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    CAVAZOTTI, Andr. O serialismo e o atonalismo livre aportam na MPB... Per Musi. Belo Horizonte, v.1, 2000. p. 5-15

    O serialismo e o atonalismo livre aportam na MPB:as canes do LP Clara Crocodilode Arrigo Barnab

    Andr Cavazotti

    Resumo: Neste estudo, observa-se a relao da utilizao dos processos seriais nas canes do LP Clara Crocodilode Arrigo Barnab com o contedo sociolgico das letras, onde a marginlia da cidade de So Paulo na dcada de

    70 retratada. Conclui-se tambm que os processos seriais so utilizados como afronta ao tonalismo, como umaconotao da distoro e da desintegrao do centro tonal; paralelamente, no texto potico, o ser humano retratadoem sua forma distorcida e desintegrada.Palavras-chave: serialismo, atonalismo, MPB, msica popular brasileira, rock, Arrigo Barnab, Clara Crocodilo

    Serialism and free atonalism land on Brazilian Popular Music:the songs of the LP Clara Crocodiloby Arrigo Barnab

    Abstract: In this article, it is demonstrated that the use of serial procedures in the songs of the LP Clara CrocodilobyArrigo Barnab is directly related to the sociological content of the lyrics, in which the underground of the city of SoPaulo in the 1970s is portrayed. This investigation also demonstrates that the serial procedures used in Clara

    Crocodilorepresent an affront to tonality, indicating the distortion and disintegration of the tonal center; in the sameway, the lyrics portray human beings in their distorted and disintegrated state.Keywords: serialism, atonalism, MPB, Brazilian Popular Music, rock, Arrigo Barnab, Clara Crocodilo

    O lanamento do primeiro LP de Arrigo Barnab, Clara Crocodilo, em 1980, causou impacto nocenrio da msica popular urbana brasileira. Incensado tanto pela grande imprensa quanto pelamdia alternativa, Arrigo Barnab foi apontado como o primeiro compositor popular a utilizarsistematicamente os procedimentos seriais em suas composies.

    A partir do lanamento de Clara Crocodilo, Arrigo Barnab passou a ser considerado pelaimprensa como a maior novidade surgida na msica brasileira desde a Tropiclia, conforme

    testemunha SOUZA (1982, p.3) em uma nota jornalstica: () Arrigo Barnab surgiu em 1979como o personagem mais polmico da msica brasileira desde a Tropiclia, movimento lideradopor Caetano Veloso e Gilberto Gil ().

    O carter inovador que a imprensa lhe atribuiu se deveu, precisamente, a um trao caractersticoda sua composio: a mistura de elementos da msica erudita modernista, aliados a letras ferinassobre a vida nas metrpoles. Para compreender os motivos que teriam levado Arrigo Barnab aoperar esta mistura de elementos de culturas dspares num mesmo LP, so imprescindveis, j deincio, breves traos biogrficos do compositor. Nascido em Londrina, Paran, no dia 14 desetembro de 1951, Arrigo vem de uma famlia de classe mdia seu pai era escrivo e sua me,dona-de-casa. De formao catlica, freqentou o Colgio dos Irmos Maristas, e durante cinco

    anos foi aluno do Conservatrio Musical Carlos Gomes, tambm em Londrina, onde cursou

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    disciplinas tericas e piano. Seu desejo sempre foi ser inventor, primeiramente na rea da qumica,depois em arquitetura e, finalmente, em msica.

    Durante a adolescncia, fez parte de um crculo de amigos onde eram discutidos os mais variadosassuntos, desde matemtica at astrologia, ocultismo e msica. Deste crculo faziam parte MrioLcio Cortes, Robinson Borba, Paulo Barnab seu irmo caula e Antnio Carlos Tonelli,todos futuros colaboradores do LP Clara Crocodilo. Aos dezesseis anos, Arrigo mudou-se paraCuritiba onde fez o curso pr-vestibular. Nesta poca, fascinou-se com as obras de Plato, Voltaire,Rousseau, Kafka, Freud e Marx, afastando-se definitivamente do catolicismo.

    Nos freqentes retornos a Londrina, conheceu, naquele mesmo crculo de amigos, obras deStravinsky, Bartk, Stockhausen e Luigi Nono. Neste contexto fez suas primeiras composiesexperimentais. Este crculo discutia com insistncia um outro tema: os prximos passos da msicapopular brasileira. Era a poca da Tropiclia1 e da difuso do livro O Balano da Bossade

    Augusto de Campos. Sobre os novos caminhos da msica popular brasileira Arrigo Barnabteceu a seguinte considerao:

    A Tropiclia um negcio que mexe muito com a pardia, no um movimento propriamentemusical. A loucura a letra, toda fragmentada. () A gente achava, ento, que o passoseguinte era mudar a prpria msica. () depois do tropicalismo, s a msica atonal tinhafuturo (ARANTES, 1981, p.17).

    Depois de curta estada no Rio de Janeiro, Arrigo mudou-se para So Paulo em 1970, onde cursouum ano de arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi neste perodo que ocompositor comeou a se interessar por histrias em quadrinhos, quando visitou uma exposio noMuseu de Arte de So Paulo levado pelo cartunista Luiz G que, dez anos depois, faria a ilustraoda capa do LP Clara Crocodilo. As histrias em quadrinhos tornaram-se, para o compositor, pontode referncia esttica e fonte de inspirao de vrias personagens de suas canes.

    Em 1971, Arrigo participou do Festival de Inverno de Ouro Preto, onde teve aulas de composiocom Ernst Widmer. Nesta ocasio, fez parte da montagem da missa Orbis Factor, de AyltonEscobar, fato que o marcou consideravelmente. Em 1975, j tendo composto as canes ClaraCrocodiloe Sabor de Veneno, ingressou no curso de msica do Departamento de Msica daEscola de Comunicao e Artes da USP, onde estudou composio com Willy Correa de Oliveira,e piano com Caio Pagano. No ano seguinte, montou o conjunto Navalha, integrado por AntnioCarlos Tonelli (baixo-eltrico), Itamar Assumpo (voz e guitarra) e Paulo Barnab (bateria),antecipando a formao do grupo do LP Clara Crocodilo. Em 1978, abandonou o curso de msicada ECA/USP, onde, segundo afirma, teria sido desestimulado a compor e tocar. Com vistas aoFestival Universitrio da Canoda TV Cultura paulista - edio de 1979 -, Arrigo montou aBanda Sabor de Veneno. Interpretando a cano Diverses Eletrnicas, Arrigo e sua bandavenceram o Festival, em meio a vaias. A partir da, seguiram-se diversas apresentaes pelopas, com o pblico invariavelmente dividido entre o aplauso e a vaia.

    Com a Banda Sabor de Venenoe alguns msicos convidados, Arrigo gravou seu primeiro LP,Clara Crocodilo. A princpio, este LP seria lanado pela gravadora Polygram, dentro da srie

    1 1969 - o chamado Disco Brancode Caetano Veloso havia sido recm lanado, com as canes Objeto no

    Identificado, Chuvas de Vero, Acrlicoe Carolina, esta, de Chico Buarque.

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    Msica Popular Brasileira Contempornea(dedicada difuso de msicos pouco conhecidos),mas devido a atritos entre o compositor e a gravadora, sua efetivao se deu numa produoindependente. Clara Crocodilofoi gravado em dezeseis canais, durante os meses de julho, agosto

    e setembro de 1980, nos estdios da gravadora Nosso Estdio em So Paulo. Foi lanado em15 de novembro deste mesmo ano, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Entretanto,s foi liberado pela censura federal na ltima semana de dezembro deste mesmo ano.

    Na esteira de Arrigo Barnab, surgiram, em So Paulo, novos nomes na msica popular os quaisforam logo agrupados e rotulados pela imprensa como Vanguarda Paulista. Dentre estes,destacam-se Tet Espndola, cantora pop-sertaneja, o cantor e instrumentista Itamar Assumpoe os grupos Premeditando o Breque, Lngua de Trapoe Rumo. Na poca, a jornalista Marlia(FIORILLO, 1981, pp. 46-47). assim caracterizou este movimento: () um tanto insolente, poucoafeito utilizao da msica como jingle ideolgico ou sentimental, de compenetrada formaomusical e impecvel senso do absurdo

    Em julho de 1981, no auge do sucesso, Arrigo desfez a Banda Sabor de Veneno e interrompeusua carreira para estudar e compor, enquanto continuava a ser sustentado por uma mesada deseu pai. Somente voltou a aparecer novamente em pblico no final de 1982, com um show quepermaneceu em cartaz por duas semanas no SESC - Pompia em So Paulo. Este espetculoserviu de preparao para sua apresentao no Festival de Berlim, onde obteve crticas favorveis,como a de Tibor Kneif do Der TagesSpiegel: Arrigo provou que o jazz pode receber grandesidias da Amrica Latina (SOUZA, 1982, p.3).

    Arrigo assinou com a gravadora Ariola, em 1983, um contrato que inclua o relanamento deClara Crocodiloem nvel nacional e a produo de seu segundo LP, Tubares Voadores. Embora

    o relanamento de Clara Crocodilos tenha ocorrido em 1996 pela gravadora Polygram, emformato CD, seu segundo LP, Tubares Voadores, foi lanado em 18 de maio de 1984, no TeatroSESC-Pompia, em So Paulo. A temtica que permeia o texto potico das dez faixas destenovo LP trata da mesma realidade abordada em Clara Crocodilo, ou seja, a desumanizao doser humano nas metrpoles. Essa interpretao referendada por CARVALHO (1984, p.8),segundo o qual:

    () o Kid Suprfluo ou o Office-Boy (esta faixa do disco anterior) so os seres comuns,representam a humanidade, os urbanides de uma apocalptica, fria e eletrnica pauliciadesvairada, que os esmaga e deprime

    Ao contrrio de Clara Crocodilo, Tubares Voadores constituiu-se numa produo cara eesmerada. Foi gravado em 32 canais no estdio Transamrica, um dos mais bem equipados daAmrica Latina. Arrigo saa, assim, do underground, lanando-se no concorrido mercadofonogrfico nacional.

    1987 foi o ano de lanamento, pela Polygram, de seu terceiro LP, Cidade Oculta, com a trilhasonora do filme homnimo, dirigido por Chico Botelho. Em 1988, seu quarto LP Suspeito eralanado pela gravadora 3M. A maior parte das faixas deste LP contm canes de amorinterpretadas pelo prprio compositor, que buscava, desta forma, atingir um pblico maior atravsde composies mais simples e acessveis, sem abandonar, entretanto, a esttica submundana.Neste sentido, o prprio compositor afirma literalmente que Suspeito um disco de mercado.

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    Em 1992 foi lanado Faanhas, seu quinto lbum, remasterizado nos Estados Unidos e lanadoem formato CD pela gravadora independente Camerati. Faanhasalterna composies inditascom novas verses de canes dos LPs Clara Crocodiloe Suspeito. Em 1998, a gravadora

    Ncleo Contemporneo lanou, em formato CD, a gravao ao vivo da pseudo-pera2

    de Arrigo,Gigante Nego, realizada no Palace, em So Paulo, em 1990.

    Alm destes seis lbuns, Arrigo Barnab comps a trilha sonora dos seguintes filmes: O OlhoMgico do Amor(1981) e A Estrela Nua(1985), de Jos Antnio Garcia e caro Martins; Janete(1983) e Cidade Oculta(1986), de Chico Botelho; Tenso no Rio(1984), de Gustavo Dahl; NemTudo Verdade(1985), de Rogrio Sganzerla; Vera(1987), de Srgio Toledo; Lua Cheia(1988)e Ed Mort(1997), de Alain Fresnot; e Oriundi(1999), de Ricardo Bravo. Maiores detalhes sobreos filmes lanados at 1988 para os quais Arrigo Barnab comps trilhas sonoras podem serencontrados em PAIVA (1989), e RAMOS (1990). Na rea teatral, Barnab fez a trilha sonora dediversas peas, incluindo Santa Joana, com Estr Ges e Cludio Mamberti, tendo tambm

    contracenado com Patrcia Pillar na pea O Mximo.Feitas estas observaes biogrficas, retomamos o fio do presente estudo, que se concentrarnas canes do LP Clara Crocodilo, considerado pelo prprio compositor como seu trabalhomais consistente do ponto de vista musical. Foi atravs desta obra que o atonalismo livre e ododecafonismo aportaram na msica popular brasileira.

    O LP Clara Crocodilo, que totaliza 42 minutos e 11 segundos de msica, contm oito canes:Acapulco Drive-In(430), Orgasmo Total(437), Diverses Eletrnicas(749), Instante(330),Sabor de Veneno(231), Infortnio(450), Office-Boy(659), e Clara Crocodilo(721). Nestas,exceto em Instante, o compositor discorre com crueza e realismo sobre a vida neurtica e

    desumanizante nas metrpoles contemporneas brasileiras. O enfoque da contracultura marginalemerge em um texto potico assumidamente influenciado pelas histrias em quadrinhos. A esserespeito, destacamos a esclarecedora considerao de NAZRIO (1983, p.30):

    () a msica de Arrigo apenas parece agressiva: de fato limita-se a tornar transparente aagressividade da realidade em forma o processo de industrializao total por que passa aAmrica Latina: internacionalizada e urbanizada em seus pontos nevrlgicos, s pode mantero ritmo de crescimento sobre a runa de suas (boas ou ms) tradies. () As novas geraesso de mutantes, que se arrastam do centro para a margem, da cultura para a natureza.

    A inexistncia de partituras das oito canes e a constatao da dificuldade de estabelecercorrelaes atonais e dodecafnicas recorrendo apenas audio do LP, impuseram-nos umaprimeira exigncia: a confeco das partituras.

    Para tal foram utilizadas trs fontes primrias:1) fragmentos de partituras de cinco das oito canes (Diverses Eletrnicas, Sabor de Veneno,

    Infortnio, Office-Boy, e Clara Crocodilo), remanescentes da poca da gravao, fornecidospelo compositor (Ex.1, que contm a indicao de uma ocorrncia de uma srie dodecafnica,seguida de sua verso retrgrada);

    2) a partitura quase completa da cano Clara Crocodilofornecida por Hyla Ferraz, flautista ecantora, conterrnea do compositor (Ex.2);

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    Termo utilizado pelo compositor.

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    3) o preenchimento, pelo compositor, das lacunas existentes nas partituras, efetuado emdois encontros que se realizaram em sua residncia em So Paulo, em dois de fevereiro ecinco de maro de 1993.

    A anlise do texto musical das oito canes do LP Clara Crocodiloevidenciou que todas socomposies seriais. Delas, as duas canes mais antigas, Clara Crocodilo(1972) e Sabor deVeneno(1973), so baseadas em sries de oito e seis alturas, respectivamente, indicando queo compositor utiliza a tcnica dodecafnica apenas a partir de 1974. As demais (Acapulco Drive-In, OrgasmoTotal, Instante, Infortnioe Office-Boy) so dodecafnicas.

    Os processos seriais empregados por Arrigo Barnab nestas canes so aquelesuniversalmente reconhecidos: transposio, retrogradao, inverso, rotao, multiplicao,fragmentao, operao de derivao e operao de desmembramento (vide definies destestermos no glossrio ao final; e vide tambm Ex. 01, que contm uma ocorrncia de uma srie

    dodecafnica, seguida de sua verso retrgrada). Observou-se, tambm, indcios de tonalismoem trs canes (Acapulco Drive-In, Instantee Infortnio) e de atonalismo livre em seis seqnciasde alturas de trs canes (Orgasmo Total, Office-Boye Infortnio).

    Atravs de uma narrativa semelhante quela das histrias em quadrinhos, Arrigo Barnab retrata,ao nvel do texto potico, a marginlia paulistana na dcada de 70, ressaltando a forma distorcidae desintegrada na qual vive o ser humano nas metrpoles contemporneas. Para conjugar osentido do texto potico com o serialismo e a atonalismo livre, Arrigo Barnab utilizou de distoroe desintegrao do centro tonal, desnorteando os ouvintes tradicionais da msica popular urbanatonal, aqueles a quem assumidamente se destina este LP.

    Ex.1. Trs fragmentos da cano Infortniode Arrigo Barnab.

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    Ex.2. Trecho do manuscrito da cano Clara Crocodilode Arrigo Barnab, compassos 27-28.

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    possvel traar um paralelo entre as motivaes que levaram Arnold Schoenberg, o sistematizadordo serialismo, e Arrigo Barnab a incursionarem pela atonalidade. A partir de 1906, Schoenbergcomps obras hibridamente tonais e atonais como a Sinfonia de cmaraop.9 (1906), o Segundo

    Quarteto de Cordasop.10 (1908) e Trs Peas para Pianoop.11 (1909). Sua primeira obraatonal, onde as dissonncias so finalmente emancipadas e as funes harmnicas dissolvidas, o Livro dos Jardins Suspensosop.15 de 1908-9, uma coletnea de canes sobre textos deStefan George. tambm de George a frase que abre o ltimo movimento do Segundo Quartetode Cordas de Schoenberg: Eu sinto o ar de outro planeta. Sobre este movimento, dizSchoenberg:

    O quarto movimento, Enlevo, comea com a introduo que descreve a partida da Terra emdireo a outro planeta. Aqui o poeta visionrio previu sensaes, que em breve talvez sejamconfirmadas. Livrando-se da fora de gravidade atravessando nuvens em direo ao ar cadavez mais rarefeito, esquecendo todas as atribulaes da vida terrena isto o que se tenta

    ilustrar nesta introduo. Quando a voz inicia Eu sinto o ar de outro planeta, o cenrio musicalest estabelecido neste clima e tudo o que se segue suave e terno, mesmo quando conduzao clmax por meio de um movimento ascendente () (RAUCHHAUPT, 1971, pp. 48-51).

    Esta imagem pode ser comparada segunda estrofe (versos 7 a 13) da cano Sabor de Veneno,de Arrigo Barnab, composta em 1973, e que uma de suas primeiras incurses pelo serialismo,ainda no dodecafnico:

    7 No sei se ela veio da luaOu se veio de Marte me capturars sei que quando ela me beija

    10 eu sinto um gosto(uma coisa estranha, um negcio esquisito)meio amargo do futurosabor de veneno

    Tanto no poema utilizado por Schoenberg, quanto nesta estrofe da cano de Barnab, o objetoque desperta o desejo no pertence dimenso terrestre. Porm, enquanto as imagens utilizadaspor Schoenberg descrevem a chegada a um outro planeta, na cano de Arrigo Barnab a ao dominada pelo ser extra-terreno, que captura o narrador. Assim, se o narrador em Schoenberg/George se liberta do cotidiano, em Arrigo Barnab, ao contrrio, o narrador escravizado poreste ser estranho, cujo beijo tem um gosto () meio amargo do futuro. Ou seja, em Barnabno h a descoberta pessoal de um outro mundo de sensaes suave e terno, como emSchoenberg, mas a descoberta, entre o fascnio e o desespero, de um futuro amargo, com saborde veneno.

    Ao contrrio de Schoenberg, que utiliza o atonalismo e o dodecafonismo com um sentido decontinuidade histrica, Arrigo Barnab utiliza-os como um signo apocalptico, uma afronta, umaruptura com o tonalismo. Da ocorre que o atonalismo e o serialismo de Arrigo Barnab se referemretrospectivamente ao tonalismo, justamente pela conotao de confronto, enquanto que oserialismo de Schoenberg tem uma conotao prospectiva de libertao.

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    Arrigo Barnab partiu de uma concepo particular da histria da msica popular brasileira aointuir, em 1972, que o atonalismo e o serialismo seriam os passos seguintes aps a Tropiclia,dizendo a esse respeito:

    Eu e o Mrio [Cortes] achvamos que depois do Tropicalismo o que tinha que acontecer oatonalismo na msica popular, que tinha que pintar uma coisa atonal. Isso porque os carastinham chegado num ponto, mas no tinham rompido com a linguagem tonal, no tinha umacoisa organizada (DIAS, 1981, p.9).

    Apesar da afirmao por ele feita em 1983, eu j vejo tudo com o filtro histrico(FALA, 1983,p.9), as duas dcadas passadas desde o lanamento do LP Clara Crocodilono permitem afirmarque sua intuio histrica tenha se confirmado. Efetivamente, h a evidncia inicial de que ClaraCrocodilono levou um nmero significativo de compositores populares a utilizarem o atonalismoe o serialismo em suas composies. Alm disso, pelo menos dois outros motivos justificam a

    no confirmao da intuio histrica de Arrigo Barnab:

    1. ao afirmar que depois da Tropiclia o passo seguinte na msica popular seria a utilizao doatonalismo e do serialismo, Arrigo Barnab fez uma transferncia direta msica popular brasileiraurbana dos acontecimentos de um outro tipo de msica, pertencente a um outro universo cultural,determinado por outras formas de relaes sociais;

    2. o conceito de necessidade histrica, baseado na idia de que a histria unidirecional, datado e deixou de ter validade:

    () nossa enorme riqueza de informao sobre o passado, juntamente com a decepo coma idia de processos histricos necessrios, teleolgicos, fazem com que o passado pareato complexo e desconcertante (seno to incerto) quanto o presente (MEYER, 1967, p.150).

    De qualquer modo, a utilizao do atonalismo e do serialismo como afronta ao tonalismo, nascanes do LP Clara Crocodilo, encontra motivao na idia central do texto potico, que discorresobre a marginlia de So Paulo na dcada de 70. O ser humano retratado, no texto potico,em sua forma distorcida e desintegrada prpria de uma sociedade em dissoluo, de modoanlogo utilizao do atonalismo e do serialismo, se estes forem entendidos como uma distoroe desintegrao do centro tonal, princpio agregador central do tonalismo.

    A narrativa das oito canes do LP Clara Crocodilo, direcionada a todas as classes, objetivachocar o cidado, confrontando-o com a marginalidade, conforme declarao do prpriocompositor:

    A gente queria fazer uma msica de que as pessoas no gostassem, mas que fosse bela. Aspessoas a que estou me referindo so a alta burguesia, o chefe de polcia, a dona-de-casacaretona (ARANTES, 1981, p.17).

    A idia de que o atonalismo e o serialismo, nestas oito canes, foram utilizados com o objetivode provocar o ouvinte, mais especificamente o ouvinte de msica popular acostumado aotonalismo, traz tona a dificuldade intrnseca deste tipo de msica percepo e cognio

    auditiva, como observa MEYER (1967, p.278):

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    O aparecimento de eventos previsveis e regulares gratifica o ouvinte, dando-lhe um senso decontrole e de segurana psquica (). provvel que a nova msica irrite os ouvintes noporque ofenda sua sensibilidade esttica mas porque sua segurana psquica seu senso decontrole seriamente ameaado3 .

    Esta irritao, provocada pela dificuldade de previso dos eventos, um dos objetivos destascanes, confirmado pelo contedo do texto potico. A agudeza dessa irritao, no entanto, amenizada pelo alto grau de redundncia no texto musical, resultado de diversas repeties dedeterminadas seqncias de alturas e de padres rtmicos. Do mesmo, recupera-se um mnimode segurana psquica atravs de uma compreenso facilitada pela estrutura formal simples eevidente das canes.

    As oito canes do LP Clara Crocodilono alcanaram o sucesso radiofnico esperado pelocompositor: A gente queria fazer msica erudita contempornea, mas que pudesse ser tocada

    no rdio, com guitarra eltrica(ARANTES, 1981, p.17). Este sucesso inversamente proporcional repercusso de Clara Crocodilona imprensa, onde lhe foram dedicados importantes e generososespaos, como uma entrevista nas pginas amarelas da revista Veja.

    O LP Clara Crocodiloocupa lugar sui generisna msica popular urbana brasileira. Ao discorrerno texto potico sobre uma realidade social especfica e estranha aos temas da msica popularde ento (a marginlia paulistana na dcada de 70) e ao utilizar no texto musical a tcnicacomposicional serial, Arrigo Barnab produziu uma obra complexa. Na sua unidade entre textopotico e musical e ao lanar mo de recursos composicionais fora do ordinrio, o LP ClaraCrocodiloabre-se a perspectivas analticas e assume conotaes histricas que ultrapassam o

    mero fruir do entretenimento e justificam as hiprboles que a imprensa tem dedicado ao compositor.

    GLOSSRIOOperao de Derivao: processo no qual uma nova srie gerada a partir de segmentos relacionados por

    transposio. Esta definio parafraseada de WUORINEN (1988, p.112).

    Operao de Desmembramento: processo de segmentao da srie em seqncias de alturas originalmenteno adjacentes. Esta definio , novamente, parafraseada de WUORINEN (1988, p.116).

    Operao de Fragmentao:processo de segmentao de uma seqncia de alturas adjacentes (cf. WUORINEN,p.28, 1988).

    Operao de Inverso: operao aritmtica na qual alturas so substitudas por seus respectivoscomplementares, definidos pela diferena entre as alturas originais e o nmero inteiro 12 (cf. WUORINEN,p.89, 1988).

    Operao de Multiplicao: operao aritmtica na qual as alturas so multiplicadas por um nmero inteiro.Se o resultado for maior que 12, calcula-se o mod 12desse nmero, ou seja, subtrai-se 12 do resultado atque este seja menor que 12 (cf. WUORINEN, p.98, 1988).

    3 Traduo do autor.

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    Operao de Retrogradao: reverso da ordem das alturas de determinada seqncia de alturas(cf. WUORINEN, p.90, 1988).

    Operao de Rotao: permutaocclica na qual, atravs de sucessivos estgios de transformao, cada

    elemento da srie avana uma posio, de tal forma que o elemento que avana de uma extremidade dasrie deslocado para a outra extremidade; trata-se de um processo circular onde o nmero de estgiospossveis corresponde ao nmero de elementos a serem rotados (cf. WUORINEN, p.102, 1988).

    Operao de Transposio: operao aritmtica na qual um determinado nmero inteiro (representando ointervalo [mod 12] de transposio) adicionado s alturas de uma seqncia de alturas (cf. WUORINEN,pp.86-87, 1988).

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    Andr Cavazotti, natural de Londrina, Paran, Professor de Anlise Musical e Violino na Escolade Msica da UFMG, com bolsa recm-doutor pela FAPEMIG. Doutor em Msica (1998, bolsado CNPq) pela Boston University, EUA, sua tese de doutorado consiste em um estudo estilsticosobre as Sonatas para violino e pianode M. Camargo Guarnieri. Mestre em Msica pela UFRGS,estudou violino com o Prof. Marcello Guerchfeld e, sob orientaco do Dr. Celso Loureiro Chaves,defendeu sua dissertaco de mestrado, que uma investigao sobre a utilizao de processos

    seriais nas canes do LP Clara Crocodilode Arrigo Barnab.