araujo - esquecimento em suspensão

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  • 8/19/2019 ARAUJO - Esquecimento Em Suspensão

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    ESQUECIMENTO EM SUSPENSÃO : Um br eve ensaio sobre os abusos da memóri a .

    João Paulo M. Araújo.1

    Quem se dirige ao restaurante universitário docampus poderá encontrar a exposição“História em Movimento” – projeto de treinamento profissional desenvolvido pela produtoracultural Lúcia Xavier e que busca, segundo informações do próprio site:

    registrar e valorizar a ainda recente história [enquanto] fundamental para o perfeito entendimento das transformações locais provocadas pelo início dasatividades no campus avançado da Universidade Federal de Juiz de Foraem Governador Valadares, em 19 de novembro de 20122

    A exposição consiste de fotos “representativas” do processo de implantação docampus GV,e são expostas em um painel e em um monitor alimentado pelo site do projeto: ali, encontra-se delineada a narrativa cronológica dos acontecimentos, que se sucedem ordenadamente.

    Nada disso deveria despertar suspeita alguma. Nada mais do que uma inocente projeção de“momentos” felizes enredados em uma trama simples, com sentido claro: eis os passos,sempre para frente, sempre em progresso, da nossa autoformação.

    Por que, então, a angústia? Por que a leve indigestão, após visualizar as imagens tão bonitas – e, certamente, verdadeiras! – da nossa “história (sic) em movimento”? Talvez seja apenasrabugice se incomodar com coisas tão pequenas. Mas talvez, apenas talvez, tal angústiarepresenta o resultado de um sintoma que permanece reprimido na dinâmica impessoal docotidiano e que se manifesta, ao fim, como fantasia (dos autores, no que é visto) ou comomal-estar (dos espectadores, no que se vê)3. Tentarei demonstrá-lo através de uma análisedos dois elementos que fundam e nomeiam o projeto.Comecemos por “História”. A palavra remete, desde muito, a uma forma peculiar deorganização da vida espiritual; um esforço para combater o esquecimento. Ela é um discurso,uma prática cultural organizada em torno de finalidades distintas4 – das quais duas sesobressaem: por um lado, apresentar os fatos do passado, tais como eles ocorreram; por outro, possibilitar critérios para o agir no presente. Nisso, se revela o seu escopo fundamental: odiscurso histórico é construtor de identidades. A partir dele, os sujeitos de uma determinada

    1 Professor nocampus GV.2 Exposição fotográfica – “História em movimento (GV)”. Ufjf notícias. Disponível em:http://www.ufjf.br/noticias/evento/exposicao-fotografica-historia-em-movimento-gv/. Acesso em: 17.02.163 FREUD, Sigmund.Obras completas, vol 12 (“A repressão” [1915]; vol. 17 (“Inibição, sintoma e angústia”[1926]);vol. 18 (“O mal -estar na civilização” [1930]) e (“Novas conferências introdutórias à psicanálise”[1933]). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010/2014/2010. Utilizo, de formarazoavelmente constrangedora, os conceitos freudianos – retirando-os (talvez de forma indevida) do contextofuncional em que aparecem no interior dos processos da economia libidinal. Como o espaço e a propostaimpedem o desenvolvimento de tais elementos, a referência se restringe aos textos dos quais tais noções sãoretiradas.4 RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. História da historiografia.Trad. Valdei Araújo e Pedro Caldas. Ouro Preto, nº 2, mar/2009, pp 163-209.

    http://www.ufjf.br/noticias/evento/exposicao-fotografica-historia-em-movimento-gv/http://www.ufjf.br/noticias/evento/exposicao-fotografica-historia-em-movimento-gv/http://www.ufjf.br/noticias/evento/exposicao-fotografica-historia-em-movimento-gv/

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    comunidade se reconhecem como iguais, na medida em que compartilham o solo comum dossignificados do passado e que são indispensáveis à constituição dos projetos de futuro5. Oconhecimento histórico fornece aos indivíduos do presente a síntese entre o que foi e o queainda pode ser . Do sucesso de tal articulação é que retira sua validade.

    Exsurge disso um problema inevitável. Pois, na medida em que o sonho historicista de teracesso aos fatos históricos “tais como eles realmente aconteceram” 6 se mostrou um delírio,o que se tem diante de si é o desafio de levar em consideração o elemento do fazer , inerenteà própria História. Afinal, trata-se de umdiscurso , feito por homens e mulheres no presente,com vistas a uma determinada finalidade. Assim, encontramo-nos diante de um dilema, poiso que sabemosdo passado confunde-se com aquilo que nos é transmitido sobre o passado.7

    Nessa transmissão – na constituição do discurso histórico – os documentos históricos nãosignificam, por si só, nada. Eles são sempre interpretados de acordo com a narrativa geraldos acontecimentos – na qual sua finalidade social desponta como um elemento que não podeser negligenciado. Nesse sentido, há, de forma inescapável, uma seletividade na organização

    deste conjunto “probatório” : aquilo que se considera essencial à composição do discursoderiva sua importância, em parte, apenas de uma escolha dos sujeitos produtores do discurso8.O que não implica em relativismo: pois sempre podemos averiguar de forma objetiva a pertinência ou não de um determinado elemento no meio do conjunto.

    Isso nos leva diretamenteao “acervo” da mostra . Causaria perplexidade a qualquerestrangeiro ter de ouvir os relatos das agruras daqueles (docentes, técnicos e discentes) quevivem a instalação docampus enquanto “projeto” para então, depois, se dirigir à belaexposição de momentos proporcionada pela amostra. Eis que nosso hipotético desavisadoteria apenas uma alternativa possível: ou os relatos que ouviu são falsos, ou os dados daexposição não dão conta daquilo que éessencial à constituição histórica do processo que se pretende retratar. Ou bem mentimos, ou a exposição é falseadora (não necessariamente falsa).O problema, aqui, é que não se trata de desavisados: mas de nós. De modo que a questão sereformula com cores mais dramáticas: ou somos mentirosos compulsivos ou enlouquecemosno próprio processo, conquanto guardamos impressões tão distintas do que se mostra comoo ocorrido.

    Como, pois, assistir às belas fotos sobre a maquete projetada para ocampus – durante um bom tempo orgulhosamente disposta nohall de entrada do Pitágoras – sem recordar docontrato quenão previa a construção das unidades que se mostravam, ali!, na maquete? Ouainda, como não sentir o risco da esquizofrenia ao rememorar as primeiras aulas – dispostas

    orgulhosamente no painel – reprimindo as repetidas inundações que aconteciamdentro do

    5 RÜSEN, Jörn. História viva; teoria da história III; formas e funções do conhecimento histórico. Trad. Estevãode Rezende Martins. Brasília: Editora UNB, 2007.6 A frase é de Leopold von Ranke. Cf. REIS, José Carlos. A História, entre a Filosofia e a Ciência. 3ª ed. BeloHorizonte: Autêntica, 2006.7 REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: FGV, 20108 DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. 3ª ed. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2011.

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    Pitágoras? Um conhecido professor da saúde é retratado em um glorioso brinde com seusalunos, mas não enquanto vítima de intimidação por parte de autoridades locais. Como possolembrar de tais fatos, se vejo coisas tão distintas?

    Vejo a foto de uma aula magna, mas não consigo senão recordar do som destruidor das britadeiras sempre em obra no Pitágoras! Vejo sorrisos de pessoas que tomaram posse emum emprego para o qual estavam desde o início vocacionadas (uma presunção que a vidarecente tem buscado desmentir), ao mesmo tempo em que minha cabeça retém a imagemdaqueles que tiveram de abandonar a vocação diante não das dificuldades, mas da ausênciade possibilidades para além das dificuldades. Enxergo a foto de um orgulhoso e radiantereitor com um sorriso azedo na boca, pois minha consciência involuntariamente se deslocaàs investigações e acusações das quais é alvo.

    Há cenas idílicas de tratores a aplainar a terra – mas nenhuma menção ao cemitério de aço econcreto abandonado há meses, que persiste na minha mente. Imagens da projeção virtual dosempre futurocampus, realizada por arquitetos muito bem pagos, mas nada sobre a memória

    que tenho da atividade que lá realizaram alunos e professores visando atrair atenção ao estadodeplorável das obras. De eventos esportivos que levam o nome da Universidade, mas não domesmo nome nos cartazes que protestaram, outrora, contra o machismo ali dentro.Autoridades de sorrisos tão largos quanto os ternos que usam dividem espaço com uma rodagigante(?), coqueirais (??), mas não com cenas da Univale alagada, ou dos laboratóriostrancados e sem equipamentos, das assembleias autônomas realizadas por professores paradiscutir esses mesmos problemas.

    Admitindo-se, por um momento, que não enlouquecemos, pode-se perguntar: o que justificaa aparente ausência? Aliás, trata-se efetivamente disto, de umaausência? Porque maisimportante do que a escolha dos momentos retratados como exemplares do processo que se busca descrever, é a não-escolha, o preterimento de todos os outros aspectos em função dafoto posta no mural. O que, então, se esconde por detrás do esquecimento?

    Neste sentido precisamos trazer à análise um outro aspecto do discurso histórico, sua segundafinalidade: a operação narrativa atribuidora de sentido ao agir no presente. Em linguagemmais pedestre, isso quer dizer apenas que o que se passa por conhecimento histórico tem umaligação direta com a nossa vida no presente, na construção das metas de ação, dos projetosde futuro daquele grupo que sereconhece no discurso.

    Perguntar a que serve o encadeamento de momentos felizes não ataca o centro da questão:desde a publicação da obra de Hayden White que se verificou que procedimentos

    historiográficos são inevitavelmente regidos pela lógica de construção de uma narrativaromanceada, governada pela lógica argumentativa do“happy ending ”, da construçãoretrospectiva do final feliz.9 Nesse sentido, a“produção cultural” exposta não é senão arealização dohoje fantasioso; do ponto final de um processo que se compõe apenas deacertos, vitórias, comemorações, autoridades de terno, brindes e tratores em movimento. É

    9 WHITE, Hayden. Meta-História; a imaginação histórica do século XIX. 2ª ed. Trad. José Laurênio de Melo.São Paulo: EDUSP, 2003.

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    este o“movimento” da “história” (sic) do painel: do discurso do presidente aos sorrisos da população carente sendo assistida pelos alunos, sobressai o final feliz da retrospectivaautolaudatória. Mas afirmar isso é pouco.

    Pois não se trata, como já o dissemos, de uma ausência. O que constitui o sintoma é uma presença de uma ausência – nesse caso, a ausência dooutro . O outro quenão se encontra presente é, constantemente, ooutro que não encontra possibilidade de ali estar. No discursohistoriográfico tradicional, o outro se apresentou com diversos nomes: o bárbaro, o não-europeu, o índio, o negro, o sul-americano, o trabalhador, a mulher, a vítima.

    Daí falarmos em narrativas oficiais: elas exprimem a visão geral do processo como visto pelos autores do discurso – uma forma um pouco mais elegante da fórmula comum quevaticina que“a história é escrita pelos vencedores”.

    Mas isso carece de explicação. Porque, no nosso caso, certamente menos dramático, não hávencedores. Por outro lado, pode-se razoavelmente argumentar que tampouco há, ali,conhecimento“histórico” – mas tão somente uma palavra. Um nome qualquer, escolhido porconveniência. Assim, estamos aparentemente piores do que quando começamos. Resta-nos,contudo, ainda o segundo termo – o “movimento”.

    Algo está“em mo vimento”. São as imagens que se dispõem à visão. Sua rápida sucessãocontribui para sua fixação naquele que vê: reconhecemos uma familiaridade que até entãoera-nos estranha. O estranhamento converte-se em familiaridade, pois no meio de imagensdesconhecidasvejo o meu rosto, osmeus amigos,meus alunos,meu local de trabalho. O queeu vejo , por um lado, resiste àquilo que eu posso apenas recordar, que euouvi de outro. Estáali, diante de mim, em um local insuspeito. Por isso que, em geral, podemos passar pelamostra e não repará-la: ela será tão mais eficiente quanto mais seja apenas vista.

    Entretanto, se me detenho diante das fotos, mas desisto de olhá-las, o que efetivamente vejonão são mais as figuras, mas a direção para a qual elas apontam. Para o seu conjunto, para aapresentação ela mesma, onde as imagens ganham sentido. É preciso suspender over paracompreender o sentido destemovimentar-se . O sentido do movimento é a ocultação daquiloque não se movimenta, do que resiste à familiaridade, do que permanece em suspenso naescolha daquelas figuras. Aí que podem vir ao encontro as lembranças divergentes: não é oolhar a imagem do trator que me traz à memória o abandono das obras do campos. Como poderia ser assim?. É justamente o que o trator esconde, mas sua presença ali mostra. Ocampo, outrora fechado à mostração, da estranheza, do que resiste à familiarização provocada pelo movimento.

    É oesquecimento que resiste a esquecer, que permanece suspenso e dota aquelas imagens deum sentido estranho, imóvel, fugidio. É um esquecimento em suspensão: invisível, mas presente; visível, mas apenas como uma ausência não-momentânea, não-passageira, não-familiar. Precário, subsiste apenas mediante o esforço da não-entrega ao fluxo das imagens.Eis aí a dificuldade: escapar á positividade das imagens apenas é possível na preservação eno resgate da estranheza diante da familiaridade que se quer implementar.

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    “Preservar para resgatar”: eis o lema autodeclarado do projeto. 10 Está, ao cabo, correto. Émesmo necessário preservar aquilo que ele esconde, para que a nossa verdadeira memóriainstitucional não se dissolva no resgate de uma história que guarde apenas as lembranças quequer lembrar. Pois aí reside o fundamental. Afinal, memória e história são conhecimentosdivergentes apenas em grau; sua natureza, contudo é a mesma e radica em sua finalidade:

    ambos trabalham na construção da identidade – individual e coletiva. Ainda que as fotos nãosejam“falsas”, o discurso é falseador: esconde mais do que mostra! O seu mostrar engana,confunde quem vê quando contrapõe à fragilidade da memória pessoal a realidade objetivada foto, do momento estanque capturado, da felicidade retratada...

    Mas mesmo diante disso tudo, uma suspeita ainda permanece: pois é preciso admitir, aindauma última vez, que todo esse arrazoado não seja senão um exagero. Tudo pode não passarde uma elaboração deficiente; ou, talvez, que não se pensou nesse tipo de“detalhe” quandode sua execução; ou mesmo que sua finalidade seja outra.

    É impossível contestar tais objeções. Se, contudo, admitimo-las como corretas, o projeto

    ganha um forte acento performativo. Pois, enquanto iniciativaoficial , acaba sendo, elemesmo, o mais perfeito retrato do processo de implantação do campus que pretendiadescrever: sem missão, sem visão, sem valores11 – um movimento, apenas; um direcionar-sea si mesmo, desprovido de sentido; um processo dentro do qual tudo se dissolve em umamiríade caleidoscópica de imagens familiares, mas sem qualquer significado verdadeiro.Mal-estar de alguns, fantasia de outros: em qualquer caso, migalhas substitutivas diante dovalor do que se pretende relegar ao esquecimento.

    10 http://historiaemmovimento.wix.com/site. Acesso em: 17.02.1611 Aqui é suficiente sugerir o acesso a esta página do site: http://historiaemmovimento.wix.com/site#!missao-visao-valores/yiclv . Basta clicar que o que se quer dizer ficará evidente. (Acesso em: 17.02.16)

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