grupos vivenciais sob uma perspectiva junguiana

25
Psicologia USP, 2005, 16(3), 45-69 45 GRUPOS VIVENCIAIS SOB UMA PERSPECTIVA JUNGUIANA Laura Villares de Freitas 1 Instituto de Psicologia - USP Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica Este artigo tece considerações quanto à possibilidade e ao alcance de grupos vivenciais, sob a perspectiva da Psicologia Analítica de Carl G. Jung, em nosso contexto socioeconômico atual. Há uma proposta prática de grupos de construção de máscaras e personagens, e a apresentação e comentários das contribuições de diferentes autores que trazem conceitos junguianos clássicos para a dimensão grupal, consideram de maneira criativa o ritual, do ponto de vista psicológico, e questionam a viabilidade de trabalhos grupais. Numa abordagem mitológica, são considerados Górgona, Dioniso, Ártemis, Eco e Narciso, com destaque à deusa grega Héstia, cujas características são relacionadas a aspectos necessariamente presentes nos grupos vivenciais e à possibilidade de ocorrer uma experiência psicológica. Os grupos vivenciais são considerados favorecedores da perspectiva de alteridade, na medida em que cada participante tem neles a oportunidade de se afirmar e de ser confirmado, isto é, de se expressar e de refletir, num campo interacional fértil. Descritores: Psicologia junguiana. Terapia de grupo de encontro. Psicologia do self. Mitologia. Grupos vivenciais sob uma perspectiva junguiana Psicologia encontra seu território num campo intermediário e frontei- riço – nem físico, nem metafísico – onde é permitida e favorecida a 1 Docente do Instituto de Psicologia - USP. Avenida Professor Mello Moraes, 1721 - CEP 05580-900, São Paulo, S. P. Telefone: (11) 3845-4526. Endereço eletrônico: [email protected] A

Upload: erick-ungarelli

Post on 17-Nov-2015

27 views

Category:

Documents


4 download

DESCRIPTION

Trabalho sobre grupos vivenciais sob a otica da psicologia analitica

TRANSCRIPT

  • Psicologia USP, 2005, 16(3), 45-69 45

    GRUPOS VIVENCIAIS SOB UMA PERSPECTIVA JUNGUIANA

    Laura Villares de Freitas1 Instituto de Psicologia - USP

    Sociedade Brasileira de Psicologia Analtica

    Este artigo tece consideraes quanto possibilidade e ao alcance de grupos vivenciais, sob a perspectiva da Psicologia Analtica de Carl G. Jung, em nosso contexto socioeconmico atual. H uma proposta prtica de grupos de construo de mscaras e personagens, e a apresentao e comentrios das contribuies de diferentes autores que trazem conceitos junguianos clssicos para a dimenso grupal, consideram de maneira criativa o ritual, do ponto de vista psicolgico, e questionam a viabilidade de trabalhos grupais. Numa abordagem mitolgica, so considerados Grgona, Dioniso, rtemis, Eco e Narciso, com destaque deusa grega Hstia, cujas caractersticas so relacionadas a aspectos necessariamente presentes nos grupos vivenciais e possibilidade de ocorrer uma experincia psicolgica. Os grupos vivenciais so considerados favorecedores da perspectiva de alteridade, na medida em que cada participante tem neles a oportunidade de se afirmar e de ser confirmado, isto , de se expressar e de refletir, num campo interacional frtil.

    Descritores: Psicologia junguiana. Terapia de grupo de encontro. Psicologia do self. Mitologia.

    Grupos vivenciais sob uma perspectiva junguiana

    Psicologia encontra seu territrio num campo intermedirio e frontei-rio nem fsico, nem metafsico onde permitida e favorecida a

    1 Docente do Instituto de Psicologia - USP. Avenida Professor Mello Moraes, 1721 -

    CEP 05580-900, So Paulo, S. P. Telefone: (11) 3845-4526. Endereo eletrnico: [email protected]

    A

  • Laura Villares de Freitas

    46

    interao entre polaridades e a criao contnua de algo que podemos cha-mar de individualidade. um local onde o uso do gerndio parece extre-mamente pertinente, pois o que psicolgico acontece acontecendo, e o que se define e se cria como produto de um processo logo passa a ser matria-prima de uma nova criao. Nesse territrio, h mais a equilibrao do que o equilbrio, mais o processo de individuao do que a aquisio da individua-lidade.

    Como fazer jus, em teoria e na prtica, a esse campo na atualidade? E como situar a Psicologia neste vertiginoso incio de milnio? Que referenci-ais podem norte-la? E que propostas de interveno comportam algum sig-nificado e encontram alcance prtico efetivo?

    Essa contribuio embasa-se na Psicologia Analtica de Carl G. Jung. Em pesquisa anterior (Freitas, 1988, 1991), caracterizei a psicoterapia como um rito atual de iniciao. Percorri seus antecedentes histricos e estabeleci tal relao a partir do fio norteador da vivncia simblica, que encontrei tanto em ritos iniciticos quanto no trabalho com sonhos em processos psi-coterpicos. Os relatos de sonhos forneceram-me exuberante material ilus-trativo, a tal ponto que sugiro denomin-los sonhos iniciticos.

    A seguir, diante da escassez de ritos significativos em nossa sociedade atual, dediquei-me a explorar e desenvolver um trabalho psicolgico grupal de construo de mscaras e personagens, tendo como conceitos centrais a persona e o processo de individuao. Conseqentemente, pude constatar a importncia e o potencial de grupos vivenciais (Freitas, 1990, 1995).

    Persona, Mscara e Grupos

    Dentre os conceitos bsicos que Jung props para compreendermos a psique, a persona foi aquele a que ele menos se dedicou. Inicialmente, Jung (1934/1977) definiu-a como um segmento, mais ou menos arbitrrio, da psique coletiva, desenvolvido com grande esforo e aparentando ser uma individualidade, mas constituindo apenas um compromisso entre o indivduo

  • Grupos Vivenciais sob uma Perspectiva Junguiana

    47

    e a sociedade, uma mscara superficial a ser removida para que o self, em toda sua exuberncia, pudesse se revelar e, a conscincia, se ampliar.

    No entanto, urge reconhecer o potencial criativo da persona. fato que ela pode ser rgida e impedir a vivncia de certos smbolos. Alm disso, possvel regredir a uma persona anterior em nossa vida, para evitar novos desafios. E todas as culturas possuem personas que podem colaborar mais para manter sua prpria coeso do que para promover a individuao dos membros que as adotam (ou seriam por elas adotados?), como, por exemplo, do louco e do marginal.

    Justamente por apresentar tantas possibilidades de desvio, estagnao e desperdcio de seu potencial simblico, a persona merece aprofundamento e especial considerao. Sugiro consider-la como uma estrutura da persona-lidade, cuja funo principal seja, a partir de sua expressividade, pr-nos em relacionamento, propiciar-nos o encontro de uma maneira de ser e estar com os outros, sem precisarmos, para isso, abandonar nossa individualidade ou os smbolos operantes a cada momento. Junto sombra, a persona pode propiciar a atualizao do potencial da personalidade, alm de ser confron-tada pelo ego, tornando-se mais flexvel ou mais adequada a cada situao vivida, alm de, em si, oferecer-nos cdigos culturais para a elaborao de smbolos na conduta e interao social.

    A persona sempre tem um carter mltiplo, pois necessitamos de v-rias mscaras para viver, em certo grau, e assim ela colabora para a apreen-so e expresso da multiplicidade do self.

    Ao veicular o que em ns j est pronto para assumir um canal de co-municao, ao buscar elementos no conjunto de papis sociais oferecidos pela cultura, que propiciam maneiras de interao, articulando-se com o self de modo a colaborar com seu movimento de equilibrao dinmica e cons-tante, a persona coadjuvante indispensvel no processo de individuao.

    O melhor meio que encontrei para a explorao da persona foi desen-volver um trabalho de construo de mscaras e personagens, com recursos expressivos corporais, plsticos e dramticos, no mbito de grupos vivenci-ais. O grupo define uma totalidade que sugiro chamar de self grupal, ampli-

  • Laura Villares de Freitas

    48

    ando o conceito junguiano de self individual, de maneira anloga que fez Byington (1985) quando utilizou o termo self teraputico.

    Por outro lado, a relao entre persona e mscara direta para o pr-prio Jung, podendo tambm ser identificada na linguagem coloquial e no campo das artes cnicas e das prticas ritualsticas religiosas.

    Ao pesquisar a mscara em diferentes contextos histricos, deparei-me com um fenmeno universal e de alta complexidade, encontrado em todas as pocas e continentes, e com autores (Caillois, citado por Bril, 1983) que consideram seu aparecimento anterior ao da roda. A mscara apresenta-se como maneira de auto-representao, meio de comunicao com seres de outra realidade em cerimnias religiosas ou, ainda, como manifestao arts-tica, forma de proteo, instrumento em rituais teraputicos, funerrios ou polticos. A mscara sempre um agente de transformao, seja no sentido de cura, mudana de status na comunidade, ou de comunicao, exigindo que algo essencial se manifeste.

    Ao buscar personagens da mitologia grega relacionados mscara, encontrei trs (Vernant, s.d.): em primeiro lugar, a Grgona, uma cabea-mscara, terrvel e ameaadora, potncia sobrenatural com poder de seduzir e petrificar, trazendo o sobrenatural, o pavor que evocado e a necessidade de descobrir maneiras seguras de aproximao. rtemis, a segunda divinda-de, inclui mscaras e mascaradas em seu culto. Considerada a senhora do mundo selvagem, vive em regies pantanosas e fronteirias, onde estabelece e zela por regras rgidas. Guardi do limite entre o selvagem e o civilizado, conhece e promove a passagem do primeiro para o segundo, desempenhan-do importante papel nos rituais destinados a crianas e jovens, ao prepar-los para a sexualidade e para a cidadania, protegendo-os at o momento de sua plena integrao social, sem deixar que se desarticulem o selvagem e o civi-lizado, tampouco que se invadam mutuamente. A terceira divindade grega associada mscara Dioniso, considerado o deus-mscara e o deus do teatro. Tambm associado ao vinho, s iluses e aos estados alterados de conscincia, o responsvel por trazer ao cotidiano rompantes do diferente e do inesperado, do vivenciado como catico ou de outra natureza, constituin-

  • Grupos Vivenciais sob uma Perspectiva Junguiana

    49

    do-se assim no deus da alteridade, e considerado estrangeiro pelos gregos. Chama ao encontro olho-no-olho, quando ocorre uma transformao. A experincia dionisaca, ao invs de nos integrar ao mundo, projeta-nos fora dele, eliminando barreiras entre o divino e o humano, o humano e o bestial, o aqum e o alm, dissolvendo fixaes e permitindo o desenrolar de pro-cessos.

    Desenvolvi uma maneira de trabalhar com grupos vivenciais que constroem mscaras e personagens, numa srie de encontros que tem como objetivo principal a explorao do potencial criativo da persona. H vrias etapas: uma etapa artesanal, em que se constri uma mscara e um persona-gem; uma etapa dramtica, em que se experimenta vivenciar e apresentar ao grupo o que foi criado, e uma etapa final, de elaborao verbal.

    As consignas, inspiradas em trabalhos com imagens, no conceito jun-guiano de imaginao ativa e em elementos encontrados nas pesquisas sobre a mscara, so feitas com o intuito de deixar brotar imagens mobilizadoras que serviro ao processo de elaborao, tanto no mbito individual quanto no grupal.

    Alguns grupos so visitados pela Grgona: a mscara criada evoca al-go pavoroso, a ser contatado e elaborado. A experincia dionisaca, por sua vez, est sempre presente, levando ao encontro do diferente, da transforma-o e a um estado de conscincia mais aberto, que incorpore o personagem. Com o toque dionisaco, a experincia da mscara deixa de ser bidimensio-nal, ganha plenitude, respirao, temperatura e movimento, permitindo a integrao de algo novo.

    E embora apie e propicie a vivncia, apenas Dioniso no basta. ne-cessrio rtemis, que contextualiza a experincia e permite as passagens, nos mbitos grupal e intra-psquico. Ela inspira consignas e favorece passa-gem extremamente difcil, de algo sombrio conscincia. Atravs das ms-caras e personagens, permitimos a aspectos da sombra experimentarem cer-tas personas, colocarem-se em comunicao e interao e serem integrados conscincia.

  • Laura Villares de Freitas

    50

    So elucidativos tambm os mitos gregos de Eco e Narciso, que foca-lizam a questo da reflexo e da expresso em diferentes nuances e possibi-lidades. Eco, a ninfa que se esvai beira do lago em que Narciso se observa fascinado, remete-nos expresso, que pode ser repetitiva, estagnada e levar ao definhamento ou, por outro lado, trazer o contexto relacional e a dimen-so ertica, de paixo, envolvimento e busca de comunicao. E Narciso, por sua vez, conduz-nos a um local onde a reflexo pode ser paralisada e paralisante ou, por outro lado, um meio de auto-conhecimento, busca de transcendncia do ego e possvel nascimento da linguagem.

    Para que a persona possa exercer seu potencial criativo, preciso co-tejar expresso e reflexo, usando todos os recursos de que dispomos: o cor-po e suas possibilidades simblicas, o convvio e a interao, a capacidade de estruturao da conscincia a partir das imagens e a possibilidade de lin-guagem oral, que inaugura um campo prprio e especialmente favorvel elaborao simblica.

    Coordenar um grupo vivencial implica encarregar-se do estabeleci-mento e manuteno de um campo interacional, no qual os smbolos possam se definir, apresentar, interagir e ser, em alguma medida, assimilados conscincia. Aspectos narcsicos da personalidade podem ter uma vivncia dionisaca, que lhes permita movimento, reconhecimento e interao. E aos aspectos ecostas dada a oportunidade de reflexo, experincia narcsica, e de conseqente busca de expresso e comunicao mais eficazes.

    Sendo a articulao entre persona e sombra constante e dinmica, a-bre-se a possibilidade de trabalhos vivenciais em contextos no estritamente teraputicos, mas pedaggicos. O trabalho em grupo permite inmeras pos-sibilidades, dependendo do objetivo proposto e do que se constele no campo interacional. H uma oportunidade, compartilhada, de ensaiar personas, de pr em movimento a totalidade psquica e, quem sabe, de criar novas perso-nas em nvel social, no mnimo, a de participante de grupos vivenciais, o que d certo suporte personalidade para que, em outros contextos, explore novos meios de reflexo e expresso de seus prprios smbolos e dos que se apresentem no mbito coletivo, em cada situao.

  • Grupos Vivenciais sob uma Perspectiva Junguiana

    51

    Grupos sob uma perspectiva junguiana?

    Ao percorrer as aluses de Jung ao tpico grupo, no conjunto de sua obra, somos constantemente alertados pelo autor dos perigos de regresso, contgio ou intoxicao psquica, criao de dependncia mtua, perda de autonomia, massificao e fuga do confronto consigo prprio. Jung deixa claro que seu mtodo de trabalho era a anlise individual e no estimulava trabalhos em grupos.

    No entanto, parece difcil compreender tal recusa num autor que enfa-tizou tanto a totalidade quanto a multiplicidade da vivncia psquica, a im-portncia da interao entre polaridades e props, como pilares, os conceitos de processo de individuao e de inconsciente coletivo. De alguma maneira, o individual e o coletivo encontram-se estabelecidos em seu referencial te-rico e, parece-me que, embora a individuao implique a ampliao e cons-tante estruturao dinmica da conscincia, o indivduo no sinnimo de ou equivalente conscincia, e tampouco coletividade corresponde a in-consciente.

    Whitmont (1974) estranha que Jung, com sua abrangente e complexa viso de ser humano, tenha considerado os grupos to unilateralmente, iden-tificando, muitas vezes, grupo e massa. Esse autor considera que explorar o inconsciente, em sua manifestao numa experincia grupal, to importan-te quanto experienci-lo pela introverso atravs de sonhos ou imaginao ativa, e aponta as vantagens do que denomina anlise num setting grupal: o indivduo sente que pertence a algo maior, pode experienciar tanto con-formidade quanto singularidade, buscar auto-sustentao, conviver com uma ampla gama de tipologias e pontos de vista, vivenciar situaes numa con-cretude maior e, alm disso, amplia-se o trabalho com as projees e as pos-sibilidades de um relacionamento genuno. Whitmont destaca que o arquti-po do grupo pode ser vivenciado tanto na dimenso que envolve sentir-se pertencendo, quanto na que implica valores e leis.

    Em outra obra, Whitmont (1991) defende uma nova tica para a poca atual, que valorize mais a experincia vivida do que preceitos pre-

  • Laura Villares de Freitas

    52

    estabelecidos, assim como a retirada de projees e considere tambm a perspectiva do outro. O autor defende uma aceitao acolhedora, que difere da resignao, e uma explorao ldica sustentada por uma atitude de per-manente busca, na qual a espontaneidade e a auto-disciplina coexistam, nu-ma constante autodescoberta e aperfeioamento de relacionamentos basea-dos em confiana e aceitao mtuas, tanto individual quanto coletivamente. O entendimento intelectual continua a ser importante, mas no suficiente; torna-se crucial uma avaliao afetiva, que inclua a dimenso concreta, cor-poral e de apoio recproco.

    Alm das experincias de alegria, prazer e sucesso, as de medo, fra-casso e destrutividade so valorizadas, no enquanto atuao, mas de manei-ra meditativa. Os aspectos da sombra, antes considerados vergonhosos, ago-ra so vistos como equilibradores, na medida em que possuem um potencial transformador indispensvel vida psquica. Passa a ser importante aceitar a realidade total de como somos e no apenas de como desejaramos ser. Pola-ridades, aparentemente excludentes, passam a ser toleradas simultaneamen-te, numa busca de integrao e incluso. A vida tomada nas dimenses de liberdade e responsabilidade, sendo legtimo alterar planos, improvisar, en-saiar novas solues. O tempo, vivenciado no tanto como uma seqncia de perodos cronolgicos mensurveis de maneira objetiva, mas como nico, presente e referenciado na percepo subjetiva, isto , o tempo definido co-mo kairs, passa a trazer o senso de oportunidade, de busca do momento adequado, e a funo da intuio valorizada.

    Whitmont (1991) apresenta ainda um captulo inteiro sobre o ritual, considerando-o um elemento importante, por promover conteno e aceita-o, controle da intensidade emocional e redirecionamento de impulsos. Os rituais tradicionais, coletivos e definidos por passos preestabelecido, no funcionariam mais. Para ter eficcia psicolgica, os rituais precisam ter sig-nificado, o que atualmente implica uma busca constante de coexistncia de diferenas, tolerncia e experimentao consciente, em vez de represso. Desloca-se o foco do ego para o self e para a relao com o outro e com o grupo.

  • Grupos Vivenciais sob uma Perspectiva Junguiana

    53

    Alm de rituais que dem conta da dinmica intrapsquica, como Neumann (1976) j apontara, so agora necessrios rituais interpessoais e grupais, em que o elemento ldico esteja presente. O jogo dramtico muito adequado, na opinio de Whitmont (1991), pois testa a realidade, apresenta regras definidas e tambm flexveis, implica seriedade e comprometimento, cujo vnculo maior com o prazer de jogar e no, vencer ou perder. Alm disso, mobiliza e estrutura foras da personalidade, inter-relaciona a fantasia e a pragmaticidade, intercomunica os participantes e, finalmente, tem um efeito catrtico. A vivncia corporal tambm fundamental, pois embasa o vivido na experincia, que transcende o conhecimento intelectual.

    Tal enfoque bastante coerente com o que Adams (2004) apresenta em seus estudos sobre o princpio da fantasia. A partir de Jung e de Hil-mann, esse autor prope considerarmos a fantasia, de valor, em si, irredut-vel, como a matriz criativa de tudo que possibilita o aperfeioamento de nossa humanidade, por ser ela quem constri a realidade, e no o inverso, e, nessa construo, ocorrem tambm desconstrues (Derrida, 1973), isto , a destruio e o questionamento de padres fixados para que se abram novas possibilidades.

    Whitmont (1991) sugere que elaboremos novos rituais para responder a questes como: Quem sou? Como sou? O que me motiva? Quem voc e o que o motiva? O que desejamos? O que podemos tolerar? na tentativa de descobrir que fantasias, medos e desejos esto presentes, no importando seu contedo moral ou esttico.

    H, nessa proposta, uma relao com as lendas sobre a Tvola Redon-da e a busca do Graal, que atualmente tm inspirado prticas numa dimen-so tica renovada, como por exemplo, os trabalhos grupais (Whitmont, 1991; Zinkin, 1998), alm de fornecerem o padro de uma postura de busca e constante questionamento.

    O passo seguinte para Whitmont realizar a encenao ritualstica, is-to , simblica e delimitada no espao e no tempo, das imagens e emoes que tiverem emergido, visando a promover sua aceitao, tolerncia e assi-milao pela personalidade. possvel ainda inverterem-se os papis, para

  • Laura Villares de Freitas

    54

    proporcionar a experincia de ambos os plos do conflito. Vrias tcnicas de psicodrama podem ser de grande valia nessa etapa.

    Um dos objetivos chegar a uma perspectiva mais realista a respeito de ns mesmos, integrar exigncias inflexveis e/ou aspectos muito relega-dos, aceitar nossas fraquezas e limitaes e adotar uma postura menos passi-va frente prpria vida.

    A valorizao do ritual encontrada em Jung (1950/1980), em reviso de uma palestra de 1939, na qual afirma que a regresso psicolgica no gru-po inevitvel, mas que ela pode ser parcialmente neutralizada pelo ritual, que coloca no centro a experincia de algo sagrado, com que o indivduo deve estabelecer uma relao de interesse e ateno.

    Nesse mesmo texto, Jung faz algo raro em sua obra: destaca elemen-tos positivos da vivncia grupal, afirmando que ela pode conferir ao indiv-duo coragem, apoio e dignidade. E, no prefcio ao livro de Toni Wolff (Jung, 1959/1974), comenta que o valor espiritual e moral de um grupo avaliado pelo valor mdio de seus membros individuais, sem, necessaria-mente, haver uma experincia regressiva e massificante do grupo.

    Talvez o autor junguiano que mais tenha valorizado o trabalho psico-lgico em grupo seja Zinkin (1998). Formado em anlise junguiana e em anlise de grupo, trouxe para a Psicologia Analtica elementos de outras abordagens, sobretudo de Foulkes, que prope uma anlise do grupo pelo grupo, todos no papel de analistas e analisandos, incluindo o coordenador. Zinkin supe no grupo um nvel primordial, no qual estariam os arqutipos do inconsciente coletivo, e sugere a anlise da transferncia no aqui e agora, inspirando-se em psicanalistas como Bion.

    Zinkin considera que a coletividade, mais do que ameaar o indivduo, cria a possibilidade de surgimento da individualidade, e deve existir primei-ramente na cultura para que o indivduo se configure em uma pessoa.

    Sob a perspectiva junguiana, a conscincia tanto ameaada de disso-luo pelo inconsciente coletivo quanto , por ele, nutrida. Como as duas afirmaes no so encontradas no mesmo texto de Jung, sua compreenso torna-se mais difcil. Da mesma forma como quando define o arqutipo em

  • Grupos Vivenciais sob uma Perspectiva Junguiana

    55

    seu aspecto formal como inato e no transmitido pela cultura, e, quanto ao contedo e manifestao, como culturalmente determinado.

    A tarefa da individuao no apenas garantir a prpria individuali-dade contra uma multido que ameaa destru-la, mas perceber que ningum vive isolado e que a vida no tem sentido por si s. Seu significado deriva da coletividade, da qual cada um parte, e Jung, ao propor o centro da persona-lidade como o self, que muito maior do que o ego, enfatiza a dimenso coletiva.

    Segundo Zinkin (1998), cada indivduo como um n numa rede, que seria a matriz do grupo. A partir dessa analogia, prope o conceito de in-consciente cultural, pois para ele, Jung no negligenciou a importncia da cultura, embora tenha enfatizado mais o acultural em detrimento do papel da transmisso cultural. importante no esquecer que os arqutipos se consti-tuem e ganham forma em situaes de interao, s tendendo a funcionar como entidades independentes e autnomas em casos patolgicos, pois, em contextos compartilhados, sua funo natural facilitar a interao e a co-municao.

    Para Zinkin, o relacionamento primrio e o indivduo uma realida-de secundria. Desde o incio da vida estamos em relao, e o mundo inter-no uma construo que deriva da comunicao interpessoal. Temos de nos encontrar no dilogo com outras pessoas antes de poder dialogar conosco. Tambm na anlise, individual ou grupal, a imagem de si prprio resulta da interao. O grupo concebido como o ambiente natural em que o indivduo se torna ele mesmo, assim como a planta que brota de um solo frtil.

    Inspirado em Bion, Zinkin (1998), prope que consideremos o grupo tanto como continente quanto como contedo. Inicialmente o terapeuta que cuida do setting e, portanto, do continente grupal, para que ele seja segu-ro e acolhedor e altera-o nos momentos em que avalie como potencialmente teraputicas a novidade ou a surpresa. Mas o prprio grupo pode ser respon-svel por sua qualidade de continncia, podendo promover mudanas signi-ficativas. Quando os membros mudam, muda o grupo em que esto, o que, por sua vez, lhes permite mudar ainda mais. H uma interao circular entre

  • Laura Villares de Freitas

    56

    continente e contedo: o grupo e seus participantes so como sistemas em constante equilibrao.

    Quando os participantes falam do grupo, instaura-se uma ambigi-dade e no se sabe mais se eles so o grupo, os contedos do grupo ou o continente do grupo. No entanto, ressalta Zinkin (1998), tal confuso pode ser muito criativa, gerando movimento, mudanas e tomada de conscincia. impossvel separar uma pessoa de seu continente.

    Esse mesmo autor recorre a Martin Buber para melhor caracterizar a interao no contexto analtico, alegando que Jung, na maioria de seus escri-tos, favoreceu a dimenso intrapsquica e o dilogo da conscincia com o inconsciente, em detrimento da relao interpessoal. Buber, em resposta a Carl Rogers (Zinkin, 1998, p. 200), teria enfatizado que no basta mostrar aceitao do outro, afirmando-o, mas que tambm preciso manifestar-se contra ele, confirmando-o. Em outras palavras, no seria suficiente ser no-diretivo e deixar claro que se entende o que o paciente est expressando, como prope Rogers. Para Buber, tambm necessrio comunicar que o entendimento se d sob a perspectiva de uma outra pessoa. Na possibilidade de percepo dessa qualidade que estaria o valor maior da interpretao, e no em seu contedo.

    Assim, o dilogo concebido como um princpio conciliador e a rela-o mostra que h dois sujeitos, em interao, e o senso de self de cada um favorecido precisamente por sua incompletude sem o outro. O sujeito des-centrado, mas no eliminado. Aceitao mtua no significa concordncia, mas aceitao das diferenas, e a partir dela cada um poder afirmar e con-firmar o outro, e ambos beneficiam-se com a troca.

    O potencial criativo da vivncia, assim como o da multiplicao de di-logos e interaes assim concebidos, talvez seja a maior vantagem dos gru-pos vivenciais. Afirmar e confirmar relacionam-se com a expresso e refle-xo aludidas acima, quando foram comentados os mitos de Eco e Narciso. E, segundo Zinkin (1998), o dilogo assim concebido que permite aproxi-mar a anlise individual da grupal, propondo, numa espcie de subverso, a primeira como um caso particular da segunda.

  • Grupos Vivenciais sob uma Perspectiva Junguiana

    57

    Para continuar fertilizando o solo que fundamenta trabalhos grupais sob uma perspectiva junguiana, passo a uma abordagem mitolgica mais explcita. Embora no exponha exatamente como solucionar problemas, ao evocar mais imagens e emoes do que expressar uma lgica discursiva ou um enredo coerente, o mito nos coloca em contato com o potencial arquet-pico e cultural, mobilizando nossa criatividade tanto no nvel individual quanto coletivo.

    Hstia e os grupos vivenciais

    Para Hillman (1998) os mitos expressam melhor do que as teorias o que acontece na anlise, e ele busca mitos complementares aos tradicional-mente relacionados a ela, como Eros e Psiqu, Apolo e Dioniso, Atena, di-po ou os que seguem o paradigma me-beb. Ele prope, junto com outros autores que sero citados abaixo, que consideremos Hstia, a deusa grega que enfatiza a interioridade e o anonimato.

    Acrescento que possvel esboar relaes entre Hstia e a experin-cia nos grupos vivenciais e espero tambm proporcionar algo de seu clima emocional, alm de valorizar um arqutipo que bastante relegado ao es-quecimento em nossa cultura.

    Hstia estava entre os doze primeiros deuses do Olimpo, tendo vivido antes o perodo em que seu pai, Cronos, temia ser suplantado por um de seus filhos e, para evit-lo, engolia cada um deles ao nascer. Ela, a primognita, foi a primeira a ser engolida e a ltima a ser expelida quando Zeus conse-guiu banir Cronos e inaugurar a era olmpica (Brando, 1987).

    Trata-se de uma deusa sem imagem, comumente representada apenas por um crculo ou uma chama crepitante. Ela no sai em aventuras pelo mundo, mas permanece ao redor da lareira, que mantm acesa. Seu espao redondo, quente e acolhedor, no qual se pode devanear sem se perder, se-guindo o movimento das fagulhas ou da crepitao do fogo, num estado contemplativo, aquietado. Imagens, idias e sensaes acabam surgindo e

  • Laura Villares de Freitas

    58

    nos convidam a olhar para elas at que uma ganhe nitidez e se apresente com mais insistncia.

    Hstia relaciona-se com o focalizar: um processo dinmico que recor-ta e destaca algo, que procura iluminar uma parte do todo, chamando a aten-o para sua especificidade, sem perder a situao global. Focalizar, condi-o tanto para a percepo quanto para a imaginao, permite que passemos de uma a outra e possibilita a criao e vivncia de um campo emocional onde elas coexistam (Kirskey, 1992).

    Hstia traz calor. Aquece e, ao faz-lo envolve, protege, acolhe e apa-zigua. Traz conforto ao corpo, que pode ficar vontade e descontrado (Cas-tillejo, 1973). Cria um clima de sossego e confiana, permitindo uma atitude aberta para o novo, que poder apresentar-se; caso contrrio, ser ocasio de rememorar o antigo, o realizado, contemplar, compartilhar, alojar e alocar idias e sensaes, tecendo a prpria histria e memria, retomando inme-ras vezes as mesmas imagens, num exerccio de focalizao dinmica.

    O trabalho com grupos vivenciais consiste na criao de um campo in-teracional especfico, no qual se relacionam foras dinmicas que pem em contato todos os participantes e, simultaneamente, encarregam-se do estabe-lecimento de uma coeso tal, que considero possvel e pertinente propor os conceitos de conscincia grupal, sombra grupal e smbolos grupais. o cam-po simblico constelado que acolhe e conduz ao conceito de self grupal, algo intrinsicamente associado a Hstia: lugar, num sentido que transcende o fsi-co, de repouso, acolhimento, interao, pertinncia, devaneio, criao de sen-tido, meditao e surgimento de imagens. O verbo preponderante estar: mais do que fazer ou ser algo, basta estar e deixar que as coisas aconteam.

    Hstia cria, numa simples construo, um clima emocional de frater-nidade em torno de um fogo comunitrio, tanto na esfera domstica e ntima quanto na pblica, dos banquetes e festas. Hstia diz respeito tanto casa quanto cidade.

    Hstia , sobretudo a casa, o lar, lugar de repouso, reabastecimento, intimidade e apropriao da identidade. Lugar tambm de congregao, re-feio, encontro, festejo. O espao torna-se ambiente psicolgico, ganha

  • Grupos Vivenciais sob uma Perspectiva Junguiana

    59

    alma, passando a constituir o palco para a interao e harmonizao de for-as dspares e dinmicas. Muitas vezes percebida como o prprio lugar, Hstia congrega as pessoas e possibilita uma experincia anmica, um local vivo, onde h comunidade e comunho. Ela nos permite transformar uma casa em um lar, uma cidade em um espao vivo.

    interessante observar a relao do grupo com o espao em que se do os encontros. H uma interao dinmica, caracterizada por explorao, conquista e apropriao. As caractersticas espaciais tm uma fora estrutu-rante no grupo, na medida em que colaboram com a organizao das intera-es, possibilitando aproximaes e afastamentos entre os participantes e deles com o material expressivo e as produes realizadas, a cada momento. Achar o prprio lugar passa a ser um desafio em cada situao vivenciada no grupo.

    O espao costuma adquirir caractersticas ligadas ao ritual, que pode-mos associar ao temenos, o espao sagrado do mundo grego: geralmente, na sala, h o canto do compartilhar grupal, os lugares de reflexo e criao in-dividual, os locais para armazenamento e exposio do material criado. Al-mofadas, pedaos de fita crepe colados ao cho, luzes, acesas ou apagadas, so elementos que ajudam a transformao do espao fsico em um ambien-te psicolgico.

    Hstia tambm tem a qualidade de ser um espao centralizado, reme-tendo ao fogo, ao altar, lareira, cidade, Grcia, Terra e ao universo. No corpo, ela associada ao corao. A prpria idia de centro controver-sa, sendo impossvel imaginar, em nossa natureza complexa, multifacetada e em permanente movimento, um centro fixo, local de harmonia, equilbrio e sade. A deusa no parece se abalar com isto. O centro que nos oferece aquele que organiza um espao, redondo, simultaneamente centrfugo e cen-trpeto, de onde se irradiam luz e calor e todo um campo simblico pode ser definido, dando continncia a aspectos diferentes que, em outros contextos, poderiam ser contraditrios ou mesmo patolgicos.

    A deusa nos faz tambm considerar os afazeres domsticos, que ge-ralmente so montonos e repetitivos, enxergando o quanto so estruturais,

  • Laura Villares de Freitas

    60

    necessrios e indispensveis e fornecem uma base slida, podendo ser reali-zados no com nfase no aspecto de obrigao, mas no da meditao que favorecem, justamente por sua insossa repetio, ao permitirem conscin-cia devanear e acolher novas imagens.

    Nos grupos de criao de mscaras e personagens, nas etapas que en-volvem tarefas manuais trabalhosas, cansativas e repetitivas, muitas vezes ocorrem importantes insights grupais ou aparecem smbolos a serem acolhi-dos e trabalhados pelo self grupal.

    Hstia permite o estado de moradia. Sem ela, vivemos perambulao, frio, escurido, desvio, delrio. Nossa linguagem utiliza metforas espaciais para tais estados quando alude a estarmos fora de centro, deslocados, desfocados, sem cho, sem lugar (Kirskey, 1992).

    Hstia anfitri afvel. Prov hospitalidade, reunindo todos volta da lareira. E, se necessrio, capaz de prover tambm hospitalizao, pois do-res, cicatrizes e sintomas tambm podem ser iluminados, focalizados e a-conchegados, para que ento possam se movimentar, reagrupar, re-significar e aquecer (Kirskey, 1992).

    Hstia permite-nos habitar o espao psicolgico para transformar nos-sos restos fantasmagricos, imagens que se recusam a receber um foco, em imagens que possam ser acolhidas e hospedadas.

    A utilizao de recursos expressivos tem-se mostrado de grande valia para a emergncia de imagens numa forma mais precisa e contextualizada. Desde que no se faam consignas muito restritivas, h uma explorao espontnea do recurso e do material, que favorece a definio do que est pronto para ser trabalhado e ocupar o lugar de figura para a conscincia, e do que servir como fundo, num dinmico processo de focalizao, a cada momento ou etapa do processo do self grupal.

    Viver uma crise, freqentemente, pode ser entendido como tentar um novo ajuste de foco, uma mudana de perspectiva ou o ensaio de uma ma-neira de destacar aspectos diferentes, num movimento para aproveitar a o-portunidade de mudana e ampliar a conscincia. Diferentemente de um delrio dionisaco, de uma viagem ao estilo de Hermes, ou de uma fuga a um

  • Grupos Vivenciais sob uma Perspectiva Junguiana

    61

    ataque de Pan, Hstia provoca abalos que nos fazem tomar outro ponto de vista ou outra perspectiva, levando-nos a uma significativa mudana de fo-co, e favorece a entrada de novas imagens no campo da conscincia.

    Em um grupo vivencial, podemos oferecer diferentes linguagens para a expresso dos smbolos, como, por exemplo, desenho, modelagem, pala-vras, gestualidade, os quais podem encontrar a melhor forma de se apresen-tar conscincia. No h regras a priori. O coordenador cuida da manuten-o de um campo frtil para a vivncia do self grupal, pe-se, tal como Hstia, espera do que emergir e coloca-se no foco da conscincia grupal.

    Segundo a mitologia grega, Hstia nunca se apaixonou, permanecen-do virgem e intocada por Eros ou Afrodite. Poseidon e Apolo manifestaram inteno de se casar com ela, mas Hstia foi a Zeus pedir proteo, ofere-cendo em troca seu voto de castidade. Foi, por ele, aceita e colocada no cen-tro do Olimpo e da casa, onde se destaca por ser a primeira a receber home-nagem e ser-lhe oferecida a melhor parte dos sacrifcios. Posteriormente, cedeu seu lugar a Dioniso (Harding, 1985).

    No trabalho com grupos vivenciais, importante que o coordenador, inspirado por Hstia, no ceda aos assdios de Apolo e Poseidon. O primeiro tende a impor uma precoce compreenso intelectual, racional e lgica ex-perincia vivida, quando ainda necessrio permanecer mais tempo na vi-vncia ntima e silenciosa. E Poseidon inclina inundao por sentimentos ou contedos inconscientes, de tal maneira que pe em risco a experincia de centrao e objetividade. Atividades de relaxamento, busca de centro, expresso no-verbal e reflexo tranqila, muitas vezes, protegem o grupo e cada participante de tais assaltos intempestivos.

    A prpria virgindade de Hstia parece auferir-lhe as qualidades de es-tabilidade e coerncia. Ela capaz de guardar e proteger as imagens que possibilita existirem, permanecendo nos bastidores, annima.

    O lugar da casa onde o fogo permanecia aceso era muito bem cuidado e at venerado. A famlia se reunia ao redor da lareira e, alm de fornecer calor e iluminao, o fogo tambm era usado para o preparo de alimentos. Quando um dos membros partia para formar outra famlia, levava um pouco

  • Laura Villares de Freitas

    62

    daquele fogo dos pais, simbolizando a continuidade familiar e a criao de um novo centro. Outro ritual significativo ao redor do fogo de Hstia consis-tia em ali apresentar comunidade a criana que completava cinco dias de vida (Bolen, 1990).

    Cada cidade tinha sua lareira comunal, na qual o fogo pblico era mantido e Hstia era reverenciada. Os templos de Hstia tinham sempre uma forma circular e seu fogo era tambm usado em sacrifcios. As cerim-nias eram simples e sem sangue, valendo-se apenas do fogo da lareira e da gua pura, que era despejada num vaso de cermica, cuja conformao no lhe permitia permanecer em p - a ateno constante e cuidadosa funda-mental para o desempenho das tarefas associadas ao culto de Hstia.

    A deusa nunca se casou, nunca engravidou, mas uma me dedicada. Remete, talvez, ao que de mais essencial podemos conceber quanto ao ar-qutipo da Grande Me, quilo que garante as bases do amor e da capacida-de de manter o lar unido, a maternagem que independe da concepo e da dimenso corporal e onde o filho o principal foco das atenes. Pode alu-dir tambm a uma maternidade idealizada. Do ponto de vista intrapsquico, quem se relaciona satisfatoriamente com as caractersticas desse arqutipo capaz de se cuidar bem, alm de, por exemplo, viver sozinho sem se sentir desamparado.

    As vestais, sacerdotisas de Hstia, eram recolhidas ao templo entre 6 e 7 anos de idade, e l permaneciam por trinta anos. Mantinham-se annimas e faziam votos de castidade absoluta, sob risco de serem enterradas vivas. Eram tambm duramente punidas se deixassem o fogo se extinguir. Nos templos, sua inocncia era oferecida como compensao s faltas dos ho-mens, garantindo-lhes xito e proteo.

    O tempo associado a Hstia no o do relgio, do calendrio ou dos prazos, aquele que delimita tarefas a cumprir. Ela permanece absorta no que faz, sem pressa, muito mais envolvida pelo tempo do que desafiada por ele. Essa deusa tem mais afinidade com o tempo kairs do que com o cronolgi-co. Quando regidos por Hstia, freqente perdermos a noo do tempo, numa experincia que pode ser nutritiva e apaziguadora de tenses.

  • Grupos Vivenciais sob uma Perspectiva Junguiana

    63

    Hstia permanece oculta, em silencioso autodesenvolvimento. Seu co-nhecimento mantm-se restrito intimidade, sem necessitar de reconheci-mento pblico. Remete a aspectos da vida que so velados, mas no pedem desvelamento, possuindo uma tica prpria (Demetrakopoulos, 1987).

    A no-personificao da deusa tambm faz pensar na postura do co-ordenador do grupo: cuida das condies para a criao e manuteno de um campo simblico, acolhe e protege o que ali se apresenta, mais do que diri-ge, opina ou procura viver relacionamentos humanos. Ele, paradoxalmente, quase ningum e tem uma presena fundamental, ao possibilitar o espao para a experincia psicolgica se dar, para as imagens se apresentarem e serem focalizadas.

    Apenas uma vez, na literatura, Hstia associada intimamente a al-gum outro deus. Trata-se de Hermes, deus flico, protetor da fertilidade da famlia e desencadeador de boa sorte, tambm solitrio, simbolizando a fon-te da vida em seu aspecto dinmico e ativo (Demetrakopoulos, 1987). O par Hermes-Hstia compartilha a criao de um tipo de fogo mais do que interage pela sexualidade; usufrui do calor da proximidade mais do que do ardor.

    Estar bem com Hstia ter para onde voltar, poder retornar raiz, se-ja casa, famlia ou nao. A solido para Hstia uma contingncia ou mesmo uma opo, no um problema como no caso da criana abandonada ou do puer desorientado pelo mundo.

    O self grupal como uma casa qual se retorna para compartilhar as atividades e incurses realizadas no mundo. Boa parte do que se faz em gru-pos vivenciais focalizar, acolher e expressar imagens significativas. Outro tanto consiste em interagir com elas: associar, relacion-las entre si ou ao ego. Exerccios de imaginao ativa tambm podem ser realizados. E com-partilhar com os outros participantes o que se est vivenciando um compo-nente fundamental. A acolhida, seja com simpatia, indiferena ou estranha-mento, costuma trazer o sentido de retorno ao lar, pois o novo apresentado e relacionado com o que j foi compartilhado e compe a histria do grupo, passando assim a pertencer ao imaginrio e ao acervo simblico do self gru-

  • Laura Villares de Freitas

    64

    pal. Aqui observamos novamente a importncia do fato de ter onde e com quem se expressar e refletir, isto , poder ser afirmado e confirmado.

    A tcnica junguiana de amplificao, que consiste em remeter o sm-bolo emergente a um material da cultura com contedo anlogo, pode ser entendida como um tipo de focalizao no qual a imagem o centro de onde saem e para onde novamente convergiro todos os movimentos da consci-ncia.

    Ao redor do fogo, os acontecimentos so comentados e tambm se fazem as pazes e se perdoa. Hstia d um sentido de unidade e integrao a toda a humanidade. Calor humano, acolhimento, empatia, solidariedade, convvio so seus valores.

    Hillman (1998) comenta que essa deusa escapa diviso radical entre dentro e fora. Ela totalmente interior, de dentro, e tambm coletiva, o centro da cidade. Vida domstica e vida pblica se articulam e interpene-tram graas a Hstia, para quem cidade e lar no so dissociados, insight psicolgico e atividade pblica no se antagonizam, e tampouco self e co-munidade.

    Hstia parece associar-se possibilidade de uma experincia psicol-gica acontecer. Aconchego, tranqilidade, calor, centralizao, foco, nutri-o, quietude e mobilidade so condies bsicas, que permitem o surgi-mento de imagens e sensaes, reflexes e trocas. Kirskey (1992) afirma que, graas a Hstia, despertamos psicologicamente e nossa alma pode sonhar em paz.

    Sem Hstia, as imagens no podem se apresentar conscincia; a fan-tasia fica inibida e a vida psicolgica torna-se seriamente comprometida. O pensamento conceitual no capaz de prover as qualidades de Hstia, pois falta-lhe intimidade, subjetividade, individualidade e calor. Sem ela, tudo vivenciado como fugaz e transitrio. Sentimo-nos pequenininhos e insignifi-cantes no mundo. Passamos frio. Ocorrem movimentos de ida mas no de volta, de retorno, de reabastecimento. Hstia garante o equilbrio entre a circularidade e a linearidade, permitindo-nos viver movimentos espiralados, que melhor caracterizam os processos psquicos: passar e ultrapassar deter-

  • Grupos Vivenciais sob uma Perspectiva Junguiana

    65

    minado ponto, mas posteriormente a ele retornar, num nvel mais ampliado de conscincia, tecendo o fio da prpria vida.

    O grupo vivencial tem essa qualidade de possibilitar a dimenso psi-colgica em si, na medida em que o prprio campo interacional em que ocorre a experincia.

    Consideraes finais

    De acordo com a perspectiva simblica aqui adotada para a considera-o dos grupos vivenciais, h um fio condutor, responsvel pelas tecela-gens mais diversas, e muitas vezes, no-convencionais, mas que so consis-tentes e percorrem o caminho da individuao, ao mesmo tempo procurando-o e, ao assim faz-lo, construindo-o. Esse fio o smbolo, que permite a dimenso vivencial, envolve a personalidade total, abrange sempre suas dimenses racionais e irracionais e no deixa escapar a tonalidade afe-tiva e emocional do que quer que esteja sendo vivido. E no menos impor-tante a considerao do self relacional, seja ele individual ou grupal, tera-putico ou pedaggico, pois tais vivncias se do sempre em campos interacionais, isto , na rede de relaes transferenciais e compartilhadas.

    Jung falava na constelao de um arqutipo, que levaria formao de smbolos que seriam enraizados nele em cada situao vivida especfica. Hoje, usa-se muito o termo configurao. Ambos expressam a considerao de algo embasador, no fixo, mas passvel de mudanas, constantemente criado e recriado, e necessariamente contextualizado.

    O arqutipo universal, atemporal e a-espacial. to absoluto que se torna inapreensvel, torna-se um pressuposto. O smbolo, que sempre enra-izado num arqutipo, histrico, isto , sempre se apresenta num meio es-pecfico, a uma conscincia especfica, seja ela individual ou grupal, num determinado momento e local. Ele no pode ser considerado independente-mente do arqutipo que lhe serve de raiz; por outro lado, tampouco pode ser recortado da situao em que se apresenta. D-se no presente, mediador

  • Laura Villares de Freitas

    66

    tanto da conscincia com o inconsciente quanto do indivduo com seu meio, nunca tendo um significado fixo, mas sempre necessitando do estabeleci-mento de relaes e do reconhecimento das associaes a ele. Seu sentido vai-se definindo dessa maneira, que sobretudo vivencial, pois demanda a personalidade inteira e acontece num campo interacional, o self mais amplo.

    Hillman (1998) comenta que estamos caminhando para uma hipertro-fia de Hermes, em que o espao ciberntico, os cd-roms, telefones celulares e realidades virtuais oferecem-nos, a qualquer momento, inmeras possibili-dades de conexo com o l fora. Para compensar tal desequilbrio, necessi-tamos, talvez mais do que nunca, da qualidade centralizadora, intimista e circular de Hstia, que permite habitar nosso corpo, nosso tempo, nosso es-pao, nossa interioridade, nossos significados, nossa histria.

    Nos grupos vivenciais, ela privilegiada, pois tanto pode acolher cada participante quanto ser acolhida, permitindo-nos usufruir de seu calor e de sua capacidade de focalizar imagens e, sobretudo, possibilitar que experin-cias psicolgicas aconteam.

    Freitas, L. V. (2005). Experiential groups according to a Jungian approach. Psicologia USP, 16 (3), 45-69.

    Abstract: This article considers the possibility and the value of experiential groups according to the perspective of Jungian analytical psychology in our present socio-cultural context. It outlines a practical purpose of groups involving the creation of masks and personages, and presents different authors contributions which take in a creative way the ritual under a psychological viewpoint and question the viability of group works. It also offers a mythological approach which comments the Gorgona, Dioniso, Artemis, Echo and Narcissus, and emphasizes the Greek goddess Hestia, her characteristics being related to aspects that are necessarily present in the experiential groups and to the possibility itself of something psychological to happen. The experiential groups are seen as promoters of alterity in the

  • Grupos Vivenciais sob uma Perspectiva Junguiana

    67

    relationships, as each participant has the opportunity to assert himself and to be confirmed, of expression and reflexion, in a fruitful interactional field.

    Index Terms: Junguian psychology. Encounter group therapy. Self psy-chology. Mythology.

    Freitas, L. V. (2005). Groupes dssai pratique au regard de la psychologie junguienne. Psicologia USP, 16 (3), 45-69.

    Rsum : Sur cet article on trouvera des considrations sur la possibilit et la porte de groupes d'essai pratique au regard de la psychologie analytique de Carl G. Jung, dans notre contexte social conomique actuel. L'article bauche une proposition pratique de groupes de construction de masques et de personnages; il prsente et commente les contributions de diffrents auteurs qui transposent des concepts junguiens classiques la dimension de groupe, qui considrent de manire innovatrice le rituel du point de vue psychologique et qui s'interrogent sur la viabilit de travaux en groupe. Il offre en plus un point de vue mythologique o sont analyss Gorgone, Dionysos, Artmis, cho et Narcisse et met en vidence la desse grecque Hestia, faisant une relation entre ses caractristiques et les aspects ncessairement prsents dans les groupes d'essais pratiques ainsi que la possibilit qu'une exprience psychologique s'accomplisse. Ces groupes sont considrs comme favorisant la perspective de l'altrit, dans la mesure o chaque participant a l'occasion de s'affirmer et d'tre confirm, c'est--dire, la possibilit d'expression et de rflexion, dans un contexte d'interaction fertile.

    Mots cls: Psychologie jungienne. Groupes dEssai Pratique. Psychologie du self. Mythologie.

  • Laura Villares de Freitas

    68

    Referncias

    Adams, M. V. (2004). The fantasy principle psychoanalysis of the imagination. New York: Brunner Routledge.

    Bolen, J. S. (1990). As deusas e a mulher. So Paulo: Paulinas.

    Brando, J. S. (1987). Mitologia grega. Petrpolis, RJ: Vozes.

    Bril, J. (1983). Le masque ou le pre ambigu. Paris: Payot.

    Byington, C. (1985). O conceito de self teraputico e a interao da transferncia defensiva e da transferncia criativa no quaternio transferencial. Revista Junguiana, 3, 5-18.

    Castillejo, I. C. (1973). Knowing woman. New York: Putnams.

    Demetrakopoulos, S. A. (1987). Hstia, deusa do lar um arqutipo oprimido. Revista Junguiana, 5, 127-142.

    Derrida, J. (1973). Gramatologia. So Paulo: Perspectiva.

    Freitas, L. V. (1988). A psicoterapia: um rito moderno de iniciao. Boletim de Psicologia,38(88/89), 9-20.

    Freitas, L. V. (1990). O arqutipo do mestre-aprendiz consideraes sobre a vivncia. Revista Junguiana, 8, 72-99.

    Freitas, L. V. (1991). Sonhos iniciais e sonhos iniciticos. Revista Junguiana, 9, 42-55.

    Freitas, L. V. (1995). A mscara e a palavra: explorao da persona em grupos vivenciais. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So Paulo.

    Harding, E. (1985). Os mistrios da mulher. So Paulo: Paulinas.

    Hillman, J. (1998). In. Spring 63, 9-21.

    Jung, C. G. (1977). The relations between the ego and the unconscious. In C. G. Jung, The collected works (Vol. 7, pp. 119-292). London: Routledge and Kegan Paul. (Trabalho original publicado em 1934)

    Jung, C. G. (1980). Concerning rebirth. In C. G. Jung, The collected works (Vol. 9-I, pp. 111-147). London: Routledge and Kegan Paul. (Trabalho original publicado em 1950)

    Jung, C. G. (1974). Introduction to Toni Wolffs studies in jungian sychology. In C. G. Jung, The collected works (Vol. 10, pp. 469-476). London: Routledge and Kegan Paul. (Trabalho original publicado em 1959)

  • Grupos Vivenciais sob uma Perspectiva Junguiana

    69

    Kirskey, B. (1992). Hstia: um fundamento de enfoque psicolgico. In J. Hillman, Encarando os deuses (pp. 119-133 ). So Paulo: Cultrix.

    Neumann, E. (1976). On the psychological meaning of ritual. Quadrant, 9(2), 5-34.

    Vernant, J. P. (s.d.). Figuras, dolos, mscaras. Lisboa: Teorema.

    Whitmont, E. (1974). Analysis in a group setting, Quadrant, 16, 5-25.

    Whitmont, E. (1991). O retorno da deusa. So Paulo: Summus.

    Zinkin, L. (1998). Dialogue in the analytic setting. London: Jessica Kingsley.

    Recebido em: 8.12.2004 Revisto em: 3.06.2005 Aceito em: 20.08.2005