeira quinzena de abril deixando uma série de dúvidas, sendo as mais imediatas sobre quem vai substituí-lo e qual a efetiva capacidade de se levar adiante esses projetos.

Qual a sua opinião?

Concretamente, existe uma dificulda-de muito clara. Um dos méritos desse processo é que em nenhum dos casos o governo entrou com medida provi-sória. Por outro lado, se defendemos o diálogo, dependemos da disposição do Congresso em apreciar essas propostas, e estamos às vésperas de eleições. Mas isso deverá, no máximo, desacelerar o processo, não o reverter. Do ponto de vista da Eletrobras, fazer as privatiza-ções será muito difícil no horizonte de tempo que temos. É desafiador, porque sequer o Tribunal de Contas da União (TCU) se manifestou em relação aos pré-editais das distribuidoras. No caso das demais reformas, minha opinião é que a proposta para o setor de gás é muito mais madura do que a do setor elétrico. A do setor elétrico tem mui-

tas lacunas, elementos que estão pen-dentes de regulamentação posterior, e estamos tratando de uma reforma que vai mudar de maneira importante o que é a estrutura de contratação do setor. Ela está propondo o estabeleci-mento do que chamamos de um mer-cado de capacidade, que no projeto é identificado na divisão de contratação de lastro e energia. Além disso, o BN-DES, que até há pouco foi pilar desse processo de expansão, agora tem uma nova política operacional. Não é que ele não tenha recursos, mas a forma

como vai se inserir será diferente, e isso tem consequências. É claro que gostaríamos que esse financiamento de longo prazo do setor passasse a incluir mais agentes já estabelecidos, do Brasil e de fora do país. Mas esses outros fi-nanciadores exigem uma estrutura de alocação de riscos para garantir taxas de retorno razoáveis, uma arquitetura institucional diferente que não está pre-vista no projeto de reforma. O que está

dito é que a contratação de lastro se dará conforme critérios estabelecidos, seja pelo MME, seja pela própria Aneel, e os recursos arrecadados en-tre todos os agentes serão alocados numa instituição centralizadora – que num primeiro momento poderia ser a CCEE. Aqui no Ceri, consideramos que há vários elementos dessa contra-tação de capacidade que não estão es-tabelecidos, e que não é possível tratá-los separadamente.

Veja, a reforma é necessária, pois aponta a vários caminhos impor-tantes, como equacionar o risco hi-drológico, revisar subsídios – fator fundamental, já que as políticas distri-butivas e os encargos criados no setor tiveram importante papel no desequi-líbrio que levou a 2012. Mas ela ainda não permite identificar com clareza o que é uma nova governança do setor, e governança é um tema fundamental principalmente em países com insufi-ciente capacidade institucional.

O que é sensato priorizar enquanto

a reforma do setor elétrico ainda

está em discussão?

Existem alguns pontos que de fato são emergenciais. A questão da alocação do risco hidrológico que hoje se dá através do Mecanismo de Realocação de Energia (MRE) precisa ser revista imediatamente, porque ela funcionou num contexto de menor incerteza em relação ao regime de afluência. O go-verno tem, dentro de sua proposta, uma tentativa de promover ajustes, já fez uma tentativa, tem negociado com agentes na extensão dos contratos de concessão. Isso demanda introduzir um pouco mais de disciplina econô-mica para pensar o desenho desse sistema, quer do ponto de vista da ca-pacidade, que o governo identificou

A recessão nos deu

um tempo, mas este não

serviu para afastar

nossas preocupações,

pois três meses atrás

estávamos tensos se ia

chover ou não

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A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 17

ENTREVISTA Joisa Campanher Dutra

ser feita pelo regulador do sistema brasileiro de pagamentos, seja a CVM, ou seja o BC. A proposta não diz isso. Toda a desarticulação que temos hoje de impedimentos de pagamentos que estão refletidos na CCEE por conta da judicialização não ocorreria num sistema que fosse regulado de acordo como defendemos. Com a reforma, o governo está buscando estabelecer essa competência formal para a Aneel, mas isso não vai garantir à agência capa-cidade efetiva de entender esse outro universo. Isso é um equívoco.

Para o consumidor, seja por falta de

chuva, seja por mudança de mode-

lo, questões relacionadas à energia

preocupam do ponto de vista infla-

cionário. Considera que essa revisão

poderá pesar no bolso?

Pela natureza da nossa atuação aqui no Ceri, a gente já tem um viés na for-ma de pensar, de uma perspectiva mais estrutural. Toda a nossa conversa até aqui evidencia o fato de que, sem tra-

através dessa forma de separação de lastro e energia, quer do desenvolvi-mento de um mercado, que é o que aparece na proposta agora.

Atualmente, no Brasil, não se usa o mercado para contratação de ener-gia elétrica. Os distribuidores que atendem à maior parte da carga con-tratam no longo prazo, e o mercado livre faz contratação bilateral em mercados. Então, não temos um mer-cado transparente, e o atual processo de formação de preços não consegue responder nem produzir incentivos corretos, gerar bons preços para os consumidores, e nem gerar condições para o financiamento de longo prazo. Ou seja, garante o funcionamento da indústria, mas, do ponto de vista da sociedade, deixa a desejar.

Aqui vale ressaltar um detalhe: quem fez reestruturação de mercado no mundo caminhou estabelecendo primeiro o mercado de energia, e depois o mercado de capacidade. O Brasil está querendo fazer uma re-estruturação pelo caminho inverso, com uma contratação de capacidade sem ter solucionado o problema do processo de formação de preço atra-vés do mercado de energia. O que se está fazendo na reforma é aumentar o que chamam de granularidade, está dizendo: eu terei preços determina-dos com maior frequência e isso é im-portante porque as novas fontes têm intervalos de resposta mais rápidos. Então preciso de preços que acompa-nhem isso. Mas o processo de forma-ção de preços não está mudando.

Outro ponto dessa proposta im-portante do ponto de vista do fi-nanciamento é que ela prevê que as contratações em mercados organiza-dos sejam reguladas pela Aneel, quan-do defendemos que a regulação deve

tar da mecânica de funcionamento, do processo da formação de preço, conti-nuaremos empilhando coisas com im-pacto severo sobre o consumidor, seja ele residencial, comercial ou industrial, com prejuízo para economia e para a competitividade. Ainda mais se a gente pensar que temos um horizonte de pre-ocupação quanto à segurança e confia-bilidade de suprimento. A recessão nos deu um tempo, mas este não serviu para afastar nossas preocupações, pois três meses atrás estávamos tensos se ia chover ou não, se isso impactaria a in-flação. Isso jamais poderia estar acon-tecendo. Então como é que, mesmo com interessados em investir, com con-tratação de longo prazo, ainda ficamos preocupados com segurança, confiabi-lidade de suprimento, e ainda por cima com preço alto? É óbvio que tem um problema aí, que precisa ser enfrenta-do, e ainda não está dito como.

E a iniciativa atual de revisão, como

disse, trata do processo de forma

invertida?

Na minha forma de ver, sim. E sabe qual a consequência dessa inversão? A gente continuar pagando sem ter os sinais corretos, algo perverso para o consumidor. Esse é que é o ponto. O consumidor está subrepresentado nessas discussões, e isso se reflete no preço, na inflação.

Como destacou há pouco, se olhar-

mos apenas para o fato de que os

leilões de energia (geração e trans-

missão) atraíram quase R$ 40 bi-

lhões em investimento no ano pas-

sado, a sensação é de um ambiente

de negócios muito melhor, não?

Em primeiro lugar, leilão de geração não dá vazio, sempre há vários inves-tidores cadastrados a dar uma oferta.

Hoje as tarifas de

eletricidade são muito

caras, penalizam a

competitividade da

indústria, e temos um

grande nível de perdas

não técnicas

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ENTREVISTA Joisa Campanher Dutra

18 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

Além disso, a energia renovável está ficando mais barata no mundo, e na América Latina há vários exemplos de contratação de energias renováveis a preços muito competitivos, como Chile, México e Argentina. Quando se olha ao longo das indústrias de infraes-trutura, é inegável que o setor elétrico goza de uma posição privilegiada na arquitetura de alocação de risco, ain-da que aqui não seja suficientemente boa para equacionar o financiamento de longo prazo. A proposta que está sendo trazida pelo projeto de reforma implica arrecadar recursos, canalizá-los e depois levar para os agentes. É quase uma tentativa de solucionar essa talvez menor participação do BNDES. O problema é que isso não necessa-riamente nos diz se o processo de for-mação de preço vai melhorar. Hoje as tarifas de eletricidade são muito caras, penalizam a competitividade da indús-tria, e temos um grande nível de perdas não técnicas. Pode-se alegar que con-seguimos atrair investidores porque te-mos contratos em energia renovável de muito longo prazo, inclusive compara-tivamente à experiência internacional, num mercado que já está testado, que já faz leilões há muito tempo. Do pon-to de vista de ativo de infraestrutura, é um bom investimento. Mas a gente ainda não conseguiu produzir uma ar-quitetura que nos dê bons resultados do ponto de vista de financiamento para além desse ambiente.

A dominância de investidores chine-

ses pode ser um indicativo de que o

interesse pelo mercado brasileiro se

concentra em jogadores menos pre-

ocupados com a percepção de risco?

Tudo o que tem se dito é que gostaría-mos de contar com investimentos que trouxessem uma certa diversificação.

A China efetivamente tem investido em infraestrutura ao redor do mundo, então um termômetro de adequação desse ambiente seria nossa capacidade de atrair investidores diversificados. Eu diria que, nesse sentido, temos conseguido fazê-lo A Enel, por exem-plo, comprou o controle da Celg, concessionária de distribuição em Goiás, e tem feito vários investimen-tos em energia solar; a Engie investiu na hidrelétrica de Jirau; a Iberdrola na Elektro... São evidências de inves-tidores internacionais sendo atraídos,

e investidores tradicionais, que têm histórico no mercado internacional de energia. E em um momento de revisão de estratégia em que o setor de energia passa por uma transformação, eles fa-zem investimentos greenfield no Bra-sil – diferentemente dos chineses, que preferem ativos já implantados.

Atualmente o Ceri assessora o BID,

provendo informações para a defi-

nição de investimentos em infraes-

trutura no Brasil. Qual a orientação

dada quanto ao setor elétrico?

Firmamos um contrato em 2017 com o banco e temos colaborado na discussão de sua estratégia de atuação para o período 2019-23. Começamos com energia, depois fi-zemos análises dos setores de trans-portes e saneamento. Em linhas gerais, revisitamos o histórico do setor, mostrando como ele se ex-pandiu às custas da competitivida-de da economia, destacamos que é um grande veículo de arrecadação de impostos, seja no âmbito federal quanto estadual, e suas implicações. Mas uma das questões que perpas-sa todas as discussões que temos feito é a necessidade de projetar a demanda futura. Quando falamos do período 2019-23, esse horizonte coincide com o da reforma do se-tor elétrico, e também da transição energética que está ocorrendo em âmbito mundial. No caso do Bra-sil, a mudança parte do decréscimo da participação hidrelétrica na ge-ração de eletricidade. Agora esta-mos chegando a 20 GW de energia eólica, estamos prestes a começar uma onda de solar no país que em nível mundial já está florescendo bastante, fruto do baratea mento da tecnologia. Poderemos, breve-mente, assistir a uma expansão da micro e minigeração distribuída, a partir de renováveis. Nossos preços são tão elevados que criam uma oportunidade para o consumidor se tornar um “prosumidor”, que também produz energia. Precisa-mos pensar em uma reforma que consiga coerência nos incentivos que os agentes enfrentam. Porquê, mesmo que comecemos a assistir a

Nossos preços são

tão elevados que

criam uma oportunidade

para o consumidor se

tornar um “prosumidor”,

que também

produz energia

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A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 19

ENTREVISTA Joisa Campanher Dutra

uma participação crescente de con-sumidores com capacidade de gera-ção, as evidências em nível mundial indicam que na esmagadora maio-ria dos casos os consumidores não se desconectam do grid. Então esse grid tem um papel de backup e está provendo serviços que precisam ser remunerados.

A transformação que está ocor-rendo no setor elétrico está apon-tando a uma maior flexibilidade. Quando geramos mais eletricidade a partir de fontes intermitentes, es-tamos aumentando a variabilidade na oferta. Então precisamos ter re-cursos do lado da demanda para fazer frente a isso. Não dá para pensar que a gente tem uma de-manda que não reage a preço. Por isso entra essa questão de recursos distribuídos, eficiência energética – que será grande fonte de atração de investimento através de PPPs. Um exemplo é o da iluminação pública, com projetos de parceria público-privada estruturados com apoio de recursos internacionais, que parece que agora vão decolar. E o veículo elétrico, que é um tema fundamental para o Brasil, que po-tencialmente tem uma indústria de biocombustíveis capaz de desempe-nhar ou atender à parte das neces-sidades do setor automotivo.

E aí também entra a importância da reforma do setor de gás no Brasil. Quando inauguramos a participação privada no petróleo em 1997, tínha-mos a percepção de que o gás tinha uma participação marginal. Hoje, en-tretanto, o cenário é de mais deman-da e, potencialmente, mais oferta. Já temos uma capacidade de produção offshore, mas também temos poten-cial ainda desconhecido no onshore,

seja ele convencional ou não conven-cional – fronteira que ainda não en-frentamos. E temos a possibilidade de importação através dos terminais de GNL. É fundamental entender o que será esse papel do gás para conseguir-mos harmonizar essa disponibilidade. Não é apenas a demanda do setor elé-trico, mas também a industrial, que tem importante papel para consumi-dores eletrointensivos. E tem muita tecnologia disponível no mundo, já acessível no Brasil, que poderia aten-der a usuários em menor escala.

E no setor de saneamento, quais as

recomendações dadas ao BID?

Sempre tivemos no país a percepção de abundância de recursos hídri-cos como se o país fosse um gran-de depositário, mas hoje do ponto de vista econômico acho que temos clareza de que uma coisa é um país ter recursos e outra é conseguir pro-mover desenvolvimento. As indús-trias de infraestrutura começaram a

A recessão atingiu essa

indústria (de saneamento)

no momento em que ela

começava a se mover.

O pior que pode haver

em infraestrutura é o

stop and go

revisar o papel do Estado na década de 90, sendo o setor de telecom o primeiro a ganhar atenção, pois já contava com uma inovação tecnoló-gica em curso. O Brasil se engajou nessa onda, e depois da privatiza-ção da Telebras começa a investir e promover a universalização do acesso à telecomunicação. A admi-nistração do presidente Lula com Dilma Rousseff como ministra le-vantou outra rodada do programa de universalização de energia elétri-ca, o Luz para Todos, colocando as distribuidoras de eletricidade como agentes do processo, mas a um cus-to que hoje a gente está tendo que enfrentar. E agora temos outra fron-teira muito clara, de promover aces-so universal ao saneamento. A gente tem uma parcela da população que recebe água conectada, mas temos um atraso muito grande na capaci-dade de coletar o esgoto e tratá-lo. Isso ocorre num cenário que tem muitas características importantes, com uma população majoritaria-mente urbana, e um volume de per-das muito grande. Com o lançamen-to do PAC, em 2007, e logo o PAC2, observa-se um aumento da escala de investimentos, mas estes levam tem-po para maturar. E a recessão atin-giu essa indústria no momento em que ela começava a se mover. Isso teve impacto perverso, pois o pior que pode haver em infraestrutura é o stop and go. Na retomada des-ses investimentos, também precisa-remos levar em conta que se trata de indústrias em transformação em nível mundial, e os marcos regulató-rios precisarão se adequar para isso, refletindo esse momento de mudan-ças, com clareza para pactuar con-tratos com parceiros privados.

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2 0 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

MACROECONOMIA

O Brasil sediou, entre os dias 18 e 23 de março, em Brasília, o 8o Fórum Mundial da Água (WWF), principal evento internacional sobre o setor. Os debates versam sobre os Obje-tivos de Desenvolvimento Sustentá-vel (ODS), os quais fazem parte de um plano de ação para erradicação da pobreza definido pela Organiza-ção das Nações Unidas (ONU) em 2015. Os 193 países membros da organização, incluindo o Brasil, se comprometeram a alcançar as me-tas dos ODS até o ano de 2030.1

O Fórum trata principalmen-te do ODS 6, que tem como uma de suas metas o acesso univer-sal e equitativo à água potável e ao saneamento adequado. Muito embora o país tenha assumido o compromisso, o contexto nacional deixa os especialistas pouco oti-mistas quanto a possibilidade de o Brasil atingir estas metas em ape-nas 12 anos. Para além do déficit no acesso, a descrença é explicada pela baixa eficiência na prestação do serviço e pela dificuldade na expansão, inclusive por problemas

de sua coleta (SNIS, 2016). Esse dé-ficit aumenta ainda mais quando se avaliam individualmente os estados. No caso do Amapá, por exemplo, 64% da população não tem aces-so à água potável e, em Rondônia, 96% da população é excluída da coleta de esgoto. Destaca-se que as áreas subnormais e as regiões menos desenvolvidas economicamente no país são aquelas com maior déficit no acesso aos serviços.

Ainda, contrariamente ao preco-nizado na Política Nacional de Re-cursos Hídricos (Lei no 9.433/97) e no ODS 6, a água não está sendo utilizada de maneira racional. Com-prometem a sustentabilidade do se-tor a alta perda de água na distribui-ção – em média 38% no Brasil – e o baixo índice de tratamento de esgoto – apenas 41% do esgoto gerado é de fato tratado.

Para completar o desafio, há evidências de que os produtos de crédito hoje disponibilizados para investir na expansão da rede são inadequados para as necessidades do setor. O diagnóstico inclui difi-

Acesso universal à água e ao esgotamento sanitário até 2030: uma meta possível para o Brasil?

Joisa Dutra

Diretora da FGV CERI e

doutora pela FGV EPGE

Juliana Jerônimo Smiderle

Pesquisadora da FGV CERI

Fernanda Oliveira

Pesquisadora da FGV CERI

de financiamento de longo prazo e alocação de risco.

Cerca de 17% da população bra-sileira – 33 milhões – ainda carece de acesso ao serviço de abastecimento de água potável. Quando o tema é esgoto, 48% da população total – mais de 96 milhões – não se beneficia

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A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 2 1

CONJUNTURA MACROECONOMIA

Boas iniciativas também podem ser encontradas na América Latina. A Colômbia, que planeja o setor des-de 2004, prevê o aumento do total de esgoto tratado dos atuais 41% para 68% em 2030. Para tanto, prevê-se a construção de quatro estações de tratamento de esgotos (ETEs) e a ampliação de outras duas. Já no Peru, acesso a microcrédito permite a pessoas de baixa renda construir instalações sanitárias dentro de suas habitações, garantindo, assim, o efe-tivo acesso à água potável.

As iniciativas internacionais re-portadas compartilham também de vontade política e conscientização da população acerca da essencialidade dos serviços. As discussões ocorridas em Brasília deixam claro que avanços no setor dependem do entendimento, por parte dos tomadores de decisão e da sociedade em geral, de que investi-mentos em água e saneamento geram externalidades positivas para toda a população. E ainda que se trate de serviços públicos indispensáveis, deve ser garantida uma adequada remune-

culdade na elaboração de projetos (falta de um pipeline de projetos),2 e percepção de risco elevado, fruto da fragmentação e falta de harmoniza-ção no ambiente regulatório. Mesmo quando o financiamento ocorre, de maneira geral, a execução das obras de saneamento é bastante morosa, mais longa que o próprio ciclo po-lítico. De acordo com pesquisa rea-lizada em 2016 pela FGV CERI, ao analisar os contratos firmados entre os anos de 2007 e 2015 no âmbito do Programa Saneamento para To-dos do PAC, constatou-se que 66% do total de obras ainda não estavam concluídas cerca de nove anos após o início de sua contratação.3

O cenário é pouco otimista e os investimentos realizados nas últimas décadas – que não superam 0,5% do PIB – são tidos como insuficientes para avançar diante da situação que o país vive. Diante deste panorama, atingir a meta do ODS 6 se coloca como um verdadeiro desafio para o Brasil. O que é preciso fazer, então, para avançar?

Durante o 8o Fórum Mundial da Água, lições internacionais foram apresentadas para superar este de-safio, algumas incluindo soluções flexíveis para promover acesso a água e saneamento. Este é o caso da França, que conta com um setor de saneamento já em estágio ma-duro, embora ainda careça de ser-viço universal de coleta de esgoto. A fim de promover a expansão do acesso, algumas prefeituras france-sas substituíram a solução tradicio-nal – construção de rede coletora – e se responsabilizaram pela im-plantação e manutenção de fossas sépticas, serviço que passou a ser cobrado pelo poder público.

ração dos investimentos e a sustenta-bilidade financeira.

Por fim, em âmbito nacional, não se pode ignorar as ações existentes. A Fundação Nacional de Saúde (Fu-nasa – Ministério da Saúde) distri-bui equipamentos para tratamento de água, desenvolvidos pela própria entidade, para municípios de até 50 mil habitantes. Tem-se, também, a entrada em operação da transposi-ção do rio São Francisco, que levará água para o semiárido nordestino.

O momento atual é palco de ini-ciativas promissoras para o desen-volvimento do setor de saneamento – principal desafio de infraestrutura no Brasil. O Plano Nacional de Sa-neamento Básico (Plansab) está em processo de revisão. Espera-se que o diagnóstico realizado seja realista, com soluções factíveis. Além disso, o governo federal, ciente dos desafios do setor, trabalha na elaboração de um projeto de lei que visa diminuir a percepção de risco. Se o assunto for bem tratado, tem o potencial de tra-zer maior estabilidade jurídica para o setor, fortalecer a regulação e, conse-quentemente, criar um ambiente atra-tivo a investimentos. Não obstante todas essas medidas, o avanço no se-tor depende de uma política coerente, uma governança adequada, monito-ramento e conscientização social.

1Para mais detalhes, ver https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/.

2Segundo o BNDES, no ano de 2017, apenas 1% dos recursos para financiamentos do banco em saneamento foram efetivamente investidos – dos R$ 70 bilhões disponibilizados, cerca de apenas R$ 760 milhões foram utilizados de fato. Fonte: comunicação oral no WWF.

3Veja documento FGV CERI “Efetividade dos in-vestimentos em saneamento no Brasil” disponí-vel em ceri.fgv.br.

Cerca de 17% da

população – 33 milhões –

não recebe água potável.

E 48% da população total

– mais de 96 milhões – não

tem acesso aos serviços

de esgoto

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MACROECONOMIA

2 2 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

Na reunião de 21 de março último, o Copom fixou a taxa de juros Selic, do mercado interbancário em 6,5% ao ano, a taxa mais baixa desde que o regime de metas de inflação foi implantado em junho de 1999. A meta da taxa de inflação é de 4,5% ao ano, com um intervalo de 3% a 6%. Em 2014, a taxa de inflação de 6,41% foi acima da meta. Des-de o primeiro semestre de 2013 o Copom começou a aumentar a taxa de juros, que chegou em 30 de julho de 2015 a 14,25% ao ano, ficando neste patamar até a reunião de 1 de setembro de 2016. Logo em seguida o Copom iniciou a política de redu-ção da taxa de juros que deve ser encerrada na próxima reunião do dia 16 de maio próximo.

Uma causa importante da gran-de recessão brasileira que começou no primeiro semestre de 2014 foi a política monetária. A inflação teve seu pico em 2015, quando alcançou 10,67% ao ano. O custo social de combate à inflação quando ela ultra-passa dois dígitos é muito elevado em qualquer país do mundo. No Brasil a taxa de desemprego aumentou de 6,8% em 2014 para 13,4% em 2017, um aumento de 6,6%. A taxa de in-

uma maneira indolor de combate à inflação? Um fato estilizado das eco-nomias de mercado é que os preços dos bens e serviços não são flexíveis, como os preços das ações e de várias commodities. Este fenômeno é co-nhecido como inércia. Num mundo com inércia, os preços não se ajus-tam imediatamente às mudanças na política monetária. O resultado des-te comportamento é o custo social do combate à inflação.

O Banco Central quando aumen-ta a taxa de juros torna os ativos denominados em moeda doméstica mais atrativos. A entrada de capitais estrangeiros provoca a apreciação da taxa de câmbio, barateando os bens importados e desestimulando as ex-portações. A produção e o empre-go doméstico diminuem. Quando o Banco Central reduz a taxa de juros, os ativos domésticos ficam menos atrativos, provocando a depreciação da taxa de câmbio, que desestimula as importações e incentiva as expor-tações. A produção e o emprego do-méstico crescem.

A política monetária afeta os pre-ços dos ativos: quando os juros sobem os preços dos ativos caem, e quando os juros diminuem os preços dos ati-

Os mecanismos de transmissão da política monetária

Fernando de Holanda Barbosa

Professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças (FGV EPGE)

flação caiu de 10,67% em 2015, para 2,95% em 2017, isto é, uma redução de 7,72%. Conclusão: a redução de cada 1% na taxa de inflação custou 0,85% na taxa de desemprego.

Muitos analistas acreditam que a redução da taxa de juros não tem sido acompanhada por uma forte ex-pansão da economia. Para analisar esta questão é necessário compreen-der como funcionam os mecanismos de transmissão da política monetária. Os mecanismos de transmissão pro-curam descrever como a política mo-netária afeta a produção e o emprego na economia. Os principais canais de transmissão da política monetária são os seguintes: 1. taxa de juros; 2. taxa de câmbio; 3. preços de ativos; 4. crédito; e 5. expectativas.

A taxa de juros é o principal ca-nal de transmissão da política mo-netária. No curto prazo, quando o Banco Central aumenta (diminui) a taxa de juros nominal ele aumenta (diminui) a taxa de juros real. O au-mento (diminuição) da taxa de juros real diminui (aumenta) o dispêndio. O dispêndio afeta a produção e o emprego. A queda na produção e o aumento do desemprego provocam a queda da taxa de inflação. Existe

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CONJUNTURA MACROECONOMIA

A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 2 3

aos bancos. Isto permite um acesso maior ao crédito. O aumento do cré-dito acarreta o aumento da produ-ção e do emprego.

O Banco Central pode influenciar as expectativas dos agentes econômi-cos divulgando com clareza e preci-são suas ações e processos decisórios. Por exemplo, no regime de metas de inflação, o sucesso deste regime acontece quando a sociedade usa a meta de inflação para o reajuste dos valores nominais dos seus contratos e os mercados financeiros precificam a taxa de inflação esperada com base na meta de inflação. Este mecanismo de transmissão atua diretamente sobre os preços, reduzindo o custo social no combate da inflação, em termos de redução da produção e aumento do desemprego.

Num mundo onde somente exis-tisse o problema da inflação, os me-canismos de transmissão da política

vos sobem. Quando os preços dos ati-vos sobem, a sociedade fica mais rica e tende a gastar mais na compra de bens e serviços. Os empresários, por sua vez, aumentam os investimentos. A consequência é o aumento da pro-dução e do emprego.

Numa economia de mercado o crédito é essencial para a produção e a comercialização de bens e servi-ços. Quando a política monetária é expansionista, com redução da taxa de juros, o Banco Central expande a quantidade de moeda na econo-mia, que acarreta o aumento dos depósitos dos bancos, e, portanto, a capacidade de crédito dos mesmos. Outro fator importante no crédito são as garantias oferecidas aos ban-cos por quem toma emprestado. A redução da taxa de juros aumenta os preços dos ativos, e, portanto, os valores dos colaterais que os indiví-duos e as empresas podem oferecer

monetária já teriam produzido me-lhores resultados se não fosse o pro-blema fiscal dos governos federal, es-taduais e municipais. Todos eles com déficits insustentáveis a longo prazo. Alguns nem sequer conseguem pa-gar os salários de seus funcionários. Adicione-se ao problema fiscal os péssimos investimentos dos gover-nos Lula e Dilma que não aumenta-ram a capacidade produtiva do país. Ademais, alguns setores importantes da infraestrutura sujaram suas mãos na Lava Jato e lutam para sobrevi-ver. Junte tudo isto com a incerteza política da eleição presidencial des-te ano: qual o caminho do Brasil, o neopopulismo do passado recente, a política de empurrar com a barriga que adotamos na década de 80, ou uma política reformista para con-sertar o que está errado? A novela é emocionante e não existe qualquer garantia de um final feliz.

Assinaturas e renovaçõ[email protected] Rio de Janeiro: (21) 3799-6844

Outros estados:08000-25-7788 (ligação gratuita)

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MACROECONOMIA

2 4 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

O impacto da política macro sobre as taxas de lucro setoriais

Nelson Marconi

Professor da FGV EAESP

Um argumento que adoto constan-temente nos meus artigos nesta Con-juntura Econômica reside no distinto impacto exercido pela política ma-croeconômica sobre os diversos seto-res produtivos. Neste artigo, demons-tro como se comportam as margens de lucro setoriais, cuja diferenciação estaria na base do argumento acima, e explico qual sua relação com a po-lítica macro.

A teoria econômica tradicional afirma que os diversos setores, quan-do atuam em mercados competitivos, tendem a apresentar taxas de lucro próximas com o passar do tempo, já que uma eventual superioridade dessa taxa em um setor resultaria em maior concorrência, volume de investimentos, oferta e, por conse-quência, redução da taxa de lucro neste setor. À medida que outros se-tores fossem explorados, ocorreria movimento semelhante. Essa movi-mentação de investimentos entre se-tores leva, após algum tempo, a uma equalização das taxas de lucro entre os diversos setores. Uma vez que sur-ja um novo setor ou uma inovação, nos moldes schumpeterianos, que resulte em taxas de lucro mais altas nessa atividade, o processo acima se-

ria desencadeado novamente até que as margens voltem a se igualar.

Pois bem, os dados não mostram que essa equalização entre taxas de lucro ocorra na economia brasileira, consideradas as margens operacio-nais como proxy. Os diversos seto-res apresentam margens de lucro dis-tintas ao longo do tempo, e mesmo com a crise recente e o declínio das margens observadas em alguns seto-res, essa diferença permaneceu.

Em trabalho desenvolvido junta-mente com João Guilherme Machado, doutorando na FGV, calculamos as margens de lucro de setores da indús-tria, comércio, serviços e construção civil a partir das pesquisas anuais do IBGE. Não é possível calcular as taxas de lucro pois não há informações sobre o estoque de capital em cada setor, mas foi possível calcular as margens totais, operacionais e Ebitda. Neste texto es-tão incluídos os resultados das mar-gens operacionais, por não computa-rem as receitas e despesas financeiras, que não estão diretamente envolvidas na produção e vendas das empresas.

Os gráficos 1 e 2 mostram os re-sultados das margens operacionais (receitas (-) despesas operacionais/receitas operacionais) para alguns

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CONJUNTURA MACROECONOMIA

A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 2 5

Gráficos 1 e 2: Margens operacionais (em %) de diversos setores da economia brasileira

destes setores, entendidos como os mais relevantes para esta discussão. A escala adotada é a mesma nos dois gráficos, de modo a possibilitar me-lhor comparação visual. Nota-se, se-gundo o gráfico 1, que os setores de construção e extrativo mineral (exce-to petróleo) possuem margens de lu-cro operacionais bem superiores, no primeiro caso possivelmente devido à ausência de concorrência externa, e no segundo devido à abundância de recursos naturais que gera ganhos de produtividade inerentes ao setor, além do efeito derivado dos preços exter-nos das commodities; mesmo que a sua margem tenha caído nos últimos anos, permanece em um patamar bem mais elevado que a dos demais setores, dada a sua superioridade incontestá-vel ao longo do período analisado. O único subsetor da construção (não incluído no gráfico) cuja margem de lucro sofreu uma redução maior no

período recente foi o de obras para infraestrutura, devido à queda nos in-vestimentos e aos impactos decorren-tes da operação Lava Jato.

A margem de lucro dos serviços tradicionais para empresas (apoio

administrativo, locação de mão de obra e segurança, entre outros) per-maneceu relativamente estável no período analisado, e superior à dos chamados serviços modernos (servi-ços técnico-profissionais, telecomu-nicações e informação, entre outros) que, ao contrário dos primeiros, podem sofrer concorrência externa, e são declinantes a partir de 2013. Já o comércio varejista possui, tradi-cionalmente, margens operacionais reduzidas, como é de conhecimento geral, pois seu ganho maior advém do giro das mercadorias e volume de vendas, mas mesmo assim observou uma ligeira melhoria nos últimos anos pois, como já discutimos ou-tras vezes, o consumo foi o motor da economia brasileira até o aguçamen-to da crise.

No gráfico 2 estão destacados os resultados para a indústria, na mes-ma escala do gráfico 1, conforme já

A queda da margem

de lucro, observada em

diversas áreas, explica

parcela relevante

da redução dos

investimentos no

período recente

-10,0

0,0

10,0

20,0

30,0

40,0

50,0

60,0

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2007

2008

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2011

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2013

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2015

Comércio varejista Construção Serviços tradicionais para empresas

Serviços modernos Commodities primárias extrativas

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CONJUNTURA MACROECONOMIA

2 6 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

mencionado, para facilitar a compa-ração. Primeiro, ressalta-se que as margens são inferiores às dos seto-res que não enfrentam concorrência externa ou usufruem de vantagens comparativas. As margens são ainda menores, e declinantes, nos setores que produzem bens com maior con-teúdo tecnológico.

Portanto, a análise mostra que os setores mais relevantes sob o ponto de vista da estrutura pro-dutiva da economia brasileira (por gerarem mais inovações, empregos em quantidade satisfatória e de boa qualidade e salários idem), a indús-tria que produz bens que embutem média e alta tecnologia e os servi-ços modernos, apresentaram mar-gens menores que a maioria dos demais setores, e declinantes nos últimos anos. Não seria razoável argumentar que essa inferioridade se deve à ineficiência; qual seria a

justificativa para os empresários menos eficientes estarem atuando nestes dois setores?

A queda da margem de lucro, observada em diversas áreas, ex-plica parcela relevante da redução dos investimentos no período re-cente. E, mais que isso, o nível da margem de lucro em dois setores tão relevantes como a indústria sofisticada e os serviços modernos restringem ainda mais os investi-mentos nos mesmos e, dada a sua estreiteza, permite-nos afirmar que erros de política econômica afetam mais intensamente estes setores que outros; particularmente, juros altos, câmbio valorizado e salários crescendo muito acima da produ-tividade tendem a prejudicar mais estes setores que outros.

Por isso continuo insistindo que o primeiro passo para retomar o crescimento consistente da econo-

mia brasileira, buscando a priori-zação dos setores que geram bens e serviços mais inovadores e com maior valor adicionado, passa ini-cialmente pela correção desses de-sequilíbrios macroeconômicos. A melhoria da situação fiscal tem, certamente, um papel importan-te a desempenhar nesse processo. Outras melhorias em áreas como educação, infraestrutura, logística, redução da burocracia e demais re-formas microeconômicas também são importantes, certamente, mas não solucionarão o desequilíbrio gerado pelo binômio juros altos – câmbio valorizado. Ainda que os juros básicos estejam caindo, há muito que se fazer ainda para redu-zir as taxas ao tomador final. E, em relação à taxa de câmbio, perma-nece valorizada. Aguardemos para ver se no futuro próximo essas dis-torções serão corrigidas.

Fonte das informações básicas: pesquisas anuais da indústria, comércio, serviços e construção civil, com cálculos dos autores.

Manufaturados de baixa e média-baixa tecnologia

Manufaturados de média-alta e alta tecnologia

Commodities industrializadas derivadas de commodities agrícolas e extrativas

-10,0

0,0

10,0

20,0

30,0

40,0

50,0

60,020

02

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2007

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2 8 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

MACROECONOMIA

Desde a crise financeira internacio-nal de 2008, vários países instituí-ram novas regras fiscais e reforça-ram as já existentes. Quase todos os países desenvolvidos utilizam pelo menos uma regra fiscal, sen-do que a maioria dispõe de mais de uma. As regras fiscais impõem uma restrição duradoura à política fiscal por intermédio do estabelecimento de limites numéricos a agregados orçamentários, evitando que ela seja objeto de mudanças substanti-vas. Na prática, essas regras visam corrigir incentivos distorcidos e conter pressões para gastar excessi-vamente, particularmente em tem-pos favoráveis.

No Brasil, as regras atualmen-te adotadas são de resultado fiscal (primário, regra de ouro); dívida (consolidada, mobiliária) e despe-sas (pessoal, teto de gastos). Ao contrário de outros países, aqui as regras sobre resultados fiscais não são flexibilizadas em períodos de crise. Isso só é possível porque temos uma definição leniente da regra de ouro (sujeita a interpreta-ções permissivas e que contempla todas as despesas de capital) e pelo fato de ser a meta primária defini-

Teto de gasto como regra permanente

Helio Tollini Consultor de Orçamento da Câmara dos Deputados

da anualmente na Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO, o que per-mite o seu ajuste ao ciclo.

Até o advento em 2016 do Teto de Gastos, regra de vigência tem-porária, as regras fiscais sempre tiveram como ênfase principal o curto prazo. A preocupação oficial com resultados fiscais no médio e longo prazos somente se manifes-tou quando o novo governo con-vivia com resultados primários negativos e enfrentava dificulda-des para aprovar reformas econô-micas fundamentais. Esses fatores levaram à oportuna proposição de regra constitucional indutora de uma inflexão progressiva nas des-pesas públicas.

A maioria das medidas que afe-tam receitas e despesas tem impli-cações orçamentárias que vão bem além do habitual ciclo anual. Como resultado, o horizonte de apenas um ano não permite um planeja-mento fiscal sólido, que conside-re o impacto ao longo do tempo das decisões tomadas no presente. Para ampliar o horizonte da polí-tica fiscal, os países desenvolvidos dispõem de um Cenário Fiscal de Médio Prazo (CFMP) incorporado

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A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 2 9

CONJUNTURA MACROECONOMIA

a um Quadro das Despesas de Mé-dio Prazo (QDMP).

No Brasil, temos um CFMP precário, incluído anualmente na LDO, que não permite uma gestão efetiva da política fiscal no médio prazo. Além do horizonte tempo-ral curto, de apenas dois exercícios subsequentes ao que se refere a lei, as receitas e as despesas, os juros e os resultados primário e nomi-nal são apresentados numa tabela fiscal de apenas cinco linhas. Pior, as projeções dos fluxos de receitas e despesas para os dois exercícios subsequentes são imprecisas, feitas sem fidedignidade.

Um CFMP bem concebido, com horizonte temporal alongado e boas estimativas dos principais agrega-dos das receitas e das despesas pri-márias, exige ainda que as metas fiscais para cada um de seus anos derivem do objetivo da política fis-cal no longo prazo ou de alguma

regra fiscal existente. Com as metas anuais dadas e estimativas fidedig-nas das receitas anuais, saberíamos qual o montante máximo previsto para a despesa global em cada exer-cício, que se constituiriam nos tetos globais das despesas.

O teto global da despesa, de ca-ráter impositivo, poderia ser fixado com dois anos de antecedência, com os tetos globais dos exercícios sub-sequentes sendo apenas de caráter indicativo. Exemplificando, o pro-jeto de LDO 2019 traria o total da despesa para 2019, o teto global de caráter impositivo para 2020 e tetos globais de caráter indicativo para 2021 e 2022. Uma vez aprovado o teto global impositivo da despesa para 2020, o valor assim definido não poderá mais ser alterado, nem na LDO 2020, nem na própria lei orçamentária para 2020.

Mais complexo seria o aprofun-damento do CFMP, incorporando-o a um QDMP, que vai além da ques-tão fiscal ao introduzir outra dimen-são, a que trata da questão alocativa dos recursos públicos.

Com o QDMP, os governos conseguem alocar anualmente, em base rolante, os recursos públicos

Fonte: Fortis, M. e Gasparini, C. “Plurianulidade orçamentária no Brasil: diagnóstico, rumos e desafios” ENAP 2017.

O processo simplificado de um QDMP

Top-down:

Botton-up:

Cenáriomacrofiscal

tetosagregados

Tetossetoriais

preliminares

Revisão eaprovação

Agregação/pactuação de demandas:

tetos definitivos

Gastosexistentes

Revisão deprioridades;

(espaço fiscal)

Inclusão denovos

programas

Preparaçãodo

orçamento

(1) (2) (6) (8)

(3) (4) (5) (7)

O horizonte de apenas

um ano não permite

um planejamento fiscal

sólido, que considere

o impacto ao longo

do tempo das decisões

tomadas no presente

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CONJUNTURA MACROECONOMIA

3 0 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

às prioridades estratégicas defini-das para o médio prazo, ao mesmo tempo em que asseguram a disci-plina fiscal. Nele são estimados os custos futuros das atuais políticas públicas de cada setor e, em para-lelo, os órgãos setoriais preparam listas contendo as novas iniciativas de gastos que pretendam iniciar durante o horizonte temporal do QDMP. Ambos os grupos de gastos concorrem pelo espaço fiscal dis-ponível em cada exercício financei-ro do QDMP.

De forma transparente, deve-se empregar um processo interativo em que a restrição fiscal advinda do CFMP “dialogue” com a estratégia de alocação advinda dos órgãos se-toriais. Nesse ambiente, os setores competem por recursos limitados, destacando-se as escolhas que pre-cisam ser feitas em termos de polí-ticas públicas. Dessa forma, o es-paço para decisões discricionárias é reduzido, bem como se identificam medidas que precisam ser adotadas para viabilizar o cumprimento dos tetos globais da despesa.

De posse do teto global das despe-sas e da estimativa de custos futuros das políticas públicas, os subtetos por área temática (cuja soma seria igual ou inferior ao teto global) po-deriam ser definidos com um ano de antecedência, sendo os subtetos do ano subsequente apenas de caráter indicativo. Exemplificando, o proje-to de LDO 2019 fixaria os subtetos de caráter impositivo para 2019 e os subtetos de caráter indicativo para 2020 e 2021.

Nos países que adotam um QDMP a alocação dos recursos pode se dar por ministério, área, setor, função ou programa. No caso do Brasil, a

melhor alternativa parece ser a alo-cação por área temática, dado que o Congresso se habituou a organizar a apreciação do projeto de lei orça-mentária por área temática. Desde 2006 o projeto de lei orçamentária tem sido dividido em dez áreas temá-ticas, número esse elevado para 16 a partir de 2015.

Importante frisar que há meca-nismos para introduzir alguma fle-xibilidade na alocação de recursos por áreas temáticas. Alguns países não distribuem a totalidade do teto global, separando uma parte para a constituição de reservas, que normalmente são percentuais crescentes do teto ao longo dos anos. Muitas vezes, as reservas são distinguidas entre aquela que serve para atender mudança na conjun-tura econômica, e aquela que serve para atender mudanças decorren-tes de nova orientação política.

Interessante notar que o QDMP seria compatível e complementar ao Teto de Gastos, cuja existência facilita a montagem do CFMP ao

predefinir os tetos globais que serão perseguidos no médio prazo. Ade-mais, o QDMP apresenta a vanta-gem de ser relativamente rígido no médio prazo e ao mesmo tempo flexível no longo prazo, pois além do horizonte temporal mais curto permite ajustes anuais por conta de sua base móvel. Acresce que ter um QDMP significa dispor de uma alternativa vigente para nortear a política fiscal quando a regra do Teto de Gastos expirar ou, eventu-almente, substituí-la caso venha a ser suprimida.

Para que o QDMP funcione a contento, precisaria haver uma le-gislação superior que determinasse a sua instituição, principalmente quanto ao caráter impositivo e ir-retratável dos tetos e subtetos defi-nidos com antecedência. A melhor opção, que garantiria plenamente o teto antecipado irretratável, seria in-serir dispositivo na Constituição. Al-ternativamente, poderia constar da nova Lei Complementar de Finanças Públicas, projeto aprovado pelo Se-nado e que se encontra em discussão na Câmara dos Deputados.

Portanto, adotar um QDMP significa introduzir uma orienta-ção de médio prazo ao processo orçamentário, e não a instituição de um orçamento plurianual. Se funcionar bem na forma proposta, a antecedência dos tetos e subtetos impositivos poderia ser futuramen-te ampliada. Por fim, a prática do QDMP pode consolidar uma cul-tura de priorização estratégica nos ministérios, reforçando aspectos antes relegados a um segundo pla-no, como o planejamento, a avalia-ção de desempenho, a responsabili-zação e a transparência.

Adotar um QDMP

significa introduzir uma

orientação de médio

prazo ao processo

orçamentário, e não

a instituição de um

orçamento plurianual

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MACROECONOMIA

3 2 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

Os motivos para uma determina-da variável endógena (como juros reais) de uma economia apresentar valores usualmente dissonantes da-queles que se observam em outras economias podem ser associados a: 1. gostos e tecnologia; 2. institui-ções e 3. políticas.

Nesse tipo de partição, políticas fiscais expansionistas como expli-cação de juros elevados, por exem-plo, se encaixam no último item. Judiciário ineficaz ou concentração bancária, por outro lado, podem ser visualizados do ponto das institui-ções vigentes. Elevado desconto do futuro (impaciência) estaria atrela-do a gostos e tecnologia.

Explicações que unem variáveis usualmente trabalhadas como en-dógenas a outras variáveis na mes-ma categoria (também endógenas) devem ceder lugar a características antecedentes da economia. Ou a pa-râmetros de maior controlabilidade.

Por exemplo, o argumento de que os juros no Brasil são altos porque a poupança é baixa pode-ria regredir a gostos (impaciência),

Um motivo adicional para os elevados juros reais no Brasil

Rubens Penha CysneProfessor da Escola Brasileira de Economia e Finanças (FGV EPGE)

instituições (falta de competição na provisão de recursos ao poupador) ou políticas (taxação na interme-diação financeira).

Após esse tipo de parametriza-ção, se o objetivo, além de positivo, for também normativo, precede-se à identificação de variáveis controlá-veis pelo governo que possam levar ao objetivo desejado (no caso, me-nores juros).

O objetivo deste artigo é destacar uma variável classificável na rubri-ca “gostos e tecnologia”, que pode implicar, quando do endividamento público, em maior consumo agre-gado e maior valor de equilíbrio da taxa de juros. A variável é o grau de altruísmo entre grupos ou gerações.

A conjectura subjacente à pro-posição é que o Brasil, apresentan-do maior dissociação social do que a média dos demais países de inte-resse, se diferenciaria dos mesmos no que diz respeito à solidariedade intertemporal (ou transversal) entre diferentes grupos ou dinastias.

Se válida a conjectura, o que evi-dentemente requer comprovação

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CONJUNTURA MACROECONOMIA

A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 3 3

empírica, estabelece-se uma explica-ção adicional para os elevados juros reais no Brasil ainda que, queremos crer, provavelmente de baixa monta relativa no que diz respeito à ques-tão quantitativa.

Do ponto de vista intertemporal, o argumento é bem desenvolvido na teoria. Exemplos nesse sentido se dão em Blanchard (1985), Buiter (1989) e Weil (1989). A extensão de ordem transversal, em uma economia com diferentes agrupamentos, é também possível conceitualmente.

Tomemos uma economia com pleno grau de solidariedade entre grupos e gerações, onde valha a ideia de consumidor representativo e equivalência ricardiana. Nesta, se o governo troca taxação (aqui, sempre não geradora de distorções de preços) hoje por taxação ama-nhã, elevando seu endividamento, o perfil de consumo privado não se altera. O consumidor represen-tativo não é sujeito a restrições de crédito, desconta a dívida à mesma taxa que o governo e a sua restri-ção orçamentária intertemporal permanece constante.

Imaginemos agora um cenário mais realista, que conjecturamos ser mais usual no Brasil do que em ou-tros países. Nesse, as dinastias (de tamanho constante, para simplifi-car), otimizando seu consumo hoje, não internalizam os impostos a se-rem pagos no futuro por aqueles que estão ainda por nascer.

Nesse caso, a dinastia tenderá a descontar o futuro a uma taxa su-perior àquela usada pelo governo, rompendo a equivalência ricardia-na. Imagine, nesse contexto, que o governo eleva a dívida, taxando menos hoje e mais no futuro. Nesse

caso sobem, relativamente ao caso anterior (com equivalência ricardia-na), quando isso não ocorria, o con-sumo privado, a demanda agregada e a taxa de juros.

Um pouco mais formalmente, imaginemos para uma população inicial suficientemente grande uma taxa n de nascimento e m de morte. O crescimento populacional (aqui, igual ao aumento do número de di-nastias não conectadas por altruísmo recíproco) ocorre à taxa n-m.

Suponha, para simplificar, que a taxa de juros inicial seja constante e igual a r.1 E que a probabilidade de um indivíduo ter uma vida su-perior a t unidades de tempo seja dada por P(T≥t)=exp(-mt). T é o tempo de vida.

Para o governo, reduzir em um real a taxação hoje mantendo cons-tante sua restrição orçamentária significa ter que aumentá-la em ter-mos per capita, de forma a manter constante sua restrição intertem-poral, de exp ((r-(n-m))t) na data t. Esse é o valor que cada dinastia

terá que pagar a mais de imposto na data t.

Por hipótese, uma dinastia to-mada em separado não internaliza os impostos a serem pagos pelas demais, que estão ainda nascen-do. Ela desconta o futuro à taxa r-(n-m)+n= r+m.

Segue daí que o valor atual do aumento de taxação do governo a se dar na data t é igual a exp ((r-(n-m))t) exp((-(r+m))t) = exp(-nt). Ou seja, para o indivíduo, o gover-no postergar a taxação e elevar a dívida interna em R$ 1 no momen-to zero implica a percepção de um aumento da riqueza disponível (em poder aquisitivo do instante inicial) de 1- exp(-nt) > 0.

O endividamento público acaba desta forma por levar a uma eleva-ção do consumo e a uma elevação da taxa de juros.2 Isso não ocorreria na presença de altruísmo entre dinas-tias. Cabe avaliar o ponto empiri-camente, comparando o Brasil com outros países.

1O argumento se desenvolve da mesma forma para taxas de juros variáveis no tempo.

2Pode-se mostrar que a elevação da taxa de juros será tão maior quanto maior a taxa de nascimentos.

Referências bibliográficas

Blanchard, O. Debt, deficits and finite hori-zons. The Journal of Political Economy, v. 93 -2, 1985.

Buiter, W. H. “Death, population growth and debt neutrality”. Economic Journal, 98, 279-293, jun. 1989.

Weil, P. Overlapping families of infinitely-lived agents. Journal of Public Economics, 38, 1989.

Este artigo manifesta as opiniões do autor, não re-presentando necessariamente as opiniões da FGV.

O endividamento

público acaba

desta forma por

levar a uma elevação

do consumo e a uma

elevação da taxa

de juros

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3 4 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

MACROECONOMIA

Recente pesquisa CNI/Ibope reve-la que pouco menos da metade dos brasileiros aponta a saúde como um dos três principais problemas do país – apenas corrupção e desemprego são mais citados. Se assemelha ao apurado pelo Datafolha em meados do ano pas-sado: a saúde era o principal problema para 37% dos entrevistados. Desde 2014, naquela pesquisa da CNI/Ibope era apontado que governos deveriam priorizar a saúde e nela focar seus es-forços de políticas públicas.

Pesquisas populares refletem a tris-te realidade da saúde pública no país. Não faltam problemas, como gestão ineficiente, desperdício de recursos, regulamentação inapropriada, “ju-dicialização” da saúde, altos custos do setor, baixa informatização, falta de prioridade política. Dois aspectos nevrálgicos serão abordados neste breve artigo: o financiamento e as relações federativas.

É sábio o povo quando reclama prioridade do governo para saúde pois o brasileiro é quem menos par-ticipa nesse gasto nacional, exigindo que famílias e empresas aportem mais do que no resto do mundo. Como um todo, se gasta no país mais de 9% do PIB com saúde, que não pode ser

Saúde pública tem remédio?

considerado baixo em comparações internacionais. O grande diferencial aparece na composição desse gasto com os governos respondendo por pouco mais de 40% daquele total – peso relativo dos governos de países ricos é mais que o dobro disso.1 O setor privado na saúde se tornou tão grande no Brasil que apenas hospi-tais e clínicas (sem contar planos e seguros de saúde) arrecadam perto de R$ 10 bilhões anuais em impos-tos federais (fora a contribuição pre-videnciária), superando a indústria automobilística, que mal arrecada R$ 8 bilhões/ano.

Uma razão essencial para o gover-no gastar pouco é que não conseguiu até hoje encontrar uma solução equi-librada para financiar bem a saúde. Um arranjo criativo foi adotado pela Constituição de 1988, que inovou com o conceito de seguridade (somando a saúde à previdência e assistência) e diversificando as contribuições sociais (antes incidentes apenas sobre salá-rios), para alcançar também fatura-mento e lucro (e, depois, também teve movimentação financeira por um bom tempo). A Previdência cada vez mais deficitária, desde servidores até regime geral, ocupou todo esse espaço.

José Roberto Afonso Economista, pesquisador do FGV IBRE

e professor do IDP

Kleber Pacheco de Castro Economista, doutorando do

PPGCE/Uerj, consultor

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A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 3 5

CONJUNTURA MACROECONOMIA

A saúde optou por vinculações, nem sempre eficientes. Vinculada ao PIB, depois à receita corrente líqui-da, e, a partir de 2018, congelada em termos reais – o expediente que evita queda maior do orçamento, po-rém, não permite crescer e se aproxi-mar dos padrões mundiais. Se ficou dependendo de governos estaduais e municipais, cuja vinculação incide sobre impostos e transferências cons-titucionais, porém estes são cada vez mais decadentes, como no caso do ICMS e do FPE/FPM, que muito de-pende de tributar mercadorias numa economia cada vez mais de serviços.

Devido ao caráter contínuo do gasto com a saúde, seu financiamen-to no âmbito público baseado apenas na receita de impostos (altamente correlacionados ao ciclo econômico) resultaria em inevitável estrangula-mento em tempos de recessão, como já alertado pelos autores.2

Se o sistema nacional já depende em demasia do arrecadado por tribu-tos indiretos, a vinculação da saúde e da educação é ainda mais vulnerá-

vel a tais tributos. Um bom exemplo deste problema reside na trajetória recente da carga tributária brasilei-ra: este indicador recuou no biênio 2014/15 e recuperou no seguinte (2016/17), mas baseado em receitas outras (como royalties de petróleo) que não os impostos contados na base de cálculo das vinculações de educação e saúde.

Sem maior presença federal e com estados em situação pré-falimentar, os municípios passaram a ostentar uma responsabilidade crescente na saúde pública. Sendo a unidade do governo mais próxima dos usuários do sistema, as prefeituras foram mais pressionadas a aportar parcela crescente de recursos próprios, inclusive para suprir a menor participação das esferas superiores, seja no financiamento, seja na execução di-reta dos gastos. Isto é evidenciado no gráfico que compara o peso relativo de cada uma das três esferas de governo no financiamento e no gasto, em 2002 e em 2016.

Chama a atenção que municípios já respondem por cerca de 30% do

financiamento e mais da metade da despesa realizada com saúde no país. De outro lado, essa função já conso-me um quarto do orçamento muni-cipal consolidado, quando a vincu-lação constitucional demanda 15% apenas da receita de seus impostos e transferências constitucionais. Mais uma vez pode ser constatado que saúde cresceu de importância relativa no gasto não financeiro das prefeituras entre 2002 e 2016, assim como nos estados, e na contramão do menor peso relativo no governo federal, como o gráfico a seguir.

Poucas outras ações de governo no Brasil são executadas com uma intera-ção tão forte entre todas as unidades federadas do país. A forte e crescen-te descentralização no setor de saúde apresenta uma clara vantagem que está relacionada ao fortalecimento da atenção básica, especialmente com o programa de saúde da família, que tende a reduzir desigualdades regio-nais.3 A ausência efetiva de coorde-nação federativa entre os agentes de saúde contribui fortemente para gerar

Participação das esferas de governo na execução e no financiamento das despesas públicas com saúde - 2002 e 2016

Elaboração própria. Fontes primárias: Siga Brasil e BSPN/STN.

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

2002 2016 2002 2016

Execução Financiamento

% d

o To

tal

União

Estados

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CONJUNTURA MACROECONOMIA

3 6 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

problemas: é “[...] um sistema frag-mentado, que dificulta o acesso, gera descontinuidade assistencial e com-promete a integralidade da atenção ofertada” (Lavras, 2011).4

A falta de planejamento e a ausên-cia de coordenação na execução de políticas públicas são problemas que não afetam apenas a saúde, mas são sensivelmente mais onerosos neste caso devido às características econô-micas do setor. Os seus fatores de pro-dução são tipicamente dispendiosos e a utilização de alguns aparelhos (des-de equipamentos de diagnóstico, até clínicas e hospitais) requer um nível de escala que é incompatível à maior parte dos municípios brasileiros.

A revolução tecnológica em curso abre, ao mesmo tempo, um leque de desafios e oportunidades.

É inquestionável que será cada vez mais demandado gastar em saúde (a começar pela tendência do envelheci-mento da população) e, em particular, o governo brasileiro terá que necessa-riamente responder por parcela maior do gasto nacional com saúde (porque há uma tendência estrutural à redução do emprego com carteira assinada e

isso levará à menor participação das empresas, porque terão menos empre-gados para oferecer plano de saúde).

Como é muito descentralizado tal gasto público no país e muito depen-dente de impostos incidentes sobre mercadorias, a saúde dependerá mais do que outras funções governamen-tais de que seja feita uma boa e pro-funda reforma tributária, que não apenas permita taxar a economia compartilhada, como recupere e for-taleça as finanças estaduais e munici-pais, as que mais gastam com saúde.

A grande oportunidade envolve a gestão do sistema de saúde que pre-cisa passar por uma revolução, em linha com a modernização da rede privada. Investimentos baratos em governo eletrônico permitiriam unifi-car e nacionalizar cadastros, para ex-plorar as grandes bases de dados de modo a permitir maior racionalidade nos serviços e ganhos monumentais de produtividade. É preciso tornar único o sistema de saúde brasileiro, e não por decreto, mas por realidade.

Enfim, priorizar e equacionar mi-nimamente a saúde pública no Brasil, como demandado majoritariamente

pela população, dependerá de se equa-cionar outras questões que fogem aos hospitais em si. Reformar a Previdên-cia (para sobrar algum espaço no orça-mento social), o orçamento (para não depender de vinculações disfuncio-nais), o sistema tributário (para não se “desfinanciar” com tributos sobre ba-ses decadentes), a gestão pública (para se modernizar e fazer mais e melhor com menos recursos). É preciso mudar muito, em muitas áreas, de forma con-sistente, ainda que não se fará tudo de uma só vez. Remediar a saúde vai além de sua área de atuação.

1Ver base de dados da OMS e alerta recente de André Medici, como em “Propostas para me-lhorar a cobertura, a eficiência e a qualidade no setor saúde”. In: Brasil: a nova agenda social, Bacha e Schwartzman (ed.), 2011.

2“A crise (do financiamento) da saúde”, Conjuntura Econômica, v. 70, n. 5, p. 22-24, 2016.

3Conforme ASSIS, Marluce Maria Araújo; JESUS, Washington Luiz Abreu de. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Ciência & Saúde Coletiva, nov. 2012.

4Conforme LAVRAS, Carmen. Atenção primária à saúde e a organização de redes regionais de atenção à saúde no Brasil. Saúde e Sociedade, dez. 2011, p. 871.

Participação da saúde nas despesas não financeiras do setor público por esfera de governo - 2002 e 2016

0%

5%

10%

15%

20%

25%

30%

União Estados Municípios Média (SPC)

% d

o To

tal

2002

2016

Elaboração própria. Fontes primárias: Siga Brasil e BSPN/STN.

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FISCAL

3 8 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Limar arestasRevisão de benefícios capitaneada pelo Ministério de Desenvolvimento Social deve gerar economia próxima de R$ 10 bilhões em 2018

Tempos de desequilíbrio fiscal de-mandam disposição para ordenar as contas, e uma das formas mais virtu-osas de se começar a arrumação é ter como princípio a eficiência no gasto. No Ministério do Desenvolvimen-to Social (MDS), esse trabalho teve início em 2016, e o balanço parcial da revisão de alguns benefícios tem surpreendido até a técnicos do setor, devido à dimensão das fraudes e irre-gularidades acumuladas no sistema, desvirtuando o objetivo das políticas e pressionando o orçamento.

Alberto Beltrame, secretário-exe-cutivo do Ministério de Desenvolvi-mento Social, afirma que somente a revisão do auxílio-doença poderá ge-rar uma economia de R$ 9,9 bilhões este ano, reduzindo a despesa total com o benefício de R$ 29 bilhões

em 2016 para R$ 20 bilhões em 2018. Esse valor vem de ganhos

com cancelamentos de benefí-cios indevidos revisados em

2016 e 2017 – respectiva-mente, R$ 500 milhões

e R$ 5,3 bilhões – somados à econo-mia prevista com as anulações que o MDS espera realizar em 2018. Nas 252 mil perícias realizadas nos dois últimos anos, de um total de 552 mil benefícios a serem revistos, o percen-tual de cancelamento foi de 80%, ou 201 mil, às quais se somaram outros 10%, ou 26,7 mil, de cessação por não comparecimento.

“Este ano multiplicamos nossa capacidade de realização de perícias por dez, e com isso esperamos con-cluir o trabalho até maio”, afirma Beltrame, lembrando que essa veloci-dade amplia os ganhos para este ano, já que o cancelamento é imediato. “E é uma economia que se manterá a cada ano”, diz. Para evitar um novo descarrilamento no sistema de con-cessão no futuro, o secretário afirma que se retomará a obediência aos prazos de revisão previstos na lei, de seis meses, que nos últimos anos não estavam sendo cumpridos. Além dis-so, duas mudanças nas regras de ob-tenção do auxílio-doença, implemen-

tadas no ano passado, deverão inibir seu mau uso. A primeira é a fixação da data de cessação do benefício de 120 dias para os casos em que não haja definição de prazo para recupe-ração, com o segurado prescindin-do de perícia médica para voltar ao trabalho. A segunda é a ampliação da carência para obtenção de um novo benefício, de quatro para seis meses. A expectativa do MDS é de que, com o final desse trabalho, os benefícios de auxílio-doença se esta-bilizem próximo de 1,1 milhão.

O aumento de capacidade para realização das perícias também per-mitiu ao MDS iniciar em março a re-visão de 995 mil aposentadorias por invalidez. A norma do INSS é de que esse benefício seja monitorado a cada dois anos mas, segundo Beltra-me, também não vinha sendo cumprida. “Identificamos mais de 1,4 milhão de casos acima desse prazo”,

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CONJUNTURA FISCAL

A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 3 9

Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social.

conta. Novamente, o percentual de cancelamentos tem superado a expec-tativa do MDS. “Imaginávamos um nível de cessação em torno de 5% a 10%. Nos primeiros 20 dias de mar-ço, com 69,7 mil benefícios revisados, chegamos a 27,9%, ou 19 mil”, conta o secretário.

No caso da aposentadoria por in-validez, Beltrame lembra que a eco-nomia a ser gerada acontecerá num prazo mais longo, devido às regras de transição previstas. No caso de o bene-fício ter sido concedido há cinco anos ou mais, o pagamento só se encerra-rá por completo depois de um ano e meio, sendo seis meses de pagamento integral, seis meses de 50% do valor e 25% nos seis meses finais. No caso de benefícios com menos de cinco anos, o benefício integral fica mantido pela quantidade de meses que correspon-dam aos anos de aposentadoria. “Na aposentadoria por invalidez, o aper-feiçoamento da gestão se dará com o cumprimento da norma. A gente vai limpar esse passivo e a partir daí res-peitar o prazo, melhorando a gover-nança do sistema.”

Outras frentesAlém dos chamados benefícios por in-capacidade, outros programas têm sido alvo de revisão do MDS. Entre eles, o Bolsa Família, com a identificação e cancelamento, nos últimos dois anos, de 593,4 mil benefícios fora do perfil estabelecido, gerando a liberação de R$ 1 bilhão. “Nesse caso, os recursos foram revertidos para novos candida-tos elegíveis ao Bolsa Família”, explica Beltrame, afirmando que essa econo-mia possibilitou zerar a fila de solici-tantes em agosto do ano passado.

Nesse esforço de verificação, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) é o que mais trabalho tem dado ao ministério. O BPC garante o paga-mento de um salário mínimo ao ido-so (65 anos ou mais) ou pessoa com deficiência cuja família tenha renda per capita inferior a ¼ do salário mí-nimo – estendida, por jurisprudência, a ½ salário mínimo. Em 2017, o BPC atendeu 4,5 milhões de pessoas, tota-lizando R$ 46 bilhões. Pela regra, o benefício precisa ser revisado a cada dois anos, mas desde 2008 não era monitorado, afirma Beltrame. Em

julho de 2017, a Secretaria de Ava-liação e Gestão da Informação (Sagi) do MDS identificou 151,6 mil bene-ficiários acima da faixa de renda de ½ salário mínimo. “De lá para cá, entretanto, não conseguimos cancelar nenhum benefício”, lamenta o secre-tário, apontando como barreira um emaranhado burocrático de difícil so-lução. “Se tivesse sido cancelado em julho, até março já teríamos economi-zado R$ 1 bilhão”, diz. Para reverter essa situação, o MDS e a Casa Civil redigiram um decreto que prevê o blo-queio do benefício em no máximo 90 dias após a primeira notificação. “Ao invés da mensagem por carta, a noti-ficação passará a ser feita no banco, no momento em que a pessoa resga-ta o benefício, e será repetida por no máximo duas vezes, cada uma com prazo de 30 dias para que o notifi-cado se inclua no Cadastro Único ou comprove que a renda adicional não é de sua família”, explica Beltrame. “O texto passa por avaliação jurídica e, se tudo estiver OK, o decreto poderá ser publicado em abril, dando uma nova dinâmica para o processo”, conclui.

Evolução dos benefícios emitidos de auxílio-doença

1.827.225

1.900.000

1.700.000

1.500.000

1.300.000

1.100.000

900.000

700.000

500.000

Jan/

95

Dez/

95

Nov/

96

Jun/

01

Out/9

7

Set/9

8

Ago/

99

Jul/0

0

Mar

/04

Abr/0

3

Fev/

05

Jan/

06

Dez/

06

Nov/

07

Out/0

8

Set/0

9

Ago/

10

Jul/1

1

Jun/

12

Mai

o/13

Abr/1

4

Mar

/15

Fev/

16

Jan/

17

Dez/

17

Nov/

18

Mai

o/02

PRBI Contrafactual

Ago/16

1.354.711Fev/18

1.134.199(projeção)

Dez/18

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AGRONEGÓCIO

4 0 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

Solange Monteiro, de São Paulo e Rio de Janeiro

Arrumar a casa para garantir o futuroDemanda mundial ajuda, mas ampliação de mercado para a agropecuária brasileira depende de uma lista de tarefas domésticas que definirão sua competitividade

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CAPA AGRONEGÓCIO

e ganhar mercados na próxima dé-cada. Projeções de longo prazo fei-tas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) em agosto do ano passado davam conta de um aumento de 24% na produção e 17% na área planta-da até a safra 2026/27, puxado principalmente pelas culturas de milho, soja e trigo. Uma evolução menor do que na década iniciada em 2006/07 – de 63% na produ-ção, segundo a Conab – mas que está alinhada ao ritmo do comér-cio mundial que, de acordo à FAO, continuará crescendo, mas na me-tade do ritmo registrado na déca-da passada. Para a produção de carnes, a estimativa era de acrés-cimo de 28% no mesmo período, com maior crescimento da carne de

frango, 33,4%, seguida pela suína, 28,6% e a bovina, com 20,5%.

“De modo geral, a perspecti-va futura para o agro brasileiro é magnífica, pois o mundo continua-rá precisando de mais alimentos”, diz Renato Conchon, do Núcleo Econômico da Confederação Na-cional da Agricultura (CNA), esti-mando um aumento médio da de-manda agrícola global de 1,1% ao ano até 2050. “Se olharmos para os resultados do agronegócio no ano passado – US$ 96 bilhões em exportação e US$ 82 bilhões de re-sultado na balança comercial – po-demos perceber de que potencial se trata, isso sem mencionar o mer-cado interno brasileiro, de mais de 200 milhões de pessoas”, completa Luiz Cornacchioni, diretor execu-

Ela foi a estrela do crescimento em 2017. Sem a safra recorde de 238 milhões de toneladas de grãos re-gistrada no ano passado, que le-vou a atividade da agropecuária a um salto de 13%, o PIB brasileiro teria crescido apenas 0,4%, menos da metade do 1% registrado. Essa participação de peso – que também se estendeu para a queda do IPCA –, no ano que marcou a saída da economia de um doloroso período de recessão, parece ter sacudido a inércia binária que costuma con-trapor indústria e campo como mo-tores da economia, tão combatida por representantes do setor como o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues. “Precisamos compreen-der o papel do agro para o país, e não para o agricultor”, disse à Con-juntura Econômica em setembro de 2017, revelando o desejo de promo-ver uma “fraternidade siamesa” en-tre rural e urbano.

Este ano não deverá contar com o mesmo impulso do agro. De acor-do às estimativas do FGV IBRE, em 2018 a contribuição do setor para o PIB será negativa em 0,2 ponto percentual, puxada principalmente por uma queda na safra de grãos. Segundo projeções de março da Companhia Nacional de Abaste-cimento (Conab), a colheita de grãos deverá cair para 226 milhões de toneladas. Mesmo assim, ainda será a segunda melhor safra da his-tória, espelhando a disposição de um setor que ainda quer expandir

Arrumar a casa para garantir o futuro

O agro e a inflação (%)

IPCAPreços

administradosPreços livres

Serviços AlimentosBens

Industriais

2017 2,9 8 1,3 4,5 -4,8 1

2018* 3,3 6 2,4 3,2 1,2 2

*Projeção. Fonte: FGV IBRE.

PIB PIB ex-agro PIB do agro

2017 1% 0,40% 13

2018* 2,80% 3% -0,2

2019* 2,80% 2,70% 3,4

O agro e o PIB (%)

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tivo da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag).

Mas os especialistas do setor que fazem coro no otimismo também compartilham do diagnóstico de que mercado potencial não é mercado ganho, e para continuar conquis-tando terreno o agro brasileiro não poderá negligenciar uma agenda do-méstica principalmente nos campos de infraestrutura logística, tecnolo-gia e financiamento.

Para discutir essa agenda, o FGV IBRE e a revista Conjuntura Econômica promoveram dia 16 de março, em São Paulo, o I Seminário Desafios e Perspectivas do Agrone-gócio Brasileiro. Na ocasião, Celso Vegro, diretor técnico do Instituto de Economia Agrícola (IEA), desta-cou a importância cada vez maior da produtividade em um cenário cujo horizonte é de queda de preço das principais commodities. “Na

verdade, falamos de uma linha que é secularmente declinante, em que identificamos alguns picos de pre-ço – como na crise do petróleo, no boom de demanda chinesa – mas cuja tendência é cadente”, diz. Formular cenários plausíveis de in-vestimento em produção nesse con-texto, diz Vegro, demandará o uso cada vez mais intensivo de tecnolo-gias de ponta. Entre as implicações dessa mudança está a demanda de um perfil mais qualificado de mão de obra. “Se compararmos, por exemplo, a evolução do número de ocupações por estabelecimento no cultivo da cana e numa empresa de sementes certificadas na última dé-cada, já identificamos a tendência de estagnação no primeiro e de au-mento no segundo”, exemplifica. O que também significa intensifi-cação de uso do capital em detri-mento do trabalho. “Se observar-mos os últimos 20 anos, enquanto a participação do setor agrícola no PIB mundial se manteve na casa dos 6%, a participação da mão de obra empregada no setor caiu de 25% para 9%”, diz Alan Bojanic, representante da FAO no Brasil.

Bojanic lembra que até 2050 a população mundial se aproximará de 10 bilhões, será predominante-mente urbana, e com hábitos ali-mentares diferentes, com maior in-serção de proteína animal, lácteos e processados. O que exigirá do Brasil mais empenho no acesso a mercados. “Na agropecuária, a dificuldade des-se acesso envolve uma área cinzenta de barreiras não tarifárias que, como observava o ex-diretor da OMC Pas-cal Lamy, muitas vezes refletem valo-res culturais, escolhas e prioridades, o que dificulta uma negociação”, diz

2016/17 2026/27 variação %

GrãosProdução (mil t) 232.024 288.173 24,5

Área plantada (mil ha) 60.362 70.828 17,3

Carnes

Frango (mil t) 13.440 17.930 33,40%

Bovina 9.500 11.444 20,5

Suína 3.815 4.905 28,6

Total 26.755 34.278 28,1

Brasil deve ampliar a oferta

Entre os grãos, destaque para soja e milho(variação % projetada entre 2016/17 e 2026/27)

29,7

23,4

33,5

27,9

17,6

37,8

Produção Consumo Exportação

Soja Milho

Fonte: Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Secretaria de Política Agrícola.

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Lia Valls, pesquisadora da Economia Aplicada da FGV IBRE. Luís Rangel, secretário de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura, acres-centa que a sofisticação da demanda também se reflete na complexidade de normas a serem observadas, en-volvendo proteção ao meio ambien-te, respeito às relações trabalhistas, informações claras e detalhadas, “o que demanda uma modernização da defesa agropecuária, principalmente no aspecto da comunicação de ris-co”. Rangel destaca que, no traba-lho de acesso a mercados, não existe lógica matemática. “Abrimos recen-temente o mercado sul-coreano para mangas e agora conseguimos abrir para os suínos, mas tivemos a decep-ção de ter de operar com 35% de ta-rifa”, exemplifica. A estratégia, para Marcos Jank, CEO da Asia-Brazil Agro Alliance, é estar cada vez mais presente: reforçar o posicionamento diplomático e comercial sempre que possível, principalmente na Ásia, re-gião onde o crescimento de mercado será mais intenso (ver página 52).

“Medidas protecionistas partem da visão equivocada

que trata déficit comercial como prejuízo”

Celso Vegro, Instituto de Economia Agrícola (IEA)

Vegro, da IEA, lembra que nesse campeonato o Brasil ainda depen-de do resultado de outras partidas. Principalmente a que o presidente Trump disputa contra o livre-comér-cio. Para Vegro, apesar de a recen-te sobretaxa imposta pelos Estados Unidos ao aço e alumínio – da qual o Brasil conseguiu escapar – poder representar ganhos no curto prazo para as commodities agrícolas bra-sileiras, que devem ganhar participa-ção no abastecimento dos mercados asiáticos no caso de retaliação chine-sa, no longo prazo os efeitos devem ser ruins para o comércio internacio-nal como um todo. “Medidas prote-cionistas partem da visão equivoca-da que trata déficit comercial como prejuízo. Isso poderá gerar um efeito cascata de retaliações que transfor-mará o comércio mundial numa eco-nomia de balcão”, compara.

Nada, entretanto, que deva dis-trair o setor das tarefas domésticas pendentes, que garantirão a muscu-latura do agro brasileiro para en-frentar qualquer cenário.

Fonte: OECD/FAO (2017), “OECD-FAO Agricultural Outlook”, OECD Agriculture statistics (database), http://dx.doi.org/10.1787/agr-data-en.

5,93

7,70

3,83 2,96 3,32

2,08

-0,26

1,37 2,12 1,63

0,43 1,45

-1,45

-3,68

Milho Soja Carne de porco Carne de frango Carne bovina Ethanol Biodiesel

2007-16 2017-26

Demanda cresce, mas desaceleraProjeção para commodities selecionadas, em volume

Foto: Piti Reali

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Crédito seguro e governança

Um dos elementos de apoio ao agronegócio que não acompanhou a magnitude do aumento da produ-ção em área (57% nos últimos 25 anos) e produção (248% no mesmo período) e hoje preocupa os atores do setor é o financiamento. Con-chon, da CNA, ilustra esse distan-ciamento comparando a fatia do orçamento público dedicada à fun-ção agricultura na década de 1980 e no período mais recente. “Entre 1980 e 1988, esses gastos represen-tavam 8,5% do orçamento. Entre 1990 e 2015, essa média caiu para

2%”, afirma. “Hoje, o crédito rural atende a apenas 30% da demanda de custeio dos produtores. Recursos públicos e dos compulsórios que os bancos por lei podem deixar de recolher desde que direcionados a esse setor são pouco para a deman-da que temos”, completa Cesário Ramalho da Silva, vice-presidente da Abramilho, ex-presidente da So-ciedade Rural Brasileira.

O equilíbrio à baixa presença do crédito financeiro – que em ou-tros países cobre grande parte da demanda dos produtores rurais –

veio do aumento da presença do financiamento de fornecedores de sementes, fertilizantes, entre ou-tros insumos, e de tradings, na antecipação do pagamento de ex-portações. Esse arranjo, comenta Fernando Lobo Pimentel, sócio da Agrosecurity Consultoria, demons-trou ser virtuoso em momentos como a crise financeira internacio-nal de 2008/09, e na última reces-são brasileira, em que a atividade no campo não foi comprometida. Mas, quando cresce muito e de-sordenadamente, também deixa

Fontes: Atlas do Seguro Rural. Ministério do Planejamento.

Evolução da área assegurada e valor subvencionado pelo Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR)

1,7 2,2 4,6 6,5 4,7 4,4 5,1 9,8 9,8 2,6 5,4 4,8

61117

253

318

783

499

2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017

Área assegurada (milhões hectares) Total subvencionado (em R$ milhões)

558

411

560

165158

31

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transparecer vícios. Atualmente, segundo Pimentel, o volume des-se crédito comercial alcança os R$ 200 bilhões. Como compara-ção, o valor de crédito rural pro-gramado no Plano Agrícola Pecuá-rio (PAP) para a safra 2017/18 é de R$ 188 bilhões, sendo R$ 155 bi-lhões para custeio e R$ 38 bilhões para investimento. “Esses atores comerciais buscam profissionalizar seu crédito, para apresentar linhas diretas mais robustas em operações estruturadas. E é uma atividade normal, da mesma forma que mon-tadoras de automóveis têm na ofer-ta de financiamento uma forma de fidelizar clientes”, diz. “O proble-ma é que, no caso do agro, hoje os bancos não enxergam o que o pro-dutor deve para as fornecedoras e tradings, e estas não enxergam o que acontece no sistema financei-ro. Dado o montante envolvido, isso gera um fator de risco sistêmi-co”, completa Pimentel.

Para melhorar a governança do sistema e possibilitar um cres-cimento da agropecuária sem so-bressaltos, Pimentel defendeu no seminário realizado por esta re-vista a criação de uma central de registros de ônus e gravames de qualquer natureza – já em discus-são em Brasília – que transpareça o nível de alavancagem de cada ator, para que este seja enfrentado com sua capacidade de geração de caixa e permita uma avaliação adequada para a cessão de crédito. Ele cita como exemplo o caso da Ucrâ-nia, que após a crise financeira de 2008/09 teve que buscar alternati-vas de financiamento para o agro e em 2014 criou um modelo de ope-ração de penhor de safra inspirado

na Cédula de Produto Rural (CPR) brasileira. “Mas lá eles já criaram uma central de registro eletrônico de todas as operações, que é o que nos falta”, diz.

Entre os elementos que compro-metem o cenário do crédito, o mais citado entre os especialistas é a bai-xa presença do seguro rural, que hoje cobre menos de 10% da área cultivada. Em entrevista à Conjun-tura Econômica em setembro de 2017, o ex-ministro da agricultura Roberto Rodrigues, coordenador do Centro de Agronegócio da FGV EESP, moderador do seminário, tratou do seguro rural como “o grande fantasma” quando se trata da falta de crédito. “De longe, o se-guro rural é a mais importante pla-taforma para um agro competitivo e duradouro, e que infelizmente tem tido seus recursos fortemente contingenciados”, afirmava. Diag-nóstico corroborado por Conchon, da CNA. “Não temos uma política ampla que atenda às necessidades de um país tropical. Uma indústria de automóveis, se ficar parada, tem prejuízo. Mas ela não tem custo. Já um produtor tem que produzir e pode enfrentar chuva demais, sol demais, pragas, questões inerentes que não se equilibram sem um se-guro adequado”, exemplifica. E a conseqeunte falta de escala, diz Sil-va, torna o seguro caro. “No ano passado, fiz seguro pagando 8% so-bre o valor da produção, enquanto nos Estados Unidos esse percentual não passa de 3%”, compara.

Na opinião de Conchon, uma das alternativas para melhorar esse quadro seria revisar as linhas pú-blicas de apoio ao agro. “O cober-tor é curto, talvez coubesse limitar

“Hoje os bancos não enxergam o que o produtor

deve para fornecedoras e tradings, e vice-versa. Dado o montante envolvido, isso gera

um fator de risco sistêmico”

Fernando Lobo Pimentel, Agrosecurity

linhas de investimento não prio-ritárias para ampliar o Prêmio do Seguro Rural (PSR)”, diz. “Outra frente seria pegar parte da subven-ção de taxa de juros neste momento em que a Selic está baixa e transfe-rir para a subvenção de prêmio de seguro, fomentando um aumento do volume e área de cobertura, in-centivando a participação do finan-ciador bancário”, sugere Pimentel. O sócio da Agrosecurity ainda cita o desenvolvimento de modelos de

Foto: Piti Reali

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seguros com custo de sinistro mais baixo, de menor custo para o produtor, como os vincula-dos a índices de chuva e produtividade. Cami-nho apoiado por Silva, que vê na oferta privada a saída para a ampliação desse mercado. “Para que isso aconteça, precisamos saber mais sobre o país – o cadastro ambiental rural (CAR), por exemplo, tem ajudado a ampliar nosso conhe-cimento sobre as propriedades rurais brasilei-ras –, e priorizar a transparência”, diz o ex-pre-sidente da Sociedade Rural Brasileira. “Temos uma produção anual de 230 milhões de tone-ladas de grãos; há 20 anos, eram 60 milhões. Não dá para contar só com o apoio de recursos públicos. Estes devem garantir o financiamento de agricultura familiar, de pequeno porte, que demanda tratamento especial”, diz.

Outro elemento que influencia indiretamen-te o mercado de crédito e não pode ser negli-genciado quando se pensa em um crescimento virtuoso do agro no longo prazo, na opinião de Pimentel, é o tributário. “O atual modelo tri-butário induz o produtor a atuar como pessoa física, que é maioria no setor. Mesmo os que hoje faturam R$ 1 bilhão ao ano seguem nesse regime, algo que não se vê em outro lugar do mundo”, diz. Segundo o consultor, a falta de pejotização no agro traz duas consequências. “Ao invés de se capitalizar, o produtor acaba reinvestindo na atividade para não ter lucro, e fica sem caixa quando há problema de sa-fra. Sem caixa e sem seguro, terá problema de crédito”, diz. Além disso, Pimentel explica que a contratação de financiamento com em-presas comerciais (fornecedoras de insumo e tradings) como pessoa física traz insegurança jurídica, por não estar definido se essa contra-tação deve ser regulada pelo código civil ou do consumidor, o que altera o ônus da prova em caso de cobrança de dívida. “Se a tributação da agricultura fosse revisada, de forma a gravar o produtor somente nos anos em que de fato ele tenha registrado ganho, e num valor razoá-vel, se poderia trabalhar para regular também a pejotização no setor a partir de um nível de faturamento”, diz.

CUSTEIO

Crédito rural (geral) 74.130

Pronamp 18.000

Funcafé 4.890

Fundos constitucionais 3.580

Estocagem de álcool 2.000

LCA (taxa controlada) 13.650

Recursos livres 34.000

TOTAL 150.250

INVESTIMENTO

Moderfrota 9.200

Moderagro 640

Moderinfra 600

ABC 2.130

PCA 1.600

Inovagro 1.260

Pronamp 3.710

Prodecoop 1.700

Procap-Agro 2.200

Fundos constitucionais 5.884

Bancos Coop. 600

Provenova Rural 1.500

BNDES - Agro 2.000

Outros a juros livres 5.125

TOTAL 38.149

TOTAL PROGRAMADO 188.400

Recursos públicos para custeio e investimento programados para 2017/18

(em R$ milhões)

Fonte: Plano Agrícola e Pecuário 2017/18 - Mapa.

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Logística o velho nó

O descompasso entre o avanço da produção e das vias de escoamento continua sendo problemático para o agronegócio. E o trecho da BR-163 que cruza o Mato Grosso em direção aos terminais portuários de Miritituba, no Pará – de onde os grãos seguem pelo rio Tapajós até Santarém, e de lá para o exterior –, segue como ícone dessa dificul-dade. O ponto crítico são 90 qui-lômetros ainda não asfaltados dos quais, nas estimativas de Edeon Vaz Ferreira, diretor executivo do Movimento Pró-Logística da Apro-soja, apenas 60 km serão concluí-dos este ano. “Não é o desejável, porque estamos perdendo competi-tividade. Para se ter uma ideia, o valor de frete adequado para esse trecho seria de R$ 145 por tonela-da, mas hoje está em R$ 230, devi-do à incerteza de quanto um cami-nhão precisa esperar para concluir a passagem”, diz.

Para ilustrar o peso dessa defa-sagem entre produção e logística, Evaristo Eduardo de Miranda, chefe-geral do Grupo de Inteligência Terri-torial Estratégica (Gite) da Embrapa, cita estudo da Embrapa que calcula os ganhos de competitividade que os produtores de soja do norte de Mato Grosso conquistariam se adotassem toda a tecnologia de ponta no plan-

tio do grão, comparando-os com os ganhos se eles contassem com toda a melhoria potencial no transporte de sua produção. “No caso da tecnolo-gia, sua competitividade aumentaria de 13% a 18%, dependendo do sis-tema atualmente usado pelo agricul-tor; já a melhoria logística propor-cionaria ganhos de 34% a 38%. É uma grande diferença. Não há o que discutir”, afirma, ressaltando ainda a necessidade de investimento privado. “O orçamento federal previsto e exe-cutado em 2017 totalizou 212 km de rodovias. Não há recursos para cobrir o que necessitamos, incluindo ferrovias e hidrovias.”

Ferreira, entretanto, é otimista quanto ao futuro do escoamento de grãos pelo norte do país, a começar pelo avanço do projeto da ferrovia Ferrogrão, que fará o trajeto de cer-ca de mil quilômetros de Sinop (MT) a Miritituba. “Há grandes chances de que a Ferrogrão seja licitada no início do segundo semestre”, diz, indicando o interesse de grandes tradings – entre elas Bunge, Cargill e ADM – em acelerar o projeto. “Essa ferrovia tem tudo para fazer o diferencial de preço. Pelo proje-to apresentado, o frete baixaria a R$ 80 por tonelada para o mes-mo percurso que hoje fazemos a

Fonte: Embrapa Territorial.

34 68 9283 108 30

Capacidade em 2016 (t) Capacidade potencial em 2025 (t)

Aumento potencial (%)

Arco Norte (portos de Itacoatiara, Santarém, Belém/Barbacena, Santana/Macapá, Itaqui/São Luís)

Arco Sul (portos de Salvador, Vitória, Santos, Paranaguá, São Francisco do Sul, Rio Grande)

Evolução da capacidade de embarque de soja e milho pelos portos brasileiros

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4 8 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

R$ 230”, diz. A projeção do Movi-mento Pró-Logística é de que, enca-minhando os projetos ferroviário, ro-doviário e hidroviário previstos para a região, em 2025 o arco norte tripli-que o atual volume de escoamento de grãos, de 26 milhões em 2017. “No futuro, a capacidade de movi-mentação se equiparará à dos portos do Sul/Sudeste, que deverá saltar dos atuais 84 milhões de toneladas para 107 milhões”, afirma. E, para facili-tar o caminho para a Ásia a partir do norte do país, Ferreira ainda cita um

acordo de cooperação assinado com as autoridades do Canal do Panamá para a realização de estudos visando à utilização do canal para transporte de grãos brasileiros.

Outro motivo de confiança dos especialistas é o aprimoramento dos dados disponíveis para o planeja-mento logístico do setor. “Não ha-via no Brasil um sistema de gestão da macrologística da agropecuária. Enquanto na área de mineração ne-nhum projeto novo acontece sem envolver a questão logística, o agro nunca contou com essa inteligência territorial”, diz Miranda, indicando que o agronegócio já superou a mine-ração em demanda da malha viária, com 1,6 bilhão de toneladas – levan-do em conta insumos, produtos e co-produtos de 40 cadeias – contra 1,4 bilhão dos minérios. “São cerca de 42,7 milhões de fretes por ano, que precisam ser organizados”, afirma. Esse levantamento foi feito através do “Sistema de Inteligência Territo-rial Estratégica da Macro-logística Pecuária Brasileira”, uma base de dados georreferenciada disponível no site da Embrapa (www.embrapa.br/macrologistica) que reúne infor-mações como cargas da agricultu-ra na malha viária; análise gráfica, numérica a cartográfica da produ-ção; modelagem das exportações de grãos e delimitação e qualificação das bacias logísticas. “Temos o deta-lhamento de dez cadeias, que nos dá subsídios para estudar como precisa-mos combinar os modais. Em maio realizaremos um seminário para apresentar o sistema, incorporando sugestões técnicas, para então tra-balhar conexões de micrologística e com projetos estaduais”, descreve o executivo da Embrapa.

A essa iniciativa se soma o Plano Nacional de Logística (PNL), apre-sentado a consulta pública pela Em-presa de Planejamento e Logística (EPL) no dia 16 de março. “Essa ini-ciativa resgata a capacidade de pla-nejamento que o Estado foi perdendo com o tempo”, diz José Carlos Me-daglia Filho, diretor-presidente da EPL. “A ideia é trabalhar o conceito do Geipot (Grupo Executivo de In-tegração da Política de Transportes, criado em 1965) e mirar ao exemplo da Empresa de Planejamento Ener-gético (EPE), que projeta o avanço do setor elétrico no horizonte de dez anos”, descreve. O PNL detalha matrizes de origem e destino com a quantidade total de carga movimen-tada por grupo de produtos, levando em conta diferentes cenários de pro-jeção de demanda. Somando projetos em rodovias e ferrovias do programa Avançar e uma lista de obras de ade-quação em ferrovias, o PNL projeta que até 2025 seja possível reduzir os valores médios de frete em 14%, no agregado das atividades econô-micas, gerando uma economia de R$ 54,7 bilhões ao ano e a redução de gargalos logísticos em 60%, de 31,6 mil km para 12,6 mil km. “Os ganhos se dão principalmente com a melhor utilização da malha que temos hoje”, diz, destacando o im-pacto das três rodovias qualificadas no PPI: a Norte-Sul, “que estamos prestes a publicar o edital de leilão”; a Ferrogrão, “que temos condições de lançar o edital ainda em 2018”, e a Fiol, “cujo trecho que está sendo projetado, com conclusão este ano, passa por uma zona de produção de minério, mas sua continuidade abar-cará a produção agrícola do centro para o oeste da Bahia”.

“O orçamento federal previsto e executado em 2017 totalizou 212 km de rodovias. Não há recursos para cobrir o que necessitamos”

Evaristo Eduardo de Miranda, Embrapa

Foto: Piti Reali

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Inovação reflexo do futuro

Outro item dessa agenda de compe-titividade abordado no seminário da Conjuntura Econômica foram os de-safios tecnológicos que a agropecuá-ria deverá enfrentar para garantir não apenas ganhos de produtivida-de em um cenário de preços caden-tes como adequação às mudanças na demanda futura por alimentos e por energia limpa, respondendo à iniciativa global de mitigar possíveis impactos provocados pelas mudan-ças climáticas. “Se até recentemente o foco da inovação na agropecuária se concentrou em formas de pou-par terra, trabalho e capital, daqui por diante estará em poupar água e energia, reduzir o tempo de cultivo

e buscar alimentos mais saudáveis, que trarão mais valor nutritivo, pre-venção de doenças, além de novas texturas, sabores e tamanhos”, diz Tito Ryff, vice-presidente da Socie-dade Nacional de Agricultura (SNA), comparando os horizontes da agri-cultura de alta precisão – que soma tecnologia da informação, robótica e nanotecnologia –, da biotecnologia e da engenharia genética a cenários de quase ficção científica.

No caso brasileiro, Rui Machado, chefe-geral da Embrapa Pecuária Su-deste, ressalta que o investimento em pesquisa e inovação tem transforma-do o agro brasileiro há várias dé-cadas, da conversão do cerrado em

potência agrária a novas tecnologias que hoje já têm impacto comprova-do na produtividade do setor. Entre elas, Machado aponta o ganho gera-do pela substituição do uso de fertili-zantes – em sua maioria importados, com preços atrelados à cotação do petróleo – pelo sistema de fixação biológica de nitrogênio na cultura da soja. “Somente na safra de 2016/17, a adoção desse método trouxe uma economia de US$ 20 bilhões”, diz Machado. Do lado da pecuária, o especialista cita o uso de câmeras térmicas infravermelhas para medir o ponto de abate do gado, evitan-do deslocamentos dos animais e sua consequente perda de peso. “Acom-

Fonte: Anuário Estatístico da Anda.

Uso de tecnologia reduz importação de fertilizantesdéficit, em bilhões de US$

9,649,16

7,36

6,48

7,78

2013 2014 2015 2016 2017

Produção de grãos 2012/13: 188 milhões/ton Produção de grãos 2016/17: 238 milhões/ton

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5 0 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

panhamos o estudo de caso numa fa-zenda de confinamento com 50 mil cabeças de gado em 120 hectares. Levando em conta que cada desloca-mento para pesagem representava a perda de 200 gramas por animal, o sistema evitou uma perda total de 10 toneladas de carne”, afirma.

Outro exemplo de inovação que nos últimos anos tem garantido ga-nhos a muitos produtores brasileiros é o programa de integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF), que promo-ve cultivos sucessivos ou simultâneos aliados à pecuária e à eventual con-servação ou recuperação ambiental numa mesma área. Com esse siste-ma, os produtores têm aperfeiçoado suas técnicas e estendido o período rentável de seu campo. “Em uma fazenda em Altônia (PR), que ade-riu ao programa em 2014 e passou a intercalar o plantio de soja com a produção de carne, a renda saltou de R$ 530 por hectare antes da reforma para R$ 4,9 mil”, exemplifica Fran-cisco Matturo, vice-presidente da Associação Brasileira do Agronegó-

cio (Abag). O apoio técnico e trans-ferência tecnológica aos produtores – em geral, de médio porte – é co-financiado por uma rede de fomen-to formada em 2012 por Embrapa, a cooperativa Cocamar e empresas como John Deere e Syngenta. “No início de abril lançaremos a segun-da etapa desse trabalho”, afirma Matturo, indicando que o progra-ma já está próximo de abranger 14 milhões de hectares. O lançamento transformou a rede de fomento em associação e somou Bradesco e SOS Mata Atlântica entre os participan-tes. Rodrigo Lima, diretor-geral da Agroícone, ressalta a importância do uso da ILPF para promover a am-pliação da área agricultável do país sem desmatamento, a partir de pas-tagens que hoje registram baixa pro-dutividade. “Só no cerrado existem 18,5 milhões de hectares de áreas de pastagem de alta e média aptidão para agricultura, que nos próximos 20 anos poderão ser incorporadas”, diz Lima, ressaltando que a região conta com a vantagem de registrar menor risco climático e consequente perda de safra. “O Brasil levou ao Acordo de Paris a meta de restaurar 15 milhões de hectares, e aí temos uma oportunidade”, inclui.

A preocupação ambiental tam-bém tem direcionado o agronegócio a atender a fins não alimentares, como a geração de energia. Nessa frente, o Brasil poderá ganhar novo impulso com o programa Renova-bio, que promete a criação de um mercado no qual produtores de biocombustíveis comercializarão créditos de carbono com distribui-doras de combustíveis fósseis, que deverão cumprir metas preestabele-cidas de emissões de gases de efeito

“Só no cerrado existem 18,5 milhões de hectares de áreas de pastagem de alta e média aptidão para agricultura”

Rodrigo Lima, Agroícone

Transporte: o desafio também é ambientalparticipação de cada atividade no total de emissões de gases do

efeito estufa, na geração e uso de energia no Brasil

43%

31%

16%

10%

transporte indústria energia elétrica outros

Fonte: MME, com dados de 2014.

Foto: Piti Reali

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CAPA AGRONEGÓCIO

estufa. Criado e aprovado no Con-gresso em apenas um ano, e cujo decreto de regulamentação foi as-sinado pelo presidente em meados de março, o projeto tem sido come-morado especialmente pelo setor de etanol, que busca previsibilidade de preços e demanda logo de um pe-ríodo de intervenção de preços que levou muitas usinas a fechar suas portas. “Já quantificamos US$ 1,6 trilhão projetados de investimento até 2026”, diz Plínio Nastari, dire-tor da consultoria Datagro.

Nastari defende que as externa-lidades do programa abrangem ob-jetivos de políticas em várias áreas.Ainda no campo dos combustíveis, cita o potencial de reduzir a alta de-pendência brasileira de importação de derivados de petróleo. No seminá-rio, traçou cenários da demanda por combustível do ciclo Otto para 2030 tomando variações médias do PIB de 2% a 3,5% ao ano, e uma elasticida-de do ciclo Otto de 1,22 para cada ponto percentual de PIB. “A partir dessas premissas, a projeção de con-

sumo oscilará entre 77,1 bilhões e 97,1 bilhões de gasolina equivalen-te. Em 2017 nossa produção foi de 49 bilhões de gasolina equivalente, o que inclui etanol anidro e hidratado. Levando em conta nossa capacidade de produção atual, significa déficit de 28 a 48 bilhões de litros.”

O diretor da Datagro citou a im-portância da adoção da tecnologia de carro elétrico que use biocom-bustível, como sendo a de menor impacto ambiental. Ele também lembrou que, apesar de o Brasil ter uma matriz elétrica considerada a mais limpa do mundo, ainda pre-cisa reduzir a pegada ambiental do setor de transportes, que concentra a maior parte das emissões de gases de efeito estufa do país, 43% do to-tal, muito acima da média mundial, de 23%. “E isso apesar de contar-mos com 26,8% de renováveis na matriz de combustíveis”, diz. “Isso aponta às oportunidades que temos em recuperar a extensa área hoje ocupada por pastagens degradadas com cana; estimular que a meta

“Já quantificamos US$ 1,6 trilhão projetados

de investimento em biocombustíveis até 2026”

Plinio Nastari, Datagro

de mais que dobrar a produção de milho nos próximos oito anos seja cumprida também para produção de etanol; e impulsionar o aumento do percentual de esmagamento da soja, gerando mais valor agregado. Se ampliarmos o esmagamento de 40% para 65% do total produzi-do permitiremos que a produção de biodiesel cresça de 4,2 bilhões para 18 bilhões de litros/ano. Isso possibilitará geração de renda des-centralizada, expandir a geração distribuída, e transformar exceden-tes em biocombustíveis para reduzir a pressão logística”, defende. Fonte: Embrapa, 2017.

10

5

0

-5Eficiência

tecnológicaMudança no uso direto

da terra

Mudança no uso indiretoda terra

Consumode água

Uso deinsumosagrícolas

Uso deinsumos

veterináriose matérias-

primas

Consumo deenergia

Geraçãoprópria,reúso e

autonomia

Índi

ces

de d

esem

penh

o

Efeitos da adoção da ILPF

Foto: Piti Reali

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5 2 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

“Temos que reforçar nossa presença nos grandes mercados”

Marcos Jank CEO Asia-Brazil Agro Alliance, em Cingapura

Foto: Divulgação

Conjuntura Econômica – Como

avalia o potencial de crescimento

da demanda asiática por proteína

animal e das exportações brasilei-

ras de carne para essa região?

O aumento da demanda tem se confirmado, e ainda existe muito espaço para crescimento por aqui. A média anual de consumo de car-ne na Ásia é de 30 kg per capita, contra 10 kg nos países mais po-bres do mundo, e muito aquém do consumo da camada mais rica da população global, da ordem de 100 kg de carne por ano. A despeito dessa enorme demanda potencial, entretanto, não está garantido que a carne brasileira chegará a esses mercados, pois existe um impor-tante desafio de acesso. Neste caso, principalmente relacionado a ques-tões sanitárias, técnicas, e mesmo barreiras burocráticas – como a lentidão no processo de habilitação de plantas exportadoras. Por exem-plo, recebemos quase todos os dias pedidos da China para aquisição de pés de frango, que eles gostam muito, mas não temos número su-

ficiente de plantas habilitadas para atender aos volumes de carnes de ave e bovina que são requeridos. Na carne bovina, apesar de o Bra-sil ser hoje o segundo maior ex-portador do mundo e ter o maior rebanho comercial, atualmente cin-co grandes países asiáticos encon-tram-se literalmente fechados para o Brasil: Japão, Coreia, Tailândia, Indonésia e Vietnã. Fizemos um le-vantamento a partir do consumo atual de carne bovina desses paí-ses, calculando quanto isso repre-sentaria se eles estivessem abertos à importação de carne brasileira. Tomando como premissa uma ven-da equivalente à média registrada pelo Brasil em suas atuais exporta-ções, somente esses cinco mercados poderiam somar vendas anuais de cerca de US$ 1 bilhão.

Há mais de um ano você repre-

senta exportadores brasileiros de

carne e de açúcar e etanol na Ásia.

Quais os temas mais sensíveis

hoje no caso dessas commodities

em sua agenda de trabalho?

O frango neste momento está so-frendo um processo de investiga-ção antidumping na China. No ano passado o setor açucareiro recebeu a imposição de uma salvaguarda da China que simplesmente baniu o Brasil do mercado. Se somar açú-car e frango, são exportações de US$ 1,7 bilhão por ano para esse país. Basicamente, temos buscado conversar com a indústria chinesa para encontrar mecanismos que permitam o acesso a esses dois pro-dutos. Também existe neste mo-mento bastante interesse da China em etanol. Hoje o país sofre com poluição do ar e está preocupado em se mostrar proativo na área de mudança do clima.

Nesse caso, qual a estratégia?

O movimento mais antigo, que continua acontecendo, é o de au-mentar a mistura de etanol na ga-solina. A China – tanto quanto Japão e Índia – tem um programa para atingir 10% de mistura de etanol. Mas como os programas não são mandatórios, o percentual

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real de mistura hoje gira em torno de 2% nesses países, volumes bai-xos em relação a suas próprias me-tas. O foco está no potencial futuro do desenvolvimento do etanol ce-lulósico, mas eles poderiam desde já importar o etanol de cana. Além disso, acompanhamos o desenvol-vimento da tecnologia de células a combustível dos carros elétricos, de interesse dos chineses, que também pode ser benéfica para o etanol.

Outra questão importante nesse quesito é a forte pressão dos Esta-dos Unidos. Eles estão com exce-dente de etanol de milho e o pre-sidente Trump colocou a “faca no pescoço” dos países que registram grande superávit comercial com os EUA, forçando-os a abrir mercado aos produtos americanos. São can-didatos a essa preferência em favor dos EUA o etanol de milho e o fran-go. Esse é um dos fatores por trás do problema que estamos tendo na China, somado à combinação de barreiras tarifárias e não-tarifárias, sanitárias e burocráticas.

Recentemente, em fevereiro, tive-

mos novo desdobramento da Ope-

ração Carne Fraca. Como avalia o

posicionamento da representação

diplomática e comercial do gover-

no brasileiro para proteger os mer-

cados importadores do Brasil?

Esse segundo episódio não teve tanta repercussão, pois foi apre-sentado como sendo um problema localizado, do passado. Mas no primeiro episódio, em que se ques-tionou diretamente a qualidade da carne, a reação imediata do gover-no foi boa. O Brasil exporta US$ 18 bilhões em carnes para mais de 150 países do mundo, e corria o risco

de sofrer um fechamento em série. Entretanto, para garantir mercado, não basta mandar missão quando tem uma crise. Quando comparo o Brasil com Nova Zelândia, Chile, Canadá e Austrália, países meno-res que a gente, a nossa estrutura de resposta, de participação no po-licy making, é inferior. Temos que reforçar imediatamente nossa pre-sença física nos grandes mercados, e particularmente na Ásia, destino de 50% da exportação do agrone-gócio brasileiro. Na área sanitária, todos os dias tem algo acontecendo em algum lugar do mundo, e o que os países querem, em muitos casos, é simplesmente esclarecimentos rá-pidos e completos sobre temas es-pecíficos. Em março, por exemplo, houve uma epidemia de gripe avi-ária na Ásia. Então vários países perguntam ao Brasil o que estamos fazendo para evitá-la. A atitude re-cente do Ministério de Agricultura de aumentar o número de adidos é absolutamente necessária (passou de oito pessoas em 2015 para 22

em 2017, somando agora repre-sentações em capitais como Nova Delhi, Hanoi, Bangkok e Pequim). Como é fundamental que o setor privado também se faça mais pre-sente aqui na Ásia.

A falta de acordos comerciais tam-

bém mina possíveis canais institu-

cionais para a gestão de uma crise?

Veja, uma das coisas que faz com que esses países que mencionei – Austrália, Nova Zelândia, Chile e Canadá – estejam mais presentes é porque eles não têm mercado in-terno importante, o que os torna totalmente dependentes da expor-tação. Isso os impele a desenvolver uma estrutura voltada para o co-mércio exterior que particularmen-te considero admirável, coberta por acordos – em geral de preferências tarifárias ou de livre-comércio – e estruturas de representação muito mais robustas que as que o Brasil possui. Esses acordos comerciais preveem uma série de gatilhos, en-tre outros instrumentos. Por exem-plo, quando o presidente Trump anunciou a sobretaxa ao aço e ao alumínio, abriu imediatamente a porta aos parceiros do Nafta, Ca-nadá e México. Ainda que essa ação seja horrorosa, uma volta ao passado e um reforço ao desmonte do sistema multilateral de comér-cio, foi assim que aconteceu: uma preferência clara aos países com os quais há acordos comerciais assi-nados. Acho que o Brasil fez uma revolução indiscutível no campo, mas infelizmente a gente ainda tem dificuldades imensas para consoli-dar acordos comerciais, que deve-riam se somar a uma maior presen-ça física. (S.M.)

O Brasil fez uma

revolução indiscutível

no campo, mas

infelizmente ainda

temos dificuldades

imensas para

consolidar acordos

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COMÉRCIO EXTERIOR

5 4 Co n j u nt u r a E co n ô m i c a | A b r i l 2018

Chico Santos, para Conjuntura Econômica, do Rio de Janeiro

Brasil na OCDE: esperanças e controvérsias

para Cooperação Econômica Euro-peia (OCEE), em 1948. O lado so-cialista reagiu criando o Conselho para Assistência Econômica Mútua (Comecon, na sigla em inglês), lide-rado pela União Soviética e formado inicialmente também pela Alemanha Oriental (derrotada, a Alemanha fora dividida em duas – Oriental, comu-nista, e Ocidental, capitalista), Polô-nia, Tchecoslováquia (hoje, Repúbli-ca Tcheca e Eslováquia), Bulgária, Hungria e Romênia.

Em 14 de dezembro de 1960 Esta-dos Unidos, Canadá e mais 18 países europeus egressos da OCEE realiza-ram a convenção que oficializou a criação da Organização para Cooperação e Desenvolvimento

Econômico (OCDE). Canadá e Esta-dos Unidos, em abril de 1961, foram os primeiros a formalizar a entrada para o novo organismo de caráter in-tercontinental. Ao longo do restante do ano de 1961 os demais países fun-dadores assinaram suas adesões, exce-to a Itália que aderiu formalmente em março de 1962.

O primeiro país de fora desse con-certo euro-americano a entrar para a OCDE foi o Japão, em abril de 1964, dando caráter mundial à organiza-ção. Derrotado na guerra de 1939 a

O Plano Marshall, batizado com o nome do secretário de Estado norte-americano que o arquitetou, George Marshall, nasceu em julho de 1947 pela necessidade absoluta de recons-trução de uma Europa arrasada pela 2a Guerra Mundial. Embora formal-mente fosse um plano voltado para toda a Europa, na prática tinha como endereço a Europa Ocidental capita-lista, uma vez que do lado Oriental, a União Soviética, aliada na vitória contra o nazifascismo, tinha seus próprios objetivos de consolidação e expansão do regime socialista e a aliança acabou ali mesmo.

Começava a chamada “guerra fria”, a hostilidade velada entre os dois regi-mes, à sombra do arsenal atômico de ambos os lados, encerrada no começo dos anos 1990 com a queda do Muro de Berlim, a reunificação da Alemanha e o esfacelamento da União Soviética. Os US$ 13 bilhões do Plano Marshall (valores da época) despejados pelos Es-tados Unidos permitiram reconstruir a infraestrutura e retomar o crescimento econômico da Europa Ocidental, vi-rar a chave da máquina de produção americana para tempos de paz e cons-truíram um biombo contra a expansão soviética para, grosso modo, além da margem esquerda do rio Danúbio.

Para gerenciar aquela montanha de dinheiro foi criada a Organização

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CONJUNTURA COMÉRCIO EXTERIOR

A b r i l 2018 | C o n j u n t u r a E c o n ô m i c a 5 5

1945 ao lado de Alemanha e Itália, o Japão também recuperara rapidamen-te seu poderio econômico, sob a batu-ta americana, e era um aliado vital do Ocidente no lado asiático do tabuleiro político-econômico mundial. Entre 1969 e 1973 outros três parceiros es-tratégicos, Finlândia, Austrália e Nova Zelândia, aderiram ao grupo, consoli-dando ainda mais a imagem popular da OCDE de “Clube dos Países Ri-cos”. O membro-fundador mais pobre é a Turquia, estrategicamente situada na divisa entre Europa e Ásia, com produto interno bruto per capita (PIB per capita) de US$ 25.655 em 2016 se-gundo dados da própria OCDE.

Os dados de comércio exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC) mos-tram que dos dez maiores impor-tadores de produtos brasileiros em 2017, sete são membros da OCDE, estando fora apenas China, Argen-tina e Índia. Entre os dez maio-res vendedores de produtos para o Brasil, oito são da OCDE. Mas os dados também mostram que o Brasil exporta principalmente pro-dutos primários e importa basica-mente manufaturas.

Atualmente com 35 membros, o “clube” já não é tão de ricos assim e se propõe a disseminar e uniformizar normas de políticas econômicas e de relacionamento comercial em 34 áreas temáticas, incluindo políticas de consumo, assuntos tributários, previdência, governança, investi-mento estrangeiro e outras. Em 30 de maio de 2017 o Brasil formali-zou seu pedido de ingresso na or-ganização e agora aguarda o “sim”, equivalente ao convite para integrar o grupo, para iniciar o processo de adesão que pode durar vários anos.

Recomendações da OCDE para aperfeiçoar as políticas macroeconômicas do Brasil

Implementar o ajuste fiscal planejado por meio de cortes permanentes •

nos gastos.

Reformar o sistema de aposentadoria.•

Desvincular os pisos dos benefícios do salário mínimo.•

Deslocar mais recursos para as transferências que chegam aos pobres, •

incluindo o Bolsa Família.

Definir a indicação do presidente do BCB e dos membros do Copom com •

termo fixo.

Diminuir as políticas de apoio industrial voltadas a setores e localidades •

específicas, inclusive incentivos fiscais.

Avaliar os programas existentes de apoio industrial.•

Reforçar os procedimentos de denúncia e leniência.•

Restringir as indicações políticas, principalmente nas empresas estatais. •

Fonte: Relatório OCDE – “Construindo um Brasil mais Próspero e Produtivo” (Fevereiro/2018) .

O Ministério da Fazenda está em-penhado no processo, entendendo que, entre outras coisas, a adesão re-presentará um “selo de qualidade” para as políticas econômicas do país e, consequentemente, mais facilidade para captação de financiamentos e de investimentos estrangeiros. O Itama-rati já designou o embaixador Carlos Márcio Cosendey para representar o país na organização. As principais organizações empresariais apoiam a iniciativa, mas ainda há controvérsias relacionadas com a posição que o Bra-sil pretende ocupar no cenário interna-cional e com as perspectivas futuras de o país, uma vez aceito, adotar políticas ativas de desenvolvimento econômico.

Somente após a derrocada do blo-co soviético é que a OCDE abriu suas portas à entrada de novos países além dos fundadores e dos quatro que ade-riram até 1973, incluindo alguns que já não podiam ser classificados como

ricos. O primeiro foi o México, em 1994, país cuja adesão resultou na saída do Grupo dos 77 (G-77), o bloco de países em desenvolvimento criado em 1964 no âmbito da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad) e que conta atualmente com 134 membros. O México é atualmente o membro da OCDE com o menor PIB per capita, US$ 18.535 em 2016, segundo dados da organização.

Começaria em seguida um pro-cesso de convites e adesões englo-bando países recém-saídos do bloco soviético, como República Tcheca e Hungria e Polônia, todos em 1996 juntamente com a Coreia do Sul, esta já uma potência econômica que tam-bém saiu do G-77. Outros seis países seriam admitidos nos anos seguintes, sendo quatro da Europa Oriental, Israel e Chile. O Chile foi aceito em 2010 e segue como membro do G-77.

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Três países que receberam o “sim” es-tão em processo de adesão, incluindo os latino-americanos Colômbia, cujo processo de enquadramento tramita desde 2013, e Costa Rica, convidada em 2015, assim como a ex-república soviética Lituânia. A Rússia também estava no pacote de adesões já na con-dição de convidada, mas o processo de admissão foi suspenso em 2014 após a anexação da Crimeia, até en-tão parte da Ucrânia, pelos russos.

Outros cinco países além do Bra-sil pleiteiam entrar na OCDE e tam-bém aguardam convite, entre eles os vizinhos Argentina e Peru. Os outros são Bulgária, Romênia e Croácia, todos do Leste Europeu. Dos cinco, segundo as estatísticas da OCDE, somente o Peru possui PIB per capi-ta inferior ao brasileiro (US$ 12.225 em 2014, contra US$ 15.243 do Bra-sil em 2016). No ano passado, o pre-sidente dos Estados Unidos, Donald Trump, manifestou ao presidente

da Argentina, Mauricio Macri, seu apoio à entrada do país na organi-zação, gerando especulações de que os argentinos estariam à frente no processo de admissão.

Mas agora em março, durante visita ao Brasil para divulgar o rela-tório “Construindo um Brasil mais Próspero e mais Produtivo”, conten-do várias recomendações de políticas e reformas com vistas a fortalecer o arcabouço macroeconômico e regu-latório do país, o secretário-geral da OCDE, Angel Gurría, disse que o Brasil está mais bem posicionado en-tre os atuais pleiteantes por já fazer parte, há muito tempo, de um gran-de número de comitês e instrumen-tos legais da organização.

Segundo dados compilados pela equipe do Centro de Comércio Glo-bal e do Investimento (CCGI) da FGV, coordenado pela professora e pesqui-sadora da Escola de Economia de São Paulo (FGV EESP) Vera Thorstensen,

o Brasil já participa de 37 dos 240 ins-trumentos legais da OCDE e está em processo de adesão a outros 61. Ainda segundo o CCGI, a OCDE possui cer-ca de 250 comitês, grupos de trabalho e grupos especializados, distribuídos por 34 áreas temáticas.

“A OCDE tende à universaliza-ção”, afirma o embaixador José Alfre-do Graça Lima, conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e um dos mais experientes negociadores na área comercial da diplomacia brasileira. “Os compro-missos assumidos não são mandatá-rios e irão trazer o que a gente mais precisa: maior inserção nas correntes de comércio e atração de investimen-tos”, acrescenta. Para Graça Lima, a era do “clube dos ricos” já ficou para trás e o Brasil não deve deixar passar a oportunidade como, segundo ele, já fez no passado.

O embaixador entende que dei-xar passar a oportunidade de entrar para a OCDE é permanecer no que chamou de “ativismo típico dos anos 1970” quando, na sua avaliação, o Brasil vivia uma “ilusão de autossu-ficiência [industrial]” quando o que precisava era de melhores condições de acesso a mercados. A conclusão da Rodada do Uruguai em 1995, criando a Organização Mundial do Comércio (OMC) e incorporando a ela o Acor-do Geral de Tarifas e Comércio (Gatt, na sigla em inglês) e abrindo as portas para um mundo mais globalizado te-ria, segundo a análise de Graça Lima, sepultado esse passado.

O embaixador esteve à frente nos anos seguintes das negociações que buscavam um amplo acordo do Mer-cosul com a União Europeia, ainda em pauta, e também da tentativa frustrada de criação de uma Área

Valor (US$ bi)

Membro da OCDE

Principal produto importado/valor (US$ bi)

China 47,49 Não Soja/20,31

EUA 26,87 Sim Petróleo/2,65

Argentina 17,62 Não Automóveis/4,77

Holanda 9,25 Sim Tubos flexíveis ferro e aço/1,08

Japão 5,26 Sim Minério de ferro/1,40

Chile 5,03 Sim Petróleo/1,51

Alemanha 4,91 Sim Café cru em grãos/0,88

Índia 4,66 Não Petróleo/1,50

México 4,51 Sim Automóveis/0,49

Espanha 3,81 Sim Petróleo/0,96

Fonte: MDIC.

Entre os dez maiores importadores do Brasil, sete são da OCDE

(em US$ bi FOB) - 2017

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de Livre-Comércio das Américas (Alca). “Tive o privilégio de iniciar os esforços para colocar o Brasil em uma nova inserção”, relembra Graça Lima, lembrando que de lá para cá quem deu um salto de qualidade no Brasil foi o setor agropecuário e não a indústria que se buscava proteger. “A indústria caiu muito no período e hoje se busca recuperá-la até em prejuízo dos serviços”, argumenta, criticando as políticas ativas, como o Inovar Auto (proteção à indústria automobilística) criado no governo da ex-presidente Dilma Rousseff.

O conselheiro do Cebri também releva o argumento segundo o qual o Brasil perderia protagonismo no cenário internacional ao entrar para uma organização na qual não terá posição de liderança como teve, por exemplo, no G-20 Comercial, criado em 2003 com o objetivo de pressio-nar por um acordo de liberalização do comércio agrícola no âmbito da OMC, rejeitado por países europeus como a França. “O Brasil é o quinto maior país do mundo e uma das dez maiores economias, não precisa de retórica para ter voz”, rebate, argu-mentando que no agronegócio o país “é um protagonista sem precisar fa-zer qualquer anúncio”.

Clube de boas práticas Sem ser contrário à proposta de ade-são, o presidente do Sindicato Na-cional da Indústria da Construção Pesada (Sinicon), Evaristo Pinheiro, sugere que o Brasil amplie o debate e os estudos que permitam uma maior participação do setor empresarial no encaminhamento do tema. “Até ago-ra tenho visto basicamente o governo dizendo que é bom, que é positivo.

Os empresários ainda não falaram sobre seus interesses”, pondera.

O temor de Pinheiro é que o Bra-sil acabe colocando o carro à frente dos bois, ou seja, que entre para uma organização internacional que exige determinadas regras tributárias, por exemplo, e que só depois, por pres-são dessa organização, vá tomar as medidas que já deveria ter tomado por decisão própria. “Não me pa-rece razoável entrar para uma or-ganização internacional para depois mudar sua regulação doméstica. O Brasil deveria adequar primeiro sua legislação”, argumenta.

Criado em 2010 quando a eco-nomista Vera Thorstensen retornou ao Brasil após 15 anos em Genebra (Suíça) como assessora econômica da Missão do Brasil na OMC, o CCGI da FGV vem procurando fazer exa-tamente esse aprofundamento de es-tudos reclamado pelo presidente do Sinicon. “Quando o Brasil apresen-

tou sua candidatura a entrar para a OMC nós criamos dentro do Centro um núcleo concentrado em estudar o tema”, conta Thorstensen, expli-cando que quem trabalhou na sede da OMC, em Genebra, “olhava com um certo desprezo” para a perspecti-va de entrar para a OCDE.

“Dizia-se que era muito mais impor-tante investir na OMC, que a OCDE não tinha mecanismos de solução de controvérsias”, conta, realçando que hoje a OMC está em crise, pressiona-da pelo desejo dos Estados Unidos de acabar com mecanismos de solução de controvérsias, enquanto a OCDE é comparada com o Fundo Monetá-rio Internacional (FMI) e com outras organizações globais. Na avaliação da pesquisadora, “a OCDE funciona hoje como o secretariado do G-20”, não o G-20 Comercial, mas o bloco que reúne o G-7, grupo dos sete países mais ricos do mundo, e os principais países emergentes, inclusive o Brasil.

Valor (US$ bi)

Membro da OCDE

Principal produto/valor (US$ bi)

China 27,32 Não Demais produtos manufaturados/4,63

EUA 24,85 Sim Óleos lubrificantes (diesel)/4,47

Argentina 9,43 Não Veículos de carga/1,88

Alemanha 9,23 Sim Demais produtos manufaturados/1,63

Coreia do Sul 5,24 SimCircuitos integrados e microconjuntos

eletrônicos/1,39

México 4,24 Sim Automóveis/0,66

Itália 3,96 Sim Demais produtos manufaturados/0,65

Japão 3,76 Sim Demais produtos manufaturados/0,63

França 3,72 Sim Demais produtos manufaturados/0,54

Chile 3,45 Sim Catodos de cobre/0,96

Dos maiores exportadores para o Brasil, oito são da OCDE

(em US$ bi FOB) 2017

Fonte: MDIC.

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Com base nos estudos do núcleo especial do CCGI, a professora da FGV EESP faz um balanço dos prós e contras relacionados com o pleito brasileiro de entrar para a OCDE, começando pelos contras. Em rela-ção ao argumento de que o país corre o risco de perder soberania, Thors-tensen argumenta que os estudos fei-tos pelo núcleo no site do Ministério das Relações Exteriores (MRE) mos-tram que o Brasil faz parte de cerca de 200 acordos e os levantamentos feitos na Organização das Nações Unidas (ONU) apontam que o país já assinou 35 tratados multilaterais.

“Se em todos esses acordos e tra-tados o Brasil soube defender seus in-teresses, o que o impede de defendê-los também na OCDE?”, pergunta, ressaltando que em cada acordo que um país assina ele perde um pouco da própria soberania, submetendo-se ao princípio da reciprocidade que rege as negociações internacionais. “Mas é importante participar da go-vernança global”, arremata.

Em relação ao argumento de que a adesão sairá onerosa para o país, a pesquisadora considera este um ponto de pouca relevância. Se-gundo ela, o custo anual para o país será entre US$ 10 milhões e US$ 20 milhões, quantia que con-sidera “nada” para um país que fe-chou 2017 com um PIB na casa dos US$ 2 trilhões. Em relação ao argu-mento de que o Brasil já faz parte dos instrumentos e comitês da OCDE que lhe interessam, Thorstensen re-toma o tema do G-20 para rebater: “A OCDE é hoje o centro do G-20. Não faz sentido ser do G-20 e não da OCDE. É como ser passageiro de milhagem quando as discussões im-portantes estão na 1a classe”.

Sobre a perspectiva de o Brasil per-der a posição de liderança que ocupa no G-77 ao entrar para a OCDE, tro-cando-a por uma condição de “pobre entre os ricos”, a pesquisadora argu-menta que atualmente nem o Brasil é mais um país pobre e nem a OCDE é mais o “clube dos ricos”. “O Brasil é um emergente perdido na sua própria história e a OCDE quer atrair países emergentes”, afirma, acrescentando não ter simpatia por teses terceiro-mundistas como a que está implícita na questão do protagonismo no G-77.

Do lado dos argumentos a favor, Thorstensen destaca antes de mais nada o que considera relevante no atual “status” da OCDE: “A OCDE não é mais um ‘clube dos ricos’, mas um ‘clube de boas práticas governa-mentais’, e é disso que o Brasil pre-cisa”. Como segundo ponto a favor, a pesquisadora ressalta os métodos da organização. “A OCDE trabalha por pressão. Ela pega o país e mostra sua foto em relação aos demais. E o Brasil está mal na foto em todas as formas de comparação”, aponta.

O outro ponto relevante que a professora da FGV EESP destaca, já mencionado acima, é o fato de o secretariado da OCDE ter poder e funcionar, enquanto o secretaria-do da OMC, apesar de contar com centenas de funcionários, não nego-ciar nada, segundo ela, desde 2002. Thorstensen acrescentou, ainda, que após a aceitação do pleito brasileiro pela OCDE o país terá de três a qua-tro anos para negociar os termos da sua adesão e os instrumentos impor-tantes para o país participar.

Áreas consideradas sensíveis para o país, como a tributária, a de meio am-biente e o código de fluxo de capitais, no entendimento da especialista, o Brasil vai aderir e em seguida negociar as exceções. Em relação a fluxo de ca-pitais, ela não vê risco de o país perder seus instrumentos de defesa em caso de crise do balanço de pagamentos, lembrando que neste caso a maior au-toridade multilateral é o Fundo Mone-tário Internacional (FMI) cujo artigo 7o já prevê que o país atingido possa resgatar seus instrumentos de defesa. “Hoje o FMI está muito mais aberto e flexível do que antes”, afirma.

Preço de transferênciaO advogado Leonardo Castro, sócio da área tributária do escritório CTT Advogados, disse que tem feito vários estudos para clientes interessados em saber qual o impacto para as empresas da adesão do Brasil à OCDE. Segun-do ele, na área tributária, são três os pontos principais de divergência que precisam ser negociados: o preço de transferência, que impacta os negócios entre matriz e filial da mesma empre-sa, os acordos para evitar bitributação, ambos envolvendo o Imposto de Ren-

A OCDE é o centro do

G-20. Não faz sentido ser

do G-20 e não da OCDE.

É como ser passageiro

de milhagem quando as

discussões importantes

estão na 1a classe

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da (IR) e o modelo de imposto sobre valor agregado, o IVA dos europeus e o ICMS e PIS/Cofins no Brasil.

As regras de preços de transfe-rência, explica Castro, existem para evitar o chamado “negócio de pai para filho” entre empresas do mes-mo grupo localizadas em países dife-rentes e que resultam em pagamento de menos IR do que deveria ser efe-tivamente pago. Busca-se no mundo inteiro fazer com que a diferença en-tre o preço que é razoável e o preço cobrado receba uma taxação pesada de IR. As diferenças estão nos méto-dos para definir esse preço razoável. No caso brasileiro, segundo o espe-cialista, a lei determina que o preço é o custo mais uma margem fixa sobre a qual é cobrado o IR, enquanto na OCDE o cálculo do imposto é feito sobre o preço de mercado daquele produto. Simplificadamente, o pro-blema para a conversão do Brasil ao método da OCDE, segundo Castro, é que a definição do preço de merca-do demanda estudo econômico, vale dizer, custo, algo que não precisa ser feito no sistema brasileiro.

Na questão da bitributação, Cas-tro explica que acordos internacionais são celebrados para definir como será tributada a renda nos negócios entre dois países. Por exemplo, salário, só um dos países tributa. Em outros ca-sos, o IR é dividido de modo que a carga tributária seja equivalente à de um dos países envolvidos na negocia-ção. O modelo da OCDE, adotado pelo Brasil em tratados de bitributa-ção com vários países, como Japão, Suécia, Suíça e outros, diz que em ca-sos como de pagamento por transfe-rência de tecnologia ou de royalties, o IR não deve ser pago no país receptor da transferência.

O problema, de acordo com o ad-vogado, é que o Brasil às vezes en-tende que determinadas negociações devem ser interpretadas como pres-tação de serviços e não como trans-ferência de tecnologia, por exemplo, tornando o negócio passível de tri-butação na fonte. Segundo Castro, o tema tem gerado celeuma, com acu-sações de que o Brasil estaria subver-tendo o modelo da OCDE, e deve dar trabalho para que seja alcançada a desejada convergência.

O terceiro ponto corresponde a uma reforma há muito reclamada pe-las empresas domésticas brasileiras: a simplificação dos tributos sobre consumo, como ICMS e ISS. Castro explica que a União Europeia UE) harmonizou tudo no IVA, o Imposto sobre Valor Agregado, adotado tam-bém pelo Reino Unido, enquanto os Estados Unidos tributam o consumi-dor final por meio do Imposto sobre Vendas. No Brasil a tributação ocorre sobre cada operação e há uma grande disparidade de alíquotas, dependendo do ente federativo, o que até hoje tem

tornado inviável qualquer tentativa de simplificar ou unificar o que Cas-tro define como “um ornitorrinco”.

No frigir dos ovos, o especialista em tributação entende que o Brasil te-ria a ganhar entrando para a OCDE, até porque nos casos de divergência ele terá “poder para brigar com os aliados sentado à mesa”. Castro enxerga a en-trada na OCDE como “uma questão de evolução e de sobrevivência em um cenário globalizado”.

Exceções são possíveisPara o diretor de Relações Internacio-nais da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Thomaz Zanotto, o primeiro aspecto a ser entendido em relação ao pleito brasi-leiro de entrar para a OCDE é que a organização “não possui um tribunal de contenciosos, sendo o cumprimen-to das normas verificado por pressão dos pares”. Isso, segundo ele, signifi-ca que dentro dela é possível se nego-ciar um cronograma ou mesmo que sejam aceitas exceções.”.

Fonte: OCDE/BCB.

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BNDES Outros bancos públicos Bancos nacionaisprivados

Bancos estrangeirosprivados

Setor público domina financiamentos à infraestruturaDistribuição dos financiamentos à infraestrutura por bancos ou setores

financiadores (participação percentual no total)

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Para as empresas, Zanotto enten-de que a adesão brasileira significa maior previsibilidade nos negócios e maior valorização dos ativos uma vez que haverá maior alinhamento de regras. Significa também acesso a linhas de crédito mais baratas que muitas vezes só existem para empre-sas de dentro dos países da organiza-ção. Mas, assim como todos os espe-cialistas entrevistados, o diretor da Fiesp adverte que não se deve esperar uma tramitação rápida do processo de adesão, lembrando que a Colôm-bia está nessa batalha desde 2013.

Mesmo o Brasil já estando alinha-do com 88% das regras da OCDE, segundo levantamento encomenda-do pelo Itamarati, Zanotto adverte que as avaliações serão minuciosas e que entre os pontos que faltam con-vergir “temos várias jabuticabas que poderão gerar alguns problemas”. Um deles seria o dos acordos para evitar bitributação. Outra, a da tri-butação sobre valor agregado. “É um problema nosso. Não podemos sobreviver ao sistema tributário que temos aqui. Temos que fazer a refor-ma tributária”, dispara.

Para o diretor da Fiesp, fazer a reforma tributária e a reforma pre-videnciária devem ser “prioridades zero” para qualquer que seja o presi-dente da República eleito em outubro deste ano. “Não se trata de imposi-ções da OCDE, nós sabemos que não está funcionando”, afirma. E quanto ao fato de a OCDE ser vista como um clube de países ricos, Zanotto provo-ca: “Então, o que estamos fazendo fora dele? O Brasil é um país rico, só que mal administrado”.

Da mesma forma que a Fiesp, a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) também

Data de adesão PIB per capita (US$)

Alemanha 29/9/1961 48.943

Austrália 7/6/1971 48.178

Áustria 29/9/1961 50.503

Bulgária 13/9/1961 46.607

Canadá 10/4/1961 44.793

Chile 7/5/2010 22.727

Coreia do Sul 12/12/1996 36.532

Dinamarca 30/5/1961 490.921

Eslováquia 14/12/2000 32.730

Eslovênia 21/7/2010 30.460

Espanha 3/8/1961 36.332

Estônia 9/12/2010 29.741

EUA 12/4/1961 57.591

Finlândia 28/1/1969 43.378

França 7/08/1961 41.364

Grécia 27/9/1961 26.765

Holanda 13/11/1961 50.551

Hungria 7/5/1996 26.701

Irlanda 18/8/1961 72.485

Islândia 5/6/1961 50.666

Israel 7/9/2010 37.270

Itália 29/3/1962 38.380

Japão 28/4/1964 42.293

Letônia 1/7/2016 25.590

Luxemburgo 7/12/1961 102.019

México 18/5/1994 18.535

Noruega 4/7/1961 58.792

Nova Zelândia 29/5/1973 38.346

OCDE – 42.162

Polônia 22/11/1996 27.058

Portugal 4/8/1961 30.658

Reino Unido 2/5/1961 42.662

República Tcheca 21/12/1995 34.753

Suécia 28/9/1961 48.853

Suiça 28/9/1961 63.889

Turquia 2/8/1961 25.655

Fonte: OCDE.

México é o mais pobre dos atuais membros da OCDEPaíses da OCDE por data de adesão e PIB per capita em 2016

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que trabalha buscando exercer in-fluência. Em segundo lugar, ele en-tende haver a compreensão de que, com o crescimento da instituição e a entrada de países em graus diferentes de desenvolvimento, países como o Brasil precisam, por exemplo, lançar mão de instrumentos como o BNDES para desenvolver sua infraestrutura.

Para o executivo Henrique Rze-zinski, também membro do Conselho do Cebri e ex-presidente da Câmara Americana de Comércio do Rio de Janeiro (Amcham Rio), a OCDE tem o lado positivo de colocar o Brasil como participante de “um grupo de países que oferecem vantagens entre si”. Permite acessar financiamentos a juros menores e funciona como um selo de qualidade. “Estando na OCDE, você já está naturalmente com um ‘rating’ melhor.”

A perspectiva de troca de informa-ções de oportunidades de investimen-tos em um grupo seleto, para Rze-zinski, é “fundamental” às empresas do país com potencial de crescer. “País rico é o país que tem empresas ricas

apoia o esforço do atual governo brasileiro para que o país seja acei-to na OCDE. “Acompanhamos para ver o que pode repercutir em termos práticos para nossas empresas, mas uma das bandeiras da Firjan é a da melhoria do ambiente de negócios”, disse Pedro Spadale, gerente da Fir-jan Internacional, explicando que o aperfeiçoamento da legislação traba-lhista, já alcançado, a mudança da legislação tributária, redução da bu-rocracia, dos prazos e a melhoria da qualidade da educação, temas con-siderados fundamentais pela OCDE, são também pontos considerados vi-tais pela entidade fluminense.

“A OCDE é essencialmente um fórum de intercâmbio de boas práti-cas, de facilitação do comércio e dos investimentos”, resume. E antes de mais nada, adverte, “o Brasil precisa demonstrar que compartilha das prá-ticas usuais dos membros da organi-zação, processo que costuma levar pelo menos três anos”. Mas o fato de o Brasil já ser o país não membro que participa do maior número de comitês e instrumentos legais da entidade é um aspecto favorável, na interpretação de Spadale. Embora incluindo pontos es-senciais, como os 12% que faltam – o gerente da Firjan ressalta que não dei-xa de ser alentador o fato de que con-sulta feita pelo Itamarati mostrou que em 88% dos casos o Brasil já está ali-nhado ou não teria dificuldade para se alinhar aos instrumentos da OCDE.

Mas o Brasil, uma vez dentro da OCDE, não estaria engessado a um manual de política econômica orto-doxa, sem espaço, por exemplo, para fazer políticas de desenvolvimento alternativas? Spadale entende que, antes de mais nada, a OCDE não é uma organização normativa, mas

e empresas ricas exigem um ambiente saudável em termos macro e microe-conômico”, afirma o conselheiro do Cebri.“Claro que você tem que abrir seu mercado, mas simultaneamente está abrindo para suas empresas mer-cados dez vezes maiores do que o seu”, defende. Rzezinski avalia que esses movimentos de intercâmbio dão à em-presa “uma reputação importante no mundo”, citando o caso da Embraer. “Não é à toa que o único acordo [da OCDE] do qual o Brasil é ‘full mem-ber’ é o aeronáutico”, disse. O execu-tivo também entende que as questões tributárias não serão problema para a adesão do Brasil. “É preciso ter olhos para o que está sendo negociado. Nin-guém entra abrindo seu mercado de uma vez. Há regras de transição.”

Para o economista e consultor Carlos Geraldo Langoni, ex-presi-dente do Banco Central (1980-1983) e atualmente diretor do Centro de Economia Mundial da FGV, a en-trada para a OCDE “é apenas uma etapa de um processo mais amplo no qual o Brasil precisa se engajar” e que tem como chave principal a abertura econômica que ele chama de “a reforma esquecida”.

Langoni destaca que o Brasil saiu de uma corrente de comércio (expor-tações mais importações) em torno de 12% do PIB para cerca de 24% a 25% a partir da primeira abertura promovida pelo governo de Fernan-do Collor de Mello (1990-1992), mas não avançou, enquanto países vizi-nhos seguem aumentando seus graus de abertura, tendo o Chile alcançado 40%. “A abertura tem impacto direto no crescimento. Ela eleva a taxa de in-vestimento e aumenta a produtivida-de, via ampliação da transferência de tecnologia”, resume.

O Brasil é o quinto

maior país do mundo e

uma das dez

maiores economias,

não precisa de retórica

para ter voz em

qualquer fórum

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Para entrar, que seja em companhia dos Brics

O debate sobre o pleito brasileiro para ser aceito como membro efe-tivo da OCDE expõe novamente a divisão que permeia o pensamento político-econômico do país entre ortodoxos e desenvolvimentistas. Entre estes últimos, a resistência ao desejo fica evidente, seja por receio de perda de protagonismo no terre-no diplomático, seja pelo temor de que as sugestões de políticas da or-ganização acabem tornando-se im-positivas sob pena de desfiliação.

O ex-ministro Celso Amorim (Re-lações Exteriores de 1993 a 1995 e de 2003 a 2010 e da Defesa de 2011 a 2015), pré-candidato do PT ao gover-no do estado do Rio de Janeiro, elogia os estudos da organização – “eu até os utilizei no governo” –, mas questiona a adesão pura e simples a ela e suge-re que se for feita, que seja a partir de uma estratégia conjunta com os par-ceiros dos Brics, com poder para mu-dar a própria OCDE. “Não há nenhu-ma urgência, teria que ser olhado em conjunto com os Brics, até para mudar a OCDE”, disse em entrevista.

Brics é a sigla para a organização internacional criada em 2006 por Brasil, Rússia, Índia e China, com incorporação posterior da África do Sul, buscando explorar afinidades, uma vez que são países líderes entre

os emergentes, especialmente no ter-reno econômico. A Rússia estava em processo de admissão na OCDE até 2014, quando a efetivação do convite foi suspensa. Os demais Brics, junta-mente com a Indonésia, são tratados no site da organização como “Key Partners”, ou parceiros-chave. O ex-chanceler entende que “em muitos sentidos” eles são os países com os quais o Brasil tem mais afinidade. “E nenhum é da OCDE!”

Na forma individual como o tema está sendo encaminhado pelo Brasil, Amorim é taxativo: “O Brasil não vai ganhar nada. Não é um acor-do comercial. É para parecer rico”, dispara, afirmando que para não perder o chamado selo de qualida-de representado pela adesão às nor-mas da organização, essas normas acabam sendo obrigatórias. Para o diplomata e político, é imprudente

pleitear simplesmente a adesão sem “levar em conta o papel do Estado em países em desenvolvimento”.

O ex-ministro afirma também ser um fato que o Brasil, perderá lide-rança entre os países do G-77 mes-mo que não saia dele por imposição dos parceiros da OCDE no caso de uma aceitação do seu pleito pela or-ganização. “O Brasil perderá muita liderança. O país só liderou a criação do G-20 da OMC (G-20 Comercial) porque não era da OCDE”, disse, re-alçando a afinidade brasileira tanto com os emergentes quanto com os países pobres da África que se sen-tem representados quando não estão e o Brasil está presente em um fórum de decisões internacionais.

Do ponto de vista da oportunidade do pleito, Amorim classifica a inicia-tiva como “desastrada”, entendendo que ela teria mais representatividade se apresentada pelo novo governo que será eleito em outubro, ultrapassando

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o atual momento de debilidade políti-ca. “Eu seria contra, mas se fosse apre-sentada por um governo eleito a pro-posta teria mais representatividade”, questionou. Como exemplo de que o pleito do Brasil foi posto na geladeira, o ex-ministro cita o fato de o ex-secre-tário de Estado dos Estados Unidos Rex Tilleson, ter excluído o país da viagem que fez à América Latina no começo de fevereiro deste ano.

Na avaliação de Amorim, o pleito brasileiro resultou de uma “ofensiva ultraliberal da área econômica do go-verno”. Alinhado com o pensamento desenvolvimentista, Amorim ressalta que mesmo sendo vista como fechada a economia brasileira chegou a se co-locar entre as sete maiores do mundo. “O Brasil ainda precisa de proteção para desenvolver sua indústria”, dis-se, ressaltando que o que gera atração de investimento estrangeiro “é a eco-nomia crescendo”.

Outro diplomata de peso da cor-rente desenvolvimentista, o embaixa-dor Samuel Pinheiro Guimarães Neto (foi secretário-geral do Itamarati na gestão de Amorim, de 2003 a 2009 e ministro-chefe da Secretaria de Assun-tos Estratégicos do governo de 2009 a 2010), propõe começar a análise pelo entendimento do que seja a OCDE. “Criada com o Plano Marshall para ajudar na reconstrução da Europa, ela passou depois a fazer a coordenação das políticas dos países desenvolvidos e a negociação de compromissos (códi-gos) de política econômica”, analisa.

O segundo ponto ressaltado pelo embaixador é que, na sua avaliação, a organização é “altamente influen-ciada pelos Estados Unidos que após a 2a Guerra Mundial tinham mais da

metade do PIB mundial” e que te-riam organizado o mundo segundo seus interesses. O papel da OCDE seria coordenar as posições dos paí-ses desenvolvidos nos organismos econômicos internacionais em har-monia com os objetivos desse círculo sob a liderança norte-americana.

“A China é hoje a maior potência econômica do mundo e não quer en-trar para a OCDE para não tornar sua política econômica prisioneira dos códigos da organização”, exemplifica. Guimarães entende que o mundo segue dividido entre países industrialmente desenvolvidos e países subdesenvolvi-dos, exportadores de matérias-primas, sendo que o Brasil permanece enqua-drado entre os últimos, exportando, basicamente, matérias-primas e pro-dutos semi-industrializados.

Neste contexto, o interesse dos paí-ses desenvolvidos seria continuar com-prando as matérias-primas brasileiras e exportando para cá seus produtos industriais. “Quando você entra para

a OCDE, você aceita seus códigos”, pondera o diplomata, afirmando ser “um equívoco” achar que as negocia-ções na OCDE são semelhantes às que se desenvolvem no âmbito da OMC. “Na OMC as negociações são multila-terais, buscando uma ordenação mais favorável para todos”, argumenta.

O ex-ministro diz estar enganado quem pensa que o Chile e o Méxi-co têm alguma influência na OCDE, ressaltando que o Chile tem popu-lação e economia muito pequenas e afirmando que o México até ago-ra nada conseguiu com sua adesão ao bloco. Segundo sua avaliação, o objetivo do ex-presidente mexicano Carlos Salinas ao conduzir a entra-da do seu país na OCDE, em 1994, era alcançar o livre trânsito de pes-soas entre México e Estados Unidos. “Acabou conseguindo um muro pelo qual talvez tenha que pagar”, ironi-zou em referência ao muro que o presidente norte-americano, Donald Trump, pretende construir ao longo da fronteira entre os dois países.

Após ressaltar que Japão (1964) e Coreia do Sul (1996) já entraram para a OCDE quando eram eco-nomias desenvolvidas, no caso co-reano, fruto de um “planejamento rigoroso”, Guimarães disse que o Brasil deve fazer o mesmo, entrar para a OCDE quando for um país desenvolvido, capaz de enfrentar as carências da maior parte da sua população. “Não se pode construir um país para uma população de 25 milhões a 30 milhões de pessoas que pagam Imposto de Renda”, disse, realçando que grande parte dessas pessoas também enfrenta dificulda-des para viver. (C.S.)

Para o ex-ministro Celso

Amorim, é imprudente

pleitear uma adesão do

Brasil à OCDE sem

levar em conta o papel

do Estado em países em

desenvolvimento

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COMÉRCIO EXTERIOR

Lia Baker Valls PereiraPesquisadora da FGV IBRE e professora da Faculdade de Ciências Econômicas da Uerj

Após anos seguidos de déficits co-merciais, a indústria de transfor-mação registrou saldos positivos em sua balança comercial em 2016 e 2017. Os valores são baixos se comparados com a agropecuária e o setor extrativo. Em 2016 e 2017, os saldos foram respectivamente: agropecuária (US$ 25,7 bilhões e US$ 33,8 bilhões); extrativa (US$ 18,5 bilhões e US$ 30 bilhões); e transformação (US$ 1,6 bilhão e US$ 1,1 bilhão). A previsão de uma maior taxa de crescimento em 2018 junto com uma taxa de câmbio rela-tivamente estável sugere que o déficit irá voltar para a indústria de trans-formação. Esses dois fatores são su-

Volta dos superávits comerciais da indústria de transformação?

vas e a taxa de câmbio após 2003 ini-cia uma trajetória de valorização cam-bial (gráfico 2). Entre 2001 e 2007, a taxa de câmbio real efetiva caiu 32%. No entanto, o crescimento do comér-cio mundial registrou taxas acima de 5% no período de 2003-2007 (gráfico 3), o que contribuiu para o crescimen-to das exportações brasileiras.

Os déficits no saldo da indústria de transformação entre 2008/2009 são explicados pela crise mundial mais a contínua valorização do câmbio. Os anos de 2010 e 2011 são marcados pela influência da China que irá sus-tentar e impulsionar a demanda mun-dial. Para o Brasil, o resultado foi a crescente importância dos superávits da agropecuária e da indústria extra-tiva em contraposição aos déficits da indústria de transformação. A líder no comércio mundial não demanda pro-dutos industriais do Brasil.

A partir de 2011, o câmbio re-gistra desvalorização até 2015, o comércio mundial cresce a taxas in-feriores a 3% e o déficit da indústria de transformação chega a US$ 58,9 bilhões em 2014. A economia bra-sileira, após atingir crescimento de 7,5% em 2010, chega em 2014 com crescimento de 0,5%.

Os dados citados são conhecidos, mas sugerem que não é possível expli-car o desempenho dos saldos comer-

ficientes para explicar a trajetória da balança comercial do setor?

O gráfico 1 mostra os saldos co-merciais dos três setores desde 2001, quando a balança comercial foi posi-tiva após seis anos seguidos de déficit. Observa-se que a volta dos superávits, a partir de 2002 até 2007, foi lidera-da pela indústria de transformação. O superávit do setor passa de US$ 8,1 bilhões para US$ 33,6 bilhões entre 2002 e 2005, depois recua e em 2007 foi de US$ 21,7 bilhões. A partir de 2008, os déficits se acumulam e, em 2014, atingem o maior valor da série que foi de US$ 58,9 bilhões. No perío-do de superávit, a economia brasileira registrava taxas de crescimento positi-

Gráfico 1: Saldo da balança comercial por grandes setores em US$ bilhões

Fonte: www.funcex.com.br.

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Transformação Saldo

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CONJUNTURA COMÉRCIO EXTERIOR

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Fonte: Banco Central do Brasil.

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P-15-10-505

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Fonte: www.wto.org.

tuário perdem espaço no mercado mundial. Alguns outros associados a novas tecnologias, como os celulares, que começavam a crescer perderam também para os países asiáticos, em especial a China. Um exemplo foram as exportações de telefones celulares que estavam entre os dez principais produtos exportados pelo Brasil entre 1999 e 2005 e foi o segundo principal produto de exportação para os Esta-dos Unidos entre 2000 e 2003.

Não será suficiente garantir câm-bio competitivo e esperar que o co-mércio mundial cresça para que se mantenha superávit na balança da in-dústria de transformação. Ademais, a questão crucial não é a produção de qualquer superávit, que sempre pode ser alcançado em momentos de reces-são e/ou protecionismo, mas garantir

ciais da indústria de transformação apenas com as variáveis macroeconô-micas de crescimento e câmbio. Essas são sempre relevantes e a redução do déficit da indústria a partir de 2015 é influenciado pelo recuo na demanda por importações associado à reces-são doméstica e os efeitos da desvalo-rização cambial. No entanto, cenário de valorização cambial e crescimento econômico presentes na primeira dé-cada dos anos 2000 não impediram o registro de superávits comerciais. O que mudou?

A entrada da China e de econo-mias em desenvolvimento asiáticas, como Vietnã, levaram ao acirramen-to da concorrência internacional. Al-guns produtos tradicionais da pauta brasileira da indústria de transfor-mação como calçados e itens de ves-

crescimento das exportações. Logo é preciso formular uma política co-mercial compatível com uma política industrial que assegure a competitivi-dade do setor.

Esse não é um debate novo. No início dos anos 2000, mesmo após a desvalorização cambial de 1999, era consensual que as manufaturas bra-sileiras precisavam de um “choque de competitividade”. Redução do custo Brasil com as políticas horizontais de melhoria da infraestrutura, inves-timento em pesquisa e desenvolvi-mento, reforma tributária, assegurar condições de financiamento e pro-postas de políticas verticais voltadas para setores selecionados estavam na agenda de debates sobre as diretrizes da política comercial.

No momento atual, esse debate volta à cena. Erros no uso de instru-mentos como a política de conteúdo local, aumento nas tarifas de impor-tações e desonerações tributárias que levaram ao questionamento da políti-ca brasileira na Organização Mundial do Comércio não excluem a questão do desenho de uma política comercial e industrial. Aumentar a produtivida-de é precondição para o crescimento das exportações, mas acoplar esse debate a experiências exitosas de for-talecimento da indústria doméstica concomitantemente com ganhos no mercado mundial faz parte da agen-da. Nesse caso, novas diretrizes po-dem ser pensadas onde o foco ao invés de ser o setor passa a ser a firma.

Políticas que facilitem as transações comerciais, que estimulem a procura por certificações de qualidade, apoio com acompanhamento para avaliação de políticas de incentivo à incorpora-ção de novas tecnologias são algumas das diretrizes a serem detalhadas.

Gráfico 2: Taxa de câmbio real efetiva: deflator IPBrasil, IPC países

Gráfico 3: Crescimento (%) no volume de comércio mundial

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