arley moreno uma concepção de atividade filosófica

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CDD: 193 Uma Concepção de Atividade Filosófica ARLEY RAMOS MORENO Departamento de Filosofia Universidade Estadual de Campinas CAMPINAS, SP [email protected] Ao lermos os escritos de Wittgenstein, particularmente após o Tractatus, nós compartilhamos da seguinte primeira impressão: parece haver uma con- tradição entre aquilo que ele diz e aquilo que ele faz. Em que sentido? Ele afirma, com freqüência, que a filosofia tal como ele próprio a exerce não apresenta teses, mas apenas esclarece situações conceitualmente confusas, sem nada propor como solução, isto é, sem propor novas teses. É como se para ele, após o Tractatus, a eliminação de confusões deixasse no lugar dos conceitos problemáticos um espaço completamente iluminado mas vazio, sem novos conceitos a propor. A filosofia, neste sentido, torna-se então uma atividade exclusivamente terapêutica, como ele diz, dirigida ao pensamento, e o seu principal resultado será a cura do dogmatismo que está na origem das confusões conceituais. Ao apenas dissolver confusões, a terapia filosófica deve permitir, segundo Wittgenstein, que se mude a maneira habitual de interpretar os nossos conceitos, e se amplie assim a nossa disposição para pensar outras formas de sentido e, principalmente, para con- siderar estas outras formas como sendo legítimas possibilidades de organizar a experiência – ainda que estas novas formas de organização da experiência nos sejam desconhecidas, ou mesmo consideradas estranhas, sem sentido ou absur- das. Essa cura do dogmatismo, contudo, isenta-se de oferecer qualquer sugestão sobre as verdadeiras ou legítimas soluções a serem adotadas. Ou melhor, ela não prescreve, nem sequer sugere, quais conceitos viriam a solucionar as confusões iniciais que foram dissolvidas. E temos assim uma concepção de atividade filo- Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 2, p. 275-302, jul.-dez. 2004.

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  • CDD: 193

    Uma Concepo de Atividade Filosfica ARLEY RAMOS MORENO Departamento de Filosofia Universidade Estadual de Campinas CAMPINAS, SP

    [email protected]

    Ao lermos os escritos de Wittgenstein, particularmente aps o Tractatus, ns compartilhamos da seguinte primeira impresso: parece haver uma con-tradio entre aquilo que ele diz e aquilo que ele faz. Em que sentido? Ele afirma, com freqncia, que a filosofia tal como ele prprio a exerce no apresenta teses, mas apenas esclarece situaes conceitualmente confusas, sem nada propor como soluo, isto , sem propor novas teses. como se para ele, aps o Tractatus, a eliminao de confuses deixasse no lugar dos conceitos problemticos um espao completamente iluminado mas vazio, sem novos conceitos a propor. A filosofia, neste sentido, torna-se ento uma atividade exclusivamente teraputica, como ele diz, dirigida ao pensamento, e o seu principal resultado ser a cura do dogmatismo que est na origem das confuses conceituais. Ao apenas dissolver confuses, a terapia filosfica deve permitir, segundo Wittgenstein, que se mude a maneira habitual de interpretar os nossos conceitos, e se amplie assim a nossa disposio para pensar outras formas de sentido e, principalmente, para con-siderar estas outras formas como sendo legtimas possibilidades de organizar a experincia ainda que estas novas formas de organizao da experincia nos sejam desconhecidas, ou mesmo consideradas estranhas, sem sentido ou absur-das. Essa cura do dogmatismo, contudo, isenta-se de oferecer qualquer sugesto sobre as verdadeiras ou legtimas solues a serem adotadas. Ou melhor, ela no prescreve, nem sequer sugere, quais conceitos viriam a solucionar as confuses iniciais que foram dissolvidas. E temos assim uma concepo de atividade filo-

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 2, p. 275-302, jul.-dez. 2004.

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    sfica que parece conduzir a resultados exclusivamente negativos, ou seja, que no pe nada no lugar daquilo que dissolve.

    A situao seria relativamente mais simples se fosse efetivamente assim como acabo de expor. Por que? Porque nos bastaria ento concordar ou discor-dar desta concepo de filosofia. Entretanto, parece-me que est em jogo tam-bm uma aparente contradio entre esta concepo negativa da atividade filosfica e as afirmaes freqentes que faz Wittgenstein a respeito dos diversos temas que ele aborda afirmaes estas que, na verdade, parecem ser teses positivas, e no meramente esclarecimentos conceituais que nada colocam no lugar do que foi eliminado pela terapia. So afirmaes sobre, por exemplo, o aprendizado, isto , distines entre um saber como fazer, prtico, e um saber a respeito de regras, um saber que terico, guiando as nossas aes distines estas que permitem a Wittgenstein esclarecer o conceito de seguir regras enquanto fundamento da ao significativa e do pensamento. So afirmaes, por exemplo, sobre estados mentais internos e as suas inter-relaes com processos fsicos externos visando esclarecer concepes mentalistas ou behavioristas sobre os fundamentos da ao significativa e do pensamento. Outro exemplo o das afirmaes a respeito das relaes entre ao e compreenso que esclarecem o conceito de interpretao das regras, ao mostrar que se trata de uma atividade de manipulao simblica exercida em contextos sociais permeados pela linguagem, e no um ato mental solipsista. Outro exemplo ainda so afirmaes sobre a linguagem quando ele realiza uma auto-terapia da concepo tractariana de exatido, assim como da idia de forma lgica como essncia comum da sig-nificao lingstica, e ao propor uma nova concepo de linguagem como uma diversidade de jogos simblicos ligados entre si por meras semelhanas ana-lgicas. So afirmaes, por fim, sobre as relaes entre lgica e matemtica, ao esclarecer o carter convencional de ambas e a sua falta de fundamento extra-lin-gstico, assim como a falsa aparncia da lgica como a super-cincia dos funda-mentos.

    No podemos evitar uma forte impresso que nos provoca esta lista de afirmaes feitas em todos estes campos, ou seja, a forte impresso de termos

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    apreendido novas teses a respeito desses diversos temas que ele aborda. Esta impresso se choca, ento, com a concepo negativa de atividade filosfica: no propor novas teses. Parto, contudo, do pressuposto de que no h aqui qualquer contradio, mas apenas efeitos, digamos, duma leitura impaciente e pouco inte-ressada do autor. Digo isto porque h vrios comentadores que vo por a.

    Seria importante ento explicitar dois ingredientes deste meu pressuposto de que no h contradio entre a lista acima produzida e a referida concepo negativa de atividade filosfica. Estes ingredientes parecem ser instrumentos in-dispensveis para todo e qualquer trabalho de interpretao e comentrio, pelo menos de textos filosficos e sobretudo quando nos deparamos com aparentes contradies nestes textos.

    Sendo de natureza terica, ns gostaramos de caracterizar o primeiro in-grediente deste nosso pressuposto como o que eu gostaria de chamar a pacincia que devemos ter para com os conceitos evocando a prpria pacincia dos conceitos. Trata-se do seguinte: analisar completamente a aparente contradio. Primeiro, esclarecer o carter aparente da contradio, isto , as razes pelas quais uma si-tuao terica aparece como sendo contraditria. Segundo, procurar as suas fontes internas, isto , as possveis origens no pensamento do prprio autor. Terceiro, interpret-la relativamente ao contexto em que se apresenta no interior do pensamento deste ltimo. Quarto, extrair, por fim, e s ento, as conse-qncias desta anlise, isto , se se trata de fato duma contradio no interior do sistema do pensamento do autor, ou se, pelo contrrio, ela corresponde ao desen-volvimento do seu pensamento.

    O segundo ingrediente , digamos, de natureza mais prtica ou psicolgica, mas no por isto menos importante: o interesse que se deve ter pelo autor interesse este que pode ser positivo ou negativo. Ou seja, as idias do autor parecem-nos simpticas ou odiosas, e por isto mesmo por este interesse que devemos ter preciso ser paciente com os seus conceitos e procurar com-preend-los para alm de uma primeira impresso, de modo a podermos ento ou avanar em sua companhia, ou descart-lo definitivamente das nossas vidas.

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    Na ausncia destes dois ingredientes, parece-me que toda e qualquer atri-buio de contradio torna-se banalidade. E tratando-se de Wittgenstein, eu acho que deixa de ser banal esta advertncia, digamos, metodolgica.

    Partamos em busca duma contradio. Terapia e auto-terapia so marcas estilsticas importantes na segunda fase

    do pensamento de Wittgenstein. Crticas endereadas ao seu livro de juventude sero tomadas como ocasio para aplicar a terapia a outros sistemas filosficos aparentados, sistemas esses que sofrem dos mesmos tipos de confuses con-ceituais, como os de Plato, Agostinho, Frege, Russell, James, Moore e tambm de pensadores que no foram filsofos profissionais, como Freud, Spengler, Goethe, Darwin, Helmholtz e vrios outros. Poderamos, ento, formular a se-guinte pergunta: haveria no Tractatus (estamos busca de uma contradio) um ncleo, ou elemento central, sobre o qual viria a concentrar-se a crtica posterior, e que teria levado Wittgenstein a incidir na aparente contradio mencionada ao elaborar a sua nova concepo de filosofia? Em outros termos, a auto-terapia, isto , a crtica do dogmatismo essencialista do Tractatus, no teria conduzido Wittgenstein a uma nova situao ainda contraditria, a saber, recusar o dog-matismo metafsico reincidindo mais uma vez numa teoria dogmtica? A defesa de uma prtica filosfica sem dogmas no estaria fundada em uma nova teoria ainda que talvez, digamos, menos dogmtica. Ora, justamente o dogmatismo, presente nos autores mencionados, que leva Wittgenstein a aplicar-lhes o tra-tamento teraputico, assim como o faz ao Tractatus, a saber, aplicar-lhes o que ele chama de dieta unilateral segundo a qual norteiam o seu trabalho com a signifi-cao dos conceitos. A terapia filosfica essencialmente um tratamento visando a cura do pensamento dogmtico. Entretanto, ao propor uma concepo de atividade filosfica que seja apenas teraputica, parece inescapvel a presena de uma teoria para fundamentar essa particular concepo. Ou ser que seria poss-vel uma prtica teraputica e conceitual sem uma teoria que a fundamentasse?

    Neste ponto importante fazer uma observao que tornar ainda mais inquietante a posio de Wittgenstein frente acusao de contradio. De fato, e para tomar apenas um caso particular, mas exemplar de outras aplicaes da te-

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    rapia filosfica, Wittgenstein critica Freud por ter fundado a sua prtica tera-putica psicanaltica sobre uma teoria dogmtica. A crtica visa aqui dois aspectos distintos. Em primeiro lugar, Freud teria (segundo Wittgenstein), assim como tantos outros pensadores, generalizado os resultados da sua teoria, e em segundo lugar e este o aspecto mais importante para mim a teoria psicanaltica no cientfica, ou melhor, no permite construir hipteses a serem verificadas ou refutadas. Em outros termos, essa teoria , segundo Wittgenstein, algo muito prximo de um sistema filosfico, ou ainda o que ele chama de uma mitologia, isto , algo sem fundamentos extra-lingsticos, jamais falsevel e que portanto, um pouco imagem da tautologia no Tractatus, nada pode descrever, por sempre admitir o que afirma. Esse seria, digamos, o ncleo do dogmatismo em Freud: fundamentar a sua teoria psicanaltica numa mitologia de natureza filosfica e generalizar os seus resultados, como se fossem descries de fatos ou de proces-sos psicolgicos. Mas por que a crtica a Freud tornaria mais inquietante, como acabei de sugerir, a posio do prprio Wittgenstein?

    Ao apresentar teses a respeito do aprendizado, do comportamento de se-guir regras, das relaes entre comportamento e ao, das relaes entre lgica e matemtica, etc. (enfim, as aparentes teses que ele vai lanando), no estaria o prprio Wittgenstein tambm incorrendo no mesmo tipo de dogmatismo, ao fundar essas supostas teses numa teoria dogmtica de natureza filosfica, i.e., numa mitologia, como ele mesmo diz? A tnue diferena com respeito a Freud, na verdade, seria que Wittgenstein teria conscincia da natureza filosfica dos fundamentos com que est trabalhando, embora o seu uso fosse igualmente dog-mtico, ao apresentar teses. Isto , a prpria mitologia estaria sendo, nesse caso, intencionalmente generalizada essa seria a diferena. Poderia at ser uma solu-o, que todavia, claro, no escaparia acusao de contradio. Voltemo-nos, ento, com pacincia, para os conceitos.

    Indaguemos primeiramente sobre qual o ncleo principal da crtica tera-putica ao Tractatus. Seria uma crtica concepo de filosofia ou uma crtica concepo de linguagem?

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    Em 4.0031 encontramos a seguinte afirmao: Toda filosofia crtica da linguagem. Em que sentido? No sentido em que a linguagem veicula pensa-mentos e conhecimentos a respeito do mundo, e no na sua dimenso, digamos, exclusivamente esttica ou contemplativa, como seria o caso da mesma con-cepo de filosofia como crtica da linguagem de Fritz Mauthner, com o qual Wittgenstein no concorda. De acordo com o Tractatus, qual a consistncia e a finalidade dessa crtica da linguagem?

    Crtica filosfica no teoria, mas atividade, diz ele no Tractatus. Por que? E ns vemos surgir aqui uma concepo precisa de teoria, a saber, como constru-o de proposies (Stze). Uma teoria , segundo o Tractatus, um sistema de representaes ou de afiguraes (Bild ) de diversas formas de subsistncia e de no subsistncia de estados de coisas; ou melhor, uma teoria um sistema de afirmaes verdadeiras ou falsas a respeito do mundo. As cincias naturais so o exemplo de teorias em que so verdadeiras as proposies. Mas como com-preender a sua natureza propriamente terica? porque o valor de verdade das proposies depende de verificao e de experimentos: uma teoria um sistema cujos elementos devem ser testados pelos fatos. No somente possvel como tambm necessrio provar o sentido das proposies de uma teoria. E como que fazemos isso? Fazemos isso mostrando que ocorre ou que no ocorre o fato tal como a proposio afirma. E essa tarefa realizada por meio de experimentos. O experimento prova o sentido da proposio significativa, mostrando que verdadeira ou falsa isto , o mtodo de verificao.

    Gostaria de reservar a nossa ateno para uma disciplina muito peculiar, e com um espao especialmente reservado no Tractatus, que o seguinte. Parale-lamente, por contraste com a concepo de teoria, h no Tractatus lugar para uma concepo de prtica, como tambm, em particular, para uma disciplina que no terica mas que tambm no prtica, disciplina, alis, cuja concepo ser um dos principais alvos da auto-terapia. Trata-se de um sistema de proposies que nada dizem a respeito do mundo: so as proposies analticas da lgica. A marca caracterstica dela a seguinte: que a verdade pode ser diretamente conhecida pela inspeo das proposies, pois elas exibem a verdade sem qualquer interme-

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    diao quer dizer, um acesso direto sua verdade. Contrariamente s cincias naturais, a lgica no uma teoria, uma vez que a sua verdade independe de qualquer verificao ou prova atravs de experimentos, sendo inessencial a prpria prova lgica que, segundo Wittgenstein, um mero expediente mec-nico para facilitar o reconhecimento da tautologia em proposies muito comple-xas. Nem isto preciso.

    Importa ressaltar, entretanto, que a lgica tambm no uma prtica; no uma teoria, mas tambm no uma prtica. E isso porque as suas proposies apenas fixam propriedades formais da linguagem e do mundo, isto , fixam as possibilidades combinatrias lgicas dos estados de coisas. Nesse sentido, a lgica apenas, como ele diz (a expresso do Tractatus) uma figurao especular do mundo, o que no corresponde a nenhuma atividade, pelo contrrio, corres-ponde, isto sim, a uma funo transcendental inscrita na sua natureza. A lgica transcendental; no uma prtica e no uma teoria. Essa a natureza, digamos, hbrida e autnoma da lgica, relativamente s cincias naturais e, como veremos, relativamente filosofia. Na qualidade de sistema de proposies analticas, a lgica uma disciplina que apenas exibe (Zeigen) a priori as formas lgicas da verdade e da falsidade atravs das prprias proposies. Eis o nico uso que pode ser feito das proposies analticas: nem terico, nem prtico, apenas lgico, ou transcendental. Voltemos filosofia.

    Sugerindo ento um profundo contraste com a sua concepo de teoria e de lgica, o Tractatus apresenta tambm uma concepo de prtica (de atividade), de que a filosofia ser o melhor exemplo. Retomemos as nossas duas questes: em que consiste a crtica filosfica enquanto atividade e qual a sua finalidade?

    Tendo afastado a idia de uma atividade crtica a ser exercida atravs de proposies descritivas (isto cincia) ou de proposies analticas (isto lgica), o discurso filosfico no ser concebido como um conjunto de proposies filos-ficas, ou melhor, nem de legtimas proposies significativas com uso terico, e nem de proposies logicamente articuladas, com uso transcendental (nem cin-cia e nem lgica). As expresses lingsticas de que se vale a filosofia estaro situadas numa regio intermediria entre o uso terico ou emprico e o uso trans-

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    cendental. Elas sero, como diz o Tractatus, elucidaes, isto , correspondero a uma atividade lingstica de esclarecimento lgico dos pensamentos e das pro-posies. Esse o terceiro uso da linguagem que apontado no Tractatus. Ento, a crtica filosfica ser uma atividade que consiste em usar a linguagem como instrumento para esclarecer as formas lgicas das proposies e dos pensa-mentos, e no para deix-las (essas formas lgicas) diretamente exibir-se. Mas aqui retornamos mesma dificuldade anterior: se esclarecimentos filosficos so pseudo-proposies, ento os seus signos primitivos so pseudo-nomes que substituem pseudo-objetos. Ento como, nessas condies, compreender a sua denotao? nesse ponto que o Tractatus aponta para aquela porta de que eu falei, que no ser aberta, a saber, ns conhecemos os objetos simples atravs da aplicao (Anwendung) do signo (3.262). Em outras palavras, o conhecimento dos objetos simples no obtido pela mera inspeo do signo isto , de pseudo-nomes no caso da filosofia, e nem de legtimos nomes como no caso da lgica uma vez que os signos por si ss, isoladamente, nada exprimem. Articulaes entre signos podem exibir as formas dessas articulaes, mas signos isolados no tm forma. Ser somente a aplicao efetiva do signo que poder exprimir a sua funo primitiva de substituir objetos na linguagem. Eis um conhecimento agora obtido fora da linguagem (no a linguagem que me diz isso, no a inspeo do signo que me d isso) e no mais no seu interior, como at ento fora o caso. Isto , para no sair do domnio transcendental da lgica, o Tractatus apenas aponta para a porta da sua aplicao, encerrando, com isto, a questo.

    Eu acho que interessante enfatizar nessa passagem do livro a idia de Anwendung, quer dizer, de aplicao do signo que essa idia de aplicao do signo est ligada concepo de filosofia como atividade crtica de esclare-cimento da linguagem e do pensamento, e, mais profundamente, que essa mes-ma idia que tornaria possvel a compreenso dos esclarecimentos filosficos. Ou, inversamente, importante salientar que tais esclarecimentos so compreen-sveis porque ns sabemos qual a aplicao que est sendo feita dos signos, ou seja, que esto sendo aplicados como substitutos de objetos simples, e que essa informao no est presente no prprio signo lingstico, mas uma informao

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    extra-lingstica sendo ela que permite, na verdade, que expresses lingsticas sejam usadas com funo crtica ou filosfica, ao lado, e provisoriamente, do seu uso descritivo pelas cincias naturais, e analtico, ou transcendental, pela lgica (os trs usos). Eis a base sobre a qual repousa a atividade crtica da filosofia no Tractatus, base a ser necessariamente descartada uma vez que for compreendida a sua natureza, assim como a natureza do instrumental expressivo, mas pseudo-lingstico, usado com essa finalidade. A partir da dcada de 30, essa mesma base ser incorporada pragmaticamente gramtica dos usos das palavras.

    Contudo, no podemos deixar de detectar, nesse ponto, a dificuldade que representou, para o Tractatus, o estatuto dos objetos lgicos: ao mesmo tempo definidos abstratamente, segundo as exigncias transcendentais da lgica, e neces-srios para a determinao articulada do sentido, mas, tambm, exigidos por uma experincia efetiva, sem, entretanto, qualquer critrio para identific-los nessa experincia. Dificuldade alis que no foi exclusiva do Tractatus, mas acompanhou Russell atravs das suas noes de familiaridade (acquaintance) e particular (egocentric particulars, os particulares) e tambm da sua prpria concepo de uma linguagem perfeita, a ideografia, como prottipo da linguagem privada dificuldade que prosseguiu acompanhando o grupo do Crculo de Viena atravs da noo de pro-posio protocolar. A sada para essa persistente dificuldade, mesmo entre pensadores anti-metafsicos, ser, para Wittgenstein, abandonar o campo trans-cendental da lgica e abrir a porta da sua aplicao, para situar a o novo campo transcendental da gramtica, agora sobre o solo spero da pragmtica envolvida nos usos das palavras em jogos de linguagem. Essa a sada.

    Voltando ao Tractatus, reconhecemos ali um esboo inconfesso de deter-minao pragmtica ou, na terminologia de Granger, um componente de estilo, como ordenao conceitual que permanece virtual ao sistema explcito de conceitos, e que no acrescenta, por isso mesmo, novas informaes nem de-senvolvimentos argumentao determinao essa que vem compor, ainda que implicitamente, a concepo de atividade filosfica. Ser atravs de um conhecimento inexprimvel, obtido fora da linguagem significativa (a aplicao do signo), que poderemos compreender e formular esclarecimentos filosficos a

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    respeito da forma lgica da proposio e do pensamento. Essa a atividade crtica da linguagem que no leva construo de teorias ou apresentao de teses. A atividade filosfica permanece, no Tractatus, diretamente ligada aplicao da linguagem. A aplicao o fundamento cuja presena virtual (no explcita) lhe permite demarcar-se da teoria, assim como do transcendental lgico (da cincia e da lgica) ainda que sobre isso tambm nada se possa dizer, e deva ser descar-tado to logo seja compreendido.

    Gostaria de indagar agora qual a finalidade dessa atividade e quais so os resultados a que ela conduz. Ela conduz a refletir sobre o limite do sentido nos seus diferentes aspectos, a saber, sobre o pensvel e o impensvel, sobre o dizvel e o inefvel, e conseqentemente sobre o limite do conhecimento cientfico. De tal maneira que os esclarecimentos filosficos a respeito da forma lgica atravs do dizvel e do pensvel denotaro (bedeuten a palavra tcnica) a face comple-mentar do limite, isto , o inefvel e o impensvel. Vemos ento que essa ati-vidade esclarecedora e crtica da linguagem vai exercer a mesma funo lgica que o nome exerce com relao ao objeto simples, isto , ela denotar o que no pode ser descrito. O discurso filosfico ser ento o substituto lingustico do inefvel/ impensvel, mas que o denotar atravs, primeiro, de uma atividade que no uma teoria, e segundo de um uso ilegtimo da linguagem, isto , de um uso meta-lingstico. precisamente o uso absurdo e sem sentido que faz da linguagem que permitir ao filsofo do Tractatus aplicar os seus esclarecimentos como denotao do complemento da forma lgica, a saber, dos valores ticos, estticos e religiosos. Quanto ao outro aspecto do inefvel a forma lgica a sua deno-tao ser tarefa exclusiva da lgica, na sua qualidade de disciplina transcendental, nem terica nem prtica, isto , atravs de proposies analticas. Em ambos os casos, a funo denotativa corresponde apresentao do que apenas se deixa mostrar no prprio simbolismo, pseudo-lingstico e propriamente lingstico respectivamente.

    Sendo assim, ns podemos apreciar a distribuio de tarefas entre lgica e filosofia que sugerida no Tractatus para a expresso dos diferentes aspectos do limite do sentido: as mesmas funes lingsticas elementares estaro presentes

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    nos dois simbolismos, a saber, de substituio e de denotao, mas sero exer-cidas de maneira linguisticamente inexpressiva e ilegtima inexpressiva (que no dizem nada) e ilegtima (porque no so logicamente articuladas) pela mera exibio simblica de condies transcendentais do pensvel e dizvel (lgica) e pela complicada rede de esclarecimentos extra-lingsticos substituindo e deno-tando o pensvel e o impensvel (filosofia). So inefveis ambos os aspectos do limite do sentido, e os resultados da crtica filosfica da linguagem, no Tractatus, revelam que essa atividade s capaz de denotar a face complementar da lgica, isto , os valores, atravs de esclarecimentos forma lgica e que, graas a isso, se torna capaz de situar corretamente o seu prprio campo de atuao, demarcando-o do campo transcendental (filosofia no propriamente lgica). Atividade pro-fundamente negativa, portanto, pois no conseguindo exibir essa face importante do inefvel que a forma lgica ( a lgica que faz isso, atravs da ideografia), restar-lhe-ia apenas a sua outra face (os valores ticos etc.), que contudo no pode sequer ser exibida por smbolos, que dependem da aplicao.

    Todavia, no exatamente isso que se propunha a realizar o filsofo do Tractatus, j logo no Prefcio, a saber, refletir sobre o limite do sentido? justa-mente isto o que foi feito pelo exerccio de uma atividade e no pela construo de uma teoria, por uma atividade que tampouco exibiu positivamente condies transcendentais, ainda que inefveis. Atividade que apenas e exclusivamente escla-receu os diferentes campos das disciplinas envolvidas com a linguagem: o campo terico das cincias naturais, o campo transcendental da lgica, o campo dos valores ticos, estticos e religiosos e o campo da sua prpria atividade, a filo-sofia. No parece ser ento a esta concepo de filosofia como atividade, presente no Tractatus, que se dirige a auto-terapia gramatical (posterior).

    Infelizmente, para os impacientes com os conceitos, a situao no to simples, como veremos a seguir. Por que? Porque se os esclarecimentos filos-ficos podem ser, apesar de tudo, compreendidos, ns podemos ainda nos per-guntar: mas o que que garante o bom desempenho da funo esclarecedora e portanto crtica que o Tractatus atribui a eles? Em outros termos, quais so as

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    condies fornecidas pelo Tractatus para que possam ser esclarecedores os seus esclarecimentos filosficos?

    Aprofundemos alguns aspectos das concepes de lgica e de linguagem para melhor compreender o sentido da auto-terapia que Wittgenstein vir a fazer, e particularmente de uma certa atitude que ele assume face filosofia e no, importante salientar isso, da prpria concepo de filosofia como atividade, con-cepo que ele vai manter inalterada at ao final da vida: filosofia uma atividade e no uma teoria.

    Notemos uma idia que polariza, no Tractatus, grande parte das duas con-cepes e tem conseqncias para a prpria atividade filosfica. Um fragmento que eu escolhi do aforismo 3.3421 diz o seguinte: Esta a situao da filosofia em geral: o singular se manifesta repetidamente como desimportante, mas a possibilidade de cada singular nos d um esclarecimento sobre a essncia do mundo. Esse fragmento encontra-se inserido num contexto onde se discute sobre o que seria acidental e essencial na proposio. A idia bsica que o essencial aquilo que h em comum a todas as ocorrncias particulares de um mesmo tipo. Ao apreender o elemento comum, ns ficamos sabendo o que essencial na proposio assim como no smbolo em geral.

    Podemos reconhecer aqui a estreita ligao que h, no Tractatus, entre as concepes de essncia e de possibilidade: ns apreendemos a essncia de algo ao apreendermos o elemento comum presente em todas as suas manifestaes possveis. A essncia nos revelada pela explorao exaustiva das possibilidades contidas em um particular e pela reteno da propriedade que lhes comum a concepo tradicional do conceito. Ora, para realizar uma tal explorao, nada mais adequado do que a lgica a nova lgica matemtica que estava surgindo, com Frege e Russell, e no a lgica aristotlica pois ela que permite percorrer o espao lgico das possibilidades combinatrias entre estados de coisas. Com isso, temos trs idias que caminham juntas, no Tractatus, caracterizando uma concepo bastante clara das tarefas respectivas da filosofia e da lgica, assim como caracterizando a essncia da linguagem, a saber, o exibir lgico (zeigen) da

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    forma transcendental, o esclarecer filosfico (erlutern) do que a lgica exibe dessa forma e, como resultado, a delimitao (eine Grenze ziehen) da essncia da linguagem assim como do inefvel/impensvel. possvel delimitar a essncia, porque o necessrio est virtualmente contido no possvel (2.012, 2.0121), e o pensamento s pode percorrer o que possvel. Ora, no caso da lgica, o pensamento percorre efetivamente todas as possibilidades (2.0121), sendo, portanto, capaz de apreender e delimitar a essncia.

    Internamente ligada a essa concepo de necessidade lgica, surge aqui uma outra idia, que ser tematizada por Wittgenstein em sua auto-terapia, mais tarde a saber, a idia de que se uma situao pode ser pensada como possvel, ento ela no pode ser tambm pensada como impossvel (2.0121, 3.02-3.032). A noo de possvel possui, no Tractatus, um acentuado peso ontolgico, embora exclusivamente formal, ligada que est noo de essncia: o pensamento s pode trilhar o caminho do possvel e, em sua tarefa lgica, torna-se capaz de exibir o seu prprio limite essencial, assim como o limite da linguagem e o limite do mundo. Eis uma idia a ser terapeuticamente dissolvida, posteriormente: a idia do possvel como presena virtual da essncia.

    Ser de conseqncia importante a aplicao dessa idia, para o Tractatus, porque conduz concepo de que a essncia da proposio a possibilidade, que ela j contm, da situao afigurada (2.203, 3.13), de tal maneira que a compreenso do seu sentido resulta do ato de pensar as suas possibilidades in-ternas de afigurao o que nos permite, inclusive, compreender sentidos ainda desconhecidos mas possveis (4.02, 4.021, 4.022, 4.026, 4.027). E isso, com inde-pendncia de qualquer esclarecimento filosfico, isto , a priori, contrariamente ao que preciso, como acabei de salientar, no caso das ligaes elementares entre nomes e objetos. Da a formulao do aforismo 4, por exemplo: O pensamento a proposio significativa, i.e., o pensamento a explorao do espao lgico. Ao explor-lo, tornando-se capaz de apreender a essncia, ser possvel afirmar, atravs de esclarecimentos filosficos como o faz o Tractatus que, por exem-plo, A forma geral da proposio isto est do seguinte modo (4.5), ou ainda: A proposio uma funo de verdade das proposies elementares (5)

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    possvel dizer isso atravs de esclarecimentos pseudo-proposicionais assim como possvel apresentar a formulao lgica que exibe a essncia (como no aforismo 6: vocs tm uma frmula, notada na ideografia). Tarefas diferentes, ento, mas complementares, a filosofia apenas esclarecendo o que a lgica exibe tendo como nica exceo aquela situao, nebulosa e imprecisa, que a prpria lgica incapaz de exibir, e que apenas pode ser esclarecida pela filosofia, i.e., a ligao elementar entre nomes e objetos. De resto, a filosofia percorre a via real aberta pela lgica.

    O pensamento ter plena segurana, ento, de ter apreendido a essncia da linguagem, do mundo e do prprio pensamento, porque, no podendo pensar o que logicamente impossvel e s podendo pensar o que logicamente possvel (3.02-3.032), a explorao do espao lgico ser realizada exclusivamente a priori, no seguinte sentido bem preciso: Um pensamento correto a priori seria aquele cuja possibilidade condicionasse a sua verdade (3.04); se possvel, ento verdadeiro. Em outros termos, estaremos seguros de ter apreendido a essncia ao explorarmos, pelo pensamento, as possibilidades inscritas internamente na essn-cia da proposio. A verdade do pensamento lgico reconhecida imediata-mente, atravs do prprio pensamento e sem objeto de comparao (3.05). Eis o caminho real aberto pela lgica, que deve ser igualmente percorrido pela filosofia com o auxlio dos seus esclarecimentos pseudo-proposicionais.

    O que importante salientar aqui que o modelo subjacente atividade filosfica de crtica da linguagem fornecido, no Tractatus, pela anlise lgica a priori do espao lgico. o modelo que assenta o terreno conceitual para que a filosofia venha, a seguir, e sobre esse fundamento slido, criticar o uso metafsico feito dos conceitos, mostrando que proposies metafsicas no tm denotao (6.53).

    Seria importante distinguir, neste ponto, dois aspectos das relaes entre filosofia e lgica no Tractatus aspectos complementares, mas distintos. Por um lado, a concepo de filosofia como atividade esclarecedora e no terica, e por outro a concepo de modelo lgico como fundamento de natureza transcen-dental para os esclarecimentos filosficos. Ora, esses dois se entrecruzam no

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    Tractatus, de tal maneira que a filosofia concebida como uma atividade que deve estar a servio do transcendental fornecido pela lgica: sem poder, ela prpria, conquist-lo, devido sua, digamos, natureza inconfessvel a aplicao dos signos, uma coisa pragmtica a filosofia limita-se a ser um instrumento provisrio que auxilia no esclarecimento da forma lgica, mas que deve ser posteriormente descartado.

    Na verdade, assim concebida, isto , apenas como atividade instrumental provisria e sem outra melhor qualificao, ns no teramos nenhum critrio para distinguir o discurso filosfico dos discursos esttico, tico e religioso. Ficariam no limbo as relaes entre discurso filosfico e aquilo que ele prprio substitui ou denota em geral, o inefvel (4.115, 7), e mais precisamente, aquele aspecto do inefvel que a lgica no pode exibir, isto , os valores. No haveria critrios para identificar pseudo-proposies esclarecedoras e crticas e distingui-las de pseudo-proposies valorativas, sem qualquer funo crtica e de esclarecimento lgico-conceitual quer dizer, no haveria como distinguir o discurso filosfico dos discursos tico, esttico e religioso. Estaramos, assim, em situao equiva-lente quela de substituio e denotao do nome pelo objeto (3.0203, 3.22): ligaes elementares entre linguagem e mundo que precisam ser esclarecidas, por no conterem qualquer possibilidade de sentido que pudesse ser pensado, com-preendido e expresso em legtimas proposies (4.026). Permaneceriam no mes-mo limbo as relaes entre a expresso de esclarecimentos filosficos e a expres-so de valores, assim como aquelas entre nomes e objetos lgicos.

    Em tais circunstncias, ser preciso qualificar a atividade filosfica, fundamentando as funes esclarecedora e crtica de suas pseudo-proposies. Ora, isso ser feito, no Tractatus, tomando a anlise lgica como modelo trans-cendental: a filosofia percorrer apenas o caminho j aberto pela lgica, e, principalmente, nada poder realizar alm disso. Em outros termos, a fora do modelo lgico e transcendental que situa teoricamente o discurso filosfico conferindo-lhe a funo esclarecedora e crtica funes que no podem exercer os discursos tico, esttico e religioso, por no percorrerem aquele mesmo ca-minho e por pretenderem ir alm dos limites que o modelo lgico exibe. Sem

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    propor teses tericas, a filosofia pode esclarecer positivamente a forma lgica, exibida pela anlise transcendental, e apenas negativamente os valores, como que por excluso porque assim o diz o modelo lgico: a prtica filosfica tem por finalidade o esclarecimento lgico dos pensamentos e das proposies, e no a cons-truo de uma teoria (4.112). Nessa afirmao ns temos a conjuno dos dois aspectos que eu pretendia ressaltar: primeiro, a filosofia como atividade, e segundo, uma atividade cujos fundamentos e cujos critrios de identidade so fornecidos pelo modelo da anlise lgica. Tarefa duplamente negativa, pois no somente os valores sero delimitados por excluso, como a prpria natureza dos esclarecimentos lgicos corresponde impossibilidade simblica para os Erluterungen de exibir, por parte desse discurso. Mas ento de onde vem a fora desse modelo lgico para se impor com tanta autoridade ao filsofo do Tractatus? Uma resposta a essa questo permitir esclarecer o que talvez seja a inspirao central da auto-terapia.

    Consideremos uma das formulaes tpicas do princpio de determinao do sentido do Tractatus: A proposio exprime o que expresso de um modo determinado e dado claramente: a proposio articulada (3.251), ou melhor, para compreendermos como se torna possvel representar em pensamento o mundo real, necessrio que o pensamento seja articulado segundo a forma das funes de verdade, isto , de proposies que possam ser completamente ana-lisadas. A clusula final, de anlise completa, deve levar situao ltima onde estaro presentes ligaes simples e diretas, sem qualquer intermediao, entre signos e objetos, ou melhor, relaes de substituio e denotao de objetos por nomes o ponto em que a linguagem toca o mundo. Sem a articulao interna e na impossibilidade de anlise completa da proposio, o sentido ser indeter-minado, ou melhor, no ser propriamente sentido algum (cf. 2.02 e sgs.), tor-nando-se impossvel compreender como o pensamento e a linguagem podem representar o mundo real. Eis a fora do modelo lgico que se imps ao filsofo do Tractatus ou, como dir mais tarde o terapeuta, eis a imagem que dirigiu o seu pensamento.

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    Reconhecer a autoridade do princpio de determinao do sentido cor-respondia, na verdade, a tentar preservar um espao de legalidade para o uso filosfico da linguagem, no Tractatus, ao lado de seus usos significativo e trans-cendental. De fato, a anlise lgica inaugura a funo transcendental apenas a partir das proposies elementares, no antes; ou melhor, essa anlise, como dissemos, deixa no limbo aquelas ligaes simples e diretas entre nomes e obje-tos, i.e., justamente aquela situao elementar a que a anlise da proposio deve chegar para ser completa, que est marcada pela aplicao do signo ao mundo, independendo, pois, de uma qualquer forma lgica e sendo desprovida de qualquer possibilidade de sentido. Situao muito particular em que o filsofo no pode valer-se da lgica para fazer-se compreender, e que o solo onde tm origem seus esclarecimentos filosficos. Ele sabe, todavia, que para ser compreendido, para que seus esclarecimentos no sejam seqncias inar-ticuladas de sons ou de traos no papel, ser preciso articul-las maneira do discurso significativo, i.e., est convencido de que dever, de algum modo, submeter-se ao princpio de determinao do sentido quando construir seus esclarecimentos. Mas, como realizar essa proeza, verdadeira arte da simulao? O Tractatus nos sugere a seguinte resposta: tomando decises que a lgica no pode antecipar, ou melhor, decidindo sobre as aplicaes que ir fazer dos signos em seus esclarecimentos filosficos, i.e., sobre as denotaes dos signos decidindo sobre isso. Decidir, por exemplo, que tais signos sero aplicados como substitutos de objetos logicamente simples, e conseqentemente que tais frag-mentos da experincia sero denotados como sendo simples, e no como sendo complexos; decidir sobre algo que no tem qualquer funo para a sintaxe lgica, a saber, a denotao dos signos, mas que o critrio para que cada signo seja admitido e no descartado, a saber, a sua aplicao denotativa. Enfim, pro-curando imitar o discurso lgico, o filsofo do Tractatus far com que tudo se passe como se os signos que ele prprio utiliza tivessem denotao, o que deve bastar para no descart-los (3.328) contrariamente aos signos utilizados pelo filsofo metafsico (6.53), que absolutamente no se preocupa em imitar o discurso lgico. O filsofo do Tractatus tem plena conscincia de que, nessas suas

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    decises, estar apenas imitando regras transcendentais prescritas pelo modelo lgico estar aplicando um signo como se fosse nome e considerando um fragmento da experincia como se fosse objeto e, igualmente, de que graas a tal imitao que o seu discurso ser compreendido e poder reivindicar a funo esclarecedora e crtica, demarcando-se, assim, daqueles da tica, da esttica e da religio. A atividade filosfica faz, assim, um uso peculiar dos signos, simulando aquele prescrito pela lgica como sendo o nico legtimo, e com isso assegura a sua prpria inteligibilidade e legitimidade crtica.

    Poderamos indagar agora, para retomar a questo colocada inicialmente, sobre as razes da aparente contradio entre a concepo de filosofia como ati-vidade e a prpria atividade filosfica de Wittgenstein aps o Tractatus: teria ele incidido em uma contradio por ter realizado a terapia, ou apesar de t-la realizado, de algum aspecto especfico do Tractatus como por exemplo, talvez, da sua antiga concepo de filosofia e das relaes que mantinha a filosofia com a lgica?

    J salientamos que Wittgenstein mantm a idia central de filosofia como atividade e no como teoria, e agora quero introduzir duas especificaes im-portantes. Primeiro, aps o Tractatus a atividade filosfica deixa de ser crtica para se tornar teraputica. Segundo, como conseqncia, a linguagem deixa de ser figura para se tornar fundo, ou melhor, a filosofia passa a incidir como terapia sobre o pensamento expresso lingisticamente e no mais sobre a expresso lingstica do pensa-mento. Qual a diferena, ento, nessa passagem, nessa sada do Tractatus?

    Toda a crtica filosfica realizada no Tractatus tinha a finalidade de demonstrar ao metafsico que algumas das suas palavras nada denotam (6.53), e que devem denotar caso pretenda ele construir expresses inteligveis. A crtica estava apoiada no modelo referencial da linguagem, isto , o mesmo modelo lgico que fornecia a norma para as proposies significativas da cincia , assim como para a excluso de outras proposies, e, alm disso, a norma para distinguir as pseudo-proposies filosficas daquelas sobre valores. Apoiava-se em um modelo de linguagem que era aplicado de maneira normativa, com a finalidade de selecionar e classificar expresses lingsticas. Ao tornar-se terapia

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    do pensamento, a filosofia no visa, claro, uma cura psicolgica, mas lingstica, e isso significa que no mais a linguagem que ser criticada, e expresses lingsticas substitudas por outras, mais rigorosas, segundo as exigncias da forma lgica, mas o pensamento que dever ser curado, ao deixar-se perder nos labirintos lingsticos que ele prprio constri. O filsofo terapeuta no possui um critrio normativo para regulamentar expresses lingsticas, por contraste com o filsofo do Tractatus que o tinha , e aceita qualquer expresso como sendo, por princpio, significativa, com a finalidade de descrever os usos e aplica-es que dela so feitos e compreender, dessa maneira, as confuses em que o pensamento se perde ao afastar-se da prtica lingstica. A nova atividade filo-sfica incide justamente no hiato que se aprofunda entre os usos da linguagem e as imagens que o pensamento cria, ao interpretar unilateralmente os conceitos. As condies de significao sero situadas, aps o Tractatus, nos usos da linguagem e no mais na sua forma lgica; a prpria forma lgica ser considerada como um dos usos possveis, e perde, ento, o antigo privilgio.

    Invertendo a atitude do Tractatus, o terapeuta no hesita em imaginar si-tuaes que contrariem as leis da lgica e consider-las como matria-prima da atividade filosfica. Ele insiste em compreender as condies de significao de expresses que aparentemente so desprovidas de sentido e que so absurdas. Com isso, o terapeuta no visa reformar a linguagem nem corrigir a suposta ausncia de significao de muitas de suas expresses, mas ele visa as confuses do pensamento que so geradas pelo uso normativo que ele prprio fizera do modelo referencial da lgica, isto , para selecionar e classificar, para legitimar e descartar expresses. A cura no mais ser da linguagem, mediante a sua reforma, mas do pensamento, e a natureza da cura ser lingstica; alis, duplamente lin-gstica, uma vez que sero considerados lingsticos tanto o tratamento quanto a doena: a terapia consiste em descrever usos de palavras para debelar confuses conceituais que tm origem na teorizao dogmtica realizada pelo pensamento. Essa idia que nos permite retomar o tema da concepo de teoria em Wittgenstein.

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    Podemos ento perguntar sobre o que h na teoria que possa conduzir ao dogmatismo do pensamento. E a esses respeito Wittgenstein afirma, ento j no perodo das Investigaes, No pense, olhe/veja (schau) (66).

    Nessa afirmao, podemos notar a analogia que ele quer estabelecer entre o pensamento e a atividade de produo de teses, assim como a analogia, con-trastante, entre o olhar e a atividade de descrio de prticas envolvidas no uso da linguagem. Ora, ainda que concebida como atividade, e no como teoria, a fi-losofia devia o seu poder esclarecedor, segundo o Tractatus, ao modelo referencial da lgica, usado como fundamento terico pelo filsofo. Fascinado pela fora transcendental do modelo, o filsofo fez dele, como ns vimos, uma aplicao terica que no correspondia, na verdade, sua natureza. De fato, Wittgenstein foi levado a considerar a anlise lgica como modelo normativo para a linguagem e para o pensamento, assim como para a prpria atividade filosfica modelo cuja imitao deveria permitir-lhe demarcar a autonomia do discurso da filosofia com respeito aos discursos sobre valores, garantindo-lhes a funo esclarecedora da forma lgica e, por conseqncia, a funo crtica sobre a linguagem. S foi possvel resguardar a sua funo esclarecedora porque existia a lgica como disciplina a priori e transcendental (5.552, 6,13), ou melhor, porque essa disciplina foi usada como teoria normativa que permitia generalizar o modelo da anlise lgica. Esse foi o uso que dirigiu a concepo de filosofia como atividade crtica da linguagem, no Tractatus, de tal modo que, ao pensar sobre a linguagem, o jovem Ludwig aplicou a lgica como se ela fosse uma super-cincia, um sistema de teses dogmticas expressas atravs de proposies necessrias a priori. Uma super-cincia, porque calcada sobre o modelo descritivo das proposies significativas das cincias naturais, sempre hipotticas, mas capaz de descrever fatos de uma natureza especial, fatos idealizados e no fatos empricos ou naturais: uma super-cincia porque cincia transcendental da forma lgica.

    Encontramos, assim, um uso terico do modelo lgico que fornecia teses dogmticas para fundamentar a atividade filosfica. A filosofia pretendia escla-recer a essncia nica e inaltervel da linguagem, tal como era exibida pelas pro-posies analticas, e para isso era levada a excluir a diversidade dos usos e das

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    aplicaes da linguagem. Conseqente com esse projeto, a filosofia esclarecia o que a lgica pode prever, mas no o que depende da aplicao dos signos, e reconhecia apenas um silencioso e obscuro lugar para o pragmtico, isto , aquela situao elementar em que a lgica nada pode exibir e que o termo final da anlise completa da proposio, isto , a relao entre nomes e objetos situao sobre a qual nada se pode dizer, situao que desprovida de forma, onde s possvel tomar-se decises a respeito da denotao dos signos, isto , sobre a sua aplicao. Essa, como eu disse, foi a porta apenas apontada, pela qual sair Wittgenstein do sistema do Tractatus, ou melhor, ser a metfora do olhar em substituio do pensamento, eliminando resqucios de teoria ainda presentes na concepo de atividade filosfica. Wittgenstein realiza, assim, a terapia tanto do uso terico-dogmtico que fizera do modelo lgico ao aplic-lo como funda-mento de uma super-cincia de fatos ideais e no de fatos corriqueiros da lin-guagem, no tempo e no espao (IF, 97) como da concepo de filosofia como esclarecimento da essncia assim concebida.

    Com isso, vemos surgir uma concepo mais ampla de teoria, aps o Tractatus, resultante da terapia da noo de analiticidade, como presena virtual do possvel na significao das proposies. De fato, h duas caractersticas com-plementares no uso dogmtico da teoria; uma, relacionada diretamente com a natureza de determinadas teorias, e outra, comum a todas as teorias.

    No primeiro caso, especfico de certas teorias, trata-se de teorias que idea-lizam o objeto a ser descrito, como foi o caso da lgica no Tractatus, ao ser con-cebida como descrio de uma [vai dizer ele mais tarde, na Gramtica Filosfica, reportando-se ao Tractatus] realidade idealizada, que s vlida, rigorosamente, para uma linguagem ideal (Gr. Fil., p. 77). E nesses mesmos termos, curioso, ele escreveu a Russell, em 1913, dizendo: No extremamente admirvel ver a que ponto a lgica uma cincia grande e infinitamente singular; creio que nem voc nem eu sabamos disso h um ano e meio (Letters to Russell, Keynes, and Moore, p. 45).

    importante ressaltar, neste ponto, a distncia entre uma teoria cientfica e uma super-cincia. Uma teoria cientfica um sistema de proposies hipotticas

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 2, p. 275-302, jul.-dez. 2004.

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    cujo valor de verdade ser sempre funo da verificao de fatos contingentes, claro, enquanto que uma super-cincia um sistema de proposies cujo valor de verdade ser sempre necessrio a priori: necessria a excluso da falsidade assim como necessria a admisso da verdade. Da o passo filosoficamente perigoso que o Tractatus no soube evitar, a saber, tornar ideal o objeto descrito, para que pudesse corresponder ao modelo terico da super-cincia que o descreve. Tal a fora com que se imps, o modelo a priori e transcendental, ao pensamento do filsofo que ainda, digamos, no sabia olhar, mas s pensar, para usarmos a metfora posterior tal a fora com que o modelo se imps que a realidade foi idealizada para se conformar ao modelo (IF, 131). Eis uma caracterstica ex-clusiva de determinados modelos tericos, por serem analticas as suas propo-sies e conterem, necessariamente, a priori e de maneira virtual, a determinao completa dos conceitos e tambm, supostamente, a determinao completa dos fatos descritos. Mas como foi possvel que o filsofo do Tractatus tenha dado esse passo filosoficamente perigoso?

    aqui que surge a segunda caracterstica, e que comum, agora, a todos os sistemas tericos justamente aquela caracterstica que nos permitir, final-mente, esclarecer a aparente contradio em Wittgenstein. que todo modelo coloca a forma de descrio a ser adotada, tornando-se assim o sistema de refe-rncia que determina formalmente e a priori a descrio dos objetos. Como diz Wittgenstein mais tarde, ento, assumindo j o ponto de vista teraputico:

    O modelo deve precisamente ser instaurado como tal; de modo que ele caracterize completamente a maneira de considerar as coisas, determine a sua forma. Conse-qentemente, ele se situa no topo e vlido universalmente pelo fato de determinar a forma da pesquisa (exame) dos fatos, e no porque aquilo que s verdadeiro dele prprio enunciado/afirmado de todos os objetos pesquisados/examinados (Vermischte Bemerkungen, p. 35).

    O modelo determina a forma da pesquisa e da reflexo, mas no a forma dos objetos descritos. O modelo deve ser instaurado como tal, assim. Ora, isso Witt-genstein no percebeu, na poca do Tractatus e esse que o problema.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 2, p. 275-302, jul.-dez. 2004.

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    Tendemos a cair na iluso de estar descrevendo os prprios objetos quan-do, na verdade, permanecemos sempre no domnio do modelo, do sistema de referncia para a descrio (IF, 114). Ora, no caso das cincias naturais, a na-tureza hipottica das proposies permite evitar a curiosa inverso que pode ocorrer no uso de modelos cujas proposies parecem concentrar a fora da necessidade a priori, a saber, quando os fatos so idealizados para que o modelo descritivo possa ser confirmado, o qual, alis, no pode ser contestado. Curiosa situao essa, em que os fatos devem estar em conformidade com o modelo, sendo inimaginvel que fossem diferentes do que devem ser. a fora do modelo.

    Inspirando-se na analogia entre o olhar e a descrio dos usos da lin-guagem, a terapia ir detectar traos de teoria no uso que foi feito, pelo Tractatus, do modelo lgico, assim como ir indicar a presena, insidiosa, do pensamento dogmtico do prprio Tractatus. Se, no caso das cincias naturais, a presena do dogmatismo facilmente detectvel, por consistir na generalizao de verdades que so reconhecidamente contingentes e provisrias (V ou F), no caso de mo-delos analticos, pelo contrrio, o pensamento pretende descrever verdades neces-srias cuja negao no pode sequer ser significativamente imaginada, uma vez que proposies analticas exprimem a priori os seus contedos, passando a ser aplicadas com fora transcendental. A terapia da noo de analiticidade ir mostrar que, na verdade, a prpria lgica foi usada, no Tractatus, como teoria e, justamente, pela mesma razo que o levava a no consider-la como teoria, a saber, por sua natureza a priori e transcendental. Expande-se, assim, a concepo de teoria, e a terapia ser mais radical ao aplicar-se a todo uso dogmtico de sistemas de referncia para descries, inclusive, e particularmente, de super-sistemas; por conseqncia, a concepo de transcendental tambm alterada, deixando de indicar o domnio de puros objetos ideais. esse o uso dogmtico de modelos tericos de que Wittgenstein far a terapia. Como ele diz, a respeito do uso supostamente no terico, mas dinmico ou prtico, feito da lgica no Tractatus:

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 2, p. 275-302, jul.-dez. 2004.

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    Agora temos uma teoria; uma teoria dinmica da proposio, da linguagem, mas ela no nos parece ser uma teoria. O elemento caracterstico de uma tal teoria que ela considera um caso particular, claramente intuitivo [isto est assim e assim proposio], e afirma: Isso mostra como as coisas se passam em geral; esse caso o modelo de todas as coisas. Naturalmente assim que deve ser (Zettel, 444)

    e a, ele cai no dogmatismo.

    A imagem da essncia nica e definitiva da linguagem e do pensamento, a ser revelada pela super-cincia da lgica, foi mantida viva pelo Tractatus por ter, o pensamento de Ludwig, generalizado um modelo que era apenas sistema de re-ferncia para descries, como o so todos os modelos, e apesar de ter concebido a filosofia como atividade e no como teoria. Parece ser essa a concepo e o uso de uma teoria que Wittgenstein procura evitar, aps o Tractatus, pois o que o levou, ainda que inadvertidamente, a exercer uma atividade crtica profundamente eivada de teoria e de dogmatismo. Em seguida, trata-se de evitar toda genera-lizao de sistemas de referncia, particularmente quando se atribui a esses siste-mas o estatuto de super-sistema.

    Vamos agora retomar a nossa questo. Wittgenstein mantm a idia de filosofia como atividade, no mais, toda-

    via, como crtica de expresses lingsticas do pensamento, mas como terapia do prprio pensamento expresso lingisticamente. Sutil diferena, mas profunda e com muitas implicaes, porque no mais se visa uma qualquer reforma da linguagem mas a cura do pensamento confuso a respeito da significao dos conceitos, e, por conseqncia, a significao dos fatos e das aes conceitual-mente descritos. Todavia, ns nos defrontamos aqui com uma dificuldade que poder esclarecer o aparente paradoxo em Wittgenstein aquele entre filosofia como atividade e aparentes teses que ele vai formulando. De fato, por um lado, segundo a nova concepo, a atividade filosfica caracterizada como essencial-mente descritiva, como descrio de usos das palavras. Mas, por outro lado, a terapia do uso dogmtico de sistemas de referncia indica, justamente, que toda e qualquer descrio se funda em uma teoria, em um modelo que o seu sistema de referncia. Como descrever sem ter um modelo, um sistema de referncia? Como seria possvel, ento, prosseguir descrevendo sem, contudo, cair nos encantos de

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 2, p. 275-302, jul.-dez. 2004.

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    um sistema de referncia (descrio sem teoria)? A situao torna-se ainda mais embaraosa para a filosofia como terapia, de Wittgenstein, pois trata-se, no seu caso, de saber como seria possvel aplicar um sistema de referncia de maneira hipottica, para se distinguir do uso feito pelas cincias naturais, e que no seja uma aplicao dogmtica, para se afastar dos erros cometidos no Tractatus.

    E ns notamos, assim, a conjuno entre a antiga idia de esclarecimento filosfico e a nova idia de terapia. Isto , aps o Tractatus, a reflexo filosfica permanece distinta da atividade cientfica, claro, por no visar a construo de hipteses sobre fatos, limitando-se ento a esclarecer significaes conceituais para dissolver confuses do pensamento e no mais criticar usos indevidos da lingua-gem e apontar para o uso correto; no mais, digamos, uma funo ortopdica. Ser preciso, ento, encontrar um caminho sadio para a atividade descritiva da filosofia, caminho que dever excluir tanto a construo de hipteses, como no Tractatus, tambm, quanto o dogmatismo das hipteses e, mais profundamente, o das essncias. A nova dificuldade ser, ento, a seguinte: parece ser difcil evitar o dogmatismo em geral, uma vez que toda descrio supe a aplicao de um siste-ma de referncia, de um modelo terico. Como evit-lo?

    Compreender melhor a natureza dessa atividade talvez seja o caminho para esclarecer a aparente contradio entre a idia de descrio filosfica dos usos de palavras, o que exclui a construo de teses, e as freqentes afirmaes que faz Wittgenstein no decurso da descrio teraputica, afirmaes que parecem ser soam como sendo teses. Poderamos acrescentar ainda mais um agravante: Wittgenstein faz afirmaes, igualmente frequentes, a respeito de jogos de lingua-gem que envolvem processos empricos de uso de palavras, como nos casos de aprendizagem, percepo, ensino, estados mentais, e no apenas nos casos da lgica e da matemtica. Ns seramos tentados a ver, aqui, uma expanso do dog-matismo aplicado prpria empiria, isto , uma maneira ingnua de dogmatismo que generaliza teses, sobre fatos e processos empricos, que s poderiam ter o valor de hipteses. A contradio parece ser mais profunda: como se, aps o Tractatus, o dogmatismo filosfico da necessidade fosse instalado sobre a prpria empiria. Tentemos esclarecer esse ponto para mostrar que a contradio apenas

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 2, p. 275-302, jul.-dez. 2004.

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    aparente e resulta de uma compreenso superficial do pensamento de Wittgen-stein.

    Resultado da auto-terapia, o primeiro ponto a ser salientado que Witt-genstein passar a usar sistemas de referncia, para empreender as suas descries de usos de palavras, exclusivamente como objetos de comparao, ou melhor, como critrios de natureza convencional, e no mais como pr-juzos (Vorurteil ) normativos, de natureza idealizada, aos quais os fatos devam necessariamente corresponder (IF, 130, 131). Procura, com isso, evitar a idealizao dos objetos descritos como ele tinha feito no Tractatus, por exemplo, na proposio de-formando-os ao ponto de torn-los imagens dos prejuzos relativos ao modelo. Jogos de linguagem sero os novos sistemas de referncia que Wittgenstein ir usar nas suas descries filosficas, como fundamento da terapia. Qual a diferena, aqui, com o uso feito do modelo lgico? que os jogos de linguagem sero usados como critrios arbitrrios, dentre outros, que o terapeuta sugere para produzir analogias e ressaltar diferenas, entre as significaes descritas. Da que as afirmaes feitas no decorrer das descries, e que aparentam ser teses emergindo de uma teoria normativa, sejam, na verdade, produzidas na pers-pectiva de um determinado jogo de linguagem arbitrariamente escolhido, e sem qualquer pretenso normativa. o elemento teraputico da descrio que orienta Wittgenstein na escolha dos jogos de linguagem, seus sistemas de referncia, em cada caso de uso de palavras a ser esclarecido. Em funo dessa escolha, so feitas afirmaes, a respeito de processos, de objetos e de aes, que visam facilitar a terapia ao produzir novas analogias, novas maneiras de ver as situaes habi-tuais, ou melhor, inserir em novos contextos os conceitos que nos so familiares e que causam confuses. Afirmaes que no so teses, nem, tampouco, so apresentadas como dogmas, mas como afirmaes a serem superadas terapeuti-camente durante o processo dialgico tal a escada provisria do Tractatus, mas o esclarecimento contnuo, ou aprofundamento, das mesmas questes.

    importante salientar o segundo ponto que a dimenso dialgica da te-rapia. ela que fornece o movimento da terapia e a sua finalidade curativa, dando unidade descrio que poder ser qualificada, ento, de teraputica. Uma tal

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    descrio no visa a defesa de teses colhidas nos sistemas de referncia que so os jogos de linguagem, uma vez que jogos so substitudos, freqentemente, por jogos antagnicos. Trata-se, sempre, de descrever a aplicao dogmtica de jogos, atravs da sua contraposio a outros jogos, variando as circunstncias e possi-bilidades de aplicao dos conceitos, de maneira a mostrar que o dogmatismo do uso encobridor das possibilidades de sentido ao forar o nosso pensamento em uma nica direo vindo da, alis, o suposto domnio do pensamento sobre a vontade, quando, na verdade, como mostrar a terapia, a vontade grama-ticalmente cristalizada que limita o pensamento. A variao das circunstncias de aplicao das palavras permitir ento mudar o pensamento com respeito aos usos habituais dos conceitos, fazendo-nos reconhecer a natureza meramente con-vencional dos sentidos que, dogmaticamente, atribumos a fundamentos extra-lingsticos, inalterveis e definitivos. O estilo dialgico, apresentando teses con-flitantes, ou pontos de vista, por vezes, inconciliveis, marca a natureza arbitrria, ou, se quisermos, retrica, das afirmaes do terapeuta, afastando-as de afir-maes tericas, ou tticas, que seriam descries objetivas de propriedades de fatos, ainda que idealizados, como no caso do Tractatus. A descrio teraputica e dialgica no visa mostrar objetos ou fundamentos que estariam encobertos pelo vu da aparncia, mas, apenas, mostrar o que ns prprios fazemos com as pala-vras e os conceitos e que isso tudo o que h nossa frente. Da a afirmao de Wittgenstein, ao demarcar-se, por exemplo, da maiutica socrtica. Ele diz, no incio dos anos 30:

    No poderia melhor caracterizar a minha posio do que dizendo ser a posio antittica daquela que Scrates representa nos dilogos platnicos. Porque se me perguntassem o que o conhecimento, eu enunciaria conhecimentos, e em seguida acrescentaria: e outras coisas semelhantes (Dictes/W-S, p. 17), quer dizer, und so weiter.

    Sem dvida, a descrio dialgica possui um forte esprito retrico de

    convencimento, mas, sobretudo, de persuaso. Entretanto, diferentemente da tradio retrica, os resultados visados so curativos e dogmticos, ou melhor, no pretendem mudar o pensamento do interlocutor pela substituio de teses,

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 2, p. 275-302, jul.-dez. 2004.

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    mas a sua vontade pela mera dissoluo de confuses, sem qualquer contra-partida positiva por apresentao de novas solues. O interlocutor convidado a mudar o seu ponto de vista habitual e reconhecer que possvel e, sobretudo, legtimo assumir outros pontos de vista sobre a significao; essa a persuaso que espera obter Wittgenstein com a sua terapia: a disponibilidade da vontade do interlocutor para pensar e reconhecer a legitimidade de sentidos desconhecidos e, mesmo, julgados como sendo ilgicos ou absurdos relativamente a determinados pontos de vista. Em outros termos, o interlocutor ser convidado a deixar-se persuadir de que so meramente convencionais as fronteiras categoriais com que trabalha o seu pensamento, ao apreciar, dialogicamente, atravs de descries de diferentes usos de palavras, as indefinidas possibilidades expressivas da linguagem possibilidades imprevisveis a priori, na medida em que so indissociveis de formas de vida, tais como comer, beber, andar, mas, tambm, falar, contar estrias, perceber, pensar, etc.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 2, p. 275-302, jul.-dez. 2004.