apresentacao_de_pacientes redescobrindo a clínica dissertação

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  • 7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UFMG

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas FAFICH

    APRESENTAO DE PACIENTES:

    (RE)DESCOBRINDO A DIMENSO CLNICA

    Cristiana Miranda Ramos Ferreira

    Belo Horizonte

    2006

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    Cristiana Miranda Ramos Ferreira

    APRESENTAO DE PACIENTES:

    (RE)DESCOBRINDO A DIMENSO CLNICA

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado da

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da

    Universidade Federal de Minas Gerais, como

    requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em

    Psicologia.

    rea de Concentrao: Estudos Psicanalticos

    Orientador: Prof. Antnio Mrcio Ribeiro Teixeira

    Belo Horizonte

    2006

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    Cristiana Miranda Ramos Ferreira

    Apresentao de pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica.

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdadede Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal deMinas Gerais.

    Prof. Antnio Mrcio Teixeira

    Orientador

    Dra. Maria Elisa Parreira Alvarenga Long

    Dra. Ana Lydia Santiago

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    AGRADECIMENTOS

    No poderia deixar de comear agradecendo queles atravs de quem conheci

    a apresentao de pacientes: a Antnio Beneti, Elisa Alvarenga e Wellerson Alkmim, que

    com sua escuta aguda, seu manejo cuidadoso, sustentados num desejo clnico bem

    colocado, me transmitiram um querer saber mais - sobre a clnica, sobre a psicose e sobre a

    apresentao.

    Agradeo tambm, aos pacientes, que aceitaram participar destas

    apresentaes que aconteciam no Raul Soares, e que, mesmo sem o saber, ao falarem de

    sua dor, de seu sofrimento, de suas solues, nos ajudaram a manter vivo esse desejo

    clnico, que o automatismo institucional insistia em apagar.

    Desejo clnico que encontrou na parceria com Aline, Anamaris e Renata, e sob a

    orientao do Leo, fora suficiente para sustentar, mesmo nos tempos mais inspitos, umprojeto como a Sesso Clnica do IRS. Espao to rico, to vivo, to dinmico, que

    possibilitou que tantos outros projetos puderam florescer e frutificar.

    Dentre estes projetos, a pesquisa sobre os efeitos clnicos da apresentao de

    pacientes. Agradeo ao Jsus, que nos acolheu com tanto interesse e entusiasmo e com

    quem, juntamente com Leo e Renata, formamos um novo grupo de trabalho.

    Por fim, agradeo a todos os meus colegas e professores do mestrado, que

    fizeram deste curso um perodo de muita alegria, de conversas preciosas e apoio mtuo.

    Agradeo especialmente Claudinha e, sobretudo, Simone, novas parceiras de trabalho e

    de afeto.

    Agradeo tambm a Ram Mandil pela leitura cuidadosa e sua importante

    contribuio na qualificao deste projeto. E tambm a Ana Lydia e a Elisa Alvarenga, que

    cuja participao na banca, tanto contriburam para o avano de minhas questes.

    Agradeo especialmente ao meu orientador, Antnio Teixeira, que acreditou no

    meu trabalho, respeitou meu estilo e sempre me apoiou.

    E agradeo tambm aos meus companheiros de afeto, que no participaram

    com trabalho, mas que entenderam minha ausncia prolongada, sem nunca se ausentarem.

    A minha famlia: pai, Mhu, me , Suely, Gui, Dudu, Mariela,e Rachel.

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    Ao Leo,meu amor,

    companheiro neste e noutros projetos.

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    RESUMO

    Nos ltimos anos, a prtica da apresentao de pacientes vem crescendo no

    campo psicanaltico, e isto se deve, sem dvida, aos incontestveis efeitos clnicos por ela

    produzidos. Mas, para que possamos reconhecer o verdadeiro alcance deste dispositivo,

    preciso partirmos para um trabalho de formalizao e sistematizao dessa prtica.

    Entretanto, apesar de toda a polmica que h em torno da apresentao de pacientes, muito

    pouco foi escrito, at agora, sobre esse tema.

    Entendendo que, para se fazer uma anlise crtica e avanar nas elaboraes,

    preciso conhecer as bases conceituais sobre as quais um processo se deu, este trabalho

    tem como objetivo esboar um mapeamento histrico, procurando identificar as

    circunstncias de seu surgimento, transformaes pelas quais passou, at seu uso no

    momento atual. Uma nfase especial dada a Charcot, Clrambault e Lacan, pela

    importante incidncia que a prtica de cada um exerceu sobre a forma como a apresentao

    concebida e realizada na atualidade.

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    RSUM

    Depuis les dernires annes, la pratique de la prsentation de patients augmente

    dans le mtier psychanalytique d sans doute aux effets cliniques quelle produit. Mais pour

    quon puisse reconnatre la vraie porte de ce dispositif, il faut se tourner vers un travail de

    formalisation et systmatisation de cette pratique. Pourtant, malgr toute polmique autour

    de la prsentation des patients on a trs peu crit jusqu prsent.

    On comprend que pour faire une critique et avancer les laborations, il faut connatre

    les bases conceptuelles dun processus. Cette tude a pour but esquisser une cartographie

    historique, en identifiant les circonstances de lavnement de la pratique de cette

    prsentation, les transformations dont elle a subi et son application aujourdhui. On met

    laccent sur la pratique de Charcot, Clrambault et Lacan cause de leur importante

    collaboration la faon dont ce dispositif est conu et utilis nos jours.

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    LISTA DE ABREVIATURAS

    CID-10 Classificao Internacional de Doenas

    CNPq Conselho Nacional de Pesquisa

    CRIA - Centro de Referncia da Infncia e da Adolescncia

    DSM-IV Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnstico

    e Estatstico de Transtornos Mentais)

    EBP - MG - Escola Brasileira de Psicanlise - Seo Minas

    FHEMIG Fundao Hospitalar do Estado de Minas Gerais

    IPSMMG - Instituto de Psicanlise e Sade Mental de Minas Gerais

    IRS Instituto Raul Soares

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    SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................................. 10Atualidade .................................................................................................................... 12Diferenciao ............................................................................................................... 14Formalizao................................................................................................................ 16

    1 APRESENTAO DE PACIENTES NA PSIQUIATRIA CLNICA................................. 201.1 Contexto de seu surgimento................................................................................... 211.2 A realidade como forma de tratamento............................................................ ....... 241.3 Sobre a apresentao de pacientes ....................................................................... 341.4 Apresentao como prova de realidade ................................................................. 391.5 Sobre seu abandono.............................................................................................. 41

    2 AS LIES CLNICAS DE CHARCOT EM SALPTRIRE ......................................... 482.1 Uma figura controversa .......................................................................................... 492.2 O percurso de Charcot ........................................................................................... 53

    2.2.1 A histeria antes de Charcot........................................................................... 532.2.2 Salptrire esboo do trajeto: 1862-1893................................................... 54

    2.3 As apresentaes de Charcot: um captulo parte ................................................ 652.3.1 Seu carter visual ......................................................................................... 652.3.2 Apresentao de Charcot X Interrogatrio clssico... .................................... 692.3.3 Sobre os efeitos das apresentaes de Charcot .............................. ............. 73

    3 CLRAMBAULT, MESTRE DE LACAN ....................................................................... 813.1 Anacronismo paradoxal.......................................................................................... 813.2 Particularidades...................................................................................................... 83

    3.2.1 O olhar do artista .......................................................................................... 833.2.2 O olhar do psiquiatra..................................................................................... 843.2.3 Enfermaria Especial...................................................................................... 87

    3.3 Para alm de seu tempo ........................................................................................ 893.4 Apresentao de pacientes.................................................................................... 94

    3.4.1 Seu estilo...................................................................................................... 943.4.2 Suas estratgias ........................................................................................... 97

    4 APRESENTAO DE PACIENTES NA PSICANLISE ............................................... 1084.1 Freud, aluno de Charcot......................................................................................... 108

    4.1.1 Freud: sob o efeito das apresentaes de Charcot ....................................... 1114.1.2 As apresentaes de Freud .......................................................................... 113

    4.2 As apresentaes de Lacan................................................................................... 1194.2.1 (Re)instaurando a dimenso clnica .............................................................. 1224.2.2 Lacan, para alm de Clrambault ................................................................. 128

    4.3 Apresentaes clnicas hoje: no rastro de Lacan.................................................... 1414.3.1 Apresentao tradicional X Apresentao clnica.......................................... 1424.3.2 Sobre os efeitos clnicos da apresentao de pacientes............................... 147

    CONCLUSO................................................................................................................... 158

    REFERNCIAS ................................................................................................................ 164

    ANEXO 1.......................................................................................................................... 170ANEXO 2.......................................................................................................................... 172ANEXO 3.......................................................................................................................... 173ANEXO 4.......................................................................................................................... 174ANEXO 5.......................................................................................................................... 175

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    INTRODUO

    O trao de Jerry1 que chamava ateno era os seus "atos perversos": aterrorizava

    sua vizinhana ameaando as crianas, matando brutalmente os gatos e cachorrosda regio, e tambm com sua figura: sempre de culos escuros e com o corpomarcado por cortes costurados por suas prprias mos. Tomados como "distrbio decomportamento", seus atos sugeriam para alguns tcnicos uma psicopatia e suarelao com os mdicos era de desconfiana.Encaminhado ao Centro de Sade para pegar medicao, Jerry revela psiclogaque o acolhe, suas idias de morte e tentativas de suicdio. Segue-se a esseencontro a tentativa de encaminhamento para o CERSAM.Sua situao provocava angstia nos profissionais de rede, Centro de Sade eCERSAM, no apenas pelas constantes passagens ao ato, realizadas diante doolhar aterrorizado das pessoas e at mesmo dos tcnicos do servio, mas pelaimpotncia que os colocava diante de sua adeso precria ao tratamento. Em meioa estas dificuldades, sua terapeuta conseguiu escutar uma demanda: Jerry queria irao Programa do Ratinho2 para pedir-lhe um rosto novo. Esclarecido daimpossibilidade de lev-lo ao programa, a terapeuta oferece um outro espao: ir auma apresentao de paciente, proposta que aceitou com entusiasmo.Sua participao na apresentao teve um efeito fundamental sobre seu tratamento.Um primeiro aspecto foi a elucidao do diagnstico estrutural: nos atendimentos jhavia falado acerca de um estupro que sofrera na infncia, mas na entrevista elerevela aspectos desse episdio que possibilitaram precisar a as circunstncias deseu desencadeamento. Sobre o fato trouxe ainda um detalhe importante: lembra-seque aps o abuso o agressor jogou sobre ele um cachorro morto, o que, ao longo daentrevista, se revelou como um ponto de identificao ao objeto mortificado, aoresto.Outro aspecto fundamental foi sobre a direo de seu tratamento: na entrevista, emlugar de acolher o relato de seus "atos perversos", o entrevistador privilegiou suasconstrues feitas atravs da modelagem em argila, dos desenhos, trabalhos compapis e com lixo. Ainda mais importante, podemos marcar a interveno em suarelao com o corpo. Na entrevista a nfase se deslocou dos cortes e costuras dapele, para um desenho que trazia consigo: tratava-se do desenho de uma bailarina.Um desenho de grande importncia para ele, no apenas por ser o nico de seus

    trabalhos que no havia destrudo, mas por ser este utilizado por ele como anteparos "vises"3. Na apresentao, ao se interessar pela bailarina, o entrevistador fezdestacar a percepo de Jerry sobre a impressionante capacidade da bailarina deficar na ponta dos ps e no cair (REIS, 1999) sem dvida uma outra forma dedar contorno a um corpo, muito diferente das costuras feitas na pele.A ocasio solene teve tamanho efeito sobre ele que, ao final da entrevista, retirou osculos escuros, sem os quais jamais se deixava ser visto, mostrando o rosto aopblico. Ato surpreendente, tanto mais quando verificamos sua funo: esconder a"deformao" de seu rosto decorrente de seu "envelhecimento precoce" doenaadquirida aps o abuso sexual. Tratava-se, portanto, de uma estratgia de defesafrente ao olhar insuportvel do Outro.A impresso causada no pblico, foi que a entrevista havia tocado esse sujeito.Impresso confirmada quando, em relato posterior, sua terapeuta informou que,como efeito da apresentao pde-se observar seu apaziguamento, com acentuadareduo das passagens ao ato agressivas contra si e contra terceiros. Contudo,ainda mais importante, foi o efeito de implicao: segundo a terapeuta, logo aps a

    entrevista, o paciente, chegou para o atendimento com uma pergunta: Por qu queeu mato os cachorros? Este foi o ponto de passagem para a implicao de Jerry emseu tratamento. Efeito reafirmado quando, no atendimento do dia seguinte, traz uma

    1 Jerry o nome fictcio proposto pela terapeuta do paciente que aqui tomamos como referncia. Todas asinformaes aqui apresentadas foram retiradas: 1. de sua entrevista realizada no Ncleo de Pesquisa emPsicose, IPSM-MG/IRS, em 5 de maio de 1999, pela Dra Elisa Alvarenga; 2. na discusso do caso realizada em13 de outubro de 1999 tambm no Ncleo de Pesquisa em Psicose; e 3. no artigo publicado por sua terapeuta:Andria Reis. (Conf. em: REIS., Andra, COSTA, ngela. Jerry. In: QUINET, Antnio. Psicanlise e psiquiatria controvrsias e convergncias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 269-272.)2 Programa de auditrio exibido na televiso.3 Segundo Andra Reis (2001), o paciente relatava vises com rgos - como corao, ou pedaos de corpo,como uma boca presa em um garfo ou um rosto se desmanchando que lhe indicavam a morte.

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    surpreendente elaborao acerca de uma alucinao. Relatou ter visto "um pombocom cara de gente dizendo-lhe que o fim estava chegando e que iria mat-lo".Ressalta que, nesta viso, o dia, a noite, o sol e o arco-ris apareciam juntos. Sobreisso, comenta: Eu preciso fazer um trabalho para destacar o dia. Eu tenho duaspersonalidades: uma quer viver e a outra quer morrer e matar as pessoas... Euquero ser uma pessoa do dia-a-dia (REIS, 1999).Certamente, decorreu da apresentao o vislumbre de um outro caminho noapenas para Jerry, mas tambm para a equipe. Podemos dizer que como efeito da

    escuta atenta do entrevistador, se fez evidenciar, sob a cena dos "atos perversos" deJerry, outras formas menos nefastas, criadas por esse sujeito para ligar-se ao corpo,ao campo do Outro. Abriu-se, ento, como perspectiva para a equipe, a construo esustentao dessas sadas mais favorveis para o paciente.

    Este apenas um dos muitos exemplos clnicos que temos podido acompanhar

    nos encontros de psicanlise4, nos quais as discusses sobre a apresentao de pacientes

    tem-se feito mais presente. Vemos, nitidamente, neste caso, que a entrevista pblica teve

    um efeito fundamental na direo do tratamento. A apresentao operou, claramente,

    enquanto uma interveno, que teve um duplo efeito: do lado do sujeito de validar, dar

    sustentao s suas invenes e, do lado da equipe, de possibilitar seu reposicionamento

    diante dessa cura. Podemos acrescentar, ainda, seu efeito sobre o pblico, para alm da

    surpresa e do aprendizado de um certo "modus operandi":de uma escuta que faz emergir o

    sujeito e de um clculo da clnica que toma o saber do paciente como diretriz de seu

    trabalho, podendo ver, ainda, o seu desejo pela clnica colocado em questo, como

    testemunha deste trabalho.

    Se, por um lado, h comprovaes acerca de seu efeito, por outro, este mesmo

    efeito suscita inmeras questes: que fundamentos clnicos viabilizam que uma

    apresentao de pacientes produza efeitos clnicos em um sujeito psictico? Se o paciente

    j vinha sendo atendido sob orientao psicanaltica, por que foi necessrio esse dispositivo

    para produzir efeitos no paciente? O que diferencia a apresentao de pacientes de uma

    sesso analtica? Se a diferena est na presena do pblico, como podemos entender sua

    funo? Do lado do analista, o que o autoriza ao ato em uma apresentao, e do lado do

    paciente, o que o torna permevel a essa interveno? Para qual paciente e em que

    momento clnico a entrevista seria indicada? Haveria restries quanto sua aplicao?

    Como fazer esse clculo, uma vez que s sabemos seu efeito a posteriori?

    4 Tomemos como exemplo o Primeiro Encontro Amrica do Campo Freudiano, realizado em 2003, na cidade deBuenos Aires, Argentina, quando tivemos uma mesa sobre o tema: Conversao clnica 1: Apresentao deEnfermos. Dois anos depois, em 2005,no Segundo Encontro Americano, sobre Os resultados teraputicos dapsicanlise, tambm na Argentina, o assunto ganhou tal destaque que foi um dos eixos temticos do Encontro.

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    Os efeitos clnicos e de transmisso que esse caso demonstra, assim como as

    questes que suscita, j seriam, por si s, uma razo para justificar uma investigao acerca

    desse dispositivo, mas temos, ainda, outros motivos de igual importncia que apontam para

    o interesse nesta investigao.

    Um primeiro motivo, que importante marcar, que no so todas as

    apresentaes que produzem esse tipo de efeito; pelo contrrio, podemos mesmo dizer que

    esse um encontro raro. preciso considerar que no h garantia de que os resultados

    sejam sempre positivos: pode ser que nada se produza num encontro, mas pode ser,

    tambm, que testemunhemos efeitos desencadeantes ou de reagudizao de uma crise, por

    exemplo. Assim, formalizar os fundamentos clnicos que a operam, sistematizar sua

    aplicao, certamente contribuiria muito, no apenas para ampliar as possibilidades de se

    produzir um bom encontro e para diminuio dos riscos, mas tambm para aplicar suas

    conseqncias no tratamento psicanaltico da psicose, de uma forma geral.

    ATUALIDADE

    Seria, ainda, justificativa para essa investigao, a atualidade do tema que,

    como chamou ateno o professor Ram Mandil poca da qualificao deste trabalho,

    ultrapassa o campo mesmo da apresentao.

    Um primeiro aspecto dessa atualidade diz respeito psicanlise aplicada. Na

    prtica atual, os psicanalistas perguntam-se sobre sua insero na cidade. No que diz

    respeito sade mental, mais especificamente, a pergunta que se coloca : como abrir

    espao ao sujeito da palavra em uma instituio tradicionalmente mdica, que opera com

    uma lgica universalizante e silenciadora? Ainda que seja uma tarefa difcil, no sem

    precedentes. Podemos buscar inspirao no trabalho de Lacan que, por cerca de 30 anos,

    realizou apresentaes de pacientes em hospitais psiquitricos. Ao associar a psicanlise a

    essa prtica, tradicionalmente mdica, Lacan no apenas proporcionou um dilogo acerca

    da interseo entre psiquiatria e psicanlise, mas possibilitou, principalmente, que a fala do

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    paciente ressoasse no universo institucional. Como nos indica Franois Leguil, [...] a

    apresentao de Lacan hoje a pedra angular de nossa reflexo sobre a presena do

    analista no hospital (LEGUIL, 1998, p. 99).

    E, realmente, a apresentao revela uma impressionante capacidade de

    viabilizar a aplicao da psicanlise na instituio. Diversas experincias com a

    apresentao de paciente5 tm demonstrado que, tendo em vista os efeitos clnicos que dela

    podem ser extrados, este um dispositivo que desperta o interesse da comunidade clnica.

    Mesmo profissionais de formaes diversas, que no a psicanaltica, diante de impasses da

    clnica, ao se encontrarem com seus recursos esgotados, acabam por demandar esses

    espaos, buscando outras solues, que no as tradicionalmente utilizadas. Na

    apresentao, a diversidade profissional, em suas diferentes especialidades e formaes

    tericas, pode-se encontrar em um impasse comum: o que fazer com um determinado

    paciente. E, efetivamente, como efeito de uma apresentao, possvel fazer uma

    apreciao mais cuidadosa do caso. O esclarecimento do diagnstico, a direo do

    tratamento e do encaminhamento so exemplos de aspectos que podem ser esclarecidos,

    ou redefinidos, a partir de elementos revelados durante a entrevista. Isto gera, com

    freqncia, efeitos muito positivos na implicao da equipe, favorecendo, inclusive, que asintervenes dos diversos profissionais envolvidos no tratamento sejam mais articuladas,

    integradas, uma vez que podem ser orientadas por um clculo feito, coletivamente, na

    discusso do caso que se segue entrevista. No que diz respeito psicanlise, esse

    dispositivo possibilita que sua lgica circule, servindo de orientador ltimo para o trabalho de

    uma equipe, mesmo que heterognea, quanto formao de seus profissionais. O efeito,

    em extenso, no tratamento , geralmente, constatvel a posteriori.

    Tal alcance prtico, cujos efeitos podem ser constatveis na clnica, vm

    destacar um outro aspecto importantssimo da apresentao de pacientes: diante da

    necessidade de darmos uma resposta s exigncias contemporneas da avaliao, que

    5 Tomamos como referncia, um trabalho de seis anos de apresentaes de paciente no Instituto Raul Soares(IRS), hospital psiquitrico da rede FHEMIG, no qual aconteciam, regularmente, dois espaos de discussoclnica: o Ncleo de Pesquisa em Psicose (desde 1999) - um projeto do IPSM-MG em parceria com o IRS; e aSesso Clnica do IRS (2000 a 2005). Ambos espaos de orientao psicanaltica, sendo as entrevistasrealizadas por analistas da EBP-MG.

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    impe, como excelncia, a racionalidade dos resultados puramente estatsticos, a

    apresentao pode ser tomada como um importante instrumento de resposta para fazer

    frente a essas exigncias, sem, no entanto, renunciar aos princpios ticos que regem nossa

    prtica.

    Por fim, mas no menos importante, o dispositivo da apresentao, marcado por

    seu aspecto extremo de se dar em um nico encontro, talvez seja um lugar privilegiado para

    se extrarem alguns elementos, para pensarmos o efeito do que se tem chamado "o

    encontro com um psicanalista". Mais uma vez, retomamos a valiosa contribuio do

    professor Ram Mandil:

    A idia do encontro com um analista tem sido ponto de apoio para se pensar apsicanlise no mundo contemporneo, porque, provavelmente, os encontros com os

    psicanalistas podero, futuramente, ter uma forma muito mais prxima daapresentao de paciente do que a gente imaginava. No mundo contemporneo,talvez eles tenham a caracterstica de serem encontros nicos. Trabalhar a partir daapresentao interessante porque permite pensar o que seria esse "encontro comum psicanalista", numa instituio, numa clnica, num centro de tratamento. Ou seja,pensar o que poderia ser o efeito do encontro com um analista de uma forma geral.6

    DIFERENCIAO

    Quando fazemos tal elogio apresentao, indispensvel esclarecer que

    fazemos referncia especificamente apresentao realizada segundo a proposio de

    Lacan, que transps para o antigo dispositivo psiquitrico da apresentao, a escuta

    psicanaltica.

    Com isso, queremos marcar que a apresentao, longe de ser um dispositivo

    uniforme, marcada, como a prpria psiquiatria, pela multiplicidade de enfoques.

    Conseqentemente, h variaes tanto no objetivo de seu uso, quanto nas tcnicas de

    execuo.

    Assim, no nos , de toda forma absurdo, depararmos com posies contrrias

    que discriminam e, mesmo, condenam esta prtica. Tomemos, como ilustrao, um trecho

    de um artigo de Chain Katz, intitulado "A super violncia em psicanlise": [...] o que

    apresentado [paciente] destitudo de sua condio de sujeito humano; posto apenas na

    6 Fala extrada das anotaes feitas no decurso da discusso sobre essa dissertao realizada durante aQualificao, em 09/06/2005.

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    condio de objeto para uma (re)afirmao do j sabido [...]. Para o enfermo em

    apresentao nada ir se modificar (KATZ,1992, p. 3). Ou podemos nos referenciar,

    tambm, para marcarmos a atualidade da questo, na recente carta divulgada pelo

    Conselho Federal de Psicologia, que abomina a apresentao com frases como:

    Aos estudantes, conclamamos que se rebelem contra o comodismo conservadordos mestres que insistem nesta tradio decadente e oferecem apenas uma versocaricata, institucionalmente deformada, das experincias do sofrimento humano depessoas assim reduzidas condio de meras cobaias para uma aprendizagemacadmica. Rebelem-se!7

    Realmente, no podemos deixar de concordar que algumas prticas,

    especificamente as de cunho estritamente didtico, podem ser invasivas, desrespeitosas,

    objetificantes. Absurdo, contudo, a forma como tais crticas so feitas, poderamos dizer,

    de forma leviana, at mesmo irresponsvel, que desconsidera a diversidade dessa prtica,

    colocando tudo num "saco de gatos", como se se tratasse de uma prtica homognea. E

    neste ponto que no podemos nos silenciar.

    Diante de um movimento que parece visar ao fim dessa prtica, torna-se

    absolutamente necessria, psicanlise, a sistematizao da singularidade de sua prtica.

    preciso formalizar seus efeitos no tratamento psicanaltico do sujeito psictico, na

    articulao do trabalho em equipe, na formao de profissionais, na transmisso da

    psicanlise, e principalmente, evidenciar seu efeito de subverso, uma vez que esse

    dispositivo capaz de introduzir, em meio lgica universalizante da instituio, a dimenso

    singular do sujeito.8 Ou seja, preciso caracteriz-la enquanto um dispositivo capaz de

    restituir ao "doente", ao "louco", seu status de sujeito, fazendo frente s crticas, e

    (re)dimensionar seu lugar de importncia clnica.

    7 Conf. Anexo 1.8 Sobre o tema, conferir: ANDRADE, Renata. Discusso X construo do caso clnico; FERREIRA, Cristiana,Sesso clnica: efeitos de interveno institucional; MENDES, Aline. Tratamento na psicose:o lao social comoalternativa ao ideal institucional;e PINTO, Anamaris. A sesso clnica como princpio de articulao do diverso.Esses artigos versam sobre a experincia realizada no Instituto Raul Soares, de 1999 a 2005, e foramapresentados na revista Mental Revista de Sade Mental e Subjetividade da UNIPAC, ano III, n. 4, jun. 2005.

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    FORMALIZAO

    Tomando, ento, como proposta, a formalizao dessa prtica psicanaltica,

    encontramos inspirao em Lantri-Laura. No prefcio obra Fundamentos da clnica, dePaul Bercherie, ele indica que, se quisermos esclarecer o estado atual da apresentao de

    pacientes, preciso partir de seu passado, de sua origem.

    A criao da apresentao de pacientes data da poca mesma do nascimento

    da psiquiatria e seu exerccio encontra-se intrinsecamente articulado ao saber psiquitrico,

    sendo, a um s tempo, espao de aplicao de suas concepes e fonte de constituio

    desse saber.

    Contudo, ao investigar o histrico da apresentao, uma curiosidade se

    evidencia no h, ao longo de toda a evoluo da psiquiatria, elaboraes direcionadas

    especificamente a essa prtica. Entretanto, como nos disse Lantri-Laura, ao falar do estudo

    da psiquiatria, o que se aplica perfeitamente ao nosso objeto, o campo histrico

    fundamental:

    Somente esse tipo de esclarecimento [histrico] pode nos ajudar a relativizar oprprio presente da psiquiatria, pois s podemos adotar uma atitude de interessecrtico frente psiquiatria de 1980 (no nosso caso, a apresentao atual), sob acondio de ver nela o desembocar e a complicao progressiva de um conjunto dequestes que comearam a ser levantadas pelo menos no final do sculo XVIII.Logo, esclarecer o presente pelo conhecimento de seu passado e, pelo mesmomovimento, relativiz-lo: o estudo histrico aparece, assim, como o meio para umconhecimento mais exato da psiquiatria, conhecimento que possui um valor prticoincontestvel e que nunca se limita a um adorno erudito. (LANTRI-LAURA, 1989, p.14) (Grifos meus)

    Assim, diante dessa lacuna com a qual nos deparamos, uma necessidade se faz

    imperativa: precisamos, como primeiro passo desse trabalho de formalizao, reconstituir o

    saber exposto acerca da apresentao, reconhecer seu processo histrico e, assim, poder

    constituir melhor esse nosso objeto de pesquisa.

    Dessa forma, todo o interesse clnico que se coloca acerca do tema dever ser

    relegado a um segundo tempo de investigao. No presente trabalho, vemo-nos limitados a

    essa etapa preliminar, a esse trabalho de base uma investigao sobre o processo

    histrico que desemboca na situao na qual nos encontramos hoje, em nossa prtica.

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    Mas como fazer este percurso histrico se no h, nos clssicos, formulaes

    sobre o tema? Nos textos da poca no h elaboraes nem sobre sua prtica, nem sobre

    seus efeitos. Tampouco encontramos informaes sobre o tema em trabalhos mais

    recentes, produzidos por historiadores da psiquiatria. O material disponvel reduz-se a

    referncias casuais, intudos na entrelinha da forma como os autores costumavam expor

    suas teorias e, eventualmente, em algum relato de caso, o que tambm no era comum na

    poca.

    Sobre esse material escasso, temos ainda que trabalhar com cuidado, pois, mais

    uma vez, seguindo uma advertncia de Lantri-Laura:

    devemos, de fato, desconfiar da confuso entre a teoria que efetivamente norteiauma prtica e a reflexo explcita que os praticantes em causa fizeram sobre ela;

    tudo o que sabemos sobre a importncia da tradio oral, na iniciao, natransmisso e na reproduo do saber e da habilidade clnicos, e sobre os poucosvestgios que ela nos deixou, leva-nos a aquilatar a dificuldade de tal investigao.(LANTRI-LAURA, 1989, p. 19)

    Mas, mesmo com todas essas dificuldades, poderemos nos dedicar, em nosso

    primeiro captulo, histria da apresentao de pacientes poca da psiquiatria clssica,

    graas s preciosas investigaes de Michel Foucault, apresentadas no livro El poder

    psiquitrico (2005). Poderemos, portanto, numa leitura absolutamente marcada pelo estilo

    de Foucault, trabalhar aspectos do surgimento e da utilizao da apresentao.Na realidade, grande parte do material bibliogrfico que faz referncia ao

    dispositivo da apresentao, so textos de psicanalistas que visavam a falar,

    prioritariamente, sobre as apresentaes de Lacan com exceo dos textos

    contemporneos, que tratam dos efeitos clnicos, to em foco na atualidade, e que tm se

    multiplicado, nos ltimos anos. Felizmente, esses textos forneceram pistas sobre a histria

    da apresentao, o que serviu de norte para o nosso trabalho.

    Uma referncia recorrente (e, nesse caso, tambm nos textos sobre a histria da

    psiquiatria), Charcot suas apresentaes, tomadas como verdadeiros espetculos de

    abuso e desrespeito ao paciente, so apontadas como piv da intensificao do movimento

    crtico direcionado psiquiatria. Seu estilo foi tomado como o pice do abuso do poder

    mdico sobre o paciente. Entretanto, o trabalho de Charcot tomado como objeto de

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    investigao em nosso segundo captulo, tanto pelo interesse que desperta esse carter

    espetacular de suas apresentaes e suas conseqncias, mas tambm por uma

    particularidade de sua histria muito preciosa para ns, psicanalistas afinal, foi em suas

    entrevistas que Freud, decididamente, se interessou pelas histricas. Ainda que Freud no

    se tenha utilizado do dispositivo da apresentao, ele no deixa dvida quanto ao efeito que

    estas produziram sobre ele.

    No terceiro captulo, investigaremos o trabalho de Clrambault, que, como

    Charcot, nos interessa duplamente, pois Clrambault, nas palavras do prprio Lacan, foi

    considerado seu nico mestre em psiquiatria e, curiosamente, seu mestre era tambm

    reconhecido por suas apresentaes: um misto de preciso e violncia que provocava, em

    seus seguidores, tanto espanto e admirao, quanto repdio.

    Por fim, chegamos psicanlise. No quarto captulo falaremos, de incio, da

    experincia de Freud. Entretanto, as apresentaes de Lacan sero nosso foco principal.

    Certamente, seremos obrigados a fazer um recorte, pois, falar de suas apresentaes daria,

    por si s, uma dissertao completa de mestrado. Seguindo a perspectiva anterior, deter-

    nos-emos nos aspectos histricos, dando nfase s modificaes que Lacan introduziu no

    dispositivo tradicionalmente psiquitrico, que resultaram, em verdade, na subverso deste.Ao longo desse percurso, tentaremos mostrar que a grande subverso produzida

    por Lacan, na apresentao de pacientes, diz respeito subverso mesma da psicanlise.

    Se a psiquiatria opera a partir do saber que detm sobre seu paciente, veremos que, na

    psicanlise, o saber fundamental, que ir nortear o analista na direo da cura, est do lado

    do sujeito. Em lugar de operar com um saber prvio a ser aplicado ao paciente do lugar de

    mestria, to caro psiquiatria, a psicanlise esvazia este lugar para escutar o que o prprio

    sujeito tem a dizer sobre o seu sofrimento. Assim, a psicanlise d voz a um saber antes

    ignorado, desqualificado, alienado. Um saber que, por se apresentar de forma

    insuficientemente elaborada, deve ser construdo com o sujeito.

    Ao aplicar a escuta psicanaltica prtica da apresentao, Lacan reproduz a,

    essa subverso. Assim, tambm na apresentao de paciente, a nfase se deslocar do

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    saber do mdico para o saber do paciente, ou, nos termos em que iremos trabalhar, do

    saber sobre o paciente ao saber do paciente.

    Por fim, respeitando delimitao imposta pelo objetivo deste trabalho,

    encerraremos esse percurso, dando uma breve notcia do ponto em que nos encontramos,

    hoje, em nossas elaboraes. Quanto s perguntas que se colocam ainda sem respostas,

    que sirvam de mote para investigaes futuras.

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    1APRESENTAO DE PACIENTES NA PSIQUIATRIA CLSSICA

    "A apresentao de pacientes uma prtica de ensino e de estudo clnico dos

    distrbios psiquitricos contempornea da prpria constituio da psiquiatria" (QUINET,

    1999, p. 14).

    Sendo a psiquiatria clssica uma clnica calcada no olhar, na qual a observao

    era pr-condio necessria, seno o objetivo ltimo da interveno, a apresentao surgiu

    como um dispositivo muito apropriado para o estudo minucioso do enfermo, visto que

    favorecia a apreenso dos fenmenos a partir de sua descrio, detalhada pelo prprio

    paciente.

    Mesmo sendo reconhecida sua importncia na constituio do saber psiquitrico

    e a extenso de seu uso, tanto na psiquiatria francesa quanto na psiquiatria alem,

    impressionante a falta de referncia direta sobre as apresentaes. Seu uso evidencia-se,

    antes, na forma como os autores clssicos apresentavam os casos clnicos, pois,

    habitualmente, o faziam dirigindo-se a um pblico, do que propriamente enquanto um tema

    de investigao, sendo raro encontrar elaboraes, seja sobre seu uso, seja sobre seus

    efeitos. Para eles: "a va sans dire".

    Portanto, para pesquisar essa prtica, conta-se essencialmente com os vestgios

    que a tradio oral propagou.

    Contudo, a falta de elaborao no perodo clssico contrasta com o aumento de

    interesse que o tema desperta na atualidade, no meio psicanaltico. Nesses textos

    contemporneos, comum encontrarmos a indicao de Jean-Pierre Falret1 como precursor

    dessa prtica, pois, sem dvida, foi um dos psiquiatras que efetivamente mais utilizou este

    dispositivo, e, como veremos adiante, um dos poucos que discorreu sobre o tema.

    Entretanto, segundo Foucault, foi com Esquirol2 em 1817! que tivemos as

    primeiras prticas clnicas. Nessa data, ele abriu um curso de clnica das enfermidades

    1Jean Pierre Falret (1794-1870) Nas obras de Falret, h vrias referncias apresentao de pacientes. Conf.

    Maladies mentales et ds asiles dalin. Leons clinique (1864).2 Jean Etienne Esquirol (1772-1840)

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    mentais em Salptrire, tendo ministrado suas aulas at 1826. Em pouco tempo, o

    dispositivo passou a ser adotado como principal mtodo de ensino. O curso teve um

    sucesso alarmante, at no estrangeiro. Assim, a partir de 1826, Esquirol continuou dando o

    curso em Charenton. Segundo Foucault, no perodo de 1830-1835, esse sistema de

    apresentao clnica, j havia alcanado tal repercusso, que, na Frana, era exercido por

    todo chefe de servio.

    Essa uma primeira surpresa com a qual nos deparamos, pois, ao contrrio do

    que estamos acostumados a encontrar nos textos sobre apresentao, que habitualmente

    destacam seu carter como sendo essencialmente didtico, vemos aqui que, ao contrrio,

    seu aspecto clnico tambm possua um lugar privilegiado, pois, conforme informao de

    Foucault, mesmo aqueles chefes de servio que no estavam atrelados prtica de ensino,

    realizavam apresentaes. (Foucault, 2005, p. 219)

    1.1 CONTEXTO DE SEU SURGIMENTO

    Tomando como referncia a leitura de Foucault, o nascimento da psiquiatria

    datado 1793, ano em que Pinel3 assumiu suas funes em Bictre. Portanto, sendo o ano

    de 1817 a data indicada por ele para delimitar o incio das apresentaes clnicas, no h

    exagero em dizer que, praticamente, iniciaram juntas.

    Sobre esse perodo do nascimento da psiquiatria e, por conseguinte, da

    apresentao, recorreremos a Foucault, em seu clssico trabalho A histria da loucura

    (1999). Atravs de um estudo arqueolgico da loucura, Foucault nos possibilita situar as

    condies histricas, em seus aspectos sociais, polticos e econmicos, que engendraram o

    surgimento da psiquiatria.

    De fato, a psiquiatria surgiu, no como o resultado de algum progresso cientfico

    que pudesse ter lanado um novo olhar sobre as causas ou sobre o tratamento da loucura.

    3 Philippe Pinel (1745-1826)

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    Pelo contrrio, ela nasce em conseqncia de longo processo de dominao da loucura,

    cujo percurso passou antes pela ordem moral, do que pelo conhecimento mdico.

    Foucault explicita que a relao com o louco era ditada no por regras de

    conhecimento cientfico, mas pela "percepo social". Em verdade, no momento que

    antecede o nascimento da psiquiatria, o louco j se encontrava internado. Contudo, ele no

    se encontrava sozinho era a percepo social, que, de forma indistinta e indiferenciada,

    mandava o louco para a internao, juntamente com outros tipos sociais, que, por

    transgredirem as leis da razo e da moral, eram percebidos como indesejveis, e, portanto,

    recolhidos e enclausurados.

    Todavia, importante marcar que essas instituies de internao no eram de

    tratamento, mas estruturas "semi-judicirias", entre a polcia e a justia, que tinham por

    objetivo a manuteno da ordem. Foucault designar, sob o nome de "grande

    enclausuramento", esse fenmeno eminentemente moral, instrumento de poder poltico, que

    tinha a funo de garantir a excluso e a correo daqueles que se colocavam enquanto um

    obstculo ordem social. Assim, temos que, grande parte da populao do

    enclausuramento, era composta por libertinos, prdigos, "feiticeiros", adlteros, devassos,

    agressivos, entre outros, e tambm por pobres desempregados, que, no sendo nemprodutores, nem consumidores, ficavam margem da economia mercantilista, sendo

    acusados de vadiagem. Junto com eles, os loucos.

    Com o nascimento do capitalismo, parte dessa populao que havia sido

    excluda foi reintegrada para o trabalho. Entretanto, o louco, por ser considerado inapto para

    o trabalho, um elemento negativo, sem utilidade econmica, permaneceu excludo. Dessa

    forma, as casas de recluso passaram a ser destinadas exclusivamente aos loucos, e foi

    nesse momento que o controle desse tipo social excludo foi passado para as mos do

    mdico.

    Isso pode parecer pouco, mas foi fundamental para determinar o destino que

    ainda hoje se reserva aos loucos (MACHADO, 1988, p. 76). Ainda que, num primeiro

    momento, a loucura no tivesse uma significao patolgica, a medicalizao da loucura

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    implicou a noo de que a recluso, que a internao teria, em si, uma dupla funo:

    atuando enquanto um lugar de ecloso da loucura e tambm de sua cura.

    Possibilitar a ecloso da loucura significava possibilitar a expresso de sua

    verdade. Tal concepo baseava-se na noo de crise noo de grande importncia para

    a medicina e dominante at os fins do sculo XVIII:

    A crise, tal como era concebida e exercida, precisamente o momento em que anatureza profunda da doena sobe superfcie e se deixa ver. E o momento em queo processo doentio, por sua prpria energia, se desfaz de seus entraves, se libertade tudo aquilo que o impedia de completar-se e, de alguma forma, se decide a seristo e no aquilo, decide o seu futuro - favorvel ou desfavorvel. [...] Nopensamento e na prtica mdica, a crise era ao mesmo tempo momento fatal, efeitode um ritual e ocasio estratgica. (FOUCAULT, 1981, p. 114)

    De fato, nesse primeiro momento em que a medicina se ocupou do louco, ela

    ainda no possua uma teoria formulada, mas podemos dizer que foi justamente a recluso

    do louco em um lugar prprio para acolher e mesmo provocar a crise, que, por possibilitar a

    produo da "verdade da doena", viabilizou tambm, dar conta de sua especificidade, e

    constituir esse campo de saber. Foi ento que a loucura passou a ser observada, tomada

    como objeto de conhecimento. (Foucault, 1981, p. 121) O nascimento da psiquiatria

    decorreu, portanto, desse processo de medicalizao da loucura, que transformou o louco

    em doente mental.

    Nesse momento inicial, em que a psiquiatria exercia uma teraputica sem

    medicina, o mtodo de trabalho proposto por seu fundador, Pinel, foi a observao: A

    alienao mental exige o trabalho atento de autnticos observadores para sanar a desordem

    em que se encontra (PINEL, 1801 apud PESSOTTI, 1994, p. 145) Assim, a clnica

    psiquitrica instituda por Pinel introduziu o chamado mtodo clnico.

    Segundo Isaas Pessotti, o mtodo clnico implicava a observao prolongada,

    rigorosa e sistemtica das transformaes na vida biolgica, nas atividades mentais e nocomportamento social do paciente. (Pessotti, 1994, p. 170) Mas importante indicarmos

    que, para Pinel, o crebro no era atingido; a nfase estava colocada na mente, que estaria

    perturbada em seu funcionamento. Decorre dessa concepo de Pinel sua crena na ao

    possvel do tratamento moral e na curabilidade potencial da loucura, e, o que mais

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    importante para ns, introduz a histria de vida do paciente, como recurso diagnstico

    essencial. (Bercherie, 1989, p. 43)

    Segundo Franz Alexander, Esquirol, o mais eminente discpulo de Pinel, seguiu

    com tanta preciso o trabalho de seu mestre, que as contribuies dos dois homens so

    freqentemente confundidas. Mas, sem dvida, preciso registrar os avanos do discpulo

    em relao ao mestre. Em muitos sentidos, suas descries de sndromes clnicos so

    ainda mais precisas que as de seu mestre (ALEXANDER,1968, p. 190).

    No que diz respeito ao interesse pela histria de vida do paciente, Esquirol

    tambm aprimorou a abordagem do mestre. Para alm dos acontecimentos histricos,

    Esquirol relacionou os acontecimentos psicolgicos precipitantes que pareciam

    significativos no colapso mental de centenas de seus pacientes na Bictre e na Salptrire

    (ALEXANDER,1968, p. 190).

    verdade que no h formulaes sobre o fato de Esquirol ter comeado a

    utilizar o relato dos enfermos como uma prtica clnica em suas aulas, mas, essas

    observaes sobre seu interesse nos aspectos psicolgicos do paciente, parece ser uma

    chave na compreenso desse fato: para se tomar conhecimento dos aspectos histricos,

    morais e psicolgicos do adoecimento, certamente isto s se dar pela narrao dopaciente, o que d a seu relato um lugar de grande importncia.

    Entretanto, cabe ressaltar que a fala do paciente era acolhida, mas com vistas

    interveno corretiva e de diagnstico. No se rejeitava a idia delirante, pois a ela devia-se

    contrapor a realidade, contudo, no havia inteno de penetrar em seu universo no se

    escutava realmente as palavras da loucura.

    1.2 A REALIDADE COMO FORMA DE TRATAMENTO

    Teremos, assim, que a interveno propriamente mdica, nesse perodo, era

    bastante limitada, seno inexistente.

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    Em realidade, acreditava-se que a cura derivaria do prprio funcionamento do

    asilo: isolamento, rigor de normas e hierarquia sustentada em medidas

    punitivas/teraputicas, que visavam a controlar e adequar o comportamento do louco.

    Nesse momento portanto, no se produziram teorias sobre a cura, nem mesmo

    tentativas ou sistematizao destas. O que h so apenas descries de mtodos de

    interveno: normas, planos tticos e estratgicos do funcionamento do regime asilar, dos

    mtodos de aplicao dos castigos e das tcnicas "teraputicas".

    Felizmente, temos alguns relatos de cura, como, por exemplo, o da cura do Sr.

    Dupr4, realizada por Franois Leuret5, e a partir deste precioso relato que Foucault

    procura sistematizar esse trabalho de cura, extraindo o mecanismo geral de ao

    teraputica da poca. Seguiremos, a partir daqui, as elaboraes apresentadas por

    Foucault, no livro El poder psiquitrico(2005).

    Para entendermos o "tratamento", necessitamos entender, primeiramente, uma

    noo comum, na poca, sobre a loucura qualquer que fosse seu contedo, haveria

    sempre certa afirmao de onipotncia. Esse era um elemento que se podia atribuir com

    absoluta certeza a qualquer loucura: onipotncia que se manifestava, claramente, nas idias

    delirantes de grandeza, nas idias de perseguio, e que, mesmo quando no fosseacessvel pela via do delrio, se expressava na vontade e nos comportamentos

    desempenhados pelo paciente, que dispensava qualquer argumentao lgica ou

    demonstrao de provas, bastando apenas a si mesmo como garantia de sua certeza

    absoluta. (Foucault, 2005, p. 174) Como ponto inicial do "tratamento", tratava-se de vulnerar,

    ferir essa afirmao de onipotncia.

    Furar essa onipotncia era submeter o paciente realidade. A interveno

    psiquitrica era, antes, uma tentativa de subjugar, de dominar essa vontade onipotente, ou

    seja, uma interveno sustentada no poder psiquitrico do que uma teraputica

    sistematizada, elaborada.

    4 Conf. nota 9, p.30.5 Franois Leuret (1797-1851). Foucault considera esse relato o exemplo mais elaborado de cura que seencontra na literatura francesa. Em sua opinio, foi Leuret quem no apenas definiu a cura clssica de maneiramais precisa, meticulosa, como tambm foi quem deixou a maior quantidade de documentos sobre suas curas.(Foucault, 2005, p. 170)

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    Para subjugar essa onipotncia, a instituio atuava, ela mesma, enquanto uma

    imposio da realidade. Atravs de um regime de regras rgidas de funcionamento, de

    trabalho obrigatrio e de uma hierarquia na qual o paciente encontrava-se na escala mais

    baixa, o asilo se impunha enquanto uma duplicao da realidade externa, dentro do hospital.

    O mdico, enquanto aquele que dirigia o funcionamento do hospital e dos indivduos,

    colocava-se no topo da escala. Como efeito, o poder psiquitrico era validado pelo poder

    exercido pelo asilo.

    O poder asilar funcionava fazendo valer as realidades do mundo como realidade

    tambm para o paciente. Assim, o tratamento consistia em manobras que pudessem

    desequilibrar esse poder onipotente do paciente, confrontando-o continuadamente. A

    estratgia era reduzir a onipotncia da loucura mediante a manifestao de outra vontade,

    mais vigorosa e dotada de poder superior contra a onipotncia do delrio, a realidade do

    mdico.

    Para concretizar sua sujeio realidade, o regime asilar articulava-se sobre

    alguns pontos fundamentais:

    1. Submisso do paciente realidade do mundo externo, atravs da

    incorporao do mecanismo da ordem e da obedincia. O paciente devia aceitar submeter-se lei geral, o que implicava na obedincia desde as normas do asilo, at a utilizao

    mesma da linguagem, ou seja, da linguagem socialmente compartilhada pelos homens.

    2. Reconhecimento da realidade prpria, atravs do ordenamento e da

    organizao de suas necessidades bsicas: alimentao, defecao, sono, vestimenta,

    atividade laboral, de sustento, de utilizao do dinheiro, de liberdade.

    3. Isolamento afastar o paciente do meio do qual se desenvolveu a

    enfermidade.

    4. Obrigao geral ao trabalho: era preciso instaurar desde dentro da loucura, o

    sistema de intercmbios a partir do qual o paciente poderia financiar sua existncia de

    louco, mediante o trabalho, para que a sociedade no tivesse que pagar o preo.

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    5. Enunciao da verdade era preciso que o enfermo dissesse a verdade

    no a verdade do sujeito ou de sua loucura, de sua percepo, mas a verdade coincidente

    com a realidade.

    Uma vez obtido sucesso, o louco no teria outra sada seno se reconhecer

    enquanto louco. Deixar de estar louco era aceitar ser obediente, poder ganhar a vida,

    reconhecer-se em sua identidade biogrfica socialmente estabelecida. Ou seja, estar curado

    era estabilizar-se num tipo social reconhecido, aprovado. Vemos aqui que a psiquiatria da

    poca tinha como objetivo suprimir, no a loucura, mas seus sintomas.

    Verificando esses pontos, possvel perceber, efetivamente, que a prtica

    prescindia do saber mdico. Certamente, vinha-se construindo todo um conhecimento das

    noes nosogrficas, as etiologias das enfermidades mentais, as investigaes

    anatomopatolgicas sobre as possveis correlaes orgnicas da enfermidade mental.

    Entretanto, este saber no servia de guia para a prtica psiquitrica, no chegava a ter

    influncia concreta sobre a vida asilar. O saber que um mdico podia aplicar no enfermo era

    bastante reduzido. Essa separao, essa desarticulao entre o que poderamos chamar

    uma teoria mdica e prtica concreta de "tratamento" se manifestava em muitos aspectos.

    Na prtica, o saber nosogrfico no influenciava na distribuio dos pacientes. Aorganizao se fazia, antes, pela diferena de curveis e incurveis, capazes e incapazes

    para o trabalho, calmos e agitados, obedientes e indisciplinados, etc.

    Podemos ver essa separao entre saber e prtica tambm na forma como

    teraputica e disciplina se sobrepunham os banhos, cuja funo inicial era atingir a

    circulao do paciente, rapidamente foi absorvida aos mtodos de coero e castigo. Sobre

    esse aspecto Foucault avalia que, quando um enfermo havia feito algo que se quisesse

    reprimir, era preciso castig-lo, mas fazendo-o crer que, se o castigava, era porque o castigo

    tinha uma utilidade teraputica. Portanto, o castigo devia atuar como um remdio. De

    maneira inversa, quando lhe era aplicado um remdio, era preciso aplic-lo sabendo que lhe

    faria bem, mas induzindo-o a crer que este lhe era administrado para castig-lo.

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    Ento, em que aspecto intervinha especificamente a medicina? Uma vez que a

    cura do louco no era esperada do mdico, mas do regime asilar, por que a figura do

    mdico era necessria?

    A presena do mdico era colocada como axioma, ou seja, como uma norma

    admitida como princpio, pois sem sua presena, o asilo careceria de funo teraputica.

    Entretanto, como vimos, tal teraputica no adivinha realmente de um saber mdico, tanto

    que Pinel chegava a dizer que, ainda que estivesse l para curar enfermos, Pussin6, que foi

    durante tantos e to longos anos o porteiro, o zelador e o vigilante de Bictre (PINEL apud

    FOUCAULT, 2005, p. 215), sabia tanto quanto ele, e acrescentava que, para dizer a

    verdade, sem dvida havia aprendido muito, graas a haver se apoiado na experincia de

    Pussin.

    Para Foucault, a presena do mdico era importante por seu saber no por um

    saber especfico, por seu contedo, pois em verdade, a psiquiatria ainda no tinha um saber

    constitudo. O saber mdico que importava era, antes, os da marca de saber que sua

    profisso suportava marcas que por designarem nele um saber, implicavam na fora de

    lei. Marcas do saber que atuavam como complemento de poder realidade. Assim, as

    estratgias "teraputicas" tinham, no apenas a funo de "tratamento", mas tambm afuno de dar sustentao ao poder mdico.

    Dentre as estratgias de interveno, duas so especialmente interessantes

    para ns: o deslocamento do poder onipotente do paciente para o mdico e a enunciao da

    verdade.

    Comecemos com o deslocamento da onipotncia do paciente para o poder de

    realidade para o mdico. Como dissemos, a estratgia era vulnerar, furar a onipotncia da

    loucura mediante a manifestao de uma outra vontade mais vigorosa e dotada de um

    poder superior: a realidade do mdico.

    6 Trata-se de Jean-Baptiste Pussin, que trabalhou em Bictre desde 1780, onde conheceu Pinel, a quemacompanhou quando este foi, posteriormente, designado para Salptrire.

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    Tomemos o exemplo apresentado por Foucault da indicao de Georget7. Ele

    dava como conselho aos mdicos que no se deveria negar a um alienado a condio que

    este pretendia ter. Se o paciente dizia ser rei, pois bem, era preciso mostrar-lhe que mesmo

    sendo rei, ele carecia de poder, estando, portanto, submetido ao mdico e que, este sim,

    podia tudo sobre seu paciente. (Foucault, 2005, p. 175)

    Pinel, por exemplo, que dava grande importncia aos choques emocionais,

    recomendava que se devia abordar o paciente com algum aparato de temor, um aparato

    imponente que pudesse atuar vigorosamente sobre a imaginao do manaco e convenc-lo

    de que toda resistncia seria intil.

    Foucault vai chamar essa ttica de tratamento de princpio da vontade alheia,

    ou princpio de Falret, que consistia em substituir a vontade do enfermo por uma vontade

    alheia, ou seja, coloc-lo obrigado a adaptar-se vontade de um outro o mdico.

    Mesmo para aqueles que, como Esquirol, acreditavam num tratamento mais

    ameno, sustentado na confiana e no afeto do alienado, a posio central do mdico era

    essencial. Em seu tratado Des maladies mentales, dizia:

    O mdico deve ser, em certo modo, o princpio de vida de um hospital de alienados.Atravs dele tudo deve se colocar em movimento; ele dirige todas as aes,chamado que est a ser o regulador de todos os pensamentos. E a partir dele, como

    centro da ao deve se processar tudo que interessa aos habitantes doestabelecimento. (ESQUIROL apudFOUCAULT, 2005, p. 214)8

    Vemos, portanto, que a presena fsica do mdico era fundamental com sua

    presena, ele se impunha ao enfermo como realidade ou como elemento atravs do qual se

    passava a realidade a que o doente teria que se submeter.

    As formas de executar essa manobra certamente variavam de acordo com as

    concepes pessoais. Alguns consideravam que o funcionamento asilar por si mesmo, os

    muros, a vigilncia, a hierarquia interna, j garantiria essa superioridade da realidade do

    mdico. Outros psiquiatras j investiam na figura do mdico na pessoa mesma do mdico,

    em seu prestgio, sua presena, sua agressividade, seu vigor polmico, como elementos

    que mostrariam sua marca. Outros ainda, investiam na violncia, no temor e na ameaa.

    7 tienne Georget (1795-1828), brilhante aluno de Esquirol.8 Traduo livre do espanhol.

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    Quanto segunda estratgia de interveno, da enunciao da verdade,

    implicava em levar o paciente por tcnicas diversas, a dizer a verdade mas como j

    dissemos, no a verdade que ele poderia dizer sobre si mesmo, no plano de sua vivncia,

    mas a verdade da realidade compartilhada9. Mas, ainda mais importante do que essa

    verdade da realidade atual, presente, era o sujeito consentir com sua realidade biogrfica,

    desde sua identidade nome, filiao, estado civil, emprego, sua historia pessoal,

    desenvolvimento da doena, as datas, localidades, relaes familiares; realidade de sua

    doena seus delrios, seu comportamento no asilo, sua submisso ao mdico. Cabe

    ressaltar que os dados aos quais o paciente devia se identificar eram justamente os dados

    conhecidos pelo mdico, geralmente fornecidos pela famlia. (Foucault, 2005, p. 189)

    Isso torna compreensvel o porqu, desde os anos de 1825-1840, o relato

    autobiogrfico se introduziu concretamente na prtica psiquitrica echegou a ser uma pea

    essencial, de usos mltiplos nos procedimentos de custdia e de disciplina. Tal verdade

    biogrfica deveria ser extrada do paciente como se extrai uma verdadeira confisso. A idia

    de base da confisso era que, se o enfermo reconhecesse sua loucura, poderia desfazer-se

    dela.

    A fim de atender a esses objetivos, um importante dispositivo foi constitudoneste perodo: o interrogatrio.

    9 A cura do Sr. Dupr foi relatada por F. Leuret em Du Traitement moral de la folie 1840. Foucault trabalha esterelato no livro El poder psiquitrico (2005), ao longo da Clase del 9 de enero de 1974. Para entendermos oprocesso de cura, fao um breve relato: o sr. Dupr acreditava que, na terra, havia apenas trs famlias, e queele era o chefe de uma das mais importantes raas da famlia dos prncipes trtaros. S era o sr. Dupr,ficticiamente, pois, na realidade, era nascido na Crsega, descendente de Napoleo. Relata que, vtima de umadoena crnica, foi encaminhado por seu conselheiro para seu castelo de Saint Y-Maur, na realidade Charenton.No momento desse tratamento, encontrava-se em Bictre, de onde, na realidade, se podia avistar Paris.Entretanto, para Dupr, tratava-se de Langres, que tem apenas semelhanas com a verdadeira Paris. Acredita-se o nico homem do hospital, sendo todas os demais, mulheres. A multiplicidade de suas idias falsas no menos notvel que a segurana com a qual as declama (FOUCAULT, 2005, p. 171). Com relao ao tratamento

    do Sr. Dupr, sigamos a descrio de Foucault: Isto o que Leuret faz com Dupr. Este afirmava que Paris noera Paris, o rei no era o rei, Napoleo era ele e Paris no era seno a cidade de Langres disfarada poralgumas pessoas como a capital da Frana. Na opinio de Leuret, s havia uma coisa a fazer: simplesmente,levar seu paciente a percorrer Paris; e, com efeito, sob a direo de um residente, organiza um passeio por todaa capital. Nela, o residente mostra a Dupr diferentes monumentos e lhe pergunta: Acaso no reconhece Paris?No, no, contesta o senhor Dupr, estamos na cidade de Langres. Imitaram vrias coisas que esto em Paris.O residente simula no reconhecer o caminho e pede ao paciente que o guie at a praa Vendme. Dupr seorienta muito bem, pelo que seu acompanhante lhe diz: Quer dizer que estamos em Paris, j que voc soubemuito bem encontrar a praa Vendme! No, reconheo a Langres disfarada de Paris. Levado ao hospital deBictre, o enfermo se nega a admitir que havia estado em Paris e, como persiste em sua negativa, o levam aobanho e lhe derramam gua fria sobre a cabea. Ento, aceita tudo que querem e que Paris, com efeito, Paris.Mas nem bem sai do banho volta a suas idias loucas. Obrigam-no a desvestir-se outra vez e se reitera o banho:volta a ceder e reconhece que Paris Paris; contudo, apenas recuperadas suas roupas, afirma ser Napoleo.Um terceiro banho o corrige; cede e vai deitar-se.

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    O interrogatrio surgiu, justamente, como uma tcnica que, operando com o

    poder mdico, possibilitava obter do paciente a enunciao da verdade. E era,

    precisamente, no poder do mdico, que ele se sustentava, pois era por sua supremacia, que

    o mdico conseguia influir sobre o paciente. Numa segunda via, ao coagir o louco a

    enunciar a sua verdade histrica e consentir com a sua loucura, o louco se constitua

    enquanto o doente, constituindo seu inquisidor, conseqentemente, enquanto mdico.

    Assim, o interrogatrio possibilitava, numa nica interveno, dar provas da

    realizao da enfermidade, e sustentar o mdico tanto em seu lugar de poder, como

    tambm em um lugar de saber: saber sobre o paciente e saber tratar. Afinal, era ele quem

    aplicava tal "dispositivo teraputico".

    No interrogatrio procedia-se de acordo com os seguintes objetivos:

    1. busca de antecedentes, pois comprovar que a loucura se transmite uma

    forma de rastrear seu suporte orgnico;

    2. busca dos prdromos, disposio e antecedentes individuais recordaes

    da infncia. Acreditava-se que a loucura sempre se precedia a si mesma, mesmo nos casos

    marcados por seu carter repentino;

    3. responsabilizao: questionar as razes pelas quais o indivduo seencontrava frente ao psiquiatra a partir da confrontao: h queixas sobre voc

    transformar esses motivos de sua presena ali em sintomas;

    4. confisso central: conseguir que o sujeito interrogado reconhecesse sua

    loucura e a atualizasse, concretamente, no interrogatrio, uma confisso ritual: sim, escuto

    vozes!; sim, tenho alucinaes!; sim, creio ser Napoleo!10

    O mdico deveria ir para o interrogatrio munido dos registros das observaes

    detalhadas dos enfermos, feitas a partir da vigilncia constante assim o mdico poderia

    mostrar a todo o momento que sabia tudo sobre o paciente: o que ele tinha feito, suas falas

    da vspera, as faltas que cometeu, os castigos recebidos. Detinha informaes que

    recapitulassem, tanto a histria do paciente antes da internao, quanto suas aes at a

    10 Referindo aqui ao Sr. Dupr, conf. nota 9, p. 30.

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    vspera do interrogatrio temos aqui uma mostra de como o mdico fazia uso do sistema

    da organizao asilar na sustentao de seu poder-saber.

    Pinel dizia:

    quando interrogamos a um enfermo, preciso antes de tudo estar informado sobre

    ele, saber porque veio, quais so as queixas a seu respeito, sua biografia; devemosfazer previamente averiguaes com sua famlia ou seus parentes, de tal forma que,no momento de interrog-lo, sempre saibamos mais do que ele ou, ao menos,saibamos mais do que ele imagina e, desse modo, quando venha a dizer-nos algoque consideramos como inverdico, possamos intervir e fazer valer que sabemosdele mais do que ele e tachamos seu dizer de mentira e delrio. (PINEL apudFOUCAULT, 2005, p. 216)11

    Fundamental no interrogatrio era atualizar a crise. Relembrando que o

    interrogatrio era uma tcnica para levar o paciente enunciao da verdade, era

    fundamental que, em sua execuo, se produzisse uma atualizao da crise, pois, como

    vimos, a crise demonstrava a verdade da doena e esta verdade no poderia ser

    encontrada, demonstrada, mas deveria ser suscitada, provocada.

    Como nos disse Foucault, certo que a crise podia ocorrer sem o mdico, mas,

    se este quisesse intervir, se quisesse combat-la, era preciso que esta se desse em sua

    presena. Mesmo que a crise fosse um movimento em certo sentido autnomo, mas era um

    momento do qual o mdico podia e devia participar: Este deve reunir em torno dela todas

    as conjunes que lhe so favorveis e prepar-la, ou seja, invoc-la e suscit-la

    (FOUCAULT, 1981, p. 114).

    Assim, era funo do interrogatrio produzir a crise, fazer explodir a verdade da

    doena suscitar a alucinao, provocar a crise histrica, colocando o sujeito em um ponto

    extremo, no qual no pudesse escapar a seus prprios sintomas e acabasse por chegar a

    um ponto de confisso: "sim, estou louco!". Ao representar efetivamente sua loucura, era

    obrigado a consentir com seu estado de doente, e, com efeito, como aquele para quem se

    havia constitudo o hospital psiquitrico, e para quem seria necessrio que existisse o

    mdico, cuja principal funo seria intern-lo. Em verdade, uma dupla funo de fixao: do

    doente, enquanto enfermo, e, portanto, do mdico, enquanto aquele que sabe sobre o

    11 Traduo livre do espanhol.

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    paciente. O interrogatrio, funcionava, pois, como forma de sustentao do poder do mdico

    e de verdade sobre o paciente

    O interrogatrio funcionava como lugar de produo da verdade da doena,

    funcionando, assim, como forma de sustentao do poder do mdico e realizao do saber

    deste sobre o paciente.

    preciso marcar a importncia que tinha nesse perodo a produo da verdade

    da doena feita, como j dissemos, atravs da provocao da crise. Como esclarece

    Foucault, em A verdade e as formas jurdicas (2001), a verdade s pode ser obtida de duas

    maneiras: pela prova de realidade e pelo inqurito.12

    Uma verdade obtida pelo inqurito implica a sua demonstrao racional, ou seja,

    a verdade deve ser averiguada a partir do exame direto ou indireto dos fatos. Nesse caso, a

    verdade demonstrada na estabilidade de uma frmula, cujo valor dado pela evidncia

    transmissvel, independente da autoridade, da fora de quem a enuncia. o que temos, por

    exemplo, na qumica, na investigao cientfica, na medicina moderna.

    Entretanto, a psiquiatria no conseguia estabelecer a loucura pela via da

    demonstrao racional; pelo contrrio, o nico recurso dos mdicos era a prova da

    realidade. Nessa forma de obter a verdade, esta alcanada, no pela demonstrao, mas instaurada no lugar daquele que vence um confronto, como testemunha antiga prtica

    dos duelos. Nessa situao, o lugar da verdade era dado no quele que tinha razo, mas

    ao vencedor do confronto. Para entendermos melhor, tomemos outro exemplo, citado por

    Foucault, dessa forma de obteno da verdade os jogos cerimoniais utilizados nas

    sociedades medievais, como o ordlio da gua, que consistia em amarrar a mo esquerda

    no p direito do acusado e jog-lo na gua. Se ele no se afogasse, perdia o processo, pois

    lia-se que a prpria gua no o aceitava.

    Pode-se dizer que, no nosso caso, em lugar de uma demonstrao, o mdico

    vencia um confronto.

    12 Partindo da noo da solidariedade fundamental entre a cincia e o modo de constituio do sujeito do direito,Foucault nos diz que o conhecimento s possvel como resultado de algum jogo de foras, o que se traduzatravs das relaes de poder. atravs de um exame das prticas jurdicas que ele extrai essas formas deaquisio da verdade.

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    O grande mdico de asilo seja ele Leuret, Charcot ou Kraepelin ao mesmotempo aquele que pode dizer a verdade da doena pelo saber que dela tem e aqueleque pode produzir a doena em sua verdade e submet-la, na realidade, pelo poderque sua vontade exerce sobre o prprio doente. [...] tudo isto tinha por funo fazerdo personagem mdico o "mestre da loucura"; aquele que a faz manifestar quandoela se esconde, quando permanece soterrada e silenciosa, e, aquele que a domina,a aclama e a absorve depois de a ter sabidamente desencadeado. (FOUCAULT,1981, p. 122) (Grifo meu)

    A prtica ou ritual do interrogatrio e a extorso da confisso tornou-se um dos

    procedimentos mais importantes e dos mais constantes dentro da prtica psiquitrica. Por

    isso, esta prtica clnica se estabeleceu de forma definitiva e precoce dentro da prtica

    asilar.

    1.3 SOBRE AS APRESENTAES DE PACIENTES

    Contudo esse grande rito do interrogatrio necessitava, de vez em quando, de

    uma revigorao assim como uma missa solene, Missa sollemnis, o interrogatrio pblico

    dava um carter solene a esta prtica cotidiana. Ao interrogatrio do paciente, realizado na

    presena dos alunos, chamamos apresentao de paciente. Um ritual no qual a escuta

    atenta dos estudantes consolidava o lugar do enfermo, ao mesmo tempo em que dava peso

    palavra do mestre uma maneira de incrementar o prestgio do mdico e fazer os ditos

    constitutivos de seu saber/poder mais verdadeiros.

    Como j dissemos, muitas vezes Falret citado como precursor desta prtica,

    pois em seus escritos que podemos encontrar algumas das poucas elaboraes sobre a

    apresentao. Falret, que colocava o interrogatrio no primeiro plano do exame clnico, deu-

    nos indicaes dos objetivos e efeitos da aplicao deste dispositivo.

    Uma primeira indicao de Falret sobre a importncia do pblico e seu efeito

    sobre o paciente. Indicava que era preciso mostrar ao paciente que, em torno dele, havia

    uma grande quantidade de pessoas pessoas que estavam ali para escut-lo, e escut-lo

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    com respeito. Assim, sua palavra se multiplicava: a presena de um pblico numeroso e

    respeitoso d maior autoridade a sua palavra (FALRET apudFOUCAULT, 2005, p. 220)13

    Como sabemos, o mdico ia para o interrogatrio munido de informaes sobre

    o paciente, mas certo que, atravs do interrogatrio, era possvel obter do enfermo uma

    srie de outras informaes de que o mdico no dispunha. Entretanto, era fundamental que

    o paciente acreditasse que suas respostas no informavam verdadeiramente ao mdico. O

    interrogatrio era, antes, uma forma de subtrair informaes do paciente como se estas no

    fossem realmente necessrias. Era necessrio conduzir o interrogatrio de tal forma que o

    enfermo no dissesse s o que queria, mas que respondesse s perguntas. Contudo, era

    preciso faz-lo de tal modo que o paciente no percebesse que se dependia dele para obt-

    las no deix-lo perceber um saber de seu lado, mas ao contrrio, utilizar-se da fala deste

    para sustentar o saber do mdico. Nessa indicao de Falret, vemos, claramente, que no

    se buscava o saber do paciente sobre si, sobre seu mal, sobre as sadas ou solues

    produzidas por ele. Ao contrrio, a palavra do paciente era escutada apenas para compor o

    saber do mdico sobre ele. Foucault avalia que, em verdade, as respostas do paciente s

    adquiriam significao dentro de um campo de saber j constitudo por completo na mente

    do mdico.Para extrair o melhor efeito do interrogatrio, algumas tcnicas foram sugeridas.

    Para Franois Leuret, a indicao era de deixar o paciente falar, fazer seu relato sem

    interromp-lo com uma srie de perguntas. Para ele, o melhor interrogatrio era o silncio:

    no dizer nada ao enfermo, esperar que fale, deix-lo dizer o que quiser, pois segundo

    Leuret, essa a nica forma ou, em todo caso, a melhor maneira de chegar precisamente

    confisso focal da loucura (FOUCAULT, 2005, p. 318)14.

    Para ilustrar o interrogatrio por meio do silncio, Foucault cita uma passagem

    retirada da traduo francesa do Trait, de W. Griesinger15:

    Havia-se dito que ela escutava [...] dei uma centena de passos sem dizer nada, semaparentar fixar ateno nela [...] voltei a deter-me [...] e a olhei atentamente, com aprecauo de permanecer imvel e sem deixar sequer transparecer curiosidade

    13 Traduo livre do espanhol.14 Traduo livre do espanhol.15 Wilhelm Griesinger (1817-1868). Pai da psiquiatria alem.

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    alguma. [...] Havia cerca de meia hora que nos olhvamos um ao outro quando elamurmurou algumas palavras que no entendi, lhe dei meu caderno para queescrevesse. (GRIESINGER apudFOUCAULT, 2005, p. 318)16

    Tambm Falret, em suas Leons cliniques de mdice mentale,aconselhava:

    [...] em vez de aguar a astcia de um alienado para elucidar uma autoridade quelhe importuna, mostre [...] abandono; afaste de sua mente toda idia [...] de desejode penetrar seus pensamentos e ento, como no o ver atento a control-lo, tersegurana de que no ter qualquer atitude desafiante, se mostrar tal como epoder estud-lo mais facilmente e com maior xito. (FALRET apud FOUCAULT,2005, p. 319)17

    Entretanto, ao contrrio do silncio, Falret acreditava numa posio mais ativa.

    Dizia:

    Se algum quer conhecer as tendncias, as orientaes de esprito e as disposiesque so a fonte de todas as manifestaes, no deve reduzir seu dever deobservador ao papel passivo de secretrio dos enfermos, de estengrafo de suaspalavras ou narrador de suas aes [...] O primeiro princpio por seguir [...] , por

    tanto, modificar seu papel passivo de observador das palavras e dos atos dosenfermos para assumir um papel ativo e buscar, com freqncia, provocar e fazersurgir manifestaes que jamais apareceriam espontaneamente. (FALRET apudFOUCAULT, 2005, p. 217)18 (Grifo meu)

    s vezes necessrio levar habilmente a conversao a certos temas nos quais sesupe relaes com as idias ou sentimentos enfermos; esses dilogos calculadosatuam como pedras de toque para colocar a descoberto as preocupaes mrbidas.Uma grande experincia e muita arte podem ser necessrios para observar einterrogar de maneira convincente a alguns alienados. (FALRET apudFOUCAULT,2005, p. 217)19

    Outro aspecto importante que, na apresentao, no se tratava apenas de

    interrogar pontualmente o enfermo, mas em fazer, diante dos estudantes uma anamnese

    geral do caso, pois a apresentao permitia ao mdico, mais do que apenas interrogar o

    paciente, mas tambm, comentar suas respostas, podia mostrar tanto aos pacientes, quanto

    aos alunos, que conhecia sua enfermidade, e no apenas podia falar dela, mas mesmo

    fazer uma exposio terica sobre ele, paciente, para seus alunos.

    Assim, retomava-se, frente aos alunos, o conjunto da vida do enfermo. Fazia-se

    com que o paciente a contasse, e, se este no quisesse faz-lo, ela seria contada pelo

    prprio mdico. Os interrogatrios se aprofundavam, e o paciente via desenrolar, diante si, a

    histria de sua vida, isto, com ou sem sua ajuda, pois o mutismo no era impedimento para

    a realizao do interrogatrio.

    16 Traduo livre do espanhol.17 Traduo livre do espanhol.18 Traduo livre do espanhol.19 Traduo livre do espanhol.

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    Era, portanto, um dispositivo que impunha ao paciente a realidade de sua

    enfermidade, uma vez que era apresentado efetivamente como tal frente aos estudantes.

    Nessa situao determinava-se definitivamente o lugar do mdico, por um lado, e, por outro,

    reafirmava o lugar do doente, pois ao exibir-se em conjunto com o mdico, ao expor sua

    enfermidade, o paciente se daria conta de estar realmente diante de um profissional.

    O relato pblico de sua enfermidade feito pelos alienados para o mdico umauxiliar ainda mais valioso [...]; o mdico deve ser muito mais poderoso nascondies completamente novas da clnica, dizer quando o professor pe demanifesto ante o olhar do enfermo todos os fenmenos de sua enfermidade, napresena dos ouvintes mais ou menos numerosos. (FALRET apud FOUCAULT,2005, p. 220)20

    Vemos presente, nesse dispositivo, os elementos de realidade que era preciso

    impor ao paciente como forma de tratamento, uma vez que a palavra do mdico aparecia

    com um poder maior do que o de qualquer outro; a lei da identidade pesava sobre o

    paciente, pois era obrigado a reconhecer-se no que era dito sobre ele, assim como na

    anamnese, os dados de sua identidade estatutria, sem espao para qualquer realidade

    delirante. Ao responder publicamente as perguntas do mdico, ao deixar-se arrancar a

    confisso final de sua loucura, o enfermo reconhece, aceita a realidade desse desejo louco

    que est na raiz de seu mal (FOUCAULT, 2005, p. 221).

    Dessa forma, essa prtica atuava no nvel disciplinrio, uma vez que era umamaneira de fixar o indivduo na norma de sua prpria identidade quem era, nome, filiao,

    episdios de loucura. Era, portanto, uma maneira de sujeitar o indivduo sua identidade

    social, ao reconhecimento do status de louco a ele atribudo. E atuava tambm no nvel

    teraputico, pois a confisso, o reconhecimento da loucura, era o ponto de partida para

    libertar-se dela.

    A apresentao ordenava-se sobre trs pilares: o mdico, o paciente e os

    alunos.

    Ainda que Foucault no tenha se detido sobre isso, para alm dos efeitos

    produzidos com relao ao mdico e ao paciente, preciso assinalar, tambm, seu efeito

    em relao aos estudantes. Primeiramente, a presena deles que fazia o diferencial

    20 Traduo livre do espanhol.

  • 7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    absoluto da apresentao, pois era esta que dava ao interrogatrio o tom solene. Os alunos

    atuavam enquanto testemunhas da relao teraputica, reforando, com seu olhar, o

    mdico e o paciente, em suas respectivas posies. Se por um lado davam ao paciente,

    como nos disse Falret, maior autoridade sua palavra21, o mesmo se dava do lado do

    mdico. Ao serem ensinados sobre o paciente e sua doena, consolidavam este saber, e

    extraam para si prprios o benefcio do aprendizado.

    Em relao ao paciente, poderamos acrescentar ainda um ltimo aspecto. Falret

    marcava um interessante efeito produzido nos pacientes. Segundo ele, era possvel

    perceber nestas situaes, o seu esforo em responder as questes, talvez como forma de

    compensar o esforo, que, enfim, percebiam, da dedicao do mdico:

    com freqncia, o relato de sua enfermidade, feito em todas as suas vicissitudes,impressiona intensamente os alienados, que do testemunho de sua verdade comuma satisfao visvel e se comprazem em entrar em maiores detalhes paracompletar seu relato, assombrados e envaidecidos, de certo modo, de que setenham ocupado deles com suficiente interesse para poder conhecer toda suahistria. (FALRET apudFOUCAULT, 2005, p. 221)22

    Com relao ao mdico, pudemos ver, ao longo do texto, como que atravs

    desse rito, ele era colocado enquanto um mdico de verdade. Dentre suas intervenes no

    asilo, foi justamente o interrogatrio que mais aproximou sua atuao de um trabalho

    realmente clnico. Afinal, colocava o mdico no exame direto do paciente. Quando falamosda apresentao pblica, temos ento o mdico em um duplo registro: de examinador do

    paciente e educador mestre dos alunos, ao mesmo tempo numa funo de cura e de ensino.

    A apresentao de paciente acabava por atuar como um amplificador da funo do mdico,

    visto que realizava tanto o poder quanto o saber psiquitrico: ao fixar o louco como doente,

    reafirmava a necessidade de sua prpria existncia, e isto feito sob a testemunha de um

    seleto pblico os estudantes de medicina. Assim, a tcnica da confisso e o relato pblico

    se converteram em uma obrigao institucional.

    Como pudemos acompanhar, a apresentao surge intrinsecamente articulada

    ao tratamento, ou seja, tinha reconhecidamente um carter clnico.

    21 Conf. p. 35.22 Traduo livre do espanhol.

  • 7/30/2019 Apresentacao_de_Pacientes redescobrindo a clnica dissertao

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    Ferreira, Cristiana.Apresentao de Pacientes: (re)descobrindo a dimenso clnica. UFMG, 2006

    1.4 APRESENTAO COMO PROVA DE REALIDADE

    Enquanto os psiquiatras procuravam dar sustentao s marcas de seu saber,

    um outro personagem mdico comeava a surgir o mdico cirurgio. Este personagem

    mdico, em lugar de ser sustentado nas marcas do saber, sustentava-se num saber

    baseado num contedo efetivo um saber localizado no corpo do paciente. Com o

    desenvolvimento da anatomia patolgica, tornava-se possvel localizar uma leso dentro do

    organismo, identificando no corpo a realidade mesma da enfermidade.

    Atingida por esse movimento, a psiquiatria do sculo XIX, tambm passou a

    buscar seus correlatos orgnicos. A prtica da autpsia, que comeou a ser utilizada nos

    asilos por volta de 1825, ainda que no apresentasse resultados efetivos, tinha como base a

    idia de que

    se h uma verdade da loucura, com segurana no se encontra no que dizem osloucos e s pode estar em seus nervos e crebro. [...] podemos perfeitamente teprender em sua cela e no escutar o que diz, pois a verdade de sua loucurapediremos anatomia patolgica, quando j estiver morto. (FOUCAULT, 2005, p.295)23

    Mas, exceo da Paralisia Geral Progressiva, descoberta por Bayle24, no foi

    possvel psiquiatria, constituir provas causais, como no caso da medicina geral, que se

    comprovava na anatomia patolgica.

    psiquiatria era atribuda a responsabilidade de dizer se havia ou no loucura,

    e, para isso, no podendo se sustentar numa prova de verdade, na prova anatmica,

    restava-lhes a prova de realidade. I