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VII Congreso de Historia Ferroviaria Asociación Ibérica de Historia Ferroviaria Associação Ibérica de História Ferroviária 1 Arrendamento dos Caminhos de Ferro do Estado. 1927 - 1933 Serviço Público e Negócios Privados Gilberto Gomes 1 Resumo O contrato de arrendamento de 1927 dos Caminhos de Ferro do Estado à Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses foi uma das primeiras decisões dos governos provenientes do levantamento militar de 1926. O contrato constituiu um processo complexo e conflituoso. Com o desmantelamento das estruturas organizacionais da rede estatal, a seleção de pessoal, a imposição dos regulamentos do sistema de exploração da arrendatária, a transferência de equipamentos e material circulante, o financiamento pelo Estado da sua antiga rede, tudo se conjugou para que o processo fosse irreversível. Palavras-chave: Transportes, caminho-de-ferro, dirigentes, problema ferroviário. Códigos JEL: L92, M21, N74, R42. Resumen El contrato de arrendamiento de 1927 de los Ferrocarriles del Estado a la Compañía de los Ferrocarriles Portugueses fue una de las primeras decisiones de los gobiernos provenientes del golpe militar de 1926. Con el desmantelamiento de las estructuras organizativas de la red estatal, la selección de personal, la imposición de los reglamentos del sistema de explotación de la arrendataria, la transferencia de equipos y material rodante y la financiación por el Estado de su antigua red, todo se conjugó para que el proceso fuera irreversible Palabras clave: Transporte, ferrocarril, dirigentes, problema ferroviario Códigos JEL: L92, M21, N74, R42. Abstract In 1927, the lease of the Public Railways to the Portuguese Railway Company was one of the first decisions made by the governments that followed the 1926 military revolution. The contract was a complex and conflictive process. With the dismantling of organizational structures of the public railways, the workforce selection, mandatory regulations of the renting exploration system, the equipment and rolling stock transfer and State funding of its old railway, everything combined made the process irreversible. Key words: Transports, railways, executives, railway problem Jel Codes: L92, M21, N74, R42. 1 Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. [email protected].

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VII Congreso de Historia Ferroviaria Asociación Ibérica de Historia Ferroviaria Associação Ibérica de História Ferroviária

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Arrendamento dos Caminhos de Ferro do Estado. 1927 - 1933 Serviço Público e Negócios Privados

Gilberto Gomes1 Resumo O contrato de arrendamento de 1927 dos Caminhos de Ferro do Estado à Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses foi uma das primeiras decisões dos governos provenientes do levantamento militar de 1926. O contrato constituiu um processo complexo e conflituoso. Com o desmantelamento das estruturas organizacionais da rede estatal, a seleção de pessoal, a imposição dos regulamentos do sistema de exploração da arrendatária, a transferência de equipamentos e material circulante, o financiamento pelo Estado da sua antiga rede, tudo se conjugou para que o processo fosse irreversível. Palavras-chave: Transportes, caminho-de-ferro, dirigentes, problema ferroviário. Códigos JEL: L92, M21, N74, R42. Resumen El contrato de arrendamiento de 1927 de los Ferrocarriles del Estado a la Compañía de los Ferrocarriles Portugueses fue una de las primeras decisiones de los gobiernos provenientes del golpe militar de 1926. Con el desmantelamiento de las estructuras organizativas de la red estatal, la selección de personal, la imposición de los reglamentos del sistema de explotación de la arrendataria, la transferencia de equipos y material rodante y la financiación por el Estado de su antigua red, todo se conjugó para que el proceso fuera irreversible Palabras clave: Transporte, ferrocarril, dirigentes, problema ferroviario

Códigos JEL: L92, M21, N74, R42. Abstract In 1927, the lease of the Public Railways to the Portuguese Railway Company was one of the first decisions made by the governments that followed the 1926 military revolution. The contract was a complex and conflictive process. With the dismantling of organizational structures of the public railways, the workforce selection, mandatory regulations of the renting exploration system, the equipment and rolling stock transfer and State funding of its old railway, everything combined made the process irreversible. Key words: Transports, railways, executives, railway problem Jel Codes: L92, M21, N74, R42.

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Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. [email protected].

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1. Introdução

A presente comunicação versa sobre o arrendamento dos Caminhos de Ferro do Estado (CFE) e a Concessão Única atribuídos à mesma companhia, cujas datas correspondem a profundas reorganizações do setor ferroviário em Portugal, constituindo parte de um projeto de investigação sobre «A Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses (CP) de 1927 a 1951». Nos anos vinte, num contexto de recuperação dos problemas decorrentes da I Guerra Mundial, o golpe militar de 28 de Maio de 1926 veio por fim à rede ferroviária do Estado, concessionando a exploração da rede à principal empresa privada do setor, com participação de capitais públicos. A decisão inesperada, num tempo volátil de instabilidade política, era contudo uma das receitas apontadas pelos oráculos da ordem, da disciplina e da boa gestão do setor privado sobre o público, perante as greves do pessoal ferroviário e a partilha política dos lugares cimeiros da administração ferroviária do Estado.

Tudo isto ocorreu num quadro económico que se alterou a partir de 1929,

invertendo as expectativas do setor, agravado com o fim do monopólio do transporte ferroviário. O crescimento exponencial do transporte rodoviário trouxe para o debate novas variáveis, que exigiam desafios e investimentos para os quais não havia recursos. A fuga dos passageiros e das mercadorias para a estrada implicava investimentos de modernização em empresas que viviam sob o acordo de convénios com os seus credores.

A comunicação faz uma abordagem aos termos do concurso do arrendamento e a sua atribuição, seguida pela leitura mais detalhada das bases do contrato, da sua execução e dos problemas decorrentes da sua aplicação. Analisa, ainda, o registo dos intervenientes e dos mecanismos que permitiam tornar cativos os lugares dos corpos sociais da empresa. Por fim, descreve os contornos da empresa e da entidade que exercia a fiscalização técnica e comercial do setor, bem como, as relações entre ambas.

2. O arrendamento revisitado

Em Portugal, nos anos vinte do pós-guerra, perante a inexistência de uma moderna rede de estradas, convém sublinhar a importância da rede ferroviária no sistema de mobilidade.

Genericamente, o sistema ferroviário apresentava-se dividido em dois grandes blocos, as linhas de Via Larga (VL), com a CP, os CFE e Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses da Beira Alta (BA) e, num segundo grupo, as pequenas companhias de linhas de Via Estreita (VE). Os CFE eram dirigidos por um Conselho de Administração que superentendia duas direções perfeitamente autónomas: a Direção do Minho e Douro (MD) e a Direção do Sul e Sueste (SS) (Trigo, 1935). Perante o turbilhão político da 1ª República (1910-1926) os CFE

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capitalizaram uma boa parte do descontentamento público pelo seu sistema de transportes.2

Na generalidade, o mau funcionamento do sistema era comum às restantes empresas ferroviárias, em parte derivado da conjuntura da I Guerra.

Em termos de opinião pública, as críticas aos serviços ferroviários do Estado eram múltiplas: a falta e o mau estado do material circulante,3 a incapacidade da exploração gerar verbas que permitissem a renovação e a construção em curso, a instabilidade laboral, a permissividade das estruturas dirigentes ferroviárias ao aparelho político, a prática da suborçamentação e a subida dos preços. Estes problemas, agravados pelas sucessivas crises políticas e financeiras, a insuficiência de meios, a acumulação de défices e a não apresentação de contas, geraram um ambiente crítico e de aceitação à mudança.

Neste período, o movimento sindical ferroviário apresentava grandes tensões, em especial na rede do SS, entre o pessoal jornaleiro, agentes e operários (filiados no Sindicato do Sul e Sueste) e a Associação de Classe do Pessoal Técnico e Administrativo da Viação Acelerada no Sul e Sueste. A conflitualidade tornada pública pelos jornais, nas estações 4 e nos comboios, transmitia um quadro de profunda indisciplina e de desagregação.5 Como consequência destas situações fora nomeada uma Administração Militar para o SS, chefiada pelo então coronel Raúl Esteves do Batalhão de Sapadores de Caminho de Ferro.

A Comissão de Sindicância aos atos da Comissão Administrativa dos Caminhos de Ferro do Estado, independentemente do ajuste de contas de grupos políticos rivais, revela o estado de decomposição de uma organização que permitira a inexistência de atas da própria Comissão Administrativa (1922-25), assim como, da apresentação de contas com alguns anos de atraso.6

Perante este cenário, para as forças políticas e militares empenhadas no golpe de 28 de Maio de 1926, o arrendamento das redes do Estado funcionou como bandeira política, e um sinal de mudança. Assim, não sendo o tema do arrendamento inesperado, a determinação com que o programa foi lançado e a sua

2 Vale a pena recordar a definição de «opinião pública é aquela que se publica» e neste campo, o

Engenheiro Fernando de Sousa, diretor da Gazeta dos Caminhos de Ferro, ligado a diferentes jornais monárquicos e conservadores, vinha defendendo há muito a reprivatização dos CFE e as soluções autoritárias na resolução dos problemas laborais. Ele foi a voz «oficial» do setor ferroviário, membro influente do Conselho Superior de Caminhos de Ferro (CSCF) e o relator do Plano Ferroviário de 1927. 3 O material encomendado por conta das reparações de Guerra (acordo Bemelmans) veio atenuar as

carências das empresas ferroviárias portuguesas, em especial, na aquisição de locomotivas à Casa Henschel & Sohn, de Cassel. 4 A ocupação militar das principais estações ferroviárias era uma medida recorrente em períodos de

forte agitação político-sindical. 5 Cf. Diário de Lisboa, nº 167, de 14/07/26.

6 Cf. AHTT, Proc. Sindicância, Diversos volumes, CFE. No processo foram incriminados dois

elementos da Comissão Administrativa dos CFE e acusados nos processos de adjudicação das Oficinas Gerais do Sul e Sueste no Barreiro à casa Beardmore, negócios de aquisição de carvão, etc..

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inflexão, numa conjuntura tão volátil, acabou por ser um elemento identificador do período.

Com o pronunciamento militar de 28 de Maio, o caminho-de-ferro marcou a sua importância no transporte de tropas da província sobre Lisboa. A participação dos ferroviários, tanto da CP como do Estado, contrariando as determinações do Governo, indiciam a complexidade da conjuntura revolucionária. A alienação dos CFE, no programa que foi sendo «construído» pelos militares surpreendeu os sindicatos ferroviários do Estado, até porque, a partir de 1922-23, último ano de contas publicadas, os resultados de exploração tinham voltado a ser positivos.

Com a publicação das bases do concurso as posições sindicais e algumas agremiações comerciais e industriais posicionaram-se diametralmente como era esperado.7

Basicamente, o concurso disputou-se entre duas posições. Por um lado Alfredo da Silva com as suas empresas Companhia União Fabril (CUF) e Sociedade Geral de Comércio, Industria e Transportes (SG)8 (Faria, 2009) e por outro lado, Rui Ulrich pela CP. Ambos esgrimiram as suas posições publicamente9 tendo o último sagazmente revertido a acusação de falta de isenção, devido à sua participação no conselho da Societé des Produits Chimiques (SAPEC). 10 Para a CP a rede do Estado duplicava o seu peso no setor. Para o patrão da CUF estava em jogo a garantia vital do mercado dos transportes da pirite e dos adubos e, se possível, a aquisição de um instrumento estratégico.

3. A incorporação das linhas do Estado

Entre meados do séc. XIX e os anos vinte, o interesse financeiro pelo «negócio» ferroviário alterou-se. Deixara de ser o modelo oitocentista da concessão-construção-exploração passando a deter interesse a incorporação de redes, com especial relevância para os fatores de crescimento através das economias de escala. Nos incertos anos vinte, com a degradação dos resultados financeiros das companhias, agravados pelos seus serviços de dívida e a desvalorização da moeda, os títulos ferroviários, não apresentavam margens atrativas para as aplicações de capitais. Nem as obrigações mesmo as privilegiados, tinham assegurado o pagamento do «coupon». Grande parte dos pequenos e médios acionistas e obrigacionistas apresentavam-se como herdeiros de carteiras estáveis e de baixa rotação. A exceção circunscrevia-se aos grandes detentores de carteiras, cujas

7 AHOP, Documentos Diversos, Secretaria Geral, 1926-27. Cf. Ofício de 29/09/26 da Associação

Industrial do Porto sobre a «falência do estatismo» e idêntica posição defendida em 14/09/26 pela Associação Comercial do Porto. Por sua vez, os ofícios dirigidos à tutela pela Comissão de Reformados do Sul e Sueste (12/09/26), Sindicato do Pessoal dos Caminhos de Ferro do Sul e Sueste (6/08/26) e pela União Ferroviária do Porto, revelam a fratura existente quanto a solução preconizada para os CFE. 8 A CUF fundada por Alfredo da Silva constituiu o maior conglomerado de empresas, de base

industrial, existente em Portugal até 1975. Quanto à SG para além dos transportes marítimos e fluviais do «grupo CUF», desempenhou igualmente as funções de holding financeira. 9 Tanto Rui Ulrich, como Alfredo da Silva tinham os seus jornalistas «privilegiados». Cf. a entrevista

de Alfredo da Silva ao Século de 13 de Janeiro de 1927 e a contrarresposta de Rui Ulrich. 10

A SAPEC de capitais belgas, criada em 1926, era detentora de minas de pirite no Alentejo (Lousal e Aljustrel) e na Andaluzia (Tharsis),sendo a principal rival da CUF no mercado dos adubos.

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posições lhes permitiam o acesso aos órgãos sociais das companhias e aos negócios complementares das empresas, como a gestão dos serviços financeiros ou as funções de «caixas» das empresas ferroviárias.

Em Portugal, com a falência da CP e da Beira Alta, ambas a viverem ao abrigo de convénios com os credores, a situação agravou-se com a desvalorização das moedas, portuguesa e francesa, bem como, com a exigência dos credores estrangeiros para os pagamentos se efetuarem em francos-ouro. A concentração de grandes quantidades de capital obrigacionista nas mãos de especuladores estrangeiros alterava a escala do problema e podia colocar em perigo as estratégias comerciais. Em França, o Comité de Portadores de Obrigações agrupava os detentores de títulos da CP, enquanto em Espanha, a família Escoriaza, era a principal detentora da Companhia da Beira Alta.

Para a CP dos anos vinte, o modelo de crescimento da empresa passava pela aquisição de «novos instrumentos», com aquisição de linhas de outras empresas, ou, em alternativa, pelo estabelecimento de contratos de exploração dessas concessões. Assim, são exemplo daquele modelo as negociações com a Companhia do Mondego para a aquisição da linha de Coimbra a Lousã, assim como, com a Companhia dos Meridionais para a integração da linha do Setil a Vendas Novas. De igual modo foi absorvido o Ramal de Tomar e a mesma estratégia se aplicou no projeto de aquisição da linha da Beira Alta, diretamente negociado por Rui Ulrich, presidente da CP, com Escoriaza 11. Perante algumas resistências no seio da BA, o projeto haveria de ser desdobrado em dois, num contrato de exploração da linha e na aquisição do material circulante. Posteriormente, a tutela fez gorar as negociações.

No caso dos CFE, o processo adquiriu particularidades devido ao enquadramento político, proporcionadas pelo golpe militar de 28 de Maio.

Quando as linhas do Estado passaram para a CP (11 de Maio de 1927) detinham uma rede construída de 1451 km (SS – 919 km, MD – 532 km), dos quais, 362 km de VL e 170 de VE. Nos finais de 1927 estavam em construção no Sul o Ramal de Sines, as linhas de Évora a Reguengos e de Barreiro a Cacilhas, enquanto, no Norte as linhas de Cintura do Porto, Vale do Sabôr e Régua a Vila Fanca das Naves.

O CSCF indicou a CP, que detinha 1.146 km de VL, como candidata preferencial12 , a qual adotou uma postura pública discreta e desinteressada na candidatura da rede do Estado, mas, na prática, tomou todos os procedimentos para que o contrato fosse uma realidade, mesmo quando houve alterações nas bases do contrato que, só posteriormente foram sufragadas pelo CA. 13 Estas alterações,

11

Cf. DG, II Série, n 151, de 12 de Julho de 1927. O Visconde de Escoriaza adquiriu em 1927 os direitos do Estado Português sobre a Companhia del Ferrocarril de Salamanca á la Fronteira de Portugal. Pela mesma época, adquiriu à Casa Burnay uma posição preponderante na Companhia da Beira Alta, dominando deste modo a principal ligação ferroviária internacional portuguesa. 12

AHTT, Col. Pareceres do CSCF. 1926. Parecer nº 426 do CSCF relativo às «Propostas de arrendamento das linhas férreas do Estado». Só a CUF e a CP fizeram propostas para a totalidade da rede do Estado. 13

AHCP, Cf. Ata do CA/CP de 26/01/27.

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introduzidas pelo Governo que não eram de somenos importância e que de algum modo indiciavam futuros problemas:

– A assunção dos défices de exploração, pela companhia arrendatária, exceto se os mesmos fossem motivados por casos de força maior ou pela exiguidade de tarifas;

- O estabelecimento de sanções por incumprimento do contrato;

– A impossibilidade de transferência de material circulante das redes do Estado para a CP, sem autorização da tutela;

– A obrigatoriedade do lançamento de concursos para as linhas novas em construção;

– O estabelecimento de um conjunto de procedimentos quanto às dívidas dos CFE.

Todo o processo do concurso correu célere, apesar da instabilidade governativa dos sucessivos gabinetes ministeriais do período.14

O anúncio nos jornais do concurso da rede do Estado apareceu introduzido nas atas do CA da CP como uma informação «de passagem», irrelevante. Na realidade, o concurso divulgado deveria ser um assunto muito mais acompanhado do que o registo das atas deixa transparecer. No período que decorreu entre 11 de Junho de 1926 e 25 de Agosto de 1927, sob as tutelas ministeriais de Passos e Sousa e de Carvalho Teixeira, o processo do arrendamento foi concretizado. Ambos os ministros foram assessorados pelo mesmo chefe de gabinete, Manuel Rueda,15 engenheiro da CP, que desempenhou, certamente, um papel central por parte dos desígnios da companhia e do seu presidente.

Assinado o contrato em 11 de Março de 1927, a CP tomou posse das redes do Estado dois meses depois. A partir desta data, entrou-se numa segunda fase, com a passagem da exploração das antigas linhas do Estado à CP, assim como, a posse de todos os equipamentos, edifícios e material circulante.

Num balanço sumário destes períodos é possível registar:

- De 11 de Março a 11 de Maio de 1927 – Foi um período de transição, não definido no contrato, tendo sido necessário estabelecer medidas avulsas de modo a acompanhar o complexo processo de transmissão das redes nas suas múltiplas vertentes,16 geridas paritariamente pela arrendatária e pela Administração Geral dos

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Entre 1926 e 1933 o Ministério do Comércio conheceu quinze 15 titulares. 15

Cf. Gazeta dos Caminhos de Ferro, nº 1120, de 16 de Agosto de 1934, pp 427-428. O Engenheiro Manuel Gonzalez Campos Rueda (1878-1934) entrou para a CP em 1910. Em 28 de Maio de 1926 foi nomeado chefe de gabinete do Ministro do Comércio. Segundo Fernando de Sousa, a sua «obra de maior patriotismo» foi a elaboração do relatório justificando o arrendamento. Regressou à CP em 1927 sendo colocado na Direção Geral. Foi representante da empresa em diferentes organizações nacionais e internacionais. 16

Cf. AHTT, CFE, Ordens, Administração Geral, 1927. Para o período de transição foi necessário estabelecer procedimentos que eram inexistentes para as receitas das estações, bilhetes impressos,

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CFE. As soluções passaram desde a nomeação de comissões, à elaboração de listas de todo o pessoal para fornecer à arrendatária.

- A partir de 11 de Maio de 1927 – Com a passagem da exploração à CP, decorreram simultaneamente a execução dos inventários e a seleção do pessoal a transferir para a companhia.

O contrato estipulara a criação de uma delegação do Estado na CP, com assento no CA, para o acompanhamento e fiscalização do processo do arrendamento, sendo composta por um delegado, dois adjuntos e um contabilista.17 Paralelamente, com a extinção da Administração Geral dos CFE na data de posse da rede pela arrendatária, foi criada a Comissão Liquidatária dos CFE, junto da Direção Geral de Caminhos de Ferro (DGCF), com atribuições nos campos de pessoal, em especial do que não foi selecionado, venda dos materiais não aceites pela arrendatária, encomendas de equipamentos e materiais em curso e respetiva liquidação, cobranças de créditos, publicação dos relatórios estatísticos e fecho de contas dos anos em falta.18

A partir de 11 de Março de 1927, perante a inexistência de um plano prévio, com a ausência de especificações e dos documentos base para a execução dos inventários e procedimentos contratuais, entrou-se num terreno desconhecido.

O contrato de arrendamento19 tinha como objeto a exploração das redes do Estado, construídas e em construção, por parte da CP (artigo 1.º) e estipulava um prazo de 30 anos (artigo 3.º), findo o qual a rede poderia voltar à posse do Estado. Definia igualmente uma renda fixa e variável a pagar pela adjudicatária (artigo 5.º), bem como, os procedimentos para a existência de lucros e das despesas de exploração. O artigo 8.º apontava a responsabilidade da arrendatária perante os défices de exploração «que não provenham de caso de força maior, nem da insuficiência de tarifas».

Quanto às linhas em construção estipulava-se a obrigatoriedade da concessionária dar continuidade aos trabalhos em curso. Algumas destas obras em fase de acabamento, como as linhas de Évora a Reguengos (41 km.) e o Ramal de Sines (22 km., de Ermidas a S. Bartolomeu da Serra) foram concluídas antes da entrega da exploração à CP.20

A execução dos inventários ficara estabelecida nos termos do contrato e abarcava o material fixo das vias, os edifícios e seus mobiliários (artigo 9.º), o material circulante, locomotivas e seus acessórios, material fixo das oficinas e carris sobresselentes (artigo 10.º), o material circulante e fixo das oficinas encomendado

remessas e volumes abandonados, reclamações, despesas com o pessoal para o encerramento de contas, existência de carvão nos depósitos e nas máquinas, etc. 17

A escolha para primeiro delegado recaiu sobre o Engenheiro Luís de Albuquerque d’Orey. Durante o seu mandato opôs-se, múltiplas vezes, à interpretação que a CP fazia do clausulado do contrato, em especial quando se tratou dos Quadros do Pessoal das antigas linhas do Estado. 18

Cf. Decreto 13601, de 11 de maio de 1927. 19

Cf. DG n. 65, II Série, de 25 de Março de 1927. Contrato de adjudicação da exploração das linhas férreas do Minho e Douro e do Sul e Sueste. Todos os artigos referenciados reportam ao contrato de 11/03/27. 20

As linhas em construção da rede do Estado ficaram a cargo do FECF.

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pelo Estado, (artigo 11.º), carvão, óleos e outros materiais de consumo (artigo 12.º). A finalidade destes inventários prendia-se com o apuramento dos respetivos valores que a arrendatária deveria satisfazer ao Estado.

As delegações dos grupos de trabalho dos inventários, constituídas por elementos do Estado e da Companhia, tiveram que definir a metodologia de trabalho, bem como, os documentos necessários, tudo em tempos mínimos. Assim, os elementos do inventário da Base X (material circulante), perante a ausência de documentação com os preços de aquisição e de inventários atualizados do material, partiram dos preços à época. Claro que, a realidade encontrada no terreno não condizia com a informação recolhida, levando a diferenças que só a adoção de medidas pragmáticas dos delegados permitiu concluir. A apresentação dos relatórios finais dos inventários, relativos à posição na data do contrato exigiu um trabalho ciclópico, certamente com margens de erro apreciáveis21 e que, posteriormente, teve de ser refeito de modo a incluir o período de 11 de Março a 11 de Maio de 1927, não contemplado inicialmente.

O Estado assumia a responsabilidade de todos os «encargos provenientes de atos já realizados», cabendo à CP as obrigações impostas pelos inventários que deveriam ser liquidados no prazo máximo de dois anos (artigos 11.º, 12.º e 13.º).

Em relação ao pessoal ferroviário o contrato definia quatro grupos com soluções bem distintas:

1º- Os empregados que se encontravam na situação de adidos ficaram a cargo do Estado, tendo alguns passado para a CP;

2º- A CP classificou como «incapazes» todos os empregados com cinquenta e cinco anos de idade ou vinte e cinco de serviço (dos serviços de máquinas, comboios, serviço fluvial e tração) e, também, os que tinham sessenta anos de idade ou trinta de serviço (pessoal de escritórios e estações). Todos foram submetidos a juntas médicas especiais e reformados pela Caixa de Reformas e Pensões dos Caminhos de Ferro do Estado;

3º- Um grupo de funcionários, que não ficaram abrangidos pelos limites de idade e que a CP considerou aptos para serviço, num total de 8.041 agentes, ficando a seu cargo e sob os seus regulamentos;22

4º- O restante pessoal, considerado apto pelas juntas e não abrangido pelos limites de idade, e que em 11 de Maio de 1927 estava ao serviço da CP, mas que a companhia acabou por dispensar, passando para a situação de adidos.

21

AHTT, Inventários, Cxs. 2390, Fundo CFE. Relatórios das comissões nomeadas para os inventários das bases, X e XII. 22

Cf. DG, nº 203, Suplemeto, II Série de 4 de Setembro de 1928. «Relação dos funcionários e jornaleiros dos quadros dos Caminhos de Ferro do Estado que ficaram ao serviço da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, nos termos do contrato de arrendamento da exploração das linhas do Estado, celebrado em 11/03/27» e DG, nº 31, II Série, de 6 de Fevereiro de 1932. «Retificações a introduzir na relação dos funcionários e jornaleiros dos quadros dos Caminhos de Ferro do Estado que ficaram ao serviço da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses em 11/05/28», inserta no suplemento ao DG nº 203, de 4 de Setembro de 1928.

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A empresa ficou com o prazo de um ano, a partir do início da exploração, para a conclusão do processo de seleção do pessoal.

Os encargos da arrendatária circunscreviam-se na totalidade para o pessoal que transitou para os seus quadros e assumiu 50% das remunerações do pessoal não selecionado, que transitou para a categoria de adidos. Detinha ainda custos indiretos na comparticipação do défice da Caixa de Reformas e não tinha nenhuma responsabilidade para os que à data do contrato se encontravam na categoria de adidos.

Quanto ao pessoal que passou para a companhia, colocaram-se vários problemas em relação à existência das relações contratuais dos antigos ferroviários do Estado, as quais foram perdidas ao transitarem para os quadros da CP.

Diferentes interpretações surgiram entre a Delegação do Governo e a CP em relação aos quadros e promoções de antigos funcionários dos CFE. Apesar dos diversos parágrafos do artigo 15.º que estabelecerem o mecanismo das vagas e a sua ocupação, a divergência de interpretações levou ao arrastar de decisões até 1929. Nessa altura, caiu a posição defendida pela Delegação do Governo que implicava a necessidade do pessoal oriundo do Estado ficar adstrito às linhas arrendadas, para contemplar o cenário hipotético de rescisão do contrato de arrendamento.

Um fator importante a destacar na seleção do pessoal foi a metodologia utilizada pela empresa na depuração dos elementos considerados perniciosos: «Fez a CP a escolha conforme julgou conveniente, eliminando definitivamente aqueles agentes que não convinham ao seu serviço. Os motivos que determinaram essa exclusão, longe de imanarem de um puro e simples arbítrio, eram de natureza técnica e disciplinar, … a respeito de cada um desses agentes presumivelmente indesejáveis. A quase totalidade ficou subordinada aos Regulamentos da Companhia, aprovados pelo Governo». 23

A elaboração de listas é confirmada pelo próprio Rui Ulrich quando aceita rever as admissões do pessoal «repescado» das sucessivas juntas médicas, desde que nada constasse nas listas da Direção Geral.24

Em relação ao pessoal operário das oficinas, a arrendatária negou-lhes a categoria de ferroviários, elaborando um regulamento especial, aprovado pelo Governo, de modo que na integração os operários dos CFE foram confrontados com uma nova realidade. Ao contrário dos operários do Estado, Ulrich reconhecia «Aqueles são considerados ferroviários para todos os efeitos, ao passo que os nossos não o são, regime com o qual a Companhia se tem dado otimamente». Na proposta apresentada ao CA o presidente, como alternativa, caso não conseguisse fazer vingar o seu ponto de vista, considerava como hipótese a passagem de todos os operários à categoria de adidos «o que lhe trará o sacrifício de pagar-lhes 50% dos seus vencimentos, sem deles receber trabalho algum; mas este sacrifício é bem

23

AHCP, Ofício de 21/08/29, Quadros do Pessoal das antigas linhas do Estado. 24

Idem.

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compensado pelas vantagens de se manter o regime seguido entre nós, sempre com bom resultado».25

No que respeita à Caixa de Reformas e Pensões dos CFE ficou estabelecido a responsabilidade assumida para com todos os reformados e pensionistas, sendo que perante a ocorrência de défices, os subsídios necessários seriam repartidos pelos participantes do contrato.

Assistiu-se à elaboração de listas de processos de reforma sucessivamente anulados pela tutela e mandados repetir por outras juntas médicas (designadas de revisão), recorrendo inclusive a médicos militares. Em 1928, entraram 1.148 processos de novas reformas, quando até 11 de Maio de 1927 o universo de reformados atingia 900 subscritores.

Em 1927, foi publicado um Regulamento da Caixa de Reformas adaptado à realidade do arrendamento, mas que matinha as regalias do anterior regulamento de 1922. Em 1928 publicou-se um novo regulamento, perante as dificuldades financeiras da Caixa introduziram-se alterações que passaram pelo aumento das cotas e das joias, diminuição das pensões e outras restrições de regalias.

Na rede do MD existiam linhas de VE em exploração e em construção das quais a arrendatária mostrou imediato desinteresse. Na sessão do CA de 1 de Abril de 1927, Ulrich propôs o trespasse das mesmas, opção que o contrato contemplava, alegando ser prejudicial a exploração simultânea de duas redes, com duplicação de serviços, oficinas próprias, transbordo de passageiros e mercadorias nas estações de ligação, pessoal especializado, etc. Assim, propôs fazer o trespasse nas mesmas condições do arrendamento, mas feito de tal modo que «as companhias subconcessionárias se entendam diretamente com o Estado». Na mesma sessão Duro Sequeira, salientou a complementaridade das linhas de VE e Fausto Figueiredo alertou para a expectativa das populações das regiões ao verem a CP «…mesmo antes de tomar conta das linhas do Estado, querer desembaraçar-se de parte delas…». Perante esta argumentação o presidente não recuou. Segundo ele, o trespasse deveria ser rápido para evitar mais inventários. Para o vogal Vasconcelos e Sá e em apoio do presidente, a integração da rede de VE traria a exigência de regalias idênticas ao pessoal das linhas de VL, o que seria sinónimo de uma exploração ruinosa.26

Pelos contratos de 27 de Janeiro de 1928 a companhia trespassou a exploração das linhas de VE afluentes da linha do Douro. Em 1 de Fevereiro de 1928 teve início a exploração da subconcessão com as empresas:

- Companhia dos Caminhos de Ferro do Norte de Portugal – exploração da Linha do Vale do Tâmega (Livração a Chapa);

25

AHCP, Livro 51, Ata da CE, de 20 de Abril de 1927. 26

Idem, Livro 31, Ata do CA, de 20 de Abril de 1927; AHCP-CNDF, «Col. PV», Linhas do Estado. Trespasse das linhas de Via Reduzida. De acordo com o mesmo administrador, enquanto uma maquinista da CP ganhava 2.000$00 (ordenado, subvenção e prémios), um maquinista da Companhia Nacional não ganhava mais do que 540$00 mensais.

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- Companhia Nacional de Caminhos de Ferro - exploração das linhas do Vale do Corgo (Régua a Chaves) e do Vale do Sabor (Pocinho a Lagoaça).27

Para a CP o trespasse das linhas «teve mais em vista os interesses do Estado, do que os seus, visto estar convencida de que a exploração das vias reduzidas feita por quem está especializado nesta espécie de serviço, será mais lucrativa do que se fosse feita pela CP….»28

Apesar do CSCF ter referido os problemas decorrentes do trespasse quanto ao pessoal e à integração das suas caixas de reformas, bem como, com a criação de novas estações de transmissão, prevaleceu, contudo, a posição da CP.

A execução do contrato de arrendamento originou um vasto leque de problemas entre o Estado e a concessionária, num clima de conflitualidade e litigância. Dos múltiplos problemas destacam-se:

- O pagamento da renda fixa anual e da variável;

- Pagamento de 50% dos vencimentos do pessoal adido, considerado excedentário;

- A liquidação no prazo de dois anos, do valor do inventário, do carvão, óleo e outros materiais de consumo, materiais de via (exceto carris), ferramentas manuais, etc.;

- A entrega ao Estado de todos os materiais retirados da renovação da via;

- A remuneração dos corpos gerentes da CP;

- O bónus pelo transporte de mercadorias pobres;

- A aquisição do edifício da Escola Académica;

- A assunção dos défices da Caixa de Reformas e Pensões da rede do Estado;

- A renovação do material circulante, com as despesas de conservação e a aquisição de material novo a cargo da CP, com o qual esta nunca se conformou;

- A identificação do material circulante do Estado (com as iniciais das direções SS e MD);

- A revisão e atualização dos inventários, exceto as demolições e as aquisições;29

- A situação deficitária decorrente dos contratos de arrendamento, tanto da CP como da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro, que sucessivamente pressionaram o Estado para a renegociação dos contratos, pretendendo estabelecer resultados de exploração mínimos;

27

Nas novas estações de transmissão (estação de ligação de duas companhias) – Livração, Régua e Pocinho -, estabeleceram-se as taxas de manutenção relativas às expedições de serviço combinado. 28

AHCP, Livro 31, Ata do CA, de 11 de Agosto de 1927. 29

Idem, Livro 57, Ata da CE, de 26 de Abril de 1929.

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- Os sucessivos trabalhos de retificação da Comissão de Inventário da Base X (material circulante); 30

- A aplicação do plano de exploração da CP 31 e o problema da unidade de exploração, com a aplicação das «Regras que devem ser adotadas na exploração da rede dos Caminhos de Ferro do Estado». As posições discordantes no seio do CA, da maioria contra posição do administrador do Estado (Duro Sequeira) e da tutela (Eduardo Aguiar Bragança). Para a CP só a unidade de exploração possibilitava as economias de escala do contrato; 32

- O aproveitamento do material circulante do Estado por parte da CP; 33

- A situação dos arquivos do Estado; 34

- A necessidade da fiscalização técnica das obras a cargo do Estado e a não-aceitação de obras mal classificadas, ou, cujo custo fosse julgado excessivo pela DGCF;

- Os atrasos dos pagamentos pelo Fundo Especial de Caminhos de Ferro (FECF) e as divergências quanto ao transporte dos materiais de construção;

- O pagamento do stock de abastecimentos e do material retirado da renovação das linhas pela CP;

- A emissão obrigacionista, até ao montante de 7.500 contos, para constituir o capital afeto às linhas do Estado;35

- A localização das Oficinas Gerais no Barreiro, que a DGCF impôs, e da racionalização das oficinas em função das redes que a CP não aceitou.

Perante cenários de interpretação tão divergentes a empresa acusava a tutela, em especial a DGCF, assinalando o facto de o contrato permitir ao Estado obter lucros com as rendas, ter disciplina e a melhoria dos serviços públicos e a garantia de que no final do contrato receberia tudo de volta. 36Em resumo, para a CP o contrato fora um mau negócio e «Se o Estado entende que não exploramos bem as suas linhas, nós de bom grado lhas entregamos».37

Após um período de intensa conflitualidade a relação contratual estabilizou-se com aceitações e cedências: o regime da unidade de exploração da CP, o estabelecimento de contas separadas por redes, a participação do Estado nas

30

Idem, Livro 60, Ata da CE, de 23 de Maio de 1930. 31

AHCP-CNDF, «Col. PV», Linhas do Estado. Arrendamento e Ata da CE, de 16 de Março de 1927. 32

AHCP, Livro 32, Atas do CA, Cf. ata da sessão de 24 de Outubro de 1928 (sob o tema «Questões pendentes com o Estado») e seguintes. 33

Quando a CP tomou conta da linha do Sul retirou as locomotivas da série 300, recebidas através da «Reparações de Guerra», por não poderem ir além da Funcheira (devido às pontes), ficando a fazerem o serviço Barreiro - Beja e Lisboa Rossio - Porto (os «rápidos» do Porto e o Sud-Express). 34

Cf. Decreto 13.601, de 12 de Maio de 1927. 35

Cf. Decreto n.º 17036, de 26 de Junho de 1929. 36

AHCP-CNDF, «Col. PV», Comissão Especial para o estudo das questões pendentes com o Estado, Ata nº 5, de 29 de Janeiro de 1929. 37

Idem p.5

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despesas gerais da CP, a aceitação dos direitos do pessoal do Estado e obras a efetuar quer no Barreiro, quer em Campanhã, ambas pagas pelo Estado.

Perante a conflitualidade latente e a realidade do desmantelamento dos serviços do Estado, Rui Ulrich sugeriu o envio de um ofício ao ministério indicando que «a Companhia está disposta a aceitar a rescisão amigável…».38 Num momento em que ambas as partes sabiam que não havia retorno possível, quanto ao contrato de arrendamento, a ameaça do presidente constituía um elemento de pressão extrema sob a tutela.

Com o decorrer do contrato foram-se alterando as expectativas da opinião pública, inicialmente, tão propícias ao arrendamento dos CFE. A partir de 1929, a conjuntura adversa da economia e a situação financeira da empresa não propiciavam os investimentos necessários, tanto na rede da CP como na do Estado. 39 Bem pelo contrário, com a baixa de receitas foi necessário cortar despesas, reduzir os percursos de comboios e pressionar a tutela para aumento das tarifas e sobretaxas.40

As múltiplas frentes de problemas com que a empresa se confrontava, agravados por uma postura de gestão que gerava anticorpos, criaram clivagens entre a empresa, a tutela e a opinião pública.

4. As elites ferroviárias da CP

Quem eram as elites ferroviárias do período de 1927 a 1933?

Ao longo da história da empresa, sempre houve uma matriz que caracterizou e identificou os decisores ferroviários com elementos das grandes «famílias» políticas e financeiras.

Financeiros e especuladores, gestores, figuras públicas de relevo, políticos de serviço, académicos e militares sempre repartiram os órgãos sociais da companhia.

Para a classe política, muitas vezes a companhia funcionou como retaguarda, outras como ponto de partida. Chefes de Governo, ministros e deputados passaram pela CP, como vogais dos conselhos, comissários, delegados e consultores.41

No período em análise, a estrutura do poder na empresa apresentava-se geralmente estável, com a exceção já assinalada no conselho de 1927. Na generalidade não existiam conflitos internos entre os seus órgãos, constituindo a Comissão Executiva (CE) o seu centro de gravidade. Antes dos estatutos de 1931, o veto do Comité de Paris era uma realidade herdada do Convénio de 1894, mas, o cruzamento de vogais do CA com o Comité e o constante intercâmbio dos seus

38

Idem p.13 39

A uniformização das tarifas do Estado com as da CP foram sucessivamente adiadas, para não agravar mais a contração das receitas. 40

AHCP, Cf. Atas da CE, de Janeiro a Março de 1933 (sob o tema «Baixa de receitas»). Algumas das propostas não obtiveram o consenso da tutela, como a redução dos vencimentos e o encerramento das oficinas, alguns dias ao longo do mês. 41

Entre muitos destacam-se Afonso Costa, António Maria da Silva, Sidónio Pais, Barros Queirós, Ginestal Machado.

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membros proporcionava uma relação harmónica de interesses. As poucas ocorrências, que potencialmente podiam originar zonas de crispação, eram as assembleias gerais e as notícias da imprensa.

Nas assembleias de acionistas o depósito prévio dos títulos e a emissão de credencias dava para estimar as presenças, logo o sentido dos votos. As assembleias eram dominadas pelo número de votos que estatutariamente os títulos conferiam. A distribuição de títulos ao portador por mandatários ampliava o peso dos diversos grupos detentores do capital. Só este mecanismo das assembleias, em que as «cartas estavam marcadas» pelos grandes detentores de carteiras de títulos, dá para entender a permanência de «famílias» de administradores que acumulavam a rotação em eleições sucessivas, ora eleitos pelas assembleias de acionistas em Lisboa, ora pelos obrigacionistas em Paris, intervalando com as representações das delegações do Governo.

Das muitas individualidades que mantiveram cargos durante décadas nos órgãos sociais da CP são por exemplo: Rui Ulrich que esteve nos órgãos socias da empresa entre 1918-1933, Raul Esteves de 1927 a 1951, Mário Costa de 1928 a 1969, Vasconcelos Correia de 1910 a 1946, Fausto de Figueiredo de 1910 a 1947.

Nos anos 30/40 os principais grupos de acionistas presentes nas assembleias através dos seus mandatários eram: a Fazenda, a «Casa Amaral» da «família Figueiredo», o conjunto de votos agrupados à volta de Mendes de Carvalho da Casa Bancária Fonseca, Santos & Viana, o «grupo do gás» onde pontificava António Centeno, o grupo Lucas dos Reis (com interesses ligados aos transportes rodoviários) e um conjunto de acionistas dos quais sobressaiam o Banco de Portugal e a Caixa de Reformas e Pensões da CP. No mesmo período em Paris, Louis Roger Montagné foi o principal detentor e especulador, de títulos da CP.42

Quanto à imprensa o problema apresentava-se com muitas frentes. Na verdade a CP detinha alguns trunfos importantes que passavam pelos contratos de publicidade e pelas facilidades de transportes. O serviço de distribuição dos jornais pela rede ferroviária e a sua comercialização eram argumentos importantes para os jornais.43 Contudo, muita informação escapava à «versão oficial» da CP, como as lamentáveis notícias das remunerações da administração, que a Comissão de Censura da imprensa não cortou (Barreto, 1994), chegando a tutela a questionar a companhia sobre a veracidade das notícias.

42

Detinha também títulos das companhias da Beira Alta e dos Meridionais. 43

AHCP, Atas da CE, 1932. Neste ano o jornal «O Século» de João Pereira da Rosa publicou um artigo apresentando as posições do Sindicato da CP, que segundo Rui Ulrich era uma «agremiação que a Administração desta Companhia não considera como representando legitimamente o seu pessoal…». Para a CP o «Sindicato Ferroviário tem sido sempre um elemento de agitação social e não de justa defesa profissional…». A CE da CP «vê-se forçada a rescindir o contrato de publicidade de 24 de Fevereiro de 1928 com o jornal O Século». Em 9 de Abril de 1932, o jornal respondeu à CP, refutando as suas acusações e referindo que o Sindicato tinha existência legal, a Comissão de Censura não impedira a sua publicação, não vendo no texto o incitamento à «indisciplina social», nem a tomada do partido dos «desordeiros, contra aqueles que têm a nobre missão de manter a disciplina». Perante as justificações a empresa revogou a decisão.

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Para além de muita informação crítica que a imprensa diária propagava sobre o quotidiano da CP, o jornal do Sindicato do Pessoal da Companhia e a Revista Portuguesa de Comunicações (1929/37) foram os títulos que assumiram a primeira linha do contraditório aos atos de gestão da CP e das suas elites dirigentes.

Rui Enes Ulrich 44 entrou para o CA da CP em 1918,45 eleito pela assembleia de obrigacionistas de Paris. 46 Foi nomeado vogal da CE em 28 de Janeiro de 1925 e Vice-presidente do CA e da CE em 27 de Maio de 1926.

Em 1918, Ulrich não era um desconhecido, bem pelo contrário. Académico respeitado, especializado em finanças, ele dominava o conhecimento teórico e prático dos mecanismos financeiros do seu tempo (Mata, 2013). A sua passagem pela Junta de Crédito Público, pelo Banco de Portugal e a participação simultânea em grandes empresas permitiram-lhe estabelecer uma rede de contactos nas principais praças europeias e o conhecimento dos mecanismos financeiros internacionais, bem como, carrearam-lhe um currículo invejável (Reis, 2011, pp. 356,357). A sua progressão na CP foi constante. Ascendeu à presidência do CA em 17 de Junho de 1926, ocupando o lugar de Tomé de Barros Queirós e em 23 de Junho de 1926 acumulou com a presidência da CE. No discurso de agradecimentos da eleição para a vice-presidência frisou a necessidade da Companhia adquirir novos instrumentos que lhe permitissem o crescimento, voltando a afirmar os mesmos desígnios quando atingiu a presidência.

A apresentação de um plano, com a integração horizontal de redes de outras companhias, a definição de uma estratégia de crescimento, o delinear dos procedimentos para a sua execução, conferiram-lhe a credibilidade do saber fazer. Saber que era múltiplo, num largo espectro que ia das melhores soluções jurídicas, à adoção dos mecanismos financeiros e contabilísticos preferenciais. A reorganização da empresa, com a publicação dos estatutos de 1931, a resposta ao arresto dos tribunais franceses às contas da companhia, com a transferência dos saldos para as filiais dos bancos franceses em Londres, foram meros expedientes de quem estava muito familiarizado no terreno em que se movia. 47

As suas múltiplas viagens não lhe retiravam espaço para visitar as redes de Estado e constatar que reinava finalmente a «ordem» já visível com a exploração da CP.

No quotidiano suportava mal a crítica e a discordância das suas opções. No reordenamento do Conselho após o arrendamento, a inclusão de um vogal e de um delegado do Governo desalinhados do seu pensamento foram motivo de permanente conflitualidade na interpretação do contrato com o Estado. As suas posições, mesmo quando colidiam com as da Procuradoria da República ou da

44

Rui Enes Ulrich (1883-1966) – Professor Catedrático da Universidade de Coimbra. Financeiro e gestor em múltiplas instituições. Foi embaixador em Londres de 1933/35 e de 1950/53, Professor e Diretor da Faculdade de Direito de Lisboa e Procurador da Câmara Corporativa. 45

AHCP, Livro 27, Atas do CA, de 26 de Março de 1918. 46

Assembleia Geral de Obrigacionistas, de 29 de Julho de 1918. 47

A praça de Paris sempre foi relevante na vida financeira da empresa. O arresto decretado pelos tribunais franceses pôs em causa o pagamento do serviço da dívida, o serviço de compensação com as companhias francesas e os pagamentos de materiais e equipamentos estrangeiros.

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tutela, não o inibiam do caminho traçado. Quando muito cedia na forma, amaciava a resposta, retocava com mestria a versão final da minuta a endereçar à tutela, sabendo, contudo, que os termos inicias da mesma não deixariam de ter eco na Praça do Comércio.

Aliava uma sólida formação profissional, relacionada nas praças financeiras europeias, a uma estratégica rede de contactos pessoais, que montou através da colocação pessoas de confiança em lugares chave.48 Rodeou-se de colaboradores de grande qualidade profissional, como Vicente Monteiro49 e Acácio Furtado, que o assessoraram em toda a litigância com a tutela, a propósito dos CFE, ou com os processos judiciais em Paris.

Foi determinante na solução do arrendamento dos CFE, enquanto as tutelas eram politicamente frágeis e efémeras. Com a consolidação do poder político a partir de 1929 e uma tutela50 menos recetiva ao peso da empresa e ao seu presidente, o confronto foi inevitável. Claro que, vale a pena ter presente, o espaço de manobra que Ulrich granjeou com a presença do colega de Coimbra, Oliveira Salazar, na pasta das Finanças.

5. O Estado e a CP

O golpe militar que acabou com a 1ª República colocou na ordem do dia a construção de uma rede de estradas51 e a reorganização do setor ferroviário. A passagem dos CFE para o setor privado levou à reorganização da DGCF,52 com funções de fiscalização «técnica e comercial de todas as empresas concessionárias», com serviços centrais em Lisboa e externos ao longo da rede. Para além da DGCF o quadro de fiscalização das empresas integrava ainda um Comissário da República e um Delegado do Governo, para o acompanhamento dos atos da sociedade e dos contratos concessão. Durante este período, qualquer destes cargos foi sempre exercido por convite a personalidades políticas ou afetas aos círculos restritos de quem ocupava as tutelas do Comércio ou das Finanças.

No seio da DGCF funcionava o FECF que, a partir do arrendamento, teve como principal missão custear as «obras complementares» da antiga rede do Estado em construção, as despesas de funcionamento da DGCF e da Delegação do Governo, as obrigações decorrentes do Contrato de 11/03/27 (como a renovação de

48

AHBP, RU.002, Correspondência recebida de diversos, 1914-1919. Cf. António Branco Cabral, oriundo de outros negócios com Rui Ulrich, tendo desempenhado na CP, funções de Consultor do Comité de Paris, Engenheiro Fiscal do Ramal de Cascais e Secretário-geral da CP. Veja-se igualmente António Silva Bustorff colocado na presidência da Assembleia Geral da CP. 49

Vicente Rodrigues Monteiro foi o 1º Bastonário da Ordem dos Advogados (1847/1936). 50

A relação com João Antunes Guimarães, ministro do Comércio e Comunicações de 8/07/1929 a 5/07/1932, foi sempre uma relação tensa, com momentos de grande crispação, como a recusa do plano de integração da BA na CP ou os valores remuneratórios da administração. 51

A criação da Junta Autónoma de Estradas em 1927 esteve na origem da moderna rede de estradas portuguesas. 52

Cf. Decreto 13.510, de 12 de Abril de 1927..

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pontes e da via,53 aquisição de material circulante para a rede do Estado, etc.), bem como, o investimento de primeiro estabelecimento da rede do Estado.

Perante as insuficiências do Fundo e o reconhecimento das obras a realizar, o Governo concedeu um subsídio de 100 mil contos, repartido pelos anos económicos de 1931-32 a 1934-35, integrado no Programa de Melhoramentos a realizar nas linhas do Estado54 com um quadro de execução partilhado para trabalhos na Via, Obras, Oficinas e Material Circulante.

No âmbito da tutela e com funções consultivas funcionava o CSCF.

A execução dos compromissos financeiros assumidos pelo Estado com o contrato de arrendamento levantou problemas para os quais nada estava definido, nem na lei geral, nem no contrato. Como executar a liquidação das obras complementares do primeiro estabelecimento? Ou da renovação da parte metálica da via? Como conjugar as necessidades contabilísticas de documentação necessária à CP e ao FECF?55

Só em Junho de 1928, decorrido um ano após o início da exploração, o Fundo recebeu da CP os primeiros documentos para liquidar.56

Com o reordenamento do setor estabeleceram-se novas frentes de rutura e conflitualidade entre a CP e a DGCF. As nomeações, já referidas, de Luís de Albuquerque d’Orey e de José Vítor Duro Sequeira, 57 a tentativa de neutralização dos mesmos e a imposição da interpretação da empresa relativa ao contrato de arrendamento levaram ao recurso sistemático da Procuradoria-Geral da República e aos tribunais arbitrais.

Nos finais dos anos vinte a CP regia-se pelo acordo do convénio de 4 de Maio de 1894, em consequência de falência 58 provocada pela crise de 1891. O capital acionista permanecia em 35 milhões de francos-ouro e o capital obrigacionista repartia-se em títulos de 1º e 2º grau de juro de 3%, 4% e 4,5%, num total de 504.918.500 francos-ouro. Em escudos o capital acionista ascendia aproximadamente a 327.019 contos, enquanto o capital obrigacionista atingia 4.717.665 contos.

Os estatutos de 1894 pretendiam garantir os direitos dos obrigacionistas, na sua maioria franceses, impedindo o acesso a novos empréstimos e obrigando a que o investimento de primeiro estabelecimento fosse custeado pelas receitas líquidas

53

Renovação que teria de ocorrer nos primeiros quinze anos de acordo com o artigo 26.º do contrato de 11 de Março de 1927. 54

Decreto nº 20801, de 16 de Janeiro de 1932. 55

AHTT, Relatório da Comissão Administrativa do FECF, Exercício de 1928-29 e Parecer nº 643 do CSCF. 56

Problemas idênticos observaram-se na liquidação das contas do Ramal de Tomar. 57

Engenheiros prestigiados da rede do Estado, defensores de um Estado acima dos interesses particulares das companhias e protagonistas de muitas tensões no interior da CA. Em 1929 Luís d’Orey reformou-se e faleceu, pouco tempo depois. Duro Sequeira faleceu em 1931. 58

As empresas ferroviárias detinham um estatuto jurídico de exceção, quando confrontadas com uma sociedade comercial. Devido aos serviços públicos que produziam a situação de falência traduzia-se num quadro de «suspensão de pagamentos», regulado pelo Tribunal do Comércio.

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da exploração. As restrições impostas por aqueles estatutos acabaram por marcar a gestão das administrações, impedidas de contrair empréstimos para investimento.

Após a I Guerra Mundial, com a desvalorização do escudo, a situação agravou-se em especial a partir de 1924, originando protestos dos obrigacionistas devido à desvalorização da moeda francesa59. Num quadro estatutário, em que ninguém se sentia confortável (desde a companhia aos credores), a exigência dos obrigacionistas em receberem o pagamento dos juros e amortizações em francos-ouro, foi o elemento que despoletou a remodelação dos estatutos.60

Os novos estatutos de 193161 criaram ações privilegiadas a distribuir pelos obrigacionistas (do 1º e 2º graus), sendo o capital expresso em francos-papel e vencendo um juro de 6%. Com o aumento da taxa de juro pretendeu-se executar uma medida de compensação e, simultaneamente, aliciar os detentores para a nova operação. Claro que com esta medida agravaram-se os custos financeiros do serviço da dívida.

O Estado, através do Ministério das Finanças, detinha uma posição preponderante no capital social da empresa. Através da posição da carteira de títulos da Fazenda depositados no Banco de Portugal 62 compreende-se a capacidade dos Governos para imporem as suas opções nas assembleias gerais da companhia, tanto de acionistas como de obrigacionistas. 63

Os novos estatutos permitiram:

- A diminuição drástica do capital da empresa, com a redução do passivo;

- A redução do número de administradores para onze, dos quais sete eleitos em assembleia geral e quatro nomeados livremente pelo Estado. Dos sete eleitos, quatro podiam ser estrangeiros e destes, três podiam residir no estrangeiro;64

- O cancelamento do pagamento dos coupons e dos juros em ouro, passando a efetuar-se na moeda corrente;

- A capacidade de contrair empréstimos para despesas de investimento, em função das receitas brutas anuais;

- A redução a três membros do Comité de Paris e o cancelamento do anterior poder de veto.

59

Protestos extensivos aos acionistas que não recebiam dividendos, bem como, aos obrigacionistas. Os de 1º grau recebiam com grande irregularidade, quanto aos do 2º grau nada recebiam. 60

AHCP-CNDF, «Col. PV», Remodelação da Companhia, Estudo, Vol. I, de 26 de Abril de 1928 a 27 de Março de 1931. 61

Decreto nº 20.692, de 31 de Dezembro de 1931. 62

Convenção estabelecida entre o Ministério das Finanças e o Banco de Portugal, de 10 de Novembro de 1932. 63

AHBP, BP-OD, Troca de títulos da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses. Em 31/12/34 as Finanças detinham o seguinte capital da CP: 33.500 ações ordinárias, 85.183 ações privilegiadas e 73.965 obrigações de 6% fruto da remodelação de 1931. 64

Cf. Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, Estatutos, 31 de Dezembro de 1931.

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Estatutariamente, estabeleceram-se como prioridades para aplicação do produto líquido anual: a amortização e o pagamento dos juros das obrigações, a contribuição para o fundo de reserva e a distribuição do dividendo às ações privilegiadas.

Uma vez aprovados os novos estatutos pelo Tribunal do Comércio de Lisboa, e perante a recusa dos tribunais franceses de concederem a homologação aos estatutos de 1931, a empresa iniciou um longo e dispendioso processo de pleitos judicias nos tribunais franceses e de laboriosas negociações com os obrigacionistas.

Quanto aos resultados de exploração, no período de 1927 a 1933, a companhia apresentou uma inversão do anterior ciclo de expansão a partir de 1929. A contração das receitas obrigou à redução das despesas e ao adiar de trabalhos de conservação. A conta de empréstimos junto da Caixa Geral de Depósitos e o valor de Letras a Pagar a partir de 1927 (8.547 contos) subiu exponencialmente até aos 20.720 contos em 1930. Quanto ao comportamento dos Coeficientes de exploração, a CP e as linhas do Estado apresentaram um agravamento de 83,76% para 86,76%.65

Em 1929, a empresa apresentava o organograma típico de uma estrutura industrial divisional, com a seguinte configuração:

– Um CA em Lisboa, com 21 membros (a partir dos estatutos de 1931 reduziram-se a 11);

- Uma CE, cuja presidência e vice-presidência era cumulativa com o CA, à qual de juntavam seis vogais. Era o verdadeiro centro de decisão da companhia;

- Um Conselho Fiscal composto por um presidente, um secretário e quatro vogais;

- O Comité de Paris, que se apresentava como uma extensão do CA de Lisboa, era composto por um presidente, um vice-presidente e oito vogais, todos com representação no CA.66

A Administração, tal como o Comité, detinha um corpo consultivo de engenheiros e advogados, assim como, um serviço de secretariado coordenado por um Secretário-Geral. O Serviço de Contabilidade e Tesouraria estava centralizado na administração.

Da Direção Geral, instalada em Santa Apolónia, dependiam todos os serviços técnicos e as grandes divisões operacionais: a Divisão de Exploração, a Divisão de Via e Obras, a Divisão de Material e Tração e o Serviço de Armazéns. Todos estes serviços se desdobravam em serviços regionais.

A estrutura divisional de uma empresa ferroviária permitia-lhe, em termos contabilísticos, que as divisões funcionassem de um modo quase autónomo, originando uma complexa e cruzada escrita contabilística em livros auxiliares que tornavam inexpugnável qualquer tentativa de indagação do exterior (Leitão, 1927).

65

Cf. Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, Relatórios anuais… Exercícios de 1927-1933. 66

A partir de 1931 ficou reduzido a três elementos.

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As divisões e serviços geravam receitas e despesas, entre si ou com o exterior, consolidando os seus balanços num nível superior da estrutura. Esta filosofia de gestão, que as empresas ferroviárias foram das primeiras a utilizar, apresentava a vantagem de dimensionar os custos e as receitas com relativo rigor, contudo, tinha a desvantagem de exigir muitos recursos de pessoal de «retaguarda» (contabilistas, amanuenses, praticantes, apontadores). Se tivermos presente que a CP, nesta época, era uma empresa de mão-de-obra intensiva, em que a escrituração exigia um pesado registo das operações, entende-se o peso de tal estrutura. Tudo isto agravado com a necessidade constante de fiscalização, de controlo e de informação estatística, aos quais o contrato de arrendamento juntou a exigência de contas de exploração separadas para as redes do Estado.

Com o contrato de 11 de Março de 1927 o organograma alongou-se, mas, manteve a mesma filosofia: uma estrutura divisional, ramificada geograficamente, hierarquizada, regulamentada e dependente dos serviços centrais. Nos confins da rede a figura do «inspetor» personificava a representação da Companhia. Uma empresa que detinha dimensão nacional, com uma importância económica decisiva 67 e um lugar de destaque na distribuição da massa salarial que os «pagadores» ao longo da rede liquidavam.

Em termos de gestão observa-se a progressiva centralização de funções no CA, em especial da função financeira. A função técnica era o território da Direção Geral, o que não quer dizer que não ocorressem incursões da administração nas suas áreas. A função pessoal não estava ainda autonomizada, a sua gestão dependia dos serviços.68 A admissão de pessoal do quadro era da competência do CA, que definia anualmente os quadros da empresa, passando para a Direção Geral, ou para os chefes de divisão a contratação do pessoal jornaleiro e eventual.

Quanto à integração do pessoal do Estado na CP, a abordagem deverá ser feita por grupos socioprofissionais. Genericamente houve uma retração de efetivos com a passagem de muitos agentes para a situação de reforma. O «pessoal superior», na generalidade, não parece ter sentido grandes problemas. Não só a CP continuou a sentir a necessidade dos seus serviços, como a DGCF ampliou as suas necessidades. 69 Uma vez que a rede da empresa duplicou, o seu pessoal igualmente duplicou, passando aproximadamente para 16.000 efetivos. Tendo presente a metodologia da seleção, com a eliminação dos indesejáveis, a maioria do pessoal do quadro dos CFE foi integrado. Neste momento, pensamos que foi a nível do pessoal jornaleiro que se executaram os maiores cortes, mas, tal como já observarmos, foi no retrocesso de regalias do pessoal operário que mais se acentuou a situação de perda. 70 Igualmente, se observam cortes em quadros suplementares, como no corpo clínico, cujos médicos da rede do Estado, também

67

Atente-se na importância da «Lista de fornecedores» da CP e nos pedidos de concessão de transportes. 68

A função «pessoal» nos anos 30 resumia-se ao serviço remuneratório e à ação disciplinar. Cada «divisão» geria o seu pessoal. 69

Uma boa parte das chefias técnicas e administrativas da CP, a partir dos anos 30, foram oriundas dos antigos CFE, como Roberto Espregueira Mendes, que foi Diretor Geral da CP de 1947 a 1969. 70

O pessoal empurrado para a situação de reforma ficou numa antecâmara da miséria pelos montantes auferidos, agravados com a inflação dos anos trinta.

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eles a aguardarem a passagem para a CP, ao integrarem as juntas médicas especiais, certamente foram escrutinados em função dos resultados.71

Até 1932, a empresa não reconhecia a estrutura sindical existente, apesar da sua existência legal, nem mesmo após as declarações das chefias militares em prol do excelente trabalho dos ferroviários no golpe de 28 de Maio de 1926, recusando-se a discutir os assuntos que o Sindicato lhe colocava, como: 72 a Caixa de Reformas, concessão de passes, demissão de pessoal, horário de trabalho e horas suplementares, medidas de higiene, etc.

Nos finais dos anos vinte a empresa detinha uma carteira de grandes projetos gerida por uma comissão designada de Comissão Especial para Elaborar o Plano de Obras Novas,73 que selecionou as principais obras a executar no curto e médio prazo: Estação do Campo Grande; variantes Rego- Alverca e Rego-Areeiro; gare de triagem de Sacavém; eletrificação das linhas, na região de Lisboa e da zona sul do Porto; 2ª via entre Caxarias e Albergaria; variante Gaia-Campanhã; nova ponte do Douro; novas Oficinas Gerais do Material e Tração; carvoeira de Sta. Apolónia; instalação para limpeza e conservação de carruagens e furgões em Campolide; renovação da sinalização na linha do Norte e das estações de entroncamento.

Em 1932 as obras estavam estimadas em 145.800 contos, propondo-se um empréstimo até 150.000 contos, cuja anuidade estava dentro das possibilidades financeiras da CP.74

Com o arrendamento a empresa mandou executar um estudo sobre as carências das redes do Estado. O trabalho foi feito por um dos mais prestigiados engenheiros ferroviários da época, Vicente Ferreira, tendo a companhia assumido o relatório75 como um guião das intervenções a realizar. Contudo, a DGCF chamou a si não só a seleção das obras como a prioridade das mesmas. Ora as prioridades da DGCF eram função das disponibilidades do FECF, cuja principal receita era o imposto ferroviário e os empréstimos bancários complementados com o subsídio de

71

As juntas eram constituídas por um clínico da CP, um dos CFE e um escolhido por ambas as partes. Perante os resultados já referidos, a tutela teve que recorrer a médicos militares. Segundo a empresa a estratégia do Governo passava pela pretensão de aliviar a Caixa de Reformas, com os custos marginais do arrendamento a ficarem a seu cargo. Para o Estado a leitura era inversa, com a empresa a pretender aliviar os seus encargos. 72

AHCP, Diversos, Secretária-geral. Ofícios de 8 de Novembro de 1926 e de 27 de Julho de 1931 do Sindicato do Pessoal dos Caminhos de Ferro da Companhia Portuguesa. Em 1922, a imposição nas oficinas dos trabalhos «à tarefa» levou à greve, ao encerramento das oficinas e ao corte de relações com o Sindicato do Pessoal. Dez anos depois a decisão mantinha-se mesmo quando a tutela pedia o diálogo, 73

As comissões especiais eram grupos de trabalho, na generalidade temporários, constituídos por elementos da administração e extensíveis a «funcionários superiores». Tinham por objetivo responder a problemas concretos. A participação nas comissões dava direito a receber uma senha de presença designada por «quinhão». 74

Em 1928 a CP negociou um empréstimo para um grande financiamento com um consórcio franco-americano, cujas amortizações teriam de sair dos resultados da exploração. Perante a exigência de uma garantia por parte do Estado, que as Finanças negaram, a alternativa apontava para a hipoteca do material circulante. A crise financeira de 1929 sobrepôs-se à solução. 75

Cf. Relatório e Programa dos Trabalhos a executar nas linhas do Minho & Douro e Sul & Sueste para as colocar em boas condições de exploração, Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, Lisboa, 1929.

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100 mil contos, posteriormente transformado em empréstimo. Tudo isto, num tempo de grandes restrições orçamentais, com a concorrência de múltiplos programas de modernização de infraestruturas (estradas, obras de saneamento e redes de água, habitação, trabalhos portuários, hidráulica agrícola).

6. Conclusão

O processo de integração da rede do Estado na CP ocorreu num ciclo de expansão económica que culminou em 1929, a partir do qual se inverteram as expectativas do setor. Um conjunto de variáveis constituem o quadro de referência do objeto do trabalho: uma conjuntura internacional adversa com a instabilidade dos preços, em especial do carvão, a expansão concorrencial do tráfego rodoviário, um quadro interno de constrangimentos orçamentais, com múltiplas solicitações e um quadro político e militar volátil. Perante a instabilidade do poder é de assinalar a determinação das políticas de modernização do setor – investimentos na rede de estradas e a decisão política de passar os CFE ao setor privado.

Haveria outras alternativas? Claro que sim, se a opção fosse criar empresas de base regional, agrupando-as conforme alguns defendiam. Contudo, não era esse o sentido de quem defendia a mais-valia das economias de escala de uma integração, tal como foi realizada, com a vantagem política de poder ser apresentada como bandeira de intervenção.

A empresa concessionária era a maior companhia ferroviária portuguesa privada, com a participação de capitais públicos, detentora da linha mais rentável do País (a linha do Norte), a viver ao abrigo de um convénio com credores estrangeiros na sua maioria, e que à época tinha na presidência um ativo incontornável - Rui Ulrich. Pelo lado da empresa, o projeto de expansão passava pela incorporação de outras linhas, nas quais as projeções dos seus saldos de exploração eram as variáveis que viabilizavam os encargos futuros das incorporações. Foi este o ponto de partida para o contrato de 11 de Março de 1927. Em termos financeiros nada aconselharia o negócio com a CP. Esta, impedida de se financiar a médio longo prazo, como o negócio ferroviário exigia, jogou com os saldos de exploração para as amortizações de todo o seu serviço financeiro, o que se revelou impraticável quando ocorreu a contração do mercado dos transportes.

Entre o anúncio e a assinatura do contrato tudo correu célere (em dois meses, embora o prazo fosse seis meses), mas, as bases do contrato não regulamentavam a sua execução. É lícito interrogar o motivo da pressa. Sem dúvida que esse intervalo de tempo era uma «terra de ninguém», logo, deveria ser rápido, desde que o faseamento da transmissão estivesse detalhado. Perante uma comissão administrativa de saída, uma comissão liquidatária em formação após a tomada de posse da adjudicação e uma arrendatária que só assumiu o que estava de acordo com a sua interpretação, os tempos vividos só poderiam ser de grande confusão.

Nesta fase de transição quem detinha o poder? A inexistência de regras claras neste período marcou em definitivo a fase seguinte. A inobservância de procedimentos quanto aos arquivos das direções não permitirão a contabilização fácil dos inventários do material circulante, consumíveis, carvão, etc. Por seu lado

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para a CP, os únicos arquivos que lhe interessavam eram os arquivos operacionais (desenhos do Material e Tração, plantas e alçados da Via e Obras).

Era necessário conferir, contabilizar e liquidar, toda a existência e as encomendas e compras, que chegavam diariamente, no entanto já não existia estrutura para o fazer. Com a descontinuidade dos procedimentos administrativos e o desmoronar das estruturas operacionais toda a gestão administrativa dos CFE colapsou. Só a parte operacional da exploração continuou aparentemente sem perturbações.

O contrato estipulou um prazo de trinta anos, para a duração do arrendamento e prazos para a execução de um resgate. Quando a partir de 1930 os resultados da exploração entraram em recessão e as empresas apresentaram défices, a pressão sobre a tutela aumentou com pedidos de participação nos saldos, pedidos de aumento das tarifas e sobretaxas, renegociação dos contratos ou a devolução das redes. Toda a contestação das empresas, em especial da CP, configurava um discurso bem ensaiado entre as partes. A empresa com o arrendamento montara um caminho sem retorno, ao desmantelar as estruturas operativas dos CFE. Por outro lado, a partir de 1928, os Governos ganharam politicamente uma estabilidade que o período anterior da Ditadura Militar não permitira, tornando as tutelas da Praça do Comércio muito mais distantes da Calçado do Duque (onde a CP instalara a nova sede). A juntar a tudo isto, o que já não era pouco, a implantação gradual de um novo modelo de mobilidade assente na estrada, absorvente de recursos mas com retorno fiscal e resultados práticos e políticos no curto prazo, permite avaliar os difíceis anos trinta do «Problema Ferroviário» português.

Todo o processo institucional da integração da rede do Estado foi conflituoso e, certamente não o foi só devido à arrendatária. Pelo lado do Estado, a inexistência de disponibilidades financeiras, os atrasos sistemáticos de pagamentos por parte do FECF, a não assunção da partilha dos défices de exploração foram a contrapartida da estratégia da concessionária que não aceitava ser escrutinada, que impôs um modelo autoritário de integração, não inclusivo para o seu pessoal operário e que olhava para o orçamento do Fundo como algo que lhe pertencesse, na medida em que as receitas do mesmo, era o imposto ferroviário cobrado e entregue pelas empresas.

Gradualmente foi-se cavando um fosso entre a empresa e a entidade fiscalizadora, que culminou em 1951 com o desaparecimento da DGCF.

Em todo o processo do arrendamento as elites ferroviárias tiveram um papel preponderante. Rui Ulrich representou na CP dos anos trinta o paradigma da nova geração de dirigentes de empresas, que anos mais tarde, Kenneth Galbraith designou de tecnoestrutura. A sua formação profissional e determinação fazem dele um elemento imprescindível para o negócio principal da empresa – a gestão da dívida.

Em termos de opinião pública o capital disponível da fase do contrato foi-se esboroando perante a incapacidade de melhorias visíveis nos serviços. As dificuldades financeiras da empresa levaram-na à redução gradual do investimento

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de primeiro estabelecimento e aos cortes no pessoal eventual. As carências do material circulante e a suspensão dos projetos das grandes obras implicaram a degradação do serviço ferroviário.

A solução de entregar a rede do Estado à maior empresa ferroviária privada do País, mas com grandes problemas estruturais, acarretou antes de mais a ampliação dos problemas existentes e exigiu, cada vez mais o financiamento do Estado. Poder-se-á pensar que estamos perante um quadro clássico de financiamento público a uma empresa privada. A CP nesta altura já detinha uma grande participação de capitais públicos e os seus dirigentes máximos identificavam os objetivos da empresa como desígnios nacionais.

Fontes e Bibliografia

Fontes manuscritas e impressas

- Arquivo Histórico do Banco de Portugal

BP-OD – Troca de títulos da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses.

RU.002 – Correspondência recebida de diversos. 1914-1919.

- Arquivo Histórico da CP (Comboios de Portugal, EP)

Atas da Assembleia Geral. Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses. (1927-1933).

Atas das Sessões do Conselho e da Comissão Executiva. Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses (1927-1933).

Coleção «Pastas Verdes».

- Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas

Documentos Diversos. Secretaria Geral, 1926-27.

Processos individuais (pessoal).

- Arquivo Histórico dos Transportes Terrestres. Instituto da Mobilidade e dos Transportes

Fundo Caminhos de Ferro do Estado.

Diário do Governo (1925 – 1933, 1.ª e 2.ª séries).

Relatório do Conselho de Administração. Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses (Exercícios de 1927 a 1933).

Relatório e Contas da Gerência. Comissão Administrativa do Fundo Especial de Caminhos de Ferro (Exercícios de 1927-28 a 1932-33).

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- Centro de Documentação da Fundação do Museu Nacional Ferroviário

Fundo da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses – «Coleção Pastas Verdes».

Bibliografia

Barreto, José, 1994. “A privatização dos Caminhos de Ferro do Estado pela Ditadura Miliar em 1927”, Organizações e Trabalho, nº 11, pp 51-73.

Barreto, José, 1999. “Sindicalismo e política nos caminhos de ferro, 1872-1961”, in Gomes, Gilberto (dir.), Estudos Históricos I, Para a História dos Caminhos de Ferro em Portugal, vol.2. CP – Caminhos de Ferro de Portugal, Lisboa, pp 90-168.

Faria, Miguel Figueira de, 2009. Alfredo da Silva e Salazar. Bertrand Editora, Lisboa.

Leitão, José Augusto Cardoso, 1927. Os escândalos da Administração da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses Norte e Leste (CP). Lisboa.

Mata, Maria Eugénia e Costa, J. C. Rodrigues da, 2013. “From Finance to Management: Rui Ennes Ulrich, a Portuguese scholar of the early twentieth century, Business History, 2013.

Reis, Jaime, 2011. Uma elite financeira. Os corpos sociais do Banco de Portugal, 1846-1914. Banco de Portugal, Lisboa.

Trigo, Mário Dias, 1935. Subsídios para a História dos Caminhos de Ferro (1926-1934). Sociedade Nacional de Tipografia, Lisboa.

Relação de abreviaturas

AHBP - Arquivo Histórico do Banco de Portugal

AHCP - Arquivo Histórico da CP (Comboios de Portugal)

AHMOP - Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas

AHTT - Arquivo Histórico dos Transportes Terrestre (IMT)

CNDF – Centro Nacional de Documentação Ferroviária (FMNF)

CSCF - Conselho Superior de Caminhos de Ferro

DGCF - Direção Geral de Caminhos de Ferro

FECF - Fundo Especial de Caminhos de Ferro

Siglas

BA - Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses da Beira Alta, conhecida por «Beira Alta»

CA - Conselho de Administração (CP)

CE - Comissão Executiva (CP)

CFE - Caminhos de Ferro do Estado

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CP - Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, conhecida por «Companhia Portuguesa»

CUF - Companhia União Fabril

MD - Direção do Minho e Douro

PV - «Coleção Pastas Verdes». Encontra-se repartida pelo AHCP e pelo CNDF

SG - Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes

SS - Direção do Sul e Sueste

VL - Via Larga

VE - Via Estreita