aranha - a dialetica junguiana

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7/18/2019 Aranha - A Dialetica Junguiana http://slidepdf.com/reader/full/aranha-a-dialetica-junguiana 1/54  Dr. Maurício Aranha A Dialética Junguiana Juiz de Fora - MG 2003 Obra registrada junto à Fundação Biblioteca Nacional – Ministério da Cultura Escritório de direitos autorais Registro: 268.623 Livro: 482 Folha: 283

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introdução a dinâmica do símbolo em Jung e na psicologia analitica

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Dr. Maurício Aranha

A Dialética Junguiana

Juiz de Fora - MG2003 

Obra registrada junto àFundação Biblioteca Nacional – Ministério da Cultura

Escritório de direitos autoraisRegistro: 268.623 Livro: 482 Folha: 283

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AGRADECIMENTOS

À minha esposa, Cláudia Aranha, pela paciência ecompreensão que teve durante as inúmeras horas que me fizausente do nosso convívio por estar envolvido com a

 pesquisa, o estudo e a digitação desta dissertação.

Especialmente aos mestres que conheci através doslivros que li, das palavras que ouvi e das experiências quesenti até hoje na minha existência, pois certo é que seusescritos enriqueceram meu conhecimento e amadurecerammeu saber.

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SUMÁRIO

Introdução. 4 Capítulo I: Influência filosófica na psicologia junguiana. 6 

Sessão I: Contribuições do pensamento de Heráclito. 6 Sessão II: Contribuições do pensamento de Hegel. 13 

Capítulo II: Tipologia junguiana: funções psicológicas. 20 Capítulo III: Teoria geral dos complexos: uma abordagem junguiana. 26 Capítulo IV: Relação com a integração. 31 

Capítulo V: Relação com a alteridade. 39 Capítulo VI: Relação com a totalidade. 45 

Conclusão. 51 

Bibliografia 53

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INTRODUÇÃO

 No contexto da psicologia junguiana fica evidente a atenção dada ao papeldo pensamento dialético no desenvolvimento do pensamento de C. G. Jung, bem comochama a atenção o cuidado que este teve em utilizar tal estruturação epistemológica paraconduzir ao “desenvolvimento do si mesmo” nomeado por este como processo deindividuação.1  Este trabalho propõe pontuar algumas dessas construções dialéticas quefizeram da teoria de Jung um marco para a psicologia moderna. Tal estudo propiciará umaprofundamento nos conceitos fundamentais da teoria junguiana a partir de umaconstrução teórica crítica que permita uma visão panorâmica da influência exercida pelo

 pensar dialético na elaboração de uma psicologia dinâmica que se volta para o indivíduocom o fim de tentar compreendê-lo no seu “mundo” e permitir que este crie novas eadaptadas formas de interagir com a natureza objetiva e subjetiva que o cerca e da qual éintegrante e criador.

Esta pesquisa tem por objetivo proporcionar maior familiaridade comelementos que contribuíram para o desenvolvimento do pensamento junguiano, com vista atorná-lo mais explícito ou a construir hipóteses que contribuam para o contínuodesenvolvimento daquela teoria. Portanto, este estudo se volta para o aprimoramento deidéias ou a descoberta de relações que permitam compreender como o pensamento

 psicológico proposto por Jung se desenvolveu em determinados aspectos. Será utilizado

como referencial teórico o levantamento bibliográfico e análise de fragmentos textuais queestimulem a compreensão.Como pontos vantajosos na utilização desta metodologia de pesquisa, tem-

se a considerar a rica fonte de dados, bem como sua estabilidade informacional; facilidadeem se acessar informações a partir da fonte original de conhecimento público e notório; poroutro lado, as limitações encontram-se no fato de que tais fontes de informação possuemuma característica de não-representatividade o que determina a subjetividade dasinterpretações, porém como o problema da representatividade e da objetividade se faz

 presente, direta ou indiretamente, em qualquer trabalho desta natureza, é possíveladministrar esta limitação a partir do momento que se considere as elaborações, que aquiserão apresentadas, não como respostas definitivas a um questionamento ou elaboração

conceitual, mas como elementos que proporcionam mais uma visão às questões jáestudadas ou, então, que conduzam a novas hipóteses suscitando novas pesquisas einvestigações.

O trabalho de pesquisa tem por finalidade situar e evidenciar a presença do pensamento dialético como processo de análise e construção da realidade objetiva esubjetiva, no contexto da psicologia analítica, com vista ao processo de individuação. Paratanto, foram divididas em oito abordagens, assim distribuídas: 1- introdução, finalidade dotrabalho e a metodologia utilizada para se chegar aos dados que irão ser objetos de análise;2- as contribuições filosóficas, baseadas no processo dialético proposto pelos filósofos:

1

 Individuação: “ De modo geral, é o processo pelo qual os seres individuais se formam e se diferenciam; em particular, é o desenvolvimento de um indivíduo psicológico como um ser distinto da psicologia geral ecoletiva”. (JUNG, CW 6, par. 914).

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Heráclito e Hegel; 3- analise das funções psicológicas e das articulações dialéticas dos seuselementos com vista à individuação; 4- analise da importância do processo dialético naelaboração da “teoria geral dos complexos” proposta por Jung; 5- avalia a presença do

 processo dialético na análise das relações integracionais.2  Neste ponto, limitar-se-á o

campo da pesquisa à dinâmica junguiana dos seguintes pares: complexos e arquétipos,função inferior e função transcendente, ego e suas funções, individuação e adaptação; 6-nas relações de alteridade,3  analise do processo dialético dos pares: anima e animus,sombra e persona, função inferior e persona, introversão e extroversão; 7- analise dialéticadas relações de totalidade4 apreciada nas relações do self e personalidade-mana, signo esímbolo, causalismo e finalismo, invasão e embotamento; e, 8- as conclusões alcançadas eas hipóteses suscitadas pela pesquisa.

2

 Integração: articulação dos vários aspectos da personalidade.3 Alteridade: estado ou qualidade do que é outro, distinto, diferente.4 Totalidade: expressão mais plena possível de todos os aspectos da personalidade.

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CAPÍTULO I: 

INFLUÊNCIA FILOSÓFICA NA PSICOLOGIA JUNGUIANA

SESSÃO I: CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO DE HERÁCLITO

Para se entender a importância do pensamento de Heráclito, conhecidocomo obscuro, devido à linguagem simbólica da qual fazia uso para expressar suasmáximas, e também como pai do processo dialético, no contexto psicológico junguiano énecessário contextualizar as raízes deste pensamento, bem como, demonstrar sua influênciasituando-o no desenvolvimento da teoria elaborada por Jung. É importante analisar o queem Jung é dinâmica5  da psique6  e o que é estrutura7  da psique. Ao considerar-se adinâmica  a atenção se voltará sobre elementos tais como: energia psíquica (libido),dialética, etc. e ao ser considerado a estrutura, estará se cogitando acerca do arquétipo, dasfunções, etc. Jung lançou seu olhar aos pensamentos filosóficos de Heráclito,Schopenhauer e Hegel, principalmente, ao abordar a dinâmica; e, mais detidamente emPlatão, Kant e Nietzsche, quando se volta para a estruturação da psique.

Esta abordagem dará enfoque ao pensamento de Heráclito e suascontribuições à psicologia junguiana. Para tanto, é preciso considerar que Heráclito, queviveu no séc. VI a.C., sustentava que a “realidade está em continuo devir”. MONDIN(1976, p. 305) comenta que:

Devir significa condição de mutação, de mudança. (...) Heráclito (...) [tem]uma concepção profundamente dinâmica do ser, (...) Mas é grave errocontrapor o devir ao ser, porque o devir não é outra coisa senão umamodalidade do ser, modalidade que o acompanha necessariamente quando o serse encontra, como todos os entes finitos e criados, em condição de não inteirezae a caminho de sua realização. Mas não é erro menos grave identificar o devircom o ser, porque se o ser é realmente mero devir, então o devir é louca ilusão,

aparência inconsistente, como afirmava Parmênides.

5 Dinâmica: “1. Respeitante ao movimento e às forças, ou ao organismo em atividade. (...)” (AURÉLIO,1999.), e “(...) 2 Diz-se de todo organismo vivo, em virtude de ser fonte da energia particular que constitui avida. (...)” (MICHAELIS, 1998.).6 Psique: “Por psiquê, entendo a totalidade dos processos psíquicos, tanto conscientes como inconscientes”.(Jung, CW 6, par. 752)7 Estrutura: “(...) 6. A disposição dos elementos ou partes de um todo; a forma como esses elementos ou partes se relacionam entre si, e que determina a natureza, as características ou a função ou funcionamento dotodo. (...)” e “(...) 8. Conceito teórico das ciências humanas e sociais do século XX (como a lingüística, a psicologia, a antropologia e os estudos literários), formulado diversamente segundo os distintos autores ecorrentes, mas cujo núcleo é a formalização da idéia de estrutura (6 e [...]) como um sistema de relações

abstratas que forma um todo coerente, que subjaz à variedade e variabilidade dos fenômenos empíricos, e étomado como atributo interno da realidade, constituindo, por isso, objeto privilegiado da análise. (...)”(AURÉLIO, 1999.).

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Se o devir pode ser entendido como sendo uma “modalidade do ser”, ouseja, uma forma de manifestação de um potencial (de uma energia), e não “o ser em si” (osujeito) capaz de propiciar condições à mudança e tendo por natureza uma concepção

 profundamente dinâmica faz-se crer que este fenômeno8 tem características psicológicas,

se isto ocorre, é possível estabelecer um paralelo com o pensamento de Jung quando este,abordando o conceito de energia psíquica, propõe que “Todos os fenômenos psicológicos podem ser considerados como manifestação de energia, (...). Chamo-a libido , no sentidooriginal do termo, (...)” (CW9 4, par. 567), de modo que esta energia passa a denotar “(...)um desejo ou impulso que não é freado por qualquer tipo de autoridade, moral, ou o quequer que seja”.(CW 5, par. 194). Portanto, Jung percebe esta energia como sendo uma“matriz e nutriz” das mudanças e transformações psíquicas que se voltam para a realização,tal como Heráclito. Assim sendo, a realidade passa a ser compreendida, por ambos os

 pensadores, como sendo o próprio processo de mudança.Para compreender melhor o universo do qual Heráclito se origina, é preciso

tomar por base que suas influências se devem ao pensamento grego do séc. VI a.C. Época

na qual se desenvolveu, notadamente em Mileto, a chamada “Escola Jônica” cujas principais doutrinas tinham por finalidade dar expressão filosófica ao, então chamado,“problema da existência de uma causa suprema de tudo”, cuja caracterização se davaatravés dos elementos naturais ou materiais: ar, água, fogo... Este aspecto estrutural do

 pensamento de Heráclito é encontrado no conceito estrutural da psique junguiana, quandoJung assevera que “O inconsciente coletivo contém toda herança espiritual da evolução dahumanidade, nascida novamente na estrutura cerebral de cada indivíduo”. (CW 8ii, par.342). Jung, assim como Heráclito, busca uma explicação causal para os fenômenos que não

 podem ser explicados por meio da experiência pessoal chegando a afirmar que quantomaior é a conscientização dos conteúdos do inconsciente, mais rico ele se revela.

Deste modo, surge uma consciência que não é mais presa ao egóico mundomesquinho, supersensitivo e personalista, mas que participa amplamente domundo maior dos interesses objetivos. Esta consciência ampliada não é maisaquele feixe de desejos pessoais melindrosos e egoísticos, de temores,esperanças e ambições que têm sempre de ser compensadas ou corrigidas porcontratendências inconscientes; pelo contrário, é uma função de relacionamentocom o mundo dos objetos, que leva o indivíduo a uma comunhão absoluta,compromissada e indissolúvel com o mundo em geral.” (CW 7ii, par. 275).

Prosseguindo na contextualização histórico-cultural, à época de Heráclito,destacaram-se pensadores como Tales – com o princípio de que todas as coisas deviam sua

 procedência à condensação ou rarefação, tendo por representação a água (símbolo da

 profundidade, do conhecimento, da proteção [assim como o útero]); Anaximandro quelança como o princípio primeiro o que chamou de algo indeterminado (á peiron) em que ocontínuo movimento determina na matéria, por intermédio de um contínuo movimento deseparação, os opostos; Anaxímenes que expressa esse princípio do contínuo movimentoatravés do elemento ar (que sustenta e intui). Neste contexto é que surge Heráclito com o

 princípio do devir, tendo no fogo (que purifica, ilumina e a tudo transforma) seu elemento

8 Fenômeno: “Para Kant, o fenômeno é o objeto do nosso conhecer, um objeto, que sendo síntese de umcontributo subjetivo (as formas e as categorias) e de um objetivo (os estímulos produzidos pelas coisas sobreos nossos sentidos) é nitidamente diferente das coisas, que em si mesmas permanecem incognoscíveis

(noumenon). (...)” (MONDIN, 1976, p. 307).9 CW: é o equivalente de Collected Works, nomenclaturação utilizada pela Editora Vozes, responsável pela publicação das obras completas de C. G. Jung em língua portuguesa. [N. do A.].

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representacional e acrescenta que a unificação dos múltiplos (ou opostos) seria possível a partir do “logos”.10 

Embora este Logos seja eternamente válido, ainda assim os homens sãoincapazes de compreendê-lo – não só antes de ouvi-lo, mas mesmo depois detê-lo ouvido (frag. 1).Deveríamos nos permitir ser guiados por aquilo que é comum a todos. Emborao Logos seja comum a todos, a maioria dos homens vive como se cada umtivesse uma inteligência privada (frag. 2).A natureza humana não tem nenhuma compreensão real; só a natureza divina atem. O homem não é racional; só o que o cerca é inteligente (frag. 78).O que é divino foge à percepção dos homens por causa da incredulidade deles(frag. 86).Apesar de intimamente ligado ao Logos os homens mantêm-se contra ele (frag.72).Como alguém pode se ocultar daquilo que nunca se estabelece? (frag. 16)(HERÁCLITO in OSHO, 1976, p. 171).

Em Jung, encontra-se também a preocupação com a dinâmica dos opostos.Para este, a colisão dos opostos ativa uma necessidade auto-reguladora da psique atravésde um processo de compensação que, em última análise, leva à função transcendente.Assevera Jung que “ D[a] colisão dos opostos, a psique inconsciente sempre cria umaterceira coisa de natureza irracional, que a mente consciente nem espera, nemcompreende. Apresenta-se sob forma que não é nem um ‘sim’ direito, nem um ‘não’”.(CW 9i, par. 285).

Quando Jung menciona o aspecto compensatório, se preocupa em afirmarque este processo natural tem por finalidade manter a psique em equilíbrio dinâmico,chegando a dizer que “(...) a compensação inconsciente não se opõe à consciência, sendo

antes, um fator de equilíbrio e de suplementação da orientação consciente”.(CW 6, par.774). Portanto, se este fator surge como um elemento de suplementação, ele permite à psique alcançar outras formas de percepção da realidade, o que é possibilitado, naconcepção junguiana, pelo o que o mesmo denomina de função transcendente, assimexplicada: “ As tendências do consciente e do inconsciente são os dois fatores que, juntos,compõem a função transcendente. É chamada ‘transcendente’ porque tornaorganicamente possível a transição de uma atitude para outra”. (CW 8ii, par. 145).

Heráclito propõe que para se lidar construtivamente com os opostos, faz-senecessário um mediador consciente ao qual se refere como sendo o Logos. Não é diferentea percepção junguiana, uma vez que o Logos junguiano refere-se ao princípio estrutural dalógica associada ao espírito. Afiança Jung que “ Não há consciência sem discriminação de

opostos. Este é o princípio paterno, o Logos, que luta eternamente por desembaraçar-seda calidez e da treva primais do ventre materno, ou seja, da inconsciência”. (CW 9i, par.178 Jung falava do Logos como espírito, não matéria, lhe atribuindo masculinidade; usava,

 para tanto, as palavras: discriminação, julgamento, insight . Partindo destes conceitos, é plausível inferir que para ambos os teóricos o “oposto” é relevante e necessário àelaboração da consciência, bem como, este projeto existencial só é possível mediante a

10 As citações de Heráclito que serão apresentadas neste capítulo foram extraídas da obra do autor Osho,1976 (maiores detalhes v. bibliografia). No entanto, toda a obra de Heráclito compõe-se de fragmentos numtotal de 126, encontrados na obra de Bornhein, s/d, pp. 35-43 (maiores detalhes v. bibliografia). Nesta últimaos fragmentos são numerados um a um e a transcrição [ou tradução] encontra-se, por vezes, ligeiramente

diferenciada ou acrescida, porém sem afetar o conteúdo da mensagem proposta. Assim sendo, será registradono texto o número do fragmento correspondente para que possa facilitar a pesquisa dos mesmos na obra deBornhein a título de enriquecimento.

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mediação de um elemento capaz de permitir discriminações qualitativas e sutis da psiquecomo o “ Logos”  e concordam que a apreensão desta nova realidade desenvolve uma

 percepção diferenciada que transcende o atual estágio psíquico e que pode ser vivenciado,mas não conceituado pela pura e simples cognição, uma vez que a compreensão, até certo

 ponto “conceitual”, só se dá através da vivência do “processo de transcendência”, pois aexperimentação da “transcendência” enquanto “processo” permite à consciênciadiscriminar opostos, experimentar variáveis e integrar impressões.

Voltando ao contexto histórico-cultural do qual emerge Heráclito, pode-sedizer que, não obstante, a religião grega já oferecia um arcabouço cultural ao “pensar” decaráter universalista, pois suas bases filosófico-religiosas se deram sobre as concepçõesdesenvolvidas por Homero e Hesíodo. Naquela época distinguiam-se duas religiões: a

 pública e a dos mistérios. A primeira ganha expressão com Homero que lhe atribuiu umcaráter: hierofânico – tudo o que ocorre é obra dos Deuses; antropomórfico – por ser osDeuses “(...) forças naturais em formas humanas idealizadas, aspectos do homemsublimados, (...)” (MONDIN, 1977, vol. 1, p. 12); e, naturalista, à medida que os Deuses

eram ampliações idealizadas do homem e, portanto, quantitativamente superiores, mas nãoqualitativamente, assim sendo, “(...) o homem mais divino é aquele que cultiva com omáximo empenho suas forças humanas, e o cumprimento do dever religioso consisteessencialmente nisto: que o homem faça, em honra da divindade, o que é conforme a sua

 própria natureza”. (ZELLER in MONDIN, loc. cit.); mais adiante poderá ser percebidoum paralelo entre este pensamento e o conceito de “individuação” junguiana. E ainda secaracterizava por não possuir livros sagrados nem dogmas fixos e imutáveis. Estaflexibilidade permitia o dinamismo do pensar filosoficamente.

 No mesmo rio nós pisamos e não pisamos. Não se pode pisar duas vezes nomesmo rio (frag. 91).

Tudo flui e nada permanece. Tudo cede e nada se fixa (frag. 59).As coisas frias tornam-se quentes e as quentes, frias. O úmido seca, o ressecadoumidece. (frag. 126).É pela doença que a saúde dá prazer, pelo mal que o bem apraz, pela fome, asaciedade; pela exaustão, o repouso (frag. 111).É a mesma e uma só coisa estar vivo ou morto, desperto ou adormecido, jovemou velho (frag. 88).Em cada caso, o primeiro aspecto torna-se o último, e o último, novamente o primeiro, por uma súbita e inesperada reversão. Eles se separam e depois seunem novamente (frag. 76).Tudo vem na estação certa (frag. 100) (HERÁCLITO in OSHO, 1976, p. 237).

Já a religião dos mistérios, se caracterizava por atribuir ao homem um

 princípio divino, demoníaco (daimônion); que este demônio transcendia à morte física; queo fim dos ciclos reencarnatórios, provocados pela não purificação do aspecto demoníaco,se dá pela prática contínua da purificação. Assim pode ser observado que a religião pública

 possui uma concepção unitária do existir, enquanto a dos mistérios defende uma concepçãodual. Contrariamente à religião pública, a dos mistérios como que impõe uma ascese.Homero se destaca por concentrar seus esforços para descobrir a motivação, a razão dosacontecimentos chegando a ser observado, por WERNER (in MONDIN,1977, vol. 1, p.14), que Homero não conhece “(...) a mera aceitação passiva de tradições nem a simplesnarração de fatos, mas somente o desenvolvimento interno e necessário da ação, de faseem fase, nexo indissolúvel entre causa e efeito (...)”, o que culmina com o fato de que arealidade passa a ser considerada por meio da sua totalidade; conceito tambémdesenvolvido na teoria junguiana como veremos mais adiante.

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Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, saciedade e desejo (frag. 67).A água do mar é muito pura e, ao mesmo tempo, muito suja: é bebível esaudável para os peixes, imbebível e mortal para os homens (frag. 61).A natureza do dia e da noite é uma só (frag. 57).A subida e a descida são uma e a mesma (frag. 60).

Mesmo os que estão adormecidos trabalham e colaboram com o que aconteceno universo (frag. 75). No círculo, o princípio e o fim são comuns (frag. 103) (HERÁCLITO inOSHO, 1976, p. 85).

Esta totalidade também é percebida por Hesíodo, que por meio de suaTeogonia, forneceu as bases para o pensamento cosmológico, uma vez que propõe que doCaos, que contém todas as coisas, foi gerado o universo. Porém cabe ressaltar que o

 pensamento em Hesíodo e Homero é mitológico, enquanto que o de Tales e Heráclito éexercido pela razão, pelo logos.

Jung também percebeu a totalidade e a conceituou a partir da conjunção dosopostos, tal qual Heráclito. O estado no qual consciente e inconsciente encontram-seharmônicos é a totalidade; em termos de individuação, cuja finalidade é a conexão com oself .11  Jung propõe uma coniunctio12  entre os contrários: desejo e busca da perfeição.Citando JUNG (CW 16ii, par. 355), “ A coniunctio é uma imagem a priori que ocupa umlugar de destaque na história do desenvolvimento mental do homem”.  A equivalênciadeste conceito, onde a dualidade conflitua, positivamente, com a unicidade, encontra-senos fragmentos, ricos em alegorias lingüísticas, escritas por Heráclito, nas percepçõesmístico-religiosas e público-religiosas contemporâneas ao teórico Heráclito e, a título demaior aprofundamentos, também podem ser encontrados nos conceitos alquímicos e sobnomenclaturações diversificadas como, p. ex.: unio mystica, coincidentia oppositorum,complexio oppositorum, unus mundus, etc.

Partindo deste contexto histórico-cultural, pode-se compreender melhorquais pensamentos e que momento filosófico serviu de substrato para que Heráclitodesenvolvesse suas idéias. Sua principal contribuição é a experiência do devir, pois “tudo évir-a-ser, tudo muda, tudo se transforma”. Segundo este pensamento, nada é permanente,

 pois o vir-a-ser não pode ser decomposto.

Em seus momentos despertos os homens são tão negligentes e descuidados comaquilo que os circunda como o são quando adormecidos (frag. 26).Tolos! Embora ouçam, são como surdos; a eles aplica-se o adágio: mesmo presentes estão sempre ausentes (frag. 34). Não se deve agir ou falar com os que dormem (frag. 73).Os despertos têm um mundo em comum; os adormecidos, cada um o seu

 próprio mundo privado (frag. 89).Tudo o que vemos quando desperto é morte, quando adormecidos são sonhos(frag. 21) (HERÁCLITO in OSHO, 1976, p. 35).

E é exatamente pelo fato de que o devir não pode ser decomposto, que ele setorna totalitário, único, porém devendo sua existência ao conflito, que na abordagem

11 Self: “O self não é somente o centro, mas também a circunferência total, que abarca tanto o conscientequanto o inconsciente; é o centro desta totalidade, assim como o ego é o centro da consciência”.(JUNG, CW12, par. 44).12  Coniunctio:  “A coniunctio  é uma imagem a priori  que ocupa um lugar de destaque na história dodesenvolvimento mental do homem” (JUNG, CW 16ii, par. 355); psicologicamente significa a união dos

opostos e o surgimento de novas possibilidades; este termo tem sua origem na alquimia onde tem porsignificado a “combinação química”; e, literalmente é entendido como “conjunção”. [N. do A.]

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 junguiana revela-se “(...) aparentemente insuportável, [mas que na verdade] é uma provada retidão da sua vida”., uma vez que “Uma vida sem contradição interior é uma vida

 pela metade ou uma vida no além, que é destinada somente aos anjos: mas Deus ama osseres humanos mais do que os anjos.” (JUNG, 2000, vol. 1, p. 375).

 No entanto, Heráclito entende que até mesmo o devir obedece a uma lei eque a causa do devir é homogenia a ele mesmo. Heráclito atribui ao fogo o elementorepresentativo do devir, uma vez que o fogo é fruto da combustão de outros elementos queao mesmo tempo em que deixam de existir dão existência, se transformam noutroelemento, o fogo. O fogo também é movimento: expansão e contração, rarefação econdensação. O pensador diz que o que regula os movimentos é o logos (razão universal)acarretando a auto-regulação.

Quando alguns visitantes inesperadamente encontraram Heráclito aquecendo-sediante do fogo, ele lhes disse: Os deuses estão aqui também.Eu mesmo os procurei (frag. 101).O tempo é uma criança movendo as peças de um jogo; o poder real é o da

criança (frag. 52).O fanatismo é o mal sagrado (frag. 46) (HERÁCLITO in OSHO, 1976, p. 127).

Ao se observar o pensar junguiano, se conclui que uma das maiorescontribuições de Jung é sua crença no fato de que todo conflito é regido por uma lei maiore que, portanto, tem uma finalidade intrínseca. Pois se for possível vivenciar os momentosde tensão, num nível consciente, ocorrerá como resultante deste processo à resolução doconflito, uma vez que, como já mencionado, o psiquismo é auto-regulador. Importante,ainda, é compreender que tais resoluções são de natureza irracional e imprevisível, porém éaltamente salutar produzindo uma sensação de equilíbrio e libertação capaz de permitir o“fluir da energia psíquica” (ação transcendente), isto gera, ao mesmo tempo, uma nova

atitude em relação a si mesmo e à situação externa, bem como, um novo movimento emdireção a novas fronteiras do conhecimento (ação dialética). E todo este processo só é

 possível se houver um ego suficientemente forte para suportar os períodos de tensão, papeleste desempenhado pelo Logos.

O mesmo pensamento é encontrado em Heráclito. MONDIN (1977, vol. 1, p. 26) afirma que o logos  referido por Heráclito diz respeito a uma realidade não “(...)transcendente nem uma inteligência fora do mundo, mas algo de imanente, uma leiintrínseca, existente nas coisas. Esta lei imanente nas coisas é, para Heráclito, o Deusúnico”.

 Não seria melhor se as coisas acontecessem aos homens exatamente como eles

querem (frag. 110).A menos que você espere o inesperado jamais encontrará a verdade, porque elaé difícil de descobrir e difícil de se alcançar (frag. 18).A natureza ama se esconder (frag. 123).O Senhor, cujo oráculo está em Delfos não fala nem se cala – mas dá sinais(frag. 93) (HERÁCLITO in OSHO, 1976, p. 219).

Heráclito começa a distinguir-se da Escola Jônica quando propõe que odevir “(...) é sempre resultado de uma luta entre pólos opostos, entre contrários: o devir éessencialmente unidade de polaridade.” (MONDIN, 1977, vol. 1, p. 26). Deste modo, arealidade passa a ser a contínua interação dos opostos. No entanto, esta concepção só pode

ser apreendida por meio do logos, pois para Heráclito o conhecimento só é possível ou pela

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sensação – que considera não digna de fé, ou pela razão – entendendo que a razão é judiciosa e divina.

A harmonia oculta é superior à aparência (frag. 54).A oposição traz concórdia. Da discórdia nasce a mais bela harmonia (frag. 8).É na mudança que as coisas encontram repouso.As pessoas não compreendem como o divergente consigo mesmo concorda(frag. 17).Há uma harmonia de tensões contrárias assim como a do arco e a da lira (frag.51).O nome do arco é vida, mas sua função é a morte (frag. 48) (HERÁCLITO inOSHO, 1976, p. 11).

MONDIN (1977, vol. 1, p. 27) diz que Heráclito propõe que o meio maiseficaz de tornar um homem sábio e feliz é à busca do “(...)  conhecimento de si mesmo,

 porque o conhecimento de si mesmo leva ao Logos, que age na alma”.e completa, “Ohomem aproxima-se do Logos percorrendo a via ascendente da verdade e não a viadescendente do prazer”. 

É próprio a todos os homens o conhecer a si mesmo e ser moderado (frag. 116).Ser moderado é a maior virtude (frag. 119).A sabedoria consiste em falar e agir segundo a verdade, observandocuidadosamente a natureza das coisas (frag. 112).Ouvindo a mim, embora não ouça o Logos, é sábio admitir que todas as coisassão uma só (frag. 50).A sabedoria é uma só – conhecer a inteligência pela qual todas as coisas sãodirigidas por todas as coisas (frag. 114).A sabedoria é una e única; relutando e todavia almejando ser chamada pelonome de Zeus (frag. 32) (HERÁCLITO in OSHO, 1976, p. 59).

Outro ponto relevante do pensamento do Heráclito é que a vida moral sóencontra expressão e sentido quando participa da vida da  polis, pois é preciso que osinteresses coletivos se sobreponham aos individuais. Ainda no tocante ao aspecto coletivo,MONDIN (1977, vol. 1, p. 27) faz referência ao fato de que no pensamento de Heráclito“’(...) as leis humanas são alimentadas pelo ser divino, que governa como quer e que bastaa tudo’. As leis humanas, enquanto exprimem a lei universal do Logos, têm um valortranscendente que merece o respeito de todos os homens”.

Este universo que é o mesmo para todos, não foi feito por nenhum deus ouhomem, mas sempre existiu, existe e existirá – um fogo eternamente vivo, queascende a si próprio por medidas regulares e se apaga por medidas regulares

(frag. 30).As fases do fogo são o desejo e a saciedade (frag. 65).O sol é novo a cada dia (frag. 6) (HERÁCLITO in OSHO, 1976, p. 195).

Para Jung, esse “viver social” é um “viver coletivo”, sendo assim, a culturaé o campo experimental e vivencial dos aspectos coletivos da psique de tal sorte que umaqualidade coletiva adere a elementos e conteúdos psíquicos. JUNG (CW 7ii, apêndice) dátanta importância ao aspecto coletivo que chega a afirmar que “Tanto a identificação como coletivo como a segregação voluntária dele são igualmente sinônimos de doença.”;noutra passagem JUNG (op. cit., par. 243-44) diz que “ A personalidade consciente é umseguimento mais ou menos arbitrário da psique coletiva. Consiste em uma soma de fatores

 psíquicos que são sentidos como se fossem pessoais”.

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MONDIN (1977, vol. 1, p. 27) resgata, em Heráclito, outro pensamentosignificativo que retrata que o homem é responsável por seu próprio destino a partir do fatode que é o homem que decide que caminho deve seguir.

Um bêbado precisa ser conduzido por um menino, a quem segue cambaleando,sem saber para onde vai, pois sua alma está úmida (frag. 117).As almas sentem prazer em se tornarem úmidas (frag. 77).Uma alma seca é mais sábia e melhor (frag. 118) (HERÁCLITO in OSHO,1976, p. 151).

JUNG (CW 16i, par. 400) se aproxima do pensamento acima, no que tangea escolha do destino, quando afirma que durante o processo de individuação “ A meta éimportante somente enquanto idéia; o essencial é o opus que conduz à meta: isto é a

 finalidade da vida”. Portanto, para que o processo de individuação cumpra sua finalidade énecessária uma atitude consciente e decisiva que mova o indivíduo, na direção de umarealização do self como uma realidade psíquica maior do que o ego, pois esta finalidade

maior consiste no fato de que o “(...) processo de individuação é a síntese do self.” (JUNG,CW 9i, par. 278), o que mais uma vez se traduz num processo dialético.

Por fim, cabe registrar que a crítica que se faz à doutrina de Heráclito sevolta para o fato de que ele não aprofunda o conhecimento sobre as raízes extrínsecas dodevir, aspecto que é, mais tarde, abordado por Aristóteles que, segundo MONDIN (1977,vol. 1, p. 28), assevera “(...) que todo devir supõe uma causa eficiente e uma causa final,diferentes do próprio devir.”, o que, por sua vez, coincide com a percepção de Jung de queesta causa eficiente e causa final encontram paralelo no papel desempenhado pelo self ,como causa eficiente; no nascimento da consciência, como causa final e no processo deindividuação, como elemento correspondente às forças do devir ; formando assim a tríadehegeliana do processo dialético: tese, antítese e síntese.

 Não façamos conjecturas arbitrárias sobre os grandes temas (frag. 47).Muito aprendizado não ensina compreensão (frag. 40).Os que buscam ouro cavam muita terra e pouco encontram (frag. 22).Você não poderia descobrir os limites da alma mesmo que para isso percorressetodas as estradas – tal é a profundidade de seu significado (frag. 45)(HERÁCLITO in OSHO, 1976, p. 105).

Deste modo, pode-se coligir que Heráclito instrumentaliza o pensamento junguiano no que concerne o elemento experimental de sua produção clínica.

SESSÃO II: CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO DE HEGEL

Georg Wilhelm Hegel, nascido em Stuttgart, na segunda metade do séc.XVIII (1770-1831), teve seus estudos fundamentados na teologia. Seus pensamentos oconduziram a um pensar filosófico que ficou conhecido como “Escola Idealista”. EstaEscola fundamenta-se na afirmação de que a “função cognoscente é absoluta quandorelacionada com qualquer outra coisa”, a ponto deste princípio não se situar comorepresentação, mas sim como criação de objetos. Portanto, considerava que “Pela atividade

do Espírito originam-se a natureza, a história e a humanidade. Na sua ação, o Espíritonão se propõe outro fim além daquele de realizar plenamente a si mesmo, adquirindo uma

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 perfeita autoconsciência.” (MONDIN, 1976, p. 202). Este “princípio” se aproxima dacompreensão de Heráclito, e é também compartilhada por Jung, como sendo o Logos, ouseja, uma razão universal capaz de governar o mundo. Esta conceituação permite entendero Logos como sendo portador de uma “razão essencial” que transcendendo acaba por

encontrar expressão no mundo material, humano. Este arcabouço essencial se expressatanto individualmente em cada ser como lhe confere uma conexão com o processo“cognitivo original”, transpessoal.

Vale ressaltar, para objeto de pesquisas mais profundas, que este tipo de pensamento começou a ser desenvolvido por Kant, uma vez que este afirmava a existênciade um mundo objetivo, da chamada coisa em si, deve sua existência a algo que existe forada conhecida experiência. Hegel, entre outros idealistas, voltou seu interesse para o fato deque deveria se aprofundar no conceito kantiano do Eu, entendendo-o como sendo umaatividade capaz de ordenar e unir as experiências internas e externas. JUNG (CW 7i, par.121) reconhece esse pensamento, no entanto, acredita que esta “atividade” é exercida pela

 função transcendente através da conjunção dos opostos, da capacidade que esta função tem

de representar um vínculo entre contribuições reais e imaginárias, racionais e irracionais,entre vivências conscientes e inconscientes, chegando mesmo a registrar que esta“atividade” consistiria num “(...) processo natural, [n] uma manifestação da energia que seorigina da tensão dos opostos e consiste em uma série de ocorrências, de fantasias quesurgem espontaneamente em sonhos e visões”. Porém o  Lócus  desta atividade não seencontra, para Jung, no Ego (EU), uma vez que este representa, na psicologia junguiana, ocentro da consciência que é limitado e incompleto quando em comparação com atotalidade da personalidade, portanto, a pesar de estar envolvido com a identidade pessoal,a manutenção da personalidade, com a mediação entre consciente e inconsciente, e mesmoas relações tempo/espaço, encontra-se submetida a uma instância ainda mais superior, oSelf . Partindo deste princípio, o Eu hegeliano ganha uma dimensão criativa capaz deconduzir a autoconsciência de tal modo que, como afirma MONDIN (1976, p. 203), “ Anatureza, a história, a humanidade não é mais do que momentos decisivos damanifestação do Absoluto”. 

Continuando a acompanhar a linha filosófica de Hegel, fica claro que paraeste a realidade é “idéia”, onde o que é real é, simultaneamente, racional e o inversotambém é verdadeiro. É a partir deste pensamento que Hegel acaba por perceber que paracompreender a realidade em contínuo processo de transformação (“o devir”, de Heráclito)faz-se necessário um processo tão dinâmico quanto à realidade, ao qual nomeia de “lógicaespeculativa ou dialética”. Esta lógica é marcada por três momentos distintos e de igualimportância: a “tese” que se refere ao “momento em si”; a “antítese” que se volta para o

“extra si”; e, a “síntese” que se refere ao momento de junção (coniunctio, de Jung) que sesobrepondo aos momentos anteriores cria uma nova dimensão à percepção. Este sistematernário é filosoficamente conhecido como sistema hegeliano, cuja formação se deve a (1)“lógica” que se preocupa com o estuda da idéia em si donde segue uma construçãoteorética lógica “ Justamente porque destituído de determinações, o ser reclama seuoposto, o não-ser, o nada, confundindo-se com ele. Da união do ser com o não-ser surge odevir, e no devir aquilo que não é começa a ser ou vice-versa”. (MONDIN, 1977, vol. 3,

 p. 42); a (2) “filosofia da natureza”,13 cujo objeto é a alienação da idéia de si mesmo ou daidéia fora de si (na natureza), pois a “(...) ‘exterioridade’ constitui o modo de ser próprioda natureza no qual cada coisa é externa a outra, num aparente isolamento”. (loc. cit.); e,

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  A Filosofia da natureza  dividi-se ainda em três partes: mecânica – a idéia alienada percebida pelocontexto espaço-tempo; física - percebe a idéia alienada nas formas individuais; e, biológica – a idéiaalienada é percebida por meio da geração e da morte. [N. do A.]

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a (3) “filosofia do espírito”14  onde, segundo MONDIN (1976, p. 224), “(...) a idéia éobtida plenamente, voltando a si pela alienação15  da natureza”. MONDIN (loc. cit.)afirma ainda que Hegel considera o desenvolvimento espiritual de forma dialética onde atríade de movimentos também é evidenciada como “(...) espírito subjetivo (ou individual),

objetivo (ou social) e absoluto (que opera nas obras artísticas, religiosas e filosóficas)”. Éimportante salientar que este último, só é expresso, ou seja, só toma consciência de simesmo, através daquelas três expressões culturais. Ao se analisar o pensamento junguiano,é possível perceber a força desta concepção trina ou ternária com fim dialético na sua

 proposição teórica.O conceito junguiano de inconsciente pessoal  guarda relação com o

“espírito subjetivo”, na medica que contém as experiências pessoais que são apreendidas por meio de uma vivência interior, e, lidar com estes conteúdos envolve um relacionar-secom os instintos, percebidos nos aspectos sombrios da natureza humana, e submetidos aoconfronto com uma força adaptativa exercida pelo inconsciente coletivo.  O “espíritoobjetivo” de Hegel encontra paralelismo no inconsciente coletivo de Jung, pois é este que

guarda relação com as conexões não-pessoais, o que permite a análise discriminativa daexperiência. No entanto, os conteúdos dos dois inconscientes exigem o envolvimento dooutro para que seja possível o desenvolvimento de uma nova percepção que se manifestano real em forma de cultura. Tem-se aí a tríade dialética, porque a cultura é percebida porJung como sendo um segmento, algo diferenciado e mais autoconsciente que tanto adquiriuampliação como guarda em si o sentido de continuidade e propósito, o que faz da chamadacultura um processo de âmbito coletivo uma vez que se expressa por meio das artes, dareligiosidade, da mitologia, etc. O que lhe confere uma natureza absoluta.

A intuição da alienação é um determinante do pensamento de Hegel.Estudiosos comentam que esta forma de pensar tem sua origem na “(...) narrativa bíblicado afastamento (alienação) do homem em relação a Deus (...)” (MONDIN, 1977, vol. 3, p.34); deste modo, à “alienação” se investe de característica dialética, uma vez que “ (...)

 jamais se estabelece entre alienante e alienado uma situação de definitiva pacificação”.(loc. cit). Quando Hegel escreve em suas primeiras obras sobre o dogma da trindade já sedescortina os primeiros passos em direção a um pensar dialético. Citando Mondin (loc. cit),Hegel assim aborda a trindade:

(...) o Pai significa a totalidade divina ou, em termos humanos, a vida dacriança em união inconsciente, imperfeita ou não ‘desenvolvida’, com o todo; oFilho significa o homem comum, o homem que se desenvolve num estado deseparação ou de exílio no seu eu finito, no seio do mundo das determinações; oEspírito Santo significa a condição do homem que superou o estado dealienação e efetuou um retorno consciente e completo a totalidade divina, daqual saíra.

A “alienação” surge então como um princípio de integração entre o sagradoe o profano, pois se ele num dado momento cinde a relação entre os pólos opostos, produzsimultaneamente a necessidade de reaproximação dos mesmos para a garantia do equilíbriodinâmico, o que se traduz num processo dialético. Em JUNG (CW 9ii, par. 352) a

14 A Filosofia do espírito também possui uma divisão trina que tem por base o desenvolvimento do espírito:subjetivo – que atua nos indivíduos; objetivo – que atua nos vários povos; e, absoluto – atua na arte de formaintuitiva, na religião de forma simbólica ou mística e na filosofia de forma conceitual e reflexiva. [N. do A.]O espírito “(...) representa a idéia real tornada consciente de si mesma: idealidade realizada não mais fora de

si, como na natureza, mais em si mesma”.(MONDIN, 1977, p. 42).15 Alienação: “Intuição-mãe de todo o sistema hegeliano, a qual consiste no afastar-se do real em relação aoideal, do particular em relação ao universal, do homem em relação a Deus”.(MONDIN, 1977, p. 281).

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circuambulação é citada como o princípio integrativo, pois ela determina uma área sagradaque se dispõe ao redor de um ponto central, onde este ponto é a expressão do ego nointerior da maior dimensão do ser, o self. Alquimicamente, Jung revela quecircumambulatio  era uma palavra utilizada para expressar um centro ou lugar de

transformação criativa. Esta transformação criativa se dá por intermédio de umacompensação. Jung assevera que a função compensatória contém uma natureza auto-reguladora que conduz ao equilíbrio dinâmico da psique a partir do desenvolvimentogradativo da consciência por meio de um processo analítico, citando JUNG (CW 6, par.775): “O objetivo da terapia analítica, portanto, é uma compreensão de conteúdosinconscientes, a fim de que a compensação possa ser restabelecida”.

Hegel defende a libertação do homem da idéia da lei e do dever, dasubmissão à razão universal, onde o particular se sujeita ao universal, onde a sensibilidadese encontra sobre o julgo da razão, Hegel acredita na espontaneidade das ações, pois ohomem livre é aquele que se torna um com o Todo, que se torna um “universal concreto”.Tais pensamentos chocam-se frontalmente com as idéias de outro idealista, Kant. Porém,

mantém proximidade com as idéias de Jung quando este propõe que para se discernir o“significado”, o sentido, é preciso um discernimento envolvendo o ego e o arbítrio pessoal,o que reporta a espontaneidade cujo fim se volta à construção de uma cosmovisão que semantém descordante de uma explicação causal fazendo com que a relevância se volte parao aspecto relacional entre as “coisas”, e não sobre as próprias coisas, além das relações quedevem ser percebidas entre as próprias relações. Esta construção teórica se volta para oaspecto conceitual de unus mundus proposto por Jung.

Ao defender a idéia de que “(...) não existe desacordo entre a atividade pratica [ética]  e teorética, porque a razão exerce simultaneamente as funções volitiva ecognitiva, e que não existe ruptura insuperável entre idealidade e atualidade porque tudoque é real é também ideal”. (MONDIN, 1977, vol. 3, p. 36), Hegel confronta-se com outroidealista, Fichte; mas, se reencontra no conceito de totalidade de Jung que como tal tanto éum potencial quanto uma capacidade. Isto se dá porque ao considerar a totalidade comofinalidade ou propósito da vida, Jung colige que a apreensão dos conteúdos imaginários ouideários quando vivenciados em sua plenitude (seja de forma concreta ou simbólica),adquirem uma natureza real validada pela experiência transcendente.

Schelling, também idealista, sofre críticas de Hegel, pois este acreditava queo Absoluto, a síntese é indiferenciada tanto do sujeito quanto do objeto, portanto oAbsoluto para ser real deve estar atrelado a uma concepção concreta, o que se dá através demanifestações culturais ao longo do desenvolvimento humano; enquanto que para aquele afonte única de tudo era somente o espírito, o abstrato. O opus no entender de Hegel pode

ser percebido através da introdução que se encontra na sua obra Fenomenologia doespírito: “ A verdadeira figura na qual a verdade existe só pode ser o seu sistema científico.Colaborar para que a filosofia se aproxime da forma da ciência – da meta que, uma vezatingida, esteja em condições de renunciar ao nome de amor ao saber para ser verdadeirosaber – eis o que me propus”.

A fim de alcançar este objetivo, faz-se necessário um conhecimento amploque permita compreender a natureza do espírito desde suas origens até o seu atual estágiode desenvolvimento. Poeticamente HEGEL (in MONDIN, 1977, vol. 3, p. 36) se refere aesta necessidade dizendo que “O início do novo espírito é produto de um vasto transtornode múltiplas formas de civilização, o prêmio de uma caminhada muito difícil e de uma

 fadiga não menos grave. Este começo é o todo que, do seu progredir e do seu estender-se,

tornou-se a si mesmo; (...)”. Afirma MONDIN (op. cit., p. 37) que a obra Fenomenologia tem por finalidade “(...) conduzir o indivíduo do estado de ignorância ao de saber, isto é, à

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compreensão científica e completa do espírito, não por meio do estudo de um complexomais ou menos vasto de eventos, de matérias ou de doutrinas, mas percorrendo de novo osvários graus de consciência de si que o espírito adquire no seu desenvolvimentohistórico”. Esta abordagem é preconizada por Jung a partir da definição que propõe a

consciência que, para ele, é uma pré-condição a existência da humanidade. JUNG (CW 6, par. 781) assim a define: “Por consciência entendo a relação de conteúdos psíquicos como ego, desde que essa relação seja percebida pelo ego. Relações com o ego não percebidascomo tais são inconscientes. A consciência é a função da atividade que mantém a relaçãode conteúdos psíquicos com o ego.”, portando, o elemento que permitirá ao indivíduotransitar de um estado de ignorância para um estado de saber é a consciência, uma vez queesta é o resultado de um processo psíquico que se contrapõe a um processo de pensamento.Este fato era tão relevante para Jung que este chega a cogitar que a consciência traz em sielementos como a intuição e a “apercepção”,16 de modo que a reflexão acaba por adquirirum papel relevante para a compreensão deste conceito.

Portanto, o processo de conscientização requer uma compreensão, aceitação

e comunhão com as experiências psíquicas, donde pode-se inferir que diferenciação “(...) éa essência, o sine qua non da consciência (...)” (JUNG, CW 7ii, par. 339).

O que se depreende do pensamento hegeliano é que este procurou construirum sistema filosófico rigorosamente científico de forma que a história universal e oEspírito Absoluto pudessem ser pesquisadas e compreendidas dentro de um processodinâmico. Hegel propôs dois princípios: o de “identidade do ideal e do real” ,  segundo oqual “tudo que é racional é real e tudo que é real é racional”, assim sendo os opostos sãocomplementares; e, o da “contradição”, segundo o qual não existe nada que seja idêntico asi mesmo, mas que tudo está sujeito à dialética da afirmação e da negação. Princípios estesque são plenamente identificáveis em todo o decorrer do pensamento junguiano, atémesmo pela preocupação que este manteve com a construção de uma teoria fundamentadarigorosamente em princípios experimentais de forma que tanto a historicidade quanto àuniversalidade também pudessem estar à disposição de contínuas pesquisas e maiorcompreensão.

Outro conceito hegeliano significativo diz respeito ao “absoluto”, porque eleé a realidade suprema de onde se origina toda realidade, se assim é, o absoluto tem umanatureza universalista que em virtude do princípio da contradição, consiste num contínuodevir (de Heráclito). Isto é expresso por HEGEL (in MONDIN, 1977, vol. 3, p. 38). aoafirmar que “O seu ser consiste no produzir-se, no fazer aquilo que é (...), o seu ser éatualidade, não existência em repouso. (...) O seu ser consiste em um absoluto devir, commomentos distintos, com mudanças que fazem com que ele assuma ora uma determinação,

ora outra”. Portanto o devir é infinito, na medida em que está sempre em busca de simesmo; e, é finito, a cada etapa da construção de uma nova percepção da consciência que põe fim ao antigo ao mesmo tempo em que abre caminho a uma nova necessidade decompreensão. Citando HEGEL (in MONDIN, loc. cit.):

Tudo o que desde a eternidade acontece no céu e na terra, a vida de deus e tudoo que sucede no tempo têm em vista somente que o espírito conheça a simesmo, faça-se objeto, encontre-se, torne-se por si mesmo, recolha-se em simesmo: ele se desdobrou e se alienou, mas somente para poder encontrar a simesmo (...); somente assim o espírito alcança a sua liberdade: já que livre ésomente quem não se refere a outro, nem depende de outro.

16  Apercepção:  reconhecimento do estímulo á nível cortical, tomando como base às representações jáarquivadas. (BOECHAT, s/d)

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O que está anteriormente exposto encontra equivalência na teoria junguianaao se analisar o conceito de self  proposto como sendo uma imagem arquetípica do

 potencial mais pleno do homem, bem como da unidade da personalidade como um todo,surge como um princípio unificador ocupando uma posição central na vida psíquica, ora

desempenha uma função originadora e ora realizadora da mesma, o que permite coligir quea mesma ora dá nascimento e ora, realização a si mesma, construindo-se eexperimentando-se, portanto, num dado momento chega a ser impossível a separação de talconceito da imagem do criador, pois afirma JUNG (CW 12, par. 44) que “O self não ésomente o centro, mas também a circunferência total que abrange tanto o consciente como inconsciente; é o centro dessa totalidade, como o ego é o centro da mente consciente”.Porém, como o self reivindica sua integração pelo ego e este não é capaz de conter toda asua plenitude, esta relação acaba por se dar no âmbito de um “processo incessante”,

 portanto, dialético. Este “processo incessante” encontra-se respaldado em Hegel no queeste nomeou de “princípio da mediação”, que propõe que o absoluto não se manifestaimediatamente, mas sim, mediatamente através de realizações parciais e progressivas, pois

só assim é possível conceituar e autoconscientizar-se a respeito do Absoluto, o que recai noaspecto “realizador” do self; enquanto que o aspecto “originador” se fundamenta no“princípio da relação” de HEGEL (in MONDIN, 1977, vol. 3, p. 39), que consiste numaconseqüência do princípio da contradição, pois afirma que “(...) se uma coisa não pode

 jamais ser idêntica a si mesma, mas é simultaneamente também o seu oposto, existe,logicamente, uma relação entre os dois momentos, positivo e negativo”.

Hegel, então, dá início a um novo paradigma, pois até então, os pensadoresafirmavam a existência de relações substanciais e acidentais, portanto, internas e externas;no entanto, Hegel com a afirmação acima propõe somente uma relação interna, ou seja, dizele que todas as coisas devem sua existência a uma única essência que pode assumirvariadas formas, mas sempre sendo única, assim como o self   de Jung. Portanto, esta“essência comum” é capaz de unir os “momentos” dialéticos se valendo do princípio deidentidade do real e do ideal. O resultado deste novo paradigma é a concepção sistêmica douniverso tanto quanto do conhecimento. Exemplificando, diz HEGEL (in MONDIN, loc.cit.), “Tudo na história tem significado somente pela relação com algum fato geral e pelasua ligação com ele: descobrir este fato chama-se compreender o seu significado.”, o quecompreende o objetivo da análise junguiana.

O princípio do “historicismo”, no qual toda a realidade se resolve nahistória, faz compreender que o absoluto e a história são a mesma coisa, uma vez que é nocontexto histórico que o absoluto se manifesta a si mesmo fundamentado na lei do devirque está sempre a proporcionar ao Absoluto a contínua superação de si mesmo em busca

de uma perfeição cada vez mais apurada. Afirma MONDIN (1977, vol. 3, p. 40) que “Odesenvolvimento é livre enquanto espontâneo, necessário enquanto inevitável; além dissoele é finalista porque [é] orientado para a autoconsciência do absoluto”.

Ao abordar a “filosofia da história”, Hegel deixa um outro importantelegado ao conhecimento humano. A história contém as manifestações do espírito objetivo,ou seja, a síntese do pensar hegeliano, uma vez que a concebe sob dois princípios: o da“manifestação progressiva do absoluto” – os eventos históricos encerram uma expressãodo absoluto; e, o do “caráter racional da história” – onde tudo tem uma razão de ser, uma

 justificativa.Portanto, o segundo princípio conduz ao pensamento de que os

acontecimentos históricos só ocorreram porque a razão absoluta carecia de tomar

consciência de si mesma, o que se dá através de um plano criteriosamente engendrado pela própria natureza absoluta para que esta possa vivenciar a si mesma. Assim sendo, o que é

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nomeado como “o mal” e “o irracional” nada mais é que um contraponto, uma antítese, aoque é conhecido como “bom” e “racional” para que o absoluto compreenda a si mesmo,

 por meio de um processo de síntese, capaz de favorecer a apreensão, por parte do absoluto,de suas vastas formas de manifestação. O paralelo proposto por Hegel evidencia que o

homem ao perceber o confronto que se dá em seu interior entre a vontade e a ação, acaba por dar-se conta do surgimento de um novo estado de consciência, o que corresponde ao processo dialético experimentado pelo absoluto na busca do seu contínuoautoconhecimento. HEGEL (in  MONDIN, 1977, vol. 3, p. 45) também observa que omesmo ocorre em variados níveis sociais com as “(...) sucessivas hegemonia dos povos queencarnaram nas várias épocas o espírito absoluto (...)”, p. ex., o Estado vivencia três fasesde desenvolvimento: a da organização – que surge pela paixão de indivíduos, o apogeu –onde os valores individuais são substituídos por uma razão coletiva e o declínio – cujodesenvolvimento, por si mesmo, clama por uma nova ordem social dando início a um novociclo. JUNG (CW 11iii, par. 391) percebeu este pensamento ao desenvolver a chamada“teleologia” onde percebe que as ações se voltam mais para um fim ou propósito do que

 para uma causalidade, a ponto de afirmar que “(...) não sou eu quem cria a mim mesmo, esim eu aconteço para mim mesmo (...)”, o que possibilita inferir que existe um fator

 precedente aos acontecimentos que possui pleno conhecimento da finalidade do existir,este seria o self .

Portanto, não é possível escapar ou ludibriar o absoluto (o destino), uma vezque é ele que contém, direciona, mobiliza e sensibiliza o “ser” em prol do seuautoconhecimento e se utiliza para tal fim do processo dialético. Portanto, conclui-se que:

A psicologia de um indivíduo jamais poderá ser exaustivamente explicadaapenas a partir de si mesmo (...) Nenhum fato psicológico jamais poderá serexplicado em termos de causalidades exclusivamente; como um fenômeno

vivo, está sempre em estreita e indissolúvel ligação com a continuidade do processo vital, de modo que não é somente algo evoluído, mas tambémcontinuamente evolutivo e criativo (JUNG, CW 6, par. 805). 

O que, em última análise, se configura num estado compensatório (síntese)que nasce do confronto entre o processo criativo (tese) com o processo evolutivo (antítese).Deste modo, pode-se depreender que Hegel instrumentaliza o pensamento junguiano noque concerne o elemento racionalista de sua produção intelectual. 

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CAPÍTULO II:

TIPOLOGIA JUNGUIANA: FUNÇÕES PSICOLÓGICAS

O modelo tipológico junguiano distingue quatro funções psíquicas: pensamento, sentimento, sensação e intuição. Esta tentativa de classificar o homem data demuito tempo ao longo da história da humanidade. Há quase dois mil anos, Galeno, ummédico grego, propôs uma classificação fundamentada no temperamento: sangüíneo,

fleumático, melancólico e colérico. Com o passar dos tempos novas classificações foram propostas o que aproximou mais as tentativas tipológicas de uma correlação com a psicologia.

O sistema tipológico junguiano, no qual atitudes individuais e padrões decomportamento são categorizados, surgiu de uma revisão histórica pormenorizada ondeJung estudou criteriosamente as tipologias propostas pela literatura, mitologia, estética,filosofia e psicopatologia. Este modelo, diferentemente dos modelos que sefundamentaram em análises de comportamento temperamental ou fisiológico, estabeleceucomo parâmetro o movimento da energia psíquica e o modo como está se orienta emrelação ao mundo. JUNG (CW 6, par. 1057) justifica a necessidade de se criar umatipologia comentando que:

Em primeiro lugar e acima de tudo, é um instrumento crítico para o pesquisadorque precisa de pontos de vista e parâmetros definidos, se quiser reduzir acaótica profusão de experiências individuais a algum tipo de ordem... Emsegundo lugar, a tipologia é de grande ajuda na compreensão da ampla variaçãoque ocorre entre os indivíduos e fornecem, também, uma pista as diferençasfundamentais que ocorre entre as teorias psicológicas em voga hoje em dia. Porúltimo, mas não menos importante, é um instrumento essencial para adeterminação da ‘equação pessoal’ do psicólogo prático que, armado com oconhecimento exato de suas funções diferenciadas e inferiores, pode evitarmuitos erros graves no trato com seus pacientes

 Nesta linha psicológica Jung conceitua a “função” como sendo uma

atividade psíquica, ou manifestação da libido, que é capaz de permanecer a mesma emcondições variáveis. Ao citar as quatro funções psicológicas, JUNG (op. cit., par. 1029) ascomenta da seguinte forma: “ A sensação estabelece aquilo que está presente na realidade,o pensamento permiti-nos reconhecer seu significado; o sentimento indica seu valor e aintuição aponta possibilidades como de onde vem e para onde vai, numa dada situação.”

JUNG (op. cit., par. 964) considerava que cada uma das funções não ésuficiente para ordenar a experiência do eu ou do mundo, portanto para uma compreensãomais próxima da realidade ele propõe que:

Sob o conceito de sensação pretendo abranger todas as percepções através dosórgãos sensoriais; o pensamento é a função do conhecimento intelectual e da

formação lógica de conclusões; por sentimento entendo uma função que avalia ascoisas subjetivamente e por intuição entendo a percepção por vias inconscientes ou a percepção de conteúdos inconscientes.

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Jung chama a atenção para o fato de que estas funções não têm um caráterexcludente, ou seja, o fato de uma função ser mais conscientemente desenvolvida do queoutra, não implica no detrimento ou na ausência das demais, até porque se estaunilateralidade viesse a acorrer estaria assim desencadeado um processo neurotizante.

Esclarece JUNG (op. cit., par. 569):Quanto mais [um homem] se identifica com uma função, tanto mais a investecom libido e tanto mais retira libido das outras funções. Elas podem ser privadas de libido mesmo por um longo período de tempo, mas, no final,acabam por reagir. Sendo drenadas de libido, mergulham abaixo do limiar daconsciência, perdem sua conexão associativa com ela e, finalmente, caem noinconsciente. Tal evolução é regressiva, e constitui uma regressão ao nívelinfantil e, finalmente, ao arcaico17... [que] provoca a dissociação da personalidade.

Jung, aprofundando sua análise, desenvolve o critério de que as funções podem ser divididas em duas classes distintas considerando como parâmetro à qualidade dafunção básica, deste modo tem-se duas classes: a racional e a irracional. E continuadizendo que se for considerada a perspectiva do movimento da libido, tem-se duas atitudesda personalidade: a extrovertida e a introvertida. Estas atitudes são modos psicológicos deadaptação onde frente a uma atitude introvertida o movimento da energia se dá em direçãoao mundo interior ou subjetivo; e, a mesma energia pode se voltar para o mundo exteriorou objetal, quando a atitude é extrovertida. JUNG (CW 7i, par. 62) assim relata suacompreensão sobre este aspecto de sua teoria:

[A introversão] caracteriza-se, normalmente, por uma natureza hesitante,reflexiva e que se retrai, mantendo-se fechada em si mesma, recuando dosobjetos, sempre um pouco na defensiva, preferindo esconder-se atrás de um

desconfiado escrutínio. [A extroversão] caracteriza-se, normalmente, por umanatureza descontraída, cândida e apaziguadora adaptando-se facilmente a umadada situação, rapidamente criando vínculos e que, pondo de lado qualquereventual receio, freqüentemente se aventura com despreocupada confiança emsituações desconhecidas. No primeiro caso é o sujeito que importa; no segundo,o objeto que predomina.

Ao descrever as classes, Jung definiu como pertencente à classe racional asfunções que facultam a discriminação lógica, neste caso, incluem-se as funções:

 pensamento e sentimento. Esta última é aqui arrolada pelo fato de ser o sentimento ummeio de avaliar aquilo de que gostamos e desgostamos, o que resulta numa qualidadediscriminativa. Assim sendo, diz Jung que ambos possuem uma base linear e reflexiva que

se estrutura como um todo conceitual a partir de uma característica judicativa; o que leva aconclusão de que a classe racional é uma classe de julgamento. Já a sensação e a intuição,classificadas como irracionais, não se valem da lógica, mais sim, da percepção do meiotanto externo como interno respectivamente; o que leva a conclusão de que esta classe éentendida como perceptiva. JUNG (CW 6, par. 641) exemplifica estas conclusões citandoque:

17  Arcaico:  “(...) liga-se primariamente, às fantasias do inconsciente, isto é, aos produtos da atividade dafantasia inconsciente, que chegam à consciência. Uma imagem tem qualidades arcaicas quando possui

 paralelos mitológicos inconfundíveis. Arcaicas são também as associações por analogia feitas pela fantasiainconsciente, bem como o seu simbolismo”. (JUNG, CW 6, par. 764), portanto, Jung os define como sendo pensamentos, fantasias e sentimentos ainda não diferenciados.

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(...) o observador que julga [tipo pensamento ou sentimento] terá uma tendênciamaior a apreender o caráter consciente, enquanto o observador perceptivo [tiposensação ou intuição] será mais influenciado pelo caráter inconsciente, uma vezque o julgamento preocupa-se, principalmente com a motivação consciente do processo psíquico, ao passo que a percepção registra o próprio processo.

 Na prática clínica, para que se reconheçam as características inerentes àsatitudes introvertidas e extrovertidas é louvável considerar a movimentação, ou seja, adireção na qual a energia flui espontaneamente. O mesmo ocorre em relação às funções, desorte que, deve-se observar qual função esta sobre o controle da consciência, pois istoorienta a definição de uma função como sendo superior; caso contrário, evidencia-se achamada função inferior com base no caráter acidental ou aleatório do fluxo da energia

 psíquica. Também é relevante admitir que o ideal seria ter acesso consciente às quatrofunções, no entanto, isto não ocorre, pois normalmente uma função é, como diz Jung, maisdiferenciada do que as outras. Por assim ser, surge uma disposição “geográfica”conceituada, por Jung, como função superior ou primária e, inferior ou quarta função. Esta

última representa o contraposto da primeira, o que dá surgimento a uma elaboraçãoconceitual dialética das funções psíquicas. Vale ressaltar que na teoria junguiana oselementos contrapostos não possuem um juízo de valor, portanto não se dispõemquantitativamente, mas sim, qualitativamente. Assim sendo, superior não tem umsignificado maior, pois representa na verdade uma disposição psíquica preferencialmenteadotada pela psique num dado momento do constante processo evolutivo a qual estásubmetido à natureza humana, o que é explicado pelo fato de serem os conteúdos da psiquedinâmicos permitindo uma contínua transformação e adaptação.

Ao abordar a conceituação da chamada função primária ou superior, Jungfaz menção ao que chama de “diferenciação”.18 Este conceito é relevante para que se possaentender o papel da diferenciação no tocante a determinação de que uma função sejasuperior ou inferior. Para que haja uma “diferenciação” é necessário que as partesconstituintes da psique se separem de um todo para que a consciência tenha acesso àsfunções psicológicas. Conforme declara JUNG (op. cit., par. 786): “Enquanto uma funçãoestiver fundida com uma ou mais funções (...) a tal ponto que seja incapaz de operar por simesma, ela está em uma condição arcaica, isto é, não diferenciada (...)”. Isto significadizer que estando uma função num estado arcaico ela existe numa dimensão continuamentedialética, o que resulta num contínuo paradoxo, uma vez que uma dada posição funcional

 produz, per si, seu contraponto.A função primária ou superior é abordada por Jung como sendo aquela cuja

diferenciação encontra-se mais favorecida; segundo JUNG (op. cit., par. 812) o homem,

devido às exigências sociais, acaba por desenvolver a função “com a qual ele está maisbem equipado pela natureza, ou que lhe irá assegurar o maior sucesso social”. Portanto, afunção superior (tanto introvertida como extrovertida) é sempre mais desenvolvida, umavez que “ A função superior é sempre uma expressão da personalidade consciente, de seus

 fins, vontade e desempenho geral (...)” (op. cit., par. 640) quando comparada às outras queacabam por possuir características infantis ou primitivas.

Ao abordar a função inferior ou quarta função, JUNG (CW 9i, par. 222)chama a atenção para o fato desta ser “(...) praticamente idêntica ao lado sombrio da

 personalidade humana.”, esta função é o contraponto da função superior e, por assim ser,comporta-se como um complexo autônomo caracterizado pelo aspecto afetivo e deresistência ao processo de integração. Esta função permite uma construção dialética ao se

18 Diferenciação: “A diferenciação consiste na separação de uma função das demais funções, e na separaçãode suas partes individuais das outras partes. (...)” (JUNG, CW 6, par. 786).

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confrontar com a função superior, conduzindo ao enfrentamento de vivências psíquicascom vista ao desenvolvimento do próprio indivíduo o que é conceituado por Jung como“processo de individuação”.19 

A função inferior é sempre da mesma natureza (racional ou irracional) da

função primária, portanto ante uma função primária, racional, do tipo pensamento, p. ex.,tem-se como função inferior à função sentimento (também racional); isto se dá porque: “ Aessência da função inferior é a autonomia: ela é independente, ataca, fascina e de talmodo nos enreda que não somos mais donos de nós mesmos e não conseguimos maisdistinguir, claramente, entre nós mesmos e os outros”. (op. cit., par. 85), e porque estafunção está sempre sofrendo uma pressão, até certo ponto, coercitiva, inibidora por parteda função primária. Esta “ação” exercida pela função primária pode assumir uma dimensãotal que implique na vivência unilateral de uma dada função superior; neste casooportuniza-se à função inferior uma manifestação neurotizante frente à consciência. Isto seexplica pelo fato de que “Embora a função inferior possa ser consciente enquanto

 fenômeno, seu verdadeiro significado, no entanto, permanece não reconhecido”.(JUNG,

CW 6, par. 812) , o que acarreta uma manifestação primitiva e perturbadora da funçãoinferior. Quando esta função encontra-se neste nível arcaico, ela tende a se expressar deforma infantil produzindo sintomas desequilibrados; isto ocorre porque a preponderânciada função primária sobre a inferior retira energia psíquica desta fazendo-a “recuar” a umnível mais inconsciente, o que facilita a ativação destes conteúdos de forma não-natural,

 portanto, não previsível e não mediada pela consciência. Para tratar tal situação, JUNG(loc. cit.) propõe que isso seja feito através da análise e, ainda assim, de forma gradual,

 pois “(...) as formações da fantasia inconsciente que foram agora ativadas precisam sertrazidas à superfície. A realização consciente destas fantasias traz a função inferior àconsciência e torna possível o desenvolvimento posterior”.

Ao lado da função primária atuam, muitas vezes, as funções ditas auxiliares(segunda ou terceira, funções) exercendo uma influência co-dominante junto à consciência.É relevante para a compreensão conceitual desta função o fato de que ela não exercedominância sobre a consciência, pois caso isto ocorresse “(...) produziria, necessariamente,uma orientação diferente que, pelo menos em parte, iria contradizer a primeira [função

 primária] (...)” (JUNG, op. cit., par. 736), o que acarretaria uma dificuldade no processo deadaptação da consciência, uma vez que criaria uma ambigüidade ante a necessidade daconsciência de ter diretrizes bem definidas para desenvolver-se. E além disso, JUNG (loc.cit.) chama a atenção para o fato de que “Sua importância secundária deve-se ao fato deque ela não é, como a função primária... um fator absolutamente confiável e decisivo (...)”,mas exerce uma complementaridade à função primária. Deste modo, a função auxiliar não

se antagoniza à primária de sorte que sua natureza permite que funções irracionaisauxiliem as racionais. Este emparelhamento admite uma ampliação da capacidadeadaptativa da consciência. JUNG (op. cit., par. 738) cita esta interação quando expõealgumas combinações de funções com vista ao processo de adaptação, como por exemplo:“(...) um pensamento prático [pode estar] aliado à sensação, um pensamento especulativoimpulsionado pela intuição, a intuição artística selecionando e apresentando suas imagenscom o auxílio de valores do sentimento,(...)”, o que proporciona uma adaptabilidade maisflexível e abrangente ao desenvolvimento da psique. Destarte, para o processo dialético daconstrução teórica junguiana, estas naturezas contrárias acabam por se complementaremcriando um espaço potencial ao desenvolvimento de novos aspectos da psique. 

19

 Individuação: “(...) processo pelo qual os seres individuais se formam e se diferenciam; em particular, é odesenvolvimento de um indivíduo psicológico como um ser distinto da psicologia geral e coletiva”.(JUNG,CW 7ii, par. 757).

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Continuando na linha conceitual dialética, outra função psíquica mereceatenção, uma vez que tendo sua origem nas tensões produzidas pelo consciente e peloinconsciente, guardam em si o aspecto mantenedor da união pelo fato de tornar “(...)organicamente possível à transição de uma atitude para outra”. (JUNG, CW 8ii, par.

145), esta função é a função transcendente. JUNG (CW 6, par. 913) assevera que esteaspecto transcendente se deve ao fato de que ao haver uma “(...) total paridade dosopostos, (...) necessariamente leva à supressão da vontade, cuja operação cessa quandocada motivo tem um contramotivo igualmente poderoso”., por assim ser, as tensões

 produzidas pelos “opostos” acabam por necessitar de uma resolução que faculte oreequilíbrio do sistema psíquico, o que só será possível a partir de uma elaboração quetranscenda os opostos conforme descreve JUNG (loc. cit.): “Como a vida não pode toleraruma paralisação, segue-se um represamento da energia vital, o que levaria a umacondição insuportável se a tensão dos opostos não produzisse uma função nova, de união,que os transcendesse. Esta função surge de modo muito natural da regressão20 da libidocausada pelo bloqueio”. 

Para melhor entender a importância da “oposição” como elemento dialéticodo qual a função transcendente emerge como uma nova tese harmonizadora, e ao mesmotempo, motivadora de novas adaptações, é preciso compreender de que “oposição” falaJung, pois psicologicamente esta oposição trata da relação dialética que se dá entre o ego eo inconsciente. JUNG (CW 9i, par. 178) chega a dizer que “ Não há consciência semdiscriminação de opostos”., pois para qualquer atitude consciente ou qualquer função

 psicológica, o oposto sempre se fará perceber no inconsciente. Este conteúdo oculto,reprimido deve ser acolhido pela consciência sob pena de que a energia psíquica acabesendo vertida aos planos arcaicos do inconsciente, o que provocaria o desequilíbrio

 psíquico manifesto através dos mais variados sintomas psicopatológicos como afirmaJUNG (CW 7i, par. 78) ao dizer:

O conteúdo reprimido deve tornar-se consciente, de modo que produza umatensão dos opostos, sem a qual nenhum movimento ulterior será possível. (...)toda consciência, talvez sem estar diante disto ciente, busca seu opostoinconsciente, sem o qual está condenada à estagnação, congestão e ossificação.A vida nasce apenas da fricção dos opostos.

É desta forma que se processa a “compensação”, ou seja, o fator mantenedordo equilíbrio natural da psique, através da função transcendente, pois revela JUNG (CW 9i,

 par. 285) que: “ D[a] colisão dos opostos, a psique inconsciente cria uma terceira coisa denatureza irracional, que a mente consciente nem espera, nem compreende. Apresenta-sesob forma que não é nem um ‘sim’ direito, nem um ‘não’”. Este terceiro elemento cujo

 papel reconciliador não é logicamente previsível também é citado por Jung como sendo o“tertium non datur ”. Seu surgimento é tão necessário à saúde do sistema psíquico queJUNG (CW 14ii, par. 365) afirma que:

(...) ocorre quando a análise constelou21  os opostos de maneira tão poderosaque uma união ou síntese da personalidade se torna uma necessidade

20  Regressão:  caracteriza-se pelo movimento da libido para um período que antecede a adaptação,geralmente acompanhada de desejos e fantasias infantis. É “(...) uma introversão involuntária, na medida emque o passado é um objeto da memória e, portanto, um conteúdo psíquico, (...) É uma recaída no passado,

causada por uma depressão no presente”. (JUNG, CW 5, par. 625).21 Constelar: é empregado para designar um padrão associado de reações emocionais. JUNG (CW 8i, par.198) o defini como um termo que “(...) expressa o fato de que a situação externa desencadeia um processo

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imperativa... [Esta situação] exige uma solução real e torna necessária umaterceira coisa, na qual os opostos possam se unir. (...) [Portanto], a resoluçãodos opostos é um processo sempre energético; (...).

O valor deste elemento unificador transcendente é tão significativo, como é

também portador de um conteúdo não manifesto capaz de, transformar e enriquecer aexperiência humana. JUNG (loc. cit.) ao mencionar isto, o faz metafórica e poeticamentedizendo que o “tertium non datur ” “(...) atua simbolicamente, na verdadeira acepção da

 palavra, fazendo algo que expressa ambos os lados, do mesmo modo que uma cachoeira,visivelmente, faz o papel de intermediária entre o superior e o inferior”.

Seguindo na análise conceitual dialética do pensamento junguiano comvistas à individuação, para que se dê à apreensão dos conteúdos inconscientes pelaconsciência é necessária à participação de um ego que possa suportar as vivênciascontrapostas que o inconsciente revelará promovendo um processo de diferenciação, umavez que ambos são de igual valor. É a partir desta confrontação que emergirá esse terceiroelemento que, ao mesmo tempo em que se origina deste conflito, é o elemento apaziguadordo mesmo, na medida que oferece ao ego uma carga de energia capaz de gerar uma terceiraessência ao que JUNG (CW 6, par. 914) cita dizendo:

Da atividade do inconsciente, emerge, agora, um novo conteúdo, constelado pela tese e pela antítese em igual medida, e que está em relação compensatóriacom ambas. Ela forma, assim, um termo médio, no qual os opostos podem seunir. (...) O ego, contudo, dividido entre tese e antítese, encontra no termomédio a sua própria contraparte, seu meio de expressão particular e única,fixando-se nele ansiosamente para se ver livre de sua divisão.

Deste modo, ao dimensionar a função transcendente definido seus aspectoscomo sendo essenciais à auto-regulação da psique, JUNG (op. cit., par. 916) percebeu adimensão simbólica que permite, quando experimentada, o desenvolvimento de uma novaatitude em face de si mesmo e da própria vida chegando a dizer que quando este processo é

 plenamente vivenciado pelo ego “ A paralisação é superada e a vida pode fluir renovadaem direção a novas metas”.

Pelo exposto acima, é possível perceber que a estruturação conceitualutilizada por Jung para a elaboração de sua tipologia prescinde da dialética como forma de

 pensamento e construção psicofilosófica. Estes fatos tornam-se compreensíveis na medidaque se entende que as funções racionais, ao mesmo tempo em que se contrapõem em suanatureza se complementam para que o processo adaptativo ganhe em flexibilidade eamplitude; também ocorre quando atitudes antagônicas de introversão, mais presentes ao

nível da consciência, produzem no psiquismo uma tensão que se atenua, à medida queinterage com a atitude oposta para ampliar a percepção do si mesmo e do mundo; o mesmose dá com as funções auxiliares quando interagem de modo “co-dominante” com asfunções primárias; e por fim, tem-se com a função transcendente a “coniunctio” do egocom o inconsciente para apreensão dos significados profundos do si mesmo, o que aomesmo tempo em que se torna síntese de um processo dialético, se constitui na “ primamatéria”22 de novas elaborações psíquicas.

 psíquico, no qual certos conteúdos se juntam e dispõem à ação. (...) Os conteúdos constelados são complexosdefinidos que possuem sua própria energia específica”.22

 “ Prima matéria”: conforme a teoria junguiana, este terno refere-se, alquimicamente, à “matéria original”; psicologicamente, tem por significado o fundamento instintivo e o material “bruto” com o qual se trabalha no processo analítico, p. ex., os sonhos, emoções, conflitos, ... [N. do A.]

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CAPÍTULO III:

TEORIA GERAL DOS COMPLEXOS: UMA ABORDAGEMJUNGUIANA

A via régia para o inconsciente... não é o sonho, como pensava [Freud], mas ocomplexo, que é o arquiteto dos sonhos e dos sintomas. Nem é essa via tão“real” assim, pois que o caminho apontado pelo complexo assemelha-se mais auma senda rude e extremamente tortuosa (JUNG, CW 8ii, par. 210). 

Para que se possa compreender a importância do processo dialético notocante a teoria geral dos complexos, é preciso conhecer os pensamentos básicos queconduziram ao desenvolvimento desta teoria, bem como, compreender o seu significado eabrangência. Para tanto, foi utilizada como introdução ao tema, a abordagem apresentada

 por JACOBI (1957, p.16) que se refere aos complexos utilizando a terminologia“Agrupamentos de idéias de acento emocional no inconsciente”,  tal menção se explica

 pelo fato de que JUNG (loc. cit.), quando na clínica universitária de psiquiatria emBurgholzli, desenvolveu trabalhos que culminaram com a publicação da obra “Estudos

diagnósticos das associações” que introduziu a noção de “complexo de acento emocional”como “agrupamentos de idéias de acento emocional” e que mais tarde passou a serconsiderada apenas como “complexo”.

Estas investigações tiveram por base os “processos associativos de palavra”,uma vez que JUNG in JACOBI (op. cit., p. 17) os percebia como sendo o reflexo ativo da

 psique a ponto de demonstrar através destes que as “perturbações” de ordem afetivo-emocional “(...) eram da natureza interna da psique e provinham de uma esfera situada

 fora da vontade objetiva do consciente e que esta esfera só se apresentava quando aatenção ia se enfraquecendo”. Portanto, foram propostas duas instâncias distintas onde osfenômenos ligados à psique manifestam suas potencialidades, ou seja, de um lado umaenergia “situada fora da vontade objetiva”, o que se constitui em um dos pares da díadedialética, e, de outro uma energia cuja “vontade é objetiva” (segundo elemento da díade),ambas antagônicas e complementares, e ainda, uma se manifestando mediante oarrefecimento da outra. A “manifestação” daí resultante pode ser compreendida comoelemento sintético cuja origem se faz às custas do confronto das forças volitivas e nãovolitivas. Continuando nesta linha de pensamento, infere-se que os complexos devem àsua natureza emocional sua relativa autonomia, pois “Os complexos interferem com asintenções da vontade e perturbam o desempenho da consciência; produzem perturbaçõesda memória e bloqueio do fluxo das associações; aparecem e desaparecem conforme suas

 próprias leis; (...)” (JUNG, CW 8ii, par. 253).Com as contínuas pesquisas implementadas por Jung, também se

concluíram que os complexos possuíam uma variedade limitada o que permitiacompreendê-los e agrupá-los em determinadas categorias (paterno, materno, parental...).

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JUNG (loc. cit.) propôs que os complexos se fundamentariam em “ prontidões emocionais,respectivamente instintos”.23  com um “(...) aspecto dinâmico e outro formal”., onde osegundo aspecto, por se expressar por meio das imaginações fantasistas são denominadosarquétipos.

O complexo carrega, conforme descreve JACOBI (1957, p. 16), a“tonalidade de sentimento” do todo, incluindo todas as particularidades com os quais este pode estar ou vir a estar relacionado. Deste modo, o complexo é constituído, segundo Jung, por duas partes: (1) o elemento nuclear ou portador de significado;24 e, (2) as associações.25 Portanto, a constituição do complexo implica numa estruturação dual, com elementos doinconsciente e da consciência, autonômico e volitivo, que interagem entre si dandosurgimento a um terceiro elemento dando origem a um grupo de imagens ou idéiascarregadas emocionalmente, deste modo, demonstrando haver um construto dialético nateoria dos complexos. Este processo tem início quando um “estímulo externo” sensibilizaas “tonalidades sentimentais” produzindo um choque entre o real e o imaginário, dá-se umacisão entre os valores que estão sendo considerados estruturalizantes da psique e o que a

realidade apresenta como factual, ocorrendo isto, a psique agrega ao “motivo condutor”(estímulo externo) os aspectos: “portadores de significado” e “associativos” dandonascimento à formação de um complexo. Diz JUNG (CW 8ii, par. 204): “ A etiologia (...) é

 freqüentemente um (...) trauma, um choque emocional ou coisa desse tipo que cinde um pedaço da psique”.e completa: “(...) uma das causas mais comuns é um conflito moralque, (...), deriva da aparente impossibilidade de afirmação da natureza total de simesmo”.

Assim sendo, o complexo pode ser entendido como um “(...) grupo deidéias ou imagens carregadas emocionalmente”.conforme propõe JUNG (op. cit., par.201) ao citar que “[Um complexo] é a imagem de uma determinada situação psíquica, comacentuada carga emocional e, além disso, incompatível com a atitude habitual daconsciência”.

Outro aspecto de relevante interesse é o fato de que os complexos “(...) têmcaráter não apenas obsessivo, mais muitas vezes francamente possessivo, motivando errosde memória e de juízo e todos os tipos de gafes aborrecidas, ridículas e traiçoeiras. Elescontrariam a capacidade de adaptação do consciente."  (JUNG in JACOBI, 1957. p. 9). Seassim é, uma vez que se opõe à capacidade adaptativa induz a psique a buscar uma outraforma de adaptação, o que remete ao fato de que dos opostos dá-se o nascimento de umaoutra instância que é capaz de transcender as anteriores permitindo a psique construir umanova realidade por meio de um processo que tem início com a dualidade opositorum  eculmina com uma síntese integrativa.

Cabe ressaltar que esta síntese tanto pode ser de caráter construtivo comodestrutivo. Este fato é levado em consideração por JACOBI (op. cit.) ao dizer que éfundamental que se reflita com maior cautela sobre a importância que se atribui, ao que eladenomina, “supremacia da vontade” e “império da consciência”, uma vez que como afirmaJUNG (CW 8ii, par. 200): “Todos sabem, (...), que as pessoas ‘têm complexos’. O que nãoé tão bem notório, embora mais importante teoricamente, é que os complexos podem nos

23 Instintos: “(...) manifestam-se em imaginações fantasistas, atitudes e atos irrefletidos e involuntários, que, por um lado, mantém uma mútua harmonia interna e, por outro, são idênticos às reações instintivas dos homosapiens. (...) Tais imaginações, (...), têm caráter relativamente autônomo (...)” (JUNG in JACOBI, 1957, p.10).24 Elemento nuclear: (ou portador de significado) localiza-se no inconsciente e não é “dirigível”, portanto,

não se submete à vontade consciente. [N. do A.]25  Associações: cuja origem é tanto da disposição original da pessoa, quanto das vivências ambientais doindivíduo. [N do A.]

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‘ter’”. e quando isso ocorre os efeitos dos complexos deixam de ser positivos assumindouma polaridade negativa capaz de gerar perturbações psíquicas. JUNG (CW 6, par. 990)assevera que “Os complexos são pontos focais (...) da vida psíquica, dos quais nãodeveríamos querer nos desfazer; (...), pois do contrário à atividade psíquica chegaria à

total paralisação”. Os complexos, então, podem ser considerados como constituintes da psique que guardam em si os aspectos concernentes às emoções humanas. Vendo por esteaspecto, negativo não é o complexo, mas os efeitos que estes são capazes de desencadear.

(...) ter complexo (...) significa que existe algo que é discordante, nãoassimilado e antagônico, talvez como um obstáculo, mas também como umincentivo para um esforço maior e assim, talvez para novas possibilidades derealização (loc. cit.).

Considera-se, portanto, o efeito negativo do complexo como uma distorçãoem alguma ou algumas das “funções psicológicas.”26 Deste modo, as reações observadas,

 por ocasião de um estímulo externo, são percebidas de forma exagerada acarretando um

 julgamento inapropriado mediado pelo impulso ditado pelo complexo. JUNG (CW 16i, par. 179) ao observar isto fez o seguinte comentário: “Ter um complexo não significanecessariamente uma neurose (...)”, embora estar identificado com o complexo possa serneurotizante e até psicotizante, porque, completa JUNG (loc. cit.), “Um complexo torna-se

 patológico somente quando pensamos que não o temos”.A título de maior aprofundamento nos aspectos negativos, mas não menos

significativos da construção da psique por meio de um processo dialético, envolvendo oscomplexos, o que por ora ultrapassa o objetivo desta pesquisa, deve-se considerar que aidentificação27  com o complexo (anima, animus, sombra,...) é, geralmente, fonte deneurose. E que o papel do psicoterapeuta frente a uma situação deste tipo é o de estabelecerum “espaço” onde é possível a compreensão da influência exercida pelos complexos sobreo comportamento e as reações, minimizando assim o impacto dos efeitos negativos sobre a

 psique humana, citando JUNG (CW 9i, par. 184): “Um complexo só pode ser realmentesuperado se for vivido em sua plenitude. Em outras palavras, se quisermos nosdesenvolver melhor, devemos atrair para nós e beber até a última gota aquilo que, porcausa de nossos complexos, mantivemos a distância”.

Vale lembrar ainda que alguns complexos têm uma maior relevância na psicologia junguiana, devido a sua freqüência ser maior, como, p. ex., os complexos de poder, materno, parental e paterno, estes complexos cumprem uma finalidade construtiva à psique, uma vez que partindo dos aspectos duais para um aspecto ternário são capazes de produzir uma outra realidade que ao mesmo tempo em que contém os elementos opositores

os transformam em algo singular. Esta singularidade é capaz de transformar-se novamente,uma vez que o simples fato de ter existência necessita da não existência para se dar aconhecer como tal.

Assim sendo, pode-se dizer que no complexo de poder é importante destacarque é constituído de idéias carregadas emocionalmente, porém que associam às influênciase às experiências a uma atitude de subordinação ao ego. Este fato conduz à reflexão de quese existem influências e experiências que, de algum modo, estão subordinadas ao ego

26 Funções psicológicas: Jung as estudou e classificou em quatro tipos: sentimento, pensamento, intuição esensação. (para maiores detalhes v. JUNG, CW 6).27

 Identificação: processo psicológico no qual a personalidade é parcial ou totalmente desassimilada [e nocaso desta identificação ser em relação ao complexo, pode ser experimentada como possessão]. (JUNG, CW9i, par. 742.).

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também existem as que dele independem e que esta oposição se volta a uma finalidademaior que transcende a objetividade encontrada na díade pura e simples.

O mesmo ocorre com o complexo materno que se constitui também deidéias carregadas de sentimentos, porém associadas à experiência e à imagem da mãe. Este

complexo tem como primeiro referencial à experiência com a mãe pessoal, no entanto, àmedida que as relações com outras mulheres começam a se estabelecer, esta experiênciaadquire uma perspectiva mais coletiva. A identificação (ou constelação) com estecomplexo produz efeitos diversamente significativos para psique. JUNG (op. cit., par. 162)chega a mencionar que “Os efeitos típicos em um filho são a homossexualidade e o dom

 juanismo, e algumas vezes também a impotência (...)”, uma vez que a heterossexualidadedo filho encontra-se ancorada na mãe, de forma inconsciente, explica JUNG (loc. cit). Nafilha o efeito se volta para a estimulação do instinto feminino ou de sua inibição, o queacarreta a inconsciência de sua própria personalidade.

O exagero do aspecto feminino significa uma intensificação de todos os

instintos da mulher, especialmente do instinto maternal. O aspecto negativo évisto na mulher que tem a maternidade como única meta. (...) o marido é (...)antes e acima de tudo um instrumento de procriação, (...) um objeto a sercuidado, assim como cuida de filhos, parentes pobres, gatos, cães e de mobíliada casa (op. cit., par. 167).

A manifestação inibida, ou até mesmo inteiramente suplantada dos aspectosfemininos, surge “Como um substituto, resulta um Eros superdesenvolvido, o que leva (...)a uma relação incestuosa inconsciente com o pai”. (op. cit., par. 168) daí resultando um“ciúme da mãe e o desejo de sobrepujá-la (...)”.  (loc. cit.).  No entanto, esta mesmainibição pode assumir uma perspectiva alternativa que se expressa por meio de umaidentificação com a mãe, o que acarreta uma inconscientização do instinto maternal, assim

como dos aspectos do Eros, que passam a ter uma existência projetiva na mãe. Ao queJUNG (op. cit., par. 169) se refere afirmando que “Como uma espécie de supermulher (...)a mãe vive, (...), tudo o que a jovem poderia viver por si mesma. Ela contenta-se emapegar-se a sua mãe com abnegada devoção, enquanto (...), inconscientemente, tenta, (...)tiranizá-la, (...) sob a máscara de completa lealdade e devoção”.

Socialmente estas mulheres acabam por serem vítimas das projeções doshomens como esposas devotadas e sacrificadas, projetando nos maridos seus dons latentes.Deste modo, é possível encontrar homens que viviam uma vida limitada, de pouca

 perspectiva, tornarem-se bem sucedidos após terem se casado. Já as mulheres, quandonesta situação, conseguem algum tipo de realização e projeção social, isto se dá pelafunção do Logos, onde JUNG (op. cit., par. 186) chama a tenção para o fato de que “Esta

rara combinação de feminilidade com uma compreensão masculina mostra-se válida tantono campo das relações íntimas como em assuntos práticos”, uma vez que sobre esteaspecto o complexo materno não exerce influência. Para concluir, é possível inferir quetodo complexo materno guarda em si o arquétipo materno, o que em outras palavrassignifica dizer que ao se considerar as associações de conteúdo emocional, tanto dehomens como de mulheres, com a pessoa de suas mães, não poderá deixar de serconsiderado (1) a imagem coletiva de nutrição e segurança, e nem tampouco, o aspecto (2)

 possessivo devorador, o que estabelece uma polaridade “positiva” (tese) e “negativa”(antítese) a ser considerada para que se dê um processo dialético (síntese) com vista àindividuação.

Ao examinar o complexo parental, que também se define como idéiascarregadas emocionalmente, irão se associar com os pais, de tal modo que JUNG (CW 7ii,

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 par. 293) acreditava que a numinosidade que cerca os pais pessoais era devida a umaimagem arquetípica vinculada aos pais primordiais como pode ser observado na citaçãoque diz: “ A importância que a psicologia moderna atribui ao ‘complexo parental’ é acontinuação direta da experiência que o homem primitivo tem da perigosa força dos

espíritos ancestrais”., portanto, sob esta perspectiva insurge o aspecto da imago28 

 dos paiscriado a partir: (1) da experiência concreta com os pais e (2) da vivência coletiva inata.Repetindo assim, a construção anteriormente citada da necessária existência de um

 processo dialético para que ocorra à individuação. JUNG (CW 10iii, par. 74) ressalta que“Enquanto uma semelhança positiva ou negativa com os pais for o fator determinante (...),a liberação da imago parental, e (...) da infância, não será completa”. 

O mesmo pode ser observado na análise dos complexos paternos associadosà experiência e à imagem paterna, uma vez que estes também possuem conteúdosemocionais. Os efeitos de uma identificação se fazem perceber como aspectos positivos enegativos (construtivos ou danosos à psique) a partir do momento que “ (...) confere umacerta credulidade em relação à autoridade e uma clara disposição a inclinar-se diante de

todos os dogmas e valores espirituais, (...)” (JUNG, CW 9ii, par. 396); na mulher observa-se que a influência desperta “(...) os mais vivos anseios e interesses espirituais”. (loc. cit.).Jung ressalta que, de uma maneira geral, o complexo paterno manifesta-se na  persona29 ena  sombra,30 quando identificado com o homem; e, no animus31, quando na mulher. Aoconstelar a mulher, o complexo paterno “(...) exerce influência sobre a mente ou o espíritode sua filha – sobre seu ‘Logos’. (...) através do aumento da intelectualidade (...), muitasvezes a um grau patológico, (...)” (JUNG, CW 5, par. 272) que foi descrito por Jung como“possessão do animus”.

Empreendeu-se neste capítulo a tentativa de delimitar e elucidar algunsaspectos relevantes concernentes à importância do processo dialético, com vista àindividuação, a partir da ampla e profunda Teoria Geral dos Complexos, no intuito não sóde evidenciar a presença deste processo de pensamento na construção teórica junguiana,como também suscitar o interesse para contínuas pesquisas deste que é um dos conceitosfundamentais à compreensão da Psicologia Analítica. 

28 Imago: termo que diferencia a realidade objetiva de uma pessoa ou coisa, da subjetividade a ela conferida.[N. do A.]29 Persona: representa o “eu” que utilizamos e com o qual nos relacionamos com o mundo exterior. [N. doA.]30

  Sombra: representam os aspectos ocultos do inconsciente de si mesmo, podendo ser bons ou maus,reconhecidos ou reprimidos pelo ego. [N. do A.]31 Animus: significando o aspecto interior masculino do psiquismo feminino. [N. do A.]

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CAPÍTULO IV:

RELAÇÃO COM A INTEGRAÇÃO

A integração psíquica auxilia na produção da totalidade pessoal a partir doinstante que torna partes cindidas da personalidade articulada aos demais aspectos da

 psique. É exatamente este papel integrador que exerce uma função significativa no processo de individuação. Na teoria junguiana o aspecto saudável do ego é caracterizadocomo normal a partir do momento que é possível integrar à totalidade psíquica as“tonalidades” desarmônicas da personalidade muitas vezes expressa nos contextos dedissociação, repressão e neurose.

 Na psicologia desenvolvida por Jung é possível perceber que o processointegrativo tem um papel relevante tanto no que diz respeito ao confronto com os aspectossombrios da personalidade, nomeados por ele de “sombra”, quanto na confrontação dos

variados aspectos do consciente em “oposição construtiva” ao inconsciente. Sendoadequado a este contexto mencionar o vocábulo “confronto”, deve ser lembrado que paraJUNG (CW 8ii, par. 410) o confronto não tem uma significância conflitiva, belicosa oucompetidora, mas sim uma conotação dialética, qual seja, integradora, assimiladora etransformadora como afirma ao dizer que: “ A confrontação com o arquétipo ou com a

 pulsão implica  problema ético  de primeira ordem, cuja urgência, no entanto, só é percebida por aquele que se vê diante da necessidade de decidir quanto à assimilação doinconsciente e a integração de sua personalidade”. Portanto, para que a integração cumprasua finalidade transformadora é necessário que uma mudança se processe e isto se dá,conforme JUNG (op. cit., par. 423), “(...) na medida em que elimina o domínio exclusivoda consciência subjetiva do ego, confrontando com estes conteúdos inconscientescoletivos.”, este confronto é possível uma vez que “ A consciência do ego manifesta-secomo dependente de dois fatores: primeiro, das condições da consciência coletiva esocial; segundo, das dominantes e dos arquétipos coletivos e inconscientes”.   (loc. cit.).Mais uma vez surge aqui o processo dinâmico de opostos integrativos que se enfrentam

 para dar surgimento a novas possibilidades, portanto, tem-se novamente como palco doseventos ou caldeirão alquímico onde se processa as transformações criativas e criadoras, aarticulação dialética como pano de fundo à elaboração do pensamento junguiano com vistaao processo de individuação.

Ao ser mencionada a importância da dinâmica dos opostos como fatorcatalisador do processo integrativo, é preciso compreender as articulações que ocorrem

entre pares conceituais da psicologia analítica para que seja possível apreender como queestas articulações se favorecem mutuamente a partir de uma integração eminentemente

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dialética. Assim sendo, esta pesquisa se concentrará nos seguintes pares dinâmicos do pensamento junguiano: arquétipos e complexos, função inferior e função transcendente,ego e suas funções, individuação e adaptação.

Para se chegar a uma inferência que corrobore com o objetivo desta

 pesquisa faz-se necessário o conhecimento dos conceitos que envolvem as diversasformulações acima elencadas. Portanto, para se compreender a articulação que envolve os pares: arquétipo/complexo é preciso começar a abordagem definindo o que Jung nomeoude arquétipo.

Em JUNG (CW 10iii, par. 53), o termo arquétipo se entrelaça aos conceitosde imagem arquetípica e também de instinto, de modo que seu significado envolveelementos primordiais e estruturais da psique, tornando os arquétipos “(...) sistemas de

 prontidão para a ação e, ao mesmo tempo, imagens e emoções”.  Deste modo, osarquétipos são fatores irrepresentáveis e invisíveis que atuam sobre o inconscienteconforme afirma JUNG (CW 8ii, par. 417) ao dizer que “ Não se deve confundir asrepresentações arquetípicas transmitidas pelo inconsciente com o arquétipo em si (...)” ,

 porque “Essas representações são formações amplamente variadas, que nos remetem auma forma básica irrepresentável, (...), que, no entanto, só podem ser vagamenteapreendidos”. (loc. cit.). Isto confere ao arquétipo a qualidade de não se deixar representarcomo símbolo ou figura, mas de significar a possibilidade de representação oumanifestação o que acaba por revelar que a função do arquétipo é a de criar uma outrarealidade a partir de possibilidades pré-existentes levando JUNG (loc. cit.) a hipótese deque “a verdadeira essência do arquétipo seja incapaz de se tornar consciente, ou seja, étranscendente; (...)”.

Assim sendo, pode-se inferir que cabe ao arquétipo a função de ordenar asvivências psíquicas conferindo-lhes a possibilidade de “vir a ser” através de imagens. Poreste motivo, os arquétipos se colocam numa tênue linha de afastamento dos instintos, umavez que estes representam formas básicas de comportamento enquanto aqueles representamformas básicas dos instintos como propõe JUNG quando diz que as figuras arquetípicas

 primitivas podem ser compreendidas como visualização do próprio instinto ou como auto-retrato do instinto. Isto suscita a necessidade de se distinguir entre arquétipo em si, ou seja,de natureza irrepresentável cuja estrutura é um aspecto inerente à psique; e, figurasarquetípicas cujas diversas imagens expressam diferentes formas representacionais como éo caso dos arquétipos divinos, paterno/materno, etc. JUNG (CW 7i, par. 109) destaca queos aspectos imagéticos ou pictóricos dos arquétipos conferem-lhes seu caráter dinâmico,uma vez que tais imagens exercem, sobre a psique, uma força intensa e perceptível a pontode provocar efeitos psicodinâmicos. Esses efeitos podem ser tão deletérios a ponto de uma

 pessoa ser constelada por representações míticas, ou podem intermediar efeitosterapêuticos que agem no processo de individuação (auto-realização), uma vez que tendoum papel ordenador, confere às vivências psíquicas um objetivo finalista, pois “Sempreque um arquétipo aparece em sonho, na fantasia ou na vida real, traz consigo uma‘influência’ bem particular ou uma força que lhe confere um efeito numinoso ,32 respectivamente fascinante e que impele à ação”.

Pelo exposto, os arquétipos podem se manifestar tanto a nível pessoalquanto coletivo. No que diz respeito a este último, as implicações recairão sobre asmanifestações culturais que devem receber uma nova interpretação cada vez que aevolução cultural facultar ao “ser cognitivo” um novo estágio do ciclo existencial, o que

32

 Numinoso: É a característica principal do arquétipo como se fosse uma “carga emocional que se transfere para a consciência sempre que surge uma imagem ou uma situação arquetípica” (JUNG, “Cartas”, vol. III. p.52).

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JUNG (CW 9i, par. 267) expressa dizendo que “(...) a cada novo estágio de diferenciaçãoda consciência que a civilização atinge confrontamo-nos com a tarefa de encontrar umanova interpretação apropriada a esse estágio, a fim de conectar a vida do passado, queainda existe em nós, com a vida do presente, que ameaça dele se desvincular.”, na medida

que essa temporalidade cumpre uma função dialética que se vale da tese representada pelo passado para se confrontar com a antítese do presente, tendo por finalidade transcender para uma nova síntese que encontrará expressão nas ações futuras. No que tange asmanifestações a nível pessoal é preciso compreender como este processo se constróiatravés da conceituação dos complexos, uma vez que são estes os legítimos representantesdas manifestações arquetípicas individuais.

JUNG compreende os complexos como sendo uma via régia aos conteúdosdo inconsciente; de tal modo que passam a ser entendido como sendo os arquétipos dossonhos e que, portanto, guardam em si os campos de energias psíquicas. Pois bem, secomplexos são arquétipos observáveis a nível individual, e se arquétipos são sistemasorganizadores, logo, os complexos são sistemas organizadores da vida psíquica da qual

 prescinde o equilíbrio dinâmico da alma.33 Também é importante reconhecer o aspecto autonômico que envolve o

complexo, de sorte que tal característica lhe confere a possibilidade de produzir efeitossobre o comportamento e a disposição devido a forte carga emocional que ele mobiliza. É

 possível inferir que tais influências tanto podem ser de natureza positiva quanto negativa,dependendo se incitam um comportamento motivador ou inibidor das ações psíquicas,respectivamente. No caso negativo, observa-se que vivências de origem traumáticas ouconflitos morais podem cindir aspectos da personalidade que, uma vez dissociando-se dotodo psíquico, dão origem a estruturas de natureza isolada dentro da psique, formandoassim, complexos autônomos.

Ao se referir ao aspecto moral como gênese de uma cisão, JUNG (CW 8ii, par. 204) chama atenção para o fato de que este processo dissociativo “(...) reside naaparente impossibilidade de concordar com a totalidade da essência humana. Essaimpossibilidade pressupõe uma cisão imediata, independentemente da consciência do ego,quer ele saiba quer não”.  O resgate ou a reincorporação desta porção isolada da psiquerequer, da terapia, a apreensão deste aspecto cindido pela consciência e tendo comomediador o ego. Para tanto, é preciso que se possibilite a esta energia psíquica dissociada aconexão com os demais aspectos do ego. Portanto, do restabelecimento, p. ex., da conexãoentre o complexo materno e suas variações individuais (ou seja, os conteúdos que a forma

 pode vir a ter) e o arquétipo materno (a forma sem conteúdo) nasce uma pluralidade deforma que, uma vez apreendidas, pelo consciente enriquece a vida psíquica tornando-a

saudável, porque, saúde em psicologia junguiana é sinônimo de possibilidade múltipla demanifestação do conteúdo psíquico. Assim sendo, o que se pode coligir da articulaçãoacima é que os opostos quando confrontados possibilitam a transcendência a um novoestágio da consciência, em última análise, dá-se à individuação (o equilíbrio dinâmico) a

 partir de um processo eminentemente dialético.Por assim ser, é possível perceber que os arquétipos sofrem um processo

dialético em sua própria estruturação enquanto conceito independente tanto como ocorrecom os complexos; e, que ambos se confrontam entre si para se autopreservar tanto quanto

 para produzirem transformações de caráter significativo e edificador à psique, se utilizandotambém do processo dinâmico que é possibilitado pela confrontação dialética.

33

  Alma:  “Por alma, (...), entendo um complexo funcional claramente demarcado que poderia ser maisapropriadamente descrito como uma ‘personalidade’”. (JUNG, CW 6, par. 752) Portanto, para Jung, alma éum complexo funcional da psique.

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 Estendendo a abordagem aos pares: função inferior/função transcendente

 pretende-se observar que em outros aspectos da teoria junguiana o processo dialético tem presença marcante. Conceitualmente, é relevante observar que a função inferior é definida

como sendo a função menos diferenciada das funções psíquicas como diz JUNG (CW 9i, par. 222) ao assegurar que “(...) é [esta]  praticamente idêntica ao lado sombrio da personalidade humana”. Os aspectos mais detalhados das funções psíquicas encontram-semais amplamente abordados no capítulo II desta pesquisa. A função inferior situa-se demodo oppositorum  à função principal. Isto significa que enquanto a função inferiormantém íntima relação com os conteúdos do inconsciente ora vivificando ora fortalecendoas chamadas forças arcaicas,34 o faz de modo indiferenciado, ou seja, não ordenando nemestruturando, mantendo, assim, uma disposição mais próxima do inconsciente. De modooppositorum, portanto, diferenciadamente, a função principal apresenta uma ampla

 possibilidade de desenvolvimento, uma vez que seus conteúdos estão mais próximos àapreensão consciente, portanto, mais ordenados e estruturados. No entanto, é justamente

naquela função que estão contidos o valor pessoal que conduzem ao processo deindividuação por meio da ampliação da consciência, uma vez que os conteúdos inferiores,que de algum modo sofreram regressão, contêm aspectos pessoais da personalidade que

 precisam ser resgatados para que a vida passe a fazer sentido no contexto da realização pessoal, pois de outro modo só haveria uma satisfação sócio-cultural representada pelodesenvolvimento da função principal que tem por finalidade o processo adaptativo.Textualmente JUNG (CW 6, par. 109) comenta:

(...) a cultura provoca uma diferenciação daquela função [ função primária] que, já de nascença, dispõe de uma capacidade melhor de formação. (...), a pessoa,sob a pressão da exigência cultural, dedicar-se-á especialmente ao

desenvolvimento daquela capacidade, cuja disposição natural é a maisfavorável, respectivamente a mais capaz de se desenvolve.

Sobre os valores individuais contidos na função inferior, JUNG (loc. cit.) 

afirma que:

Eles podem não ser de grande importância para a vida coletiva, mas para a vidaindividual, ao contrário, possuem um valor enorme e representam valores vitaisque seriam capazes de conferir, à vida do indivíduo a intensidade e a beleza queele espera em vão da função coletiva. A função diferenciada chega a dar-lhe a possibilidade de uma existência coletiva, mas não a satisfação e o prazer deviver, que apenas o desenvolvimento dos valores individuais pode proporcionar.

Deduz-se daí que para que a função inferior seja percebida é necessária umaconfrontação entre esta e a função primária; um confronto entre o que um indivíduo temsido e o que seu eu necessita ser para se tornar mais fiel a si mesmo, pois o desejo de vir aser só é verdadeiramente apreendido quando, do confronto destas funções, dá-se conta queo que se tem sido não é satisfatório e não é capaz de harmonizar os contínuosquestionamentos que assolam a alma humana. Deste modo, os aspectos referentes “ao quese tem sido” lançam a tese da adaptação de encontro “ao desejo de realização” (oposto

34  Forças arcaicas: são pensamentos, fantasias e sentimentos primais ou originários. Conforme Jung, “O arcaísmo liga-se, (...), ás fantasias do inconsciente (...) são também as associações por analogia feitas pela

 fantasia inconsciente, bem como o seu simbolismo. A relação de identidade com um objeto ou  participacion mystique  (...). O concretismo de pensamento e de sentimento (...); (...), a compulsão e a inabilidade paracontrolar-se (...). (...) a fusão das funções psicológicas (...)”. (JUNG, CW 6, par. 764).

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complementar ou antítese), o que produz uma tensão saudável que se volta para anecessidade de construir uma nova realidade onde tais opostos possam se harmonizar deforma criativa e integrativa, o que conduz a uma síntese (ou transcendência) que guarda emsi os aspectos de uma nova tese, dando origem a um novo ciclo evolutivo (processo de

individuação) da psique.

Pelo exposto acima, a função transcendente encontra seu lugar neste processo dialético, uma vez que “ As tendências do inconsciente e da consciência são osdois fatores que compõem a função transcendente.” (JUNG, CW 8ii, par. 145), assimsendo, esta função se vale de símbolos para promover a união dos contrários. Para tanto, afunção transcendente se utilizando a “imaginação ativa”35 alcança uma síntese que tem porfinalidade ampliar a atitude da consciência conforme descreve JUNG (loc. cit.) ao dizerque: “Ela se chama transcendente por possibilitar organicamente a transição de umaatitude para outra, (...)”. E sua importância no processo dialético é tão significativa queJUNG (CW 8ii, par. 193) chega a afirmar que:

(...), a função transcendente não constitui apenas um elemento valioso aotratamento psicoterapêutico, mas também proporciona ao paciente ainsubestimável vantagem de prestar, com seus próprios meios, umacontribuição de peso para o esforço médico, não ficando, assim,humilhantemente dependente do médico e de sua competência, como acontecefreqüentemente. É um caminho para libertar-se por meio do seu próprio esforçoe encontrar a coragem para ser ele mesmo.

Outro ponto relevante a ser compreendido, no discorrer desta pesquisa, écomo que as relações entre os pares: ego/funções se articulam contribuindo para o processode individuação a partir da estruturação dialética.

Para que seja possível compreender como se dá esta articulação, faz-senecessário conhecer a abrangência do ego dentro do pensamento junguiano, uma vez queeste entende o ego como sendo um complexo central no campo da consciência.Conseqüentemente, se o ego é um complexo ele é formado, como já vimos ao discorrersobre os pares: arquétipo/complexo, por componentes sócio-culturais de caráter adaptativo,o que assenta a análise num lado da questão; tem-se portanto, uma tese.

Ainda sobre o ego, JUNG (CW 17, par. 169) aprofunda a questão aomencionar que sendo o ego “(...) sujeito da consciência, vem à tona como uma quantidadecomplexa, que é constituída, parcialmente, por uma disposição herdada (constituintes docaráter) e, parcialmente, por impressões adquiridas pessoalmente, (...)”, o que por si sórevela-se incompleto para ser assimilado e reconhecido no decorrer de um processo de

individuação e, se assim se mostra, requer uma complementaridade que, pela natureza do psiquismo, será encontrada numa polaridade oposta, de natureza complementar e comfinalidade integrativa. Essa incompletude se justifica pelo fato de que, por vezes, uma

 pessoa “que tenha alguma consciência do ego supõe que conhece também a si mesma: maso ego conhece apenas seus próprios conteúdos, e não o inconsciente e seus conteúdos”.(JUNG, CW 10ii, par. 491). Para que se dê o processo de individuação, faz-se necessáriodiferenciar o ego dos complexos, uma vez que um ego forte, que experimenta a si mesmocomo centro da psique, sucumbe à identificação com o self, do qual deve sua origem, e,caso este fato não receba a devida atenção, instala-se uma inflação do ego de tal proporçãoque o processo adaptativo começa a sofrer distúrbios. Para que isso não ocorra entra nesta

35 Imaginação ativa: método de assimilação dos conteúdos inconscientes, p. ex., sonhos e fantasias, atravésde alguma forma de auto-expressão. [N do A.]

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articulação o elemento oppositorum, neste caso, as funções psíquicas com o fim deintroduzir no processo o elemento antitético.

Por serem as funções uma forma de atividade psíquica, ou manifestação dalibido, que permanecendo a mesma sob certas condições, conferem ao modelo junguiano a

contraparte ideal para confrontar-se com ego para que se dê a superação das oposições, éque se possibilita a construção de um caminho a novas ampliações da consciência. Se oego precisa reconhecer-se como parte integrante do self, deste diferenciando-se, é precisoque o ego reconheça o que não lhe é próprio, ou seja, o que é próprio do inconsciente. Aocontrapor seus conteúdos bem delimitados, organizados, estruturados e conhecidos aosconteúdos autonômicos, irrepresentáveis e aleatórios trazidos à superfície pelas funções, oego passa a reconhecer-se como mais um elemento constituinte do sistema e não como osistema em sua totalidade, sendo dele dependente para que se torne integrativo e único,

 portanto, é exatamente quando se instala a confrontação que se estabelece à possibilidadecriativa de ampliar a consciência para que o ego liberto do self permita que cada elementoconstituinte da psique, incluindo ele, tenha uma existência verdadeira e integradora, por

extensão, uma realidade dialética.

Concluindo esta sessão, mediante ao exposto até aqui, os pares:individuação/adaptação se desenvolvem como sendo a conseqüência finalista dosconstantes conflitos aos quais a alma humana está submetida; cabendo, portanto,considerar que do ponto de vista junguiano a individuação, como processo, tem por metaconciliar-se com o processo adaptativo sem abrir mão da sua essência e também sem

 produzir o alheamento social que poderia ser desencadeado caso atenção fosse dadasomente à adaptação desconsiderando a realização pessoal. Tal entendimento se assenta nofato de que para JUNG (CW 6, par. 914) individuação é um processo de diferenciação

 psicológica que tem como finalidade o desenvolvimento da personalidade individual.

(...) a individuação é um processo de diferenciação que tem por objetivo odesenvolvimento da personalidade individual. A sua necessidade é natural namedida em que uma obstrução da individuação, graças a normatizações preponderantes ou até mesmo exclusivamente coletivas, poderia acarretarlimitações da atividade vital do indivíduoA meta da individuação não consiste senão em destruir o self, por um lado, dosfalsos envoltórios da  persona  e, por outro, da força sugestiva das imagens primordiais (op. cit., par. 269).

Este processo é dependente da relação existente entre o ego e oinconsciente. Com isto, a meta se volta não para o domínio de seus conteúdos psíquicos

com vista à perfeição e, sim, para uma familiarização integrativa com tais aspectos. Este proceder amplia a compreensão do si mesmo como um fenômeno único capaz de criar e deestar sujeito a limitações, bem como integra o individuo a realidade sócio-culturaltornando-o capaz de estabelecer contato entre esse o si mesmo “particular” e outros simesmos, o que inclui, por extensão, a humanidade enquanto uma sociedade que seconstrói a cada momento da existência. JUNG (CW 16ii, par. 448) ressalta estaimportância ao propor que “ A individuação tem dois princípios: em primeiro lugar, é um

 processo interno e subjetivo de integração, e, em segundo, é um processo igualmenteindispensável de relacionamento objetivo. Nenhum pode existir sem o outro, embora,algumas vezes, predomine um e, algumas vezes, outro”. Neste processo, a individuação secontrapõe aos padrões coletivos de vida, o que acarreta uma implicação de orem moral

vivenciada pela culpa. O resgate psíquico se dá por meio de uma produção pessoal em benefício social ou coletivo, conforme afirma JUNG (CW 18ii, par. 1095) ao declarar que:

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 A individuação nos afasta da conformidade pessoal e, por isso, da coletividade.Esta é a culpa que o individuante deixa atrás de si, perante o mundo, a culpaque deve esforçar-se por redimir. Ele deve oferecer um resgate em favor de simesmo, isto é, deve gerar valores que sejam um substituto equivalente de sua

ausência na esfera pessoal coletiva. Sem esta produção de valores, aindividuação final é imoral, e, mais do que isto, é suicida.

Como o processo de individuação conserva o respeito pelas normascoletivas, este processo é levado a termo de modo consciente. Isto lhe confere acapacidade de realizar o self como uma realidade psíquica maior que o ego como asseguraJUNG (CW 9i, par. 278) ao mencionar que “ A finalidade do processo de individuação é asíntese do self”. Jung não se furta de afirmar que, no tocante ao processo de individuação,a meta não tem importância maior do que o processo em si mesmo, uma vez que é nadialética que o indivíduo se constrói e se reconstrói, ou seja, que a realidade se descortina.Por assim ser, a meta é a bússola do processo criativo com vista ao autoconhecimento, ou

seja, á individuação, o que não implica, por assim dizer, na necessidade da alma de atingi-la, mas implica inexoravelmente na necessidade de vivenciar os processos que a eleconduz. Sobre isto, afirma JUNG (CW 16ii, par. 400): “ A meta é importante somenteenquanto idéia; o essencial é o opus que conduz à meta: isto é a finalidade da vida”. 

Conforme descrito, colige-se que a individuação também se volta para umaúnica parte da questão, qual seja, fornecer os elementos necessários ao ser cognitivo emdesenvolvimento para que este, se valendo dos seus potenciais latentes, consiga se

 perceber dentro de uma dimensão psíquica mais abrangente, qual seja, percebendo-secomo um elemento formador e modificador da realidade objetiva. Porém, odesenvolvimento humano, ao si mesmo, não se restringe, de sorte que é vital ao indivíduoentrar em contato com sua realidade objetiva para que seus conteúdos subjetivos possam

estabelecer uma vinculação com o meio capacitando-o a integrar estes dois aspectos deforma criativa e particular. Portanto, se os conteúdos subjetivos, inerentes ao indivíduo,estiverem apartados do seu momento histórico será impossível a este desenvolver a suaopus. Este momento histórico contém os dados relevantes ao processo adaptativo, quesurge então como o elemento oppositorum  à individuação, de modo que destaconfrontação dialética nascerá, por meio de uma expressão criativa e integrativa, uma

 psique assentada nas realidades objetiva e subjetiva.Isto se dá porque a adaptação é um processo através do qual chegamos, por

assim dizer, a um acordo entre o mundo exterior e nossas próprias características psicológicas.

Antes que [a individuação] possa ser considerada como um objetivo, é preciso,em primeiro lugar, atingir a meta educacional de adaptação a um mínimonecessário de normas coletivas. Para que uma planta desenvolvacompletamente sua natureza específica, é necessário, antes, que ela seja capazde crescer no solo no qual está plantada (JUNG, CW 6, par. 855).

Isto leva a conjectura de que sendo a vida mutável, bem como suasrealidades históricas, o ser em processo de individuação precisa, antes de tudo, de disporde um mecanismo que lhe permita acompanhar tais circunvoluções, sem, contudo,interferir em sua essência, pois caso isso viesse a ocorrer, a desarmonia psíquica seinstalaria e com ela viria toda sorte de distúrbios psíquicos. Portanto é plausível admitirque uma “quebra” entre essas articulações comprometeria todo o processo dialéticovoltado à ampliação da consciência. Tal observação respalda-se na afirmação de JUNG(CW 8i, par. 75) quando este se pronuncia sobre esta questão do seguinte modo:

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 [Um indivíduo] (...) pode satisfazer as exigências da necessidade externa de ummodo ideal somente se estiver também adaptado ao mundo interior, isto é, seestiver em harmonia consigo mesmo. Inversamente, ele pode só adaptar-se aomundo interior e alcançar a harmonia consigo mesmo quando estiver adaptado

às circunstâncias ambientais.

Se o que afirma Jung é verdadeiro, constata-se novamente que para aedificação de uma personalidade fiel a si mesma, capaz de expressar-se livremente,habilitada a produzir frutos sociais relevantes e criativos, transformando a realidadeobjetiva concomitantemente à ampliação das realidades subjetivas, é imprescindível aintegração dos opostos: individuação/adaptação, pois deste processo de ação/reação,muitas vezes nomeadas por Jung como processo alquímico, surja uma realidade pessoal eúnica mais bem adaptada ao meio e mais fiel a si mesma, o que remete ao chamado“elemento transcendente” cujo conteúdo é o potencial renovador, o que em última análisecompõe a tríade dialética: tese (individuação), antítese (adaptação) e síntese (ampliação).

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CAPÍTULO V:

RELAÇÃO COM A ALTERIDADE

 No tocante ao aspecto da alteridade, antes de tudo, é imprescindíveldelimitar a importância deste conceito. Por alteridade entendem-se os aspectos relativos aoestado ou à qualidade, à distinção e à diferenciação. Ao lançar-se o olhar para a origemetimológica, com o fim de abranger uma maior compreensão, é possível estabelecer

relações relevantes ao “estado do ser” como significado precípuo de “alteridade”. CUNHA(1982, p. 568) descreve que do latim alter, altera, alterum  (séc. XIII) extrai-se osignificado de “diverso do primeiro, o próximo”, denotando, assim, o aspecto dedesdobramento de um estado original em outras partes constituintes, o que não só acarretaa ampliação do significado do termo, como também estabelece a necessidade de se avaliaras implicações promovidas por tal ampliação.

Ainda valendo-se da mesma raiz latina, alter   (no séc. XV), conformeCUNHA (1982, p. 35), demonstra que o termo que antes era um adjetivo se desdobra emverbo, adquirindo o conceito de “modificar, transformar ”, portanto aquilo que guardavaem si uma natureza qualificadora adquire uma natureza possibilitadora do “vir a ser”.Logo, alteridade, passa a representar uma qualidade que trás em si a possibilidade de

ampliar seu significado, uma vez que esta qualidade trás, em sua essência, a capacidade para se transformar, para se distinguir, para se diferençar. Surge então a questão: sediferençar de quê? Pois bem, se é possível cogitar uma possibilidade de distinção é porque,a priori, ela já é portadora de um significado, isto implica no fato de que já é portadora deum conceito, de uma representatividade, o que, em última análise, pode ser consideradocomo um lado da questão. Como este lado oferece conteúdo suficiente para uma avaliação,uma ampliação e uma pesquisa, pode-se considerá-lo como uma parte do processodialético: a tese. Continuando o raciocínio, se ela é passível de adquirir, por meio da

 potencialidade que possui, uma ampliação do seu significado passando a formar uma outraconcepção, levanta-se um segundo questionamento, qual seja: que novo significadoadquiriu e qual é a sua relevância?, o que dá nascimento ao outro lado da questão, que uma

vez portadora de propriedades que também podem ser avaliadas, ampliadas e pesquisadasacarreta o surgimento do antípoda dialético: a antítese. Este processo oppositorum permiteo desenvolvimento de novas percepções da realidade, cria uma tensão que carece decompreensão, e, para que isso seja possível faz-se necessário pôr-se disponível aoconhecimento e às mudanças. Até aqui o raciocínio explica as questões levantadas acima,

 porém desencadeia outra questão, qual seja: a custa de que se dá essa diferenciação? E aresposta plausível é: a custa de um elemento mediador, de caráter transcendente, comfunção catalisadora e que não modifica em essência os significados, mas os amplia aqualidade tornando-os mais ricos ao mesmo tempo em que preserva uma conexão, ou raizcomum, com o que as originou. A isto se dá o nome de síntese (terceiro elemento do

 processo dialético).Chega-se, deste modo, a importância do aprofundamento, uma vez que o

conseqüente desdobramento, a distinção ou a alteridade dos conceitos proporciona

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abrangência conceitual criando espaço para que outros aspectos subjetivos possam ser percebidos de forma objetiva, o que, em última análise, constitui um processoeminentemente dialético.

Tendo assim situado o porquê de se aprofundar o tema partindo de uma

abordagem alterativa, nesta sessão, a pesquisa irá voltar seu interesse para os seguintes pares de desdobramentos conceituais: anima/animus, sombra/persona, funçãoinferior/persona e introversão/extroversão.

Um dos desdobramentos arquetípicos pode ser analisado por meio dos pares: anima/animus. Anima, o lado feminino interior do homem, é tanto um complexo pessoal como uma imagem arquetípica. JUNG (CW 9i, par. 66) chega a afirmar que “ Aanima é o arquétipo da própria vida”. Dentro da psique, a anima funciona como alma,influenciando as idéias, atitudes e emoções de um homem. Como personalidade interior, aanima é complementar a persona, o que lhe confere uma função compensatória. Em simesmo, a anima é portadora do processo dialético, uma vez que compensando a persona,

amplia a consciência possibilitando maior estabilidade psíquica através do surgimento deuma nova síntese.

A  persona, a representação ideal de um homem, como ele deveria ser, éintimamente compensada pela fraqueza feminina e, embora o indivíduorepresente, externamente, o papel de homem forte, torna-se, intimamente, umamulher, isto é, a anima, pois é a anima que reage a  persona. Como, porém, omundo interior é obscuro e invisível (...) e como o homem é tanto menos capazde conceber sua fraqueza quanto mais se identifica com a  persona, acontraparte da  persona, a anima, permanece completamente na treva e se projeta de repente, (...) (JUNG, CW 7ii, par. 309).

A anima desdobra-se ainda, conforme Jung, em outros quatro estágios personificados por Eva, Helena, Maria e Sofia. Verifica-se, então, que a anima semanifesta sob qualquer aspecto ou forma com o fim de compensar a atitude conscientedominante. Cumprindo esta função a anima integra os aspectos pessoais tornando seusignificado compreendido, o que não equivale dizer que uma vez integrado estesconteúdos estão exauridos, citando JUNG (CW 9ii, par. 40).: “Embora os efeitos da anima(...) possam se tornar conscientes, eles são, em si mesmos, fatores que transcendem aconsciência e que estão além do alcance da percepção e da vontade”. 

Pode-se inferir que a importância da anima durante o processo de análiserefere-se ao fato de que ela possibilita uma integração com as bases arquetípicas da vida

 psíquica sob o prisma da transformação qualitativa das relações integradoras, portanto,

curativas. Isto é observado quando num momento de distúrbio psíquico de qualquernatureza os arquétipos são acionados no intuito de preservar a personalidade, talmecanismo, ou processo, se faz à custa da anima (ou mediado por ela), o que acaba por lheconferir uma dinâmica dialética.

O animus é a figura anímica masculina na mulher, um equivalente daanima, é o princípio do Logos, ou seja, do juízo e julgamento. Tal como ocorre na anima,o animus se desdobra ainda em quatro estágio que envolve a força (personificado na figurado atleta), a independência, a palavra (o clérigo) e a espiritualidade (o Hermes). Enquanto

 para o homem a assimilação dos efeitos da anima envolve a descoberta dos sentimentos, para a mulher esta assimilação tem por fim o questionamento de suas idéias e valores.JUNG (CW 9ii, par. 29) assim se coloca:

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A mulher é compensada por meio de uma essência masculina; por isso, seuinconsciente tem uma espécie de marca masculina. (...) Esse termo significarazão ou intelecto. Assim como a anima corresponde ao Eros  materno, oanimus corresponde ao Logos paterno. (...) Faço uso dos termos Eros e Logos apenas como instrumentos de apoio para descrever o fato de que a consciência

da mulher é caracterizada mais pelo caráter de integração do Eros do que pelocaráter de discernimento e de cognição do  Logos. Nos homens, o Eros, afunção de relação, encontra-se, via de regra, menos desenvolvida do que o Logos. Na mulher, por outro lado, o Eros  é a expressão de sua naturezaverdadeira.

O que se pode depreender do acima exposto é que o que é relacional aonível da consciência feminina encontra seu oppositorum  através da presença do animusnum nível inconsciente; assim como, o que se traduz como sendo discriminador a nívelconsciente no homem é compensado pelo seu oposto inconsciente expresso pela anima.Logo, os aspectos integrativos estão para os cognitivos em oposição complementar

 possibilitando a aquisição de novos conhecimentos que ampliam as perspectivas da alma;o mesmo se dando com a natureza feminina em relação à masculina, e, aos arquétiposanima e animus em relação ao equilíbrio dinâmico da psique. Evidenciando assim, a

 presença de um processo dialético estruturalizador.

(...) [O] acordo com o animus é, em princípio, (...) [o mesmo empregado] nocaso da anima; só eu, neste caso, a mulher deve aprender a criticar e conseguircerta distância de suas opiniões, não para reprimi-las, mas para penetrar mais afundo no seu âmago, investigando suas origens. Nele, ela descobrirá as imagens primordiais,36  justamente como ocorre ao homem no trato da sua anima (JUNG, CW 7ii, par. 336).

Continuando a pesquisa sob a perspectiva alterativa, uma outra “qualidade

do ser” pode ser informada através da análise da sombra e de sua articulação tanto com a função inferior  quanto com a persona.

A sombra, na psicologia junguiana, se revela alterativa pelo fato de conterqualidades da personalidade que estão ocultas ou que não foram percebidas. Estes traçosobscuros da personalidade ou do caráter não apenas refere-se a pequenas fraquezas edefeitos, mas envolve um universo maior da personalidade no tocante aos seus aspectos

 pulsionais inferiores.

Há algo de medonho no fato de o homem também possuir um lado sombrio,que não consiste apenas em pequenas fraquezas e defeitos, mas em umadinâmica diretamente demoníaca. (...) Mas se deixarmos esses seres

inofensivos formarem uma massa, poderá surgir dela, eventualmente, ummonstro delirante, (...). Temos um leve pressentimento de não estar completossem esse lado negativo, de que temos um corpo que, projeta forçosamente umasombra, e de que renegamos esse corpo (JUNG, CW 7i, par. 35).

A partir do momento que tais perspectivas descortinam-se, fica implícito oconteúdo moral que envolve a questão. Ao tocar neste ponto JUNG (CW 9ii, par. 14) o fazdo seguinte modo: “ A sombra é um problema moral que desafia toda personalidade doego, pois ninguém pode tornar-se consciente da sombra sem um considerável esforçomoral. A sua conscientização envolve o reconhecimento dos aspectos sombrios da

 personalidade como presentes e reais”. Assim sendo, todas as porções reprimidas

36 Imagem primordial: termo utilizado para se referir ao arquétipo ou imagem arquetípica, ou seja, forma ourepresentação de um arquétipo na consciência. [N. do A.]

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(ressentimentos infantis, fantasias, motivos morais) da alma, uma vez inferiorizada eculposa, exercem o domínio de modo inconsciente, o que acaba por conduzir ànecessidade de integração consciente. Estas características rejeitadas são muitas vezesexperimentadas sob dois aspectos: (1) nos outros, por meio da projeção a outro dirigido e

combatida no outro por engano, ou (2) nos sonhos, por pessoas do mesmo sexo dosonhador; se homem, sonha, p. ex., com ladrões; se mulher, com prostitutas. Em ambas assituações são figuras socialmente marginalizadas que carecem de serem resgatadas(integradas). Até aqui se evidenciou um aspecto da sombra. Como, pelo que vem sendodesenvolvido, o processo de construção psicológica junguiano se faz sobre um construtodialético, resta encontrar a porção oposta desta dinâmica.

O aspecto antitético da sombra consiste no fato de que esta não é apenas oreverso sombrio da personalidade, pois, é portadora de instintos, habilidades e qualidadesque nunca se tornaram conscientes. JUNG (CW 11i, par. 134) assegura que: “ A sombra ésimplesmente um pouco inferior, primitiva, desadaptada e desajeitada; não totalmentemá. Contém até qualidades infantis ou primitivas que poderiam de certo modo vitalizar e

embelezar a existência humana, mas – a convenção o proíbe”! Portanto, a síntese,desencadeada por esse processo dialético, que tem por base o confronto de ambos osaspectos sombrios, permite uma ampliação da consciência, uma vez que o enfrentamentodos aspectos sombrios proporciona o reconhecimento de aspectos inerentes à

 personalidade, bem como, sua integração ao dinamismo da psique, o que amplia acapacidade adaptativa e de realização pessoal.

Outro importante ponto nessa dinâmica dialética se faz da sombra para coma  persona. Uma vez que por persona pode-se depreender o “eu” com o qual nosapresentamos ao mundo como afirma JUNG (CW 9i, par. 801) ao dizer que “ A persona é(...) um complexo funcional que passa a existir por razões de adaptação ou conveniência

 pessoal.”, ou seja, um equivalente ao ideal de nós mesmos, pois “ A persona é aquilo quenós não somos, mas aquilo que tanto nós como os outros pensamos que somos”. (op. cit.,

 par. 221). No entanto, por ser um desdobramento de um complexo, o que lhe confere uma“qualidade do ser”, um aspecto de alteridade, é tanto uma proteção ao ego quanto umavantagem no envolvimento com outras pessoas, uma vez que as relações sociais seestabelecem pela interação mediada por ela. A persona é vivenciada comoindividualidade37 que ora é percebida como identidade social e ora como imagem ideal, demodo que, verdadeiramente, de individuação há muito pouco tendo em vista que “Ela é,como o nome indica, uma máscara da psique coletiva, uma máscara que fingeindividualidade , fazendo com que nós e os outros acreditemos que somos indivíduos,embora estejamos, simplesmente, desempenhando um papel através do qual a psique

coletiva se exprime”. (JUNG, CW 7ii, par. 245).Pode-se coligir que um dos aspectos da persona consiste em dar aoindivíduo elementos que favoreçam a adequação necessária e relevante à integração social,à realidade objetiva. Por outro lado, sofre oposição dos aspectos inerentes aodistanciamento de suas potencialidades psíquicas subjetivas, representado pela sombra.Esta reflexão possibilita observar que existem aspectos dinâmicos no interior da própria

 persona que necessitam transcender a um novo estágio de percepção para que seja possívela harmônica inclusão das porções opositoras da própria persona. Esta coniuntios se fará àcusta da sombra que, adentrará o processo trazendo à tona conteúdos subjetivos quedesempenharão tanto um papel catalisador como potencializador com vista à individuação;

37

 Individualidade: Qualidades ou características que distinguem uma pessoa da outra. “Por individualidade,entendo a peculiaridade e a singularidade do indivíduo em todos os aspectos psicológicos”. (JUNG, CW 6, par. 857). 

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tendo em vista que a sombra é inibida pela persona é possível concluir que sombra e persona se contrapõem mutuamente para revelar que se por um lado “não somos tudo quefingimos ser” por outro “também não somos o que gostaríamos de ser”. Portanto, é desteenfrentamento oppositorum que nascerá uma nova realidade à consciência, de sorte que

“O processo que nos leva a um acordo com o Outro dentro de nós é sumamente válido, porquanto através dele chegamos ao conhecimento de certos aspectos de nossa naturezaque jamais permitiríamos que outros nos mostrassem e que nós mesmos jamaisadmitiríamos.” (JUNG, CW 14ii, par. 365), o que culmina num processo eminentementedialético.

A função inferior  torna-se também um elemento oppositorum a persona, àmedida que JUNG (CW 9i, par. 222) admite um paralelo entre esta e a sombra dizendoque “ A função inferior é praticamente idêntica ao lado sombrio da personalidadehumana.”, se assim é, resulta daí a existência de um dos elementos que conduz à síntesedialética. Isto se dá porque à função inferior se vincula a aspectos obscuros, poucodesenvolvidos da psique ligados a percepção coletiva; fator que a difere da sombra que se

volta para os aspectos pessoais. Cabe ressaltar, embora não seja objeto desta pesquisa, quequando a sombra passa a ser arquetípica ou transpessoal, essa diferenciação deixa deexistir tornando ambas, peculiarmente, equivalentes. Contudo, no tocante à necessidade deum contraponto que exerça o papel antitético, tão necessário para que se dê a coniuntios, a

 persona cumprirá esta função, uma vez que ela tanto serve de questionamento àsexpressões pessoais, na medida que propõe uma reflexão sobre o “porque de não sermos oque gostaríamos de ser” quanto às coletivas, quando perscruta sobre “qual a finalidade desermos como somos”. Deste modo, o confronto entre função inferior e persona dispõe aoequilíbrio psíquico permitindo que os aspectos funcionais menos desenvolvidos danatureza humana tornem-se mais bem elaborados. Isto possibilita a ampliação daconsciência ao mesmo tempo em que respeita a dinâmica dialética que serve de substratoao processo de individuação.

Outra alteratividade significativa consiste no par: extroversão/introversão.Conforme FORDHAM (1966, p. 30) “ Jung distingue duas atitudes diferentes perante avida, dois modos de reagir às circunstâncias, (...)”. Na psicologia junguiana entende-se

 por “atitude” a prontidão da psique para produzir uma ação ou reação, de um determinadomodo, com base em uma orientação psicológica subjacente. Essa orientação se fará à custado movimento predominante da libido. A título de orientação, para deixar claro certosaspectos da psicologia junguiana, bem como, evitar possíveis dúvidas, é importanteressaltar que o par extroversão/introversão já é uma alteridade ainda mais específica doschamados tipos psicológicos, pois ao definir quatro funções psicológicas básicas, a saber:

 pensamento, sentimento, sensação e intuição, JUNG (CW 6, par. 919) afirmou que“Quando alguma dessas atitudes é habitual , imprimindo, assim, uma marca especial nocaráter de um indivíduo, estamos diante de um tipo psicológico.”, e completa seuraciocínio dizendo que “Pode-se estabelecer uma divisão adicional em duas classes,através da tendência dominante do movimento da libido, a saber, introversão eextroversão.” (loc. cit.).

Com base no que foi exposto, estes pares conferem ao comportamentoreacional humano uma “qualidade do ser”, o que permite, então, tornar esses elementosconceituais parte dessa pesquisa.

É objeto de análise junguiana a compensação que ocorre nos indivíduos que

em nível de consciência apresentam uma atitude extrovertida enquanto no seu inconscientese dá o contrário; isto também é considerado por Jung no sentido inverso. Por que isso se

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dá e como se articulam para construir um processo dialético de equilíbrio dinâmico da psique, com vista à individuação, é o que será considerado deste ponto em diante.

Por extroversão FORDHAM (1966, p. 30) entende a caracterização do “(...)

movimento da libido em direção ao exterior, pelo interesse por acontecimentos, coisas e pessoas, pelo estabelecimento de relações com elas e pela dependência delas”. Portanto, ainfluência sobre pessoas com essa disposição psíquica advém diretamente do meio.FORDHAM (loc. cit.) chega a citar que “O tipo extrovertido é sociável e confiante emambientes que lhe não são familiares”. Geralmente, tais tipos confiam naquilo que temsua origem no exterior não sendo propenso a examinar suas motivações pessoais. Assimsendo, existe uma forte tendência do extrovertido em sacrificar a realidade interior àscircunstâncias externas. JUNG (CW 6, par. 797) chega a afirmar que “(...) a extroversão é,de certo modo, uma transferência do interesse do sujeito para o objeto”. Pois bem, assimsendo, significa dizer que o risco de unilateralidade existe, ou seja, do indivíduo deixandode perceber sua contraparte introvertida, acabe construindo uma realidade na qual fica

“(...) preso nos objetos e se perde completamente neles.” (op.cit., par. 633); e, por isso,faz-se necessário um elemento em contraposição que exerça a função compensatóriaevitando que a dinâmica da psique sucumba à possessão da essência extrovertida. Assim,está estabelecida uma parte do processo dialético, uma tese. A contraparte faltante dizrespeito ao introvertido; elemento antitético que será objeto da dissertação seguinte.

Por introversão FORDHAM (1966, p. 31) entende uma atitude na qual alibido se volta para o íntimo, conectando-se aos fatores subjetivos. Chega, também aafirmar que “Este tipo tem falta de confiança nas relações com as pessoas e as coisas,tende a tornar-se insociável, prefere a reflexão à ação.” (loc. cit.). Quando a consciênciade um indivíduo é orientada de forma introvertida, seu inconsciente se comporta no

sentido inverso para que se estabeleça uma compensação visando o equilíbrio dinâmico da psique possibilitando ao indivíduo aproximar-se de sua individuação. JUNG (CW 6, par.864) assevera que “ Alguém que está disposto introvertidamente pensa, sente e age de ummodo que deixa transparecer claramente que é o sujeito o elemento motivado, enquantoao objeto atribui-se um valor no máximo secundário”. 

O perigo da unilateralidade pode ser bem compreendido quando JUNG (op.cit., par. 697) menciona que “ A liberdade de pensar do indivíduo está restringida pelaignomínia de sua dependência financeira, sua liberdade de ação treme diante da opinião

 pública, sua superioridade moral desmorona face ao marasmo das relações inferiores, esua vontade de domínio finda em um lastimável desejo de ser amado”. Por tudo isso, é

que se faz necessário a coniuntios dessas duas atitudes, pois a integração desses opostoslançará uma nova luz ao desenvolvimento psíquico permitindo que seus aspectos positivose negativos, por assim dizerem, se complementem com o fim de proporcionar a psiqueuma atitude parcimoniosa consigo e com o meio, em outras palavras, gerando uma sínteseque evitaria os destemperos para os extremos: da exposição desmedida (no extrovertido)ou da reclusão negligente (no introvertido).

Conclui-se, então, que o processo dialético é vital para o equilíbrio das“qualidades do ser” ou dos aspectos relativos à alteridade, uma vez que ele proporciona oapaziguamento entre opostos, a percepção de novas possibilidades e a integração holísticadas diversidades em prol da unanimidade psíquica sem, contudo, macular, de algum modo,a essência psíquica individual.

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CAPÍTULO VI:

RELAÇÃO COM A TOTALIDADE

A relação de totalidade denota um estado no qual a consciência e oinconsciente se harmonizam. No contexto da psicologia analítica, e considerando-se que oobjetivo final de todo processo psicológico, na linha junguiana de pensamento, se volta

 para a individuação, tem-se na totalidade a conexão vital com o self , com o desejo

conflituoso, em outras palavras, dialético de tornar-se perfeito.As funções inferiores se contrapõem à função superior, não em sua essênciamais profunda, mas devido a sua forma momentânea. Foram originalmentedesprezadas e reprimidas porque eram um obstáculo para o homem cultoatingir seus fins. Estes consistiam em interesses unilaterais, não condizentescom uma perfeição da individualidade humana. (...) Enquanto o fim da culturanão coincidir com o ideal de perfeição do ser humano, estas funções serãosubmetidas a uma depreciação e a uma relativa repressão. (...) Só é possívelchegar a esta independência apaziguando-se esta luta, o que parece impossívelsem um domínio despótico sobre as forças em conflito. Com isso, compromete-se a liberdade e, sem ela, não se pode construir uma personalidadenormalmente livre. (JUNG, CW 6, par. 113).

Este conceito de totalidade tem descrito o contexto holístico das relações psíquicas, a realização do ser humano de forma integral, o que em última análise leva ao processo de individuação Neste contexto, a totalidade de que se fala não tem a pretensão deser perfeita, mas tem o compromisso de se desenvolver autonomamente a partir de um

 penoso confronto com as próprias dificuldades. É essencial unir as diferentes porções da personalidade reconciliando os fatores oppositorum. Por assim ser, este processo seconstitui num embate dialético ao qual JUNG (CW 12, par. 6) se refere do seguinte modo:“ Mas o caminho certo para a totalidade (...). Não [é] uma linha reta, mas um ziguezagueque liga os opostos, (...), uma trilha cujo entrelaçamento labiríntico não se dá sem medo”.A totalidade é incitada por meio das imagens e símbolos arquetípicos que unem a

consciência e o ego ao self. Assim sendo, a totalidade representa a expressão mais plena possível de todos os aspectos da personalidade. Percebe-se estas relações de totalidade naanálise dos pares: self e personalidade-mana, símbolo e signo, causalismo e finalismo,invasão e embotamento, por serem estes aspectos da psicologia analítica significativos, noque concerne, a um universo conceitual holístico.

Se holismo pode ser conceituado como a “(...) Compreensão da realidadeem totalidades integradas (...), assim como o todo está na parte, numa inter-relaçãoconstante, dinâmica e paradoxal”. (MICHAELIS, 1998), é possível inferir que holismoguarda íntima relação com processo dialético, à medida que ao se considerar “as partes”(tese e antítese) como dinâmicas e paradoxais de uma totalidade integrativa está se

 possibilitando que afirmações, a priori, opostas estejam convivendo harmonicamentenuma mesma realidade sem perderem seus significados singulares, porém se prestando aoestabelecimento de uma nova ordem (síntese), de um novo significado que permite a

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existência simultânea dos conceitos numa outra “dimensão” perceptiva; isto, nada mais éque um processo dialético, o que põe os pares acima mencionados no contexto desta

 pesquisa.A paridade self/personalidade-mana pode começar a ser avaliada pelo

conceito que JUNG (CW 12, par. 44) atribuiu ao self : este “(...) não é somente o centro,mas também a circunferência total, que abarca tanto o consciente quanto o inconsciente; éo centro desta totalidade, assim como o ego é o centro da consciência.”, portanto o self é oarquétipo da totalidade, o centro regulador da psique e é dotado da capacidade detranscender o ego, uma vez que é transpessoal como afirma JUNG (CW 6, par. 902):

(...), abrange tanto aquilo que é passível de experiência, quanto àquilo que nãoo é (ou aquilo que não foi ainda objeto de experiência) (...). É um conceitotranscendente, pois pressupõe a existência de fatores inconscientes com basesempíricas, caracterizando, assim, uma entidade que pode ser descrita apenas em parte.

 No entanto, se o self só pode ser descrito em parte, isto significa que se estádiante de apenas um lado da questão. Por assim ser, a realização do self, como fator

 psíquico autônomo, tem por necessidade de completude que contar com irrupções deconteúdos inconscientes. Deste confronto é possível surgir uma renovação da

 personalidade, pois “O ego não pode evitar de fazer a descoberta de que o afluxo deconteúdos inconscientes vitalizou a personalidade, enriqueceu-a e criou uma figura que,de certo modo, obscurece o ego em alcance e intensidade (...)” (JUNG, CW 8ii, par. 430).O conceito de self remete às possibilidades conscientemente transcendentes derelacionamento com Deus e com o Cosmos, com o “ser” e com tudo “o que é”, JUNG(CW 7ii, par. 399) chega a afirmar que o self “(...) não é nada mais que um conceito

 psicológico, uma construção que deve expressar a entidade irreconhecível, aquela que,

como tal, não podemos conceber, pois ultrapassa nossa capacidade de compreensão. Essaentidade também pode ser chamada de ‘o Deus em nós’ ”.

Porém, este fator ordenador e arquetípico do mundo imagético da alma, quese expressa de inúmeras formas pictóricas e simbólicas, e que é caracterizado como umfator psicodinâmico e numinoso, carece de sua contraparte que permita ao numinosorelacionar-se com “o mortal”, “o humano”, “o mundo objetal”, e, neste caso surge, paramanter o equilíbrio dinâmico da psique com vista à individuação a personalidade-mana.

Como contraparte, a personalidade-mana representa a imagem arquetípica personificada das forças ditas sobrenaturais, ou seja, ela permite a “incorporação”, nomundo objetal, de poderes transcendentes e numinosos, construindo uma relação que

 permite à psique perceber novas realidades sem, contudo, sucumbir aos poderes do selfque não compreende. Esta “materialização” do transcendente se dá pela “incorporação”,dentro de um contexto coletivo, de aspectos numinosos que prestam serviço ou que dealguma forma contribui com o bem comum, como se fosse um “pai” a zelar por sua prole.JUNG (CW 7ii, par. 377) chama a atenção para essa qualidade coletiva da personalidade-mana ao dizer que “ A personalidade-mana é um dominante do inconsciente coletivo, oconhecido arquétipo do homem poderoso sob forma de herói, chefe, mágico, feiticeiro,santo, regente de homens e espíritos, amido de Deus”.  Portanto, mana38  confere a personauma qualidade sagrada, sobrenatural, mágica. O perigo é a identificação que produz oinflacionamento do ego a partir da assimilação de conteúdos inconscientes autônomos,geralmente associados a anima e ao animus. Para que aja um equilíbrio as forças oriundas

do self se contrapõem às forças da personalidade-mana fazendo perceber que existem38 Mana: qualidade enfeitiçadora ou numinosa de deuses ou objetos sagrados. [N. do A.]

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conteúdos muito mais profundos sobre os quais ela não possui ingerência. Dão-se aí osconflitos criativos dos opostos, cuja conseqüência, desse processo dialético, é a ampliaçãoda consciência às custas do equilíbrio psíquico de forças que tanto se opõem quanto secomplementam.

Os símbolos devem ser entendidos como elementos transformadores deenergia. JUNG (CW 6, par. 912) assim o define: “Toda expressão psicológica é umsímbolo se pressupormos que declara ou significa algo mais e algo diferente dela própria,e que escapa ao nosso conhecimento atual”.  A importância de uma atitude simbólicareside no fato de que ela permite a construção de um sentido próprio de caráter psicológicoque não se deixa prender por uma explicação meramente reducionista. Estes elementos

 possuem a capacidade de transformar e redirecionar a energia psíquica. Este fato temimportância chave no pensamento junguiano com vista à individuação, uma vez que ossímbolos:

Sob forma abstrata, (...) são idéias religiosas; sob forma de ação, são ritos oucerimônias. São a manifestação e expressão do excesso de libido. São, aomesmo tempo, degraus para novas atividades que devem ser chamadas deculturais, de forma a serem distinguidas das funções instintivas, que seguemseu curso normal, de acordo com as leis naturais. (JUNG, CW 8i, par. 91).

Isso confere ao símbolo um papel totalizador, uma vez que permite que sedê a coniunctio da consciência e do ego com o self, através das imagens arquetípicas. Pormeio dos símbolos dá-se a totalização que permite ao homem integrar seus diversoselementos constituintes: as funções tipológicas, a função inferior, os aspectos sombrios da

 psique. Isto lhe adjudica uma “(...) natureza altamente complexa, pois se compõe a partirdos dados de todas as funções psíquicas. Em conseqüência disso, não é de natureza

racional e nem irracional”. (JUNG, CW 6, par. 912). Seu aspecto cultural contribui paraunir e influenciar um número grande de pessoas, pois quanto mais primordial for umsímbolo, mais coletivo será sua ação.

Já a especificidade, a distinção torna o símbolo singular dando-lhe umcaráter de unicidade, quando isso o ocorre se descaracteriza como símbolo assumindo umsentido oposto, o de signo ou símbolo onírico. Embora o símbolo possa ser, e precise paraser plenamente compreendido, analisado em todos os seus aspectos: pictorialidade,composição, psicodinâmica e totalização, nesta pesquisa a atenção incidirá somente sobreas duas últimas. No que concerne ao dinamismo, as imagens simbólicas tem por funçãoreproduzir a realidade subjetiva trazendo à consciência aspectos desconhecidos,reprimidos ou esquecidos da psique atribuindo-lhe um aspecto numinoso, uma vez que écomposta por forças pulsionais de ordem sexual, espiritual, emocional, etc. Por assim ser,

 pertence a uma ordem transcendente que necessita de um contraponto para sercompreendida no mundo fenomenológico. Este contraponto que tanto equilibra quantofavorece a ampliação da consciência é o signo39 ou símbolo onírico.

JUNG (CW 6, par. 904) fazia uma distinção entre símbolo e signo, uma vezque as imagens podem ser interpretadas semioticamente, quando isso ocorre, como p. ex.,

39 Signo: (ou símbolo onírico) Entidade semiológica que substitui o objeto a conhecer, representando-o aosindivíduos e apresentando-lhes em lugar do objeto. (MICHAELIS, 1998) Mas, aparentemente, o quechamamos de inconsciente conservou características primitivas que formam uma parte do espírito primordial. Os símbolos oníricos referem-se constantemente a essas características, como se o inconsciente

tentasse trazer de volta tudo aquilo de que o espírito se livrou durante seu desenvolvimento – ilusões,fantasias, maneiras arcaicas de pensar, instintos básicos, etc. (JUNG, 1996, p. 98).

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na análise dos sonhos e das fantasias, o símbolo adquire umas conotações diferenciadas,únicas e pessoais, o que o torna um signo, pois deixa de conter aspectos coletivos euniversais para conter representações particularizadas. Exemplificando:

A interpretação da cruz como símbolo do amor divino é semiótica, porque‘amor divino’ descreve o fato a ser expresso melhor e de modo mais apto doque uma cruz, que pode ter muitos outros significados. Por outro lado, umainterpretação da cruz é simbólica  quando põe a cruz além de todas asexplicações possíveis, considerando-a como expressão de um fato aindadesconhecido e incompreensível, de natureza mística ou transcendente, isto é, psicológica, (...)

Jung costumava unir os aspectos semióticos e simbólicos às abordagenscausais e finais, respectivamente. Esta união de aspectos opostos demonstra que na

 percepção de JUNG (CW 8i, par. 47) a coniunctios daí resultante oferece ao psiquismo a possibilidade de ampliação da consciência a partir da integração dos contrários, que nestecaso, contrapõe o coletivo ao individual, a totalidade à particularidade, o que em outras

 palavras, nada mais é, que um processo dialético.

O desenvolvimento psíquico não pode ser realizado apenas pela intenção e pelavontade; necessita da atração do símbolo, cujo quantum de valor excede o dacausa. Contudo, a formação de um símbolo não pode ocorrer enquanto a mentenão tiver se fixado nos fatos elementares, por tempo suficiente, isto é, enquantoas necessidades internas ou externas do processo vital não tiverem provocadouma transformação de energia.

Ao mencionar os pares: causalidade/finalidade (ou redutivo/construtivo)acima, engloba-se uma outra abordagem de caráter também totalitário. JUNG (CW 6, par.887) entende que a análise causal ou redutiva implica num ato de ‘conduzir para trás’ noque concerne aos eventos psíquicos, “(...) uma vez que ambos os casos há uma reduçãoaos processos elementares de desejo ou poder, (...)” Este método procura explicar asimagens, bem como, o desenvolvimento psíquico em termos concretos; no entanto, JUNG(CW 7i, par. 88) considerava de importância relevante o processo redutivo como sendo o

 primeiro recurso numa abordagem terapêutica, principalmente na primeira metade da vida.Justificava esta posição alegando que:

As neuroses dos jovens têm, geralmente, sua origem numa colisão entre asforças da realidade e uma atitude inadequada e infantil, que do ponto de vistacausal é caracterizada por uma dependência anormal dos pais reais ou

imaginários, e do ponto de vista teleológico por ficções, planos e aspiraçõesirrealizáveis. Neste caso, os métodos redutivos de Freud e Adler sãointeiramente adequados.

Se assim é, a causalidade na sua abrangência totalizadora se volta para aconcretização e compreensão dos fenômenos a um nível racional obedecendo a “lei decausa e efeito”. Isto fornece elementos explicativos, como exposto acima, a uma metadeda vida, em outras palavras metade da questão. Portanto, já é possível compreender umafaceta do processo de individuação que lança mão dos fatores explicativos. Porém JUNG(CW 8ii, par. 456) deixa claro que:

Os dados psicológicos necessitam de um duplo ponto de vista: o da

causalidade e o da  finalidade. Eu uso o termo finalidade intencionalmente, afim de evitar uma confusão com o conceito de teleologia. Por finalidade

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entendo simplesmente o esforço psicológico imanente para atingir um fim. Emvez de ‘esforço para um fim’, poder-se-ia também dizer ‘sentido de propósito’.Todos os fenômenos psicológicos têm um tal sentido de propósito inerente aeles, mesmo que sejam simplesmente fenômenos relativos, como as reaçõesemocionais”.

Partindo daquele pressuposto, é possível perceber que se a causalidadefornece ao processo psíquico elementos da ordem do concreto, o finalismo enriquece, nasegunda metade da vida, o processo de desenvolvimento, uma vez que oferece um pontode análise com base no resultado ou na potencialidade dos fenômenos psíquicos “virem aser” (cf. Heráclito). Para JUNG (CW 8i, par. 2s) este ponto de vista finalista (ouconstrutivista) era “energético”.

O ponto de vista energético, por outro lado, é, em essência, final; o evento éremontado do efeito à causa, pressupondo-se que existe algum tipo de energiasubjacente às mudanças nos fenômenos, (...), e, finalmente, ocorre à entropia,que é uma condição de equilíbrio geral. O fluxo de energia tem uma direção

definida (meta), no sentido de que segue o gradiente de potencial de um modoque não pode ser revertido”.

Tendo em vista que, para haver um “ato construtivo”, ou em outras palavras, para que a energia cumpra sua meta, é necessário um substrato concreto sobre oqual a energia possa agir promovendo transformações, infere-se que a causalidade tem nafinalidade seu contraponto dinâmico, e, que o reconhecimento de uma não se faz porexclusão da outra, pelo contrário, elas existem e se dão a existir em função deste processodialético de interatividade, onde os aspectos da totalidade se fundem a partir de premissasdistintas, porém complementares, é que se pode concluir que a finalidade pressupõe um

 propósito essencialmente desconhecido (o que contraria uma definição teleológica onde a

finalidade teria uma meta singular) partindo de uma causalidade ou concretudeessencialmente conhecida para integrar-se a uma totalidade coletiva e universalista.

A invasão (também: possessão ou identificação, ou ainda inflação) é um processo no qual a personalidade é parcialmente ou totalmente desassimilada. A invasãofacilita a adaptação ao mundo exterior, porém, com o desenvolvimento da personalidadetorna-se um empecilho ao desenvolvimento individual.

A identificação pode ser benéfica, na medida em que o indivíduo não pode seguirseu próprio caminho. Quando, porém, uma oportunidade melhor se apresenta, aidentificação mostra seu caráter mórbido, tornando-se um impedimento tãogrande quanto antes fora um auxílio e um apoio inconscientes. Seu efeito passa aser dissociativo, cindindo o indivíduo em duas personalidades mutuamente

desconhecidas (JUNG, CW 9i, par. 738).

A invasão descreve a identificação da consciência com um conteúdo oucomplexo inconsciente. Uma invasão se configura numa trama perniciosa porque nutriuma unilateralidade identificada a um padrão específico, o que inviabiliza o contato com omundo interno pessoal ao mesmo tempo em que cria uma relação com o mundo externo

 pautado na vivência das crenças, idéias e paradigmas daquele complexo que está a“fornecer” os elementos integrativos.

O oposto desta situação é percebido no embotamento (também: regressãoou depressão), onde o movimento retroativo da libido conduz às raízes da existência,adequando o indivíduo ao mundo interior, em conseqüência, inviabilizando o processo

adaptativo externo. Como ambas as situações ocorrem por sucumbirem a complexosautônomos, de natureza universalista, é plausível situar tais abordagens ao nível das

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relações de totalidade, uma vez que independem de uma vontade pessoal, mas sim,sobrepõe-se a esta vontade de forma avassaladora.

 No entanto, estas situações propõem ao psiquismo a possibilidade de seintegrar, pois se valem de um processo dinâmico de natureza dialética para demonstrar o

aspecto finalista de tais acontecimentos, uma vez que:

Se lembrarmos que a razão para a estagnação da libido é a renúncia a umaatitude consciente, então poderemos entender em que medida os conteúdosinconscientes ativados pela regressão representam germes valiosos: eles contêmos elementos para a outra função que foi excluída pela atitude consciente e queseria capaz de completar ou substituir efetivamente a atitude consciente a quese renunciou. (...) Por ativar um fato inconsciente, a regressão confronta aconsciência com os problemas da psique e da adaptação exterior. É natural quea consciência resista à assimilação dos conteúdos regressivos, mas é obrigada, por força da impossibilidade de progressão, a finalmente submeter-se aosvalores regressivos. Em outras palavras: a regressão leva à necessidade deadaptação à alma, ao mundo psíquico interior (JUNG, CW 8i, par. 65).

Portanto, é possível inferir que tais processos, tanto invasão comoembotamento, refletem a necessidade de renovação psicológica (como o herói queempreende uma viagem); diz JUNG (CW 7ii, par. 261) com sutileza poética:

São justamente os mais fortes e os melhores dentre os homens, os heróis, quedão lugar aos seus anseios regressivos e se expõem deliberadamente ao perigode serem devorados pelo monstro do abismo materno; mas, se um homem é umherói, ele o é, afinal de contas, porque não deixou que o monstro o devorasse,mas o subjugou, não uma, mais muitas vezes. Somente a vitória sobre a psiquecoletiva confere o verdadeiro valor – a captura do tesouro, a arma invencível, otalismã mágico, ou o que quer que o mito considere o mais desejável.

Donde resta, refletir sobre o fato de que mesmo nos processos totalizadoresda alma, a psique precisa estar em contínuo dinamismo dialético para se compreender, setransformar e se re-construir numa circularidade espiralada rumo ao ideal da individuação.

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CONCLUSÃO

Tendo em vista a pesquisa realizada, cuja finalidade era situar e evidenciara presença do pensamento dialético como processo de análise e construção da realidadeobjetiva e subjetiva, no contexto da psicologia analítica, com vista ao processo deindividuação, foi possível ao longo deste trabalho demonstrar a significância econtribuição marcante que tal processo desempenha no construto da teoria desenvolvida

 por Jung.Pode-se coligir que do entendimento apresentado nesta pesquisa, a atitude

de respeito com os elementos psíquicos, deve ser aplicada tanto ao trabalho analítico comoao analisando. Vê-se que o que aparece em sonhos, fantasias, filosofias, comportamentos esintomas, como esforço de uma personalidade que busca sua singularidade supõe, antes detudo, a existência e a vivência de um processo dinâmico que, ao “conduzir” ou “permitir”a interação e integração dos opostos, confere ao Si-mesmo o status de sustentação deste

 processo transformador, do qual o ego consciente é apenas uma parte essencial. Poder-se-ia dizer que existe no decorrer deste processo uma “’Admissão’ (...), pois o que estáenvolvido são seus dois significados: tanto ‘confessar’ quanto ‘deixar entrar.’” (YOUNG-EISENDRATH & DAWSON, 1997, p. 103), pois esta admissão cuja base processualencontra-se no processo dialético torna possível o reconhecimento da necessidade

conflituosa entre as partes antagônicas do si mesmo que almejam a integração, atotalização de todos os seus aspectos potenciais.É plausível admitir, a partir daí, que o ato de “vivenciar os conflitos” de

forma hegeliana, na teoria de Jung, não é apenas inerente à constituição psicológicahumana, mas essencial ao desenvolvimento da psique; processo esse que se reflete emtoda a teoria junguiana, uma vez que Jung toma como ponto de partida a necessidade doindivíduo de se realizar integralmente por meio das “relações com a integração”; passando

 pela necessidade de qualificar estas transformações, o que se dá através das “relações coma alteridade”; e, culminando com a união dos opostos alcançados pelas “relações com atotalidade” a partir das possibilidades do “vir-a-ser” heraclitiano que se encontram, comoque, adormecidas nos recônditos da alma humana que se expressa subjetivamente por

meio dos complexos e objetivamente pelos tipos psicológicos.YOUNG-EISENDRATH & DAWSON (1997, p. 106) ao mencionarem aimportância desta elaboração dialética, que se inicia a partir dos conflitos entre os opostos,e se projeta, horizontalmente, com o fim de “construir” uma personalidade capaz deexperimentar o processo de individuação, o fazem da seguinte forma:

 Numa situação desse tipo, o caminho verdadeiramente positivo é suportar, tãoconscientemente quanto possível, a tensão destes opostos – não suprimindoqualquer um deles, mas mantendo-os sem resolução. A partir deste trabalhodoloroso, porém honesto, a energia irá por fim afastar-se do conflito em si emergulhar no inconsciente, e a partir dessa fonte irá emergir uma soluçãototalmente inesperada, o que Jung chamava de ‘símbolo’, que irá oferecer uma

nova direção unificada fazendo justiça a ambos os lados do conflito original.

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E deste modo, Jung consegue propor uma nova abordagem propedêutica eterapêutica para a análise dos comportamentos e das personalidades humanas. Consegueresgatar o “outro lado” de cada ser, e consegue dar a este “outro lado” a dignidade, orespeito e um lugar de valor, de reconhecimento e de mérito como parte integrante e

fundamental, que é, do processo evolutivo e singular da individuação que se baseia nastransformações experimentadas por uma psique que se constrói a partir de um continum dialético.

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 ______. Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes, 1971. CW 5.______. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1971. CW 6.______. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1971. CW 7i.

 ______. Eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1971. CW 7ii.______. A energia psíquica. Petrópolis: Vozes, 1971. CW 8i.______. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 1971. CW 8ii.

______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 1976. CW9i.

______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 1976. CW9ii.

 _______.  Aspectos do drama contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1971. CW10ii.

 _______. Civilização em transição. Petrópolis: Vozes, 1971. CW 10iii.______. Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes, 1971. CW 11i.______. O símbolo da transformação na missa. Petrópolis: Vozes, 1971. CW

11iii. ______. Psicologia e alquimia. Petrópolis: Vozes, 1971. CW 12.______. Mysterium coniunctionis. Petrópolis: Vozes, 1971. CW 14ii.

 ______. A prática da psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 1971. CW 16i.

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7/18/2019 Aranha - A Dialetica Junguiana

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Dr. Maurício Aranha A Dialética Junguiana 54

 ______. Abreação, análise dos sonhos, transferência. Petrópolis: Vozes, 1971.CW 16ii.

 ______. O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis. Vozes, 1971. CW17. 

______. A vida simbólica. Petrópolis: Vozes, 1971. CW 18i e 18ii. ______ . Cartas. Petrópolis: Vozes, 2001. Vol. 1______. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,

1975 [tradução do original: Memories, dreams, reflections, 1963]. 23ª impressão. ______ et. al. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Editora Nova

Fronteira, 1996. 10ª edição. 

OSHO. A harmonia oculta – discurso sobre os fragmentos de Heráclito. SãoPaulo: Cultrix, 1976.

MICHAELIS.  DICMAX – Michaelis Português. Moderno Dicionário da

 Língua Portuguesa. DTS Software Brasil LTDA, fev., 1998. Versão 1.0, 1 CD-ROOM. 

MONDIN, Battista.  Introdução à filosofia. São Paulo: Paulus, 1976. 2ª. ed.,rev. e ampl.

 ______. Curso de filosofia. São Paulo: Paulus, 1977. 3ª ed. Vols. 1 e 3.

YOUNG-EISENDRATH, Polly e DAWSON, Terence.  Manual deCambridge para estudos junguiano. São Paulo: Artmed Editora, 1997.

OBRAS CONSULTADAS:

CYRANKA, Lúcia F. M. & SOUZA, Vânia P. Orientações paranormatização de trabalhos acadêmicos. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz deFora, 1991. 6ª ed. rev. aum.

SEVERINO, Antônio S.  Metodologia do trabalho científico. São Paulo:Cortez, 2000. 21ª ed. ver. ampl.

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Dr. Maurício Aranha - Médico pela Universidade Federal de Juiz de Fora; Especialista em Neurociência e Saúde Mental pelo Instituto de Neurociências y Salud Mental da Universidade da Catalunya;Pesquisador do Núcleo de Psicologia e Comportamento do Instituto de Ciências Cognitivas. E-mail:[email protected]