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491 Aprendizagem de frações e a inclusão de todos os estudantes em matemática no ensino fundamental Eixo temático: A Educação Inclusiva e os processos de ensino e aprendizagem na Educação Básica Autoras: Isabel Cristina Peregrina Vasconcelos (IMEC); 112 Rosane da Conceição Vargas (UFRGS); Beatriz Vargas Dorneles (UFRGS) Resumo: A aprendizagem inicial de frações na Educação Básica é o foco deste estudo. Optou-se por investigar o conceito de fração por representar um desafio para os estudantes na aprendizagem dos números racionais e inclusão de oportunidades educacionais. Trata-se de um estudo transversal de carácter quali-quantitativo que buscou analisar se a compreensão dos estudantes sobre a relação inversa entre numerador e denominador afeta a aprendizagem do conceito de fração menor que a unidade, e verificar as justificativas utilizadas pelos estudantes ao resolverem problemas de fração menor do que a unidade. Participaram 90 estudantes do 4º ano do ensino fundamental, com idades entre 9 e 11 anos, de uma escola da rede pública de Porto Alegre. Verificou-se que os estudantes obtiveram uma média de 43,5% de acertos na situação quociente e 29% de acertos na situação parte-todo. As explicações utilizadas pelos estudantes apontam que a categoria Relação Inversa foi mais utilizada na situação quociente para justificar as soluções do problema. Os resultados obtidos confirmam os achados anteriores, evidenciando que a situação quociente promove mais facilmente a compreensão da relação inversa entre o numerador e o denominador na aprendizagem de frações menores do que a unidade. Discutem-se as implicações para o ensino escolar. Palavras-chave: aprendizagem, números racionais, frações, inclusão educacional. INTRODUÇÃO A aprendizagem das frações representa um desafio para muitos estudantes com ou sem Dificuldades de Aprendizagem na Matemática (DAM), visto que as frações representam quantidades que resultam da divisão e que não podem ser descritas por números inteiros (MAZZOCO; DEVLIN, 2008; NUNES; BRYANT, 2015). A compreensão de fração requer entender a natureza relativa do conceito e as relações entre quantidades, uma vez que demanda uma reorganização do conhecimento numérico (NUNES; BRYANT, 1997; STAFYLIDOU; VOSNIADOU, 2004), bem como o fato de que as propriedades dos números inteiros não definem os números em geral, e, portanto, exige outros tipos de habilidades cognitivas mais complexas. Assim, a não aprendizagem dos conteúdos 112 E-mail: [email protected]

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Aprendizagem de frações e a inclusão de todos os estudantes em matemática no

ensino fundamental

Eixo temático: A Educação Inclusiva e os processos de ensino e aprendizagem na Educação Básica

Autoras: Isabel Cristina Peregrina Vasconcelos (IMEC);112 Rosane da Conceição Vargas

(UFRGS); Beatriz Vargas Dorneles (UFRGS)

Resumo: A aprendizagem inicial de frações na Educação Básica é o foco deste estudo. Optou-se

por investigar o conceito de fração por representar um desafio para os estudantes na aprendizagem

dos números racionais e inclusão de oportunidades educacionais. Trata-se de um estudo transversal

de carácter quali-quantitativo que buscou analisar se a compreensão dos estudantes sobre a relação

inversa entre numerador e denominador afeta a aprendizagem do conceito de fração menor que a

unidade, e verificar as justificativas utilizadas pelos estudantes ao resolverem problemas de fração

menor do que a unidade. Participaram 90 estudantes do 4º ano do ensino fundamental, com idades

entre 9 e 11 anos, de uma escola da rede pública de Porto Alegre. Verificou-se que os estudantes

obtiveram uma média de 43,5% de acertos na situação quociente e 29% de acertos na situação

parte-todo. As explicações utilizadas pelos estudantes apontam que a categoria Relação Inversa foi

mais utilizada na situação quociente para justificar as soluções do problema. Os resultados obtidos

confirmam os achados anteriores, evidenciando que a situação quociente promove mais facilmente

a compreensão da relação inversa entre o numerador e o denominador na aprendizagem de frações

menores do que a unidade. Discutem-se as implicações para o ensino escolar.

Palavras-chave: aprendizagem, números racionais, frações, inclusão educacional.

INTRODUÇÃO

A aprendizagem das frações representa um desafio para muitos estudantes com ou sem

Dificuldades de Aprendizagem na Matemática (DAM), visto que as frações representam quantidades

que resultam da divisão e que não podem ser descritas por números inteiros (MAZZOCO; DEVLIN,

2008; NUNES; BRYANT, 2015). A compreensão de fração requer entender a natureza relativa do

conceito e as relações entre quantidades, uma vez que demanda uma reorganização do conhecimento

numérico (NUNES; BRYANT, 1997; STAFYLIDOU; VOSNIADOU, 2004), bem como o fato de

que as propriedades dos números inteiros não definem os números em geral, e, portanto, exige outros

tipos de habilidades cognitivas mais complexas. Assim, a não aprendizagem dos conteúdos

112 E-mail: [email protected]

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referentes aos números fracionários pode ser uma preditora de dificuldades de aprendizagem em

conhecimentos matemáticos em níveis de ensino mais avançados (BEHR; WACHSMUTH; POST;

LESH, 1984; HALLETT; NUNES; BRYANT; THORPE, 2012; SIEGLER, THOMPSON;

SCHINEIDER, 2011).

De acordo com os dados de Hecht, Vagi e Torgesen (2007) baseados na Avaliação Nacional

do Progresso Educacional dos EUA, constatou-se que, em 1990, apenas 53% dos alunos sem DAM

de 7ª série e 71% dos alunos de 11ª série conseguiam subtrair corretamente duas frações com

denominadores diferentes. Em 2003, essa mesma avaliação apontava que apenas 55% dos alunos de

8ª série testados conseguiram resolver um problema envolvendo a divisão da quantidade de uma

fração por outra fração. No Brasil, como não temos dados do desempenho de estudantes em números

racionais, inferimos suas dificuldades em frações a partir dos dados resultantes do SAEB de 2013, no

qual verifica-se que aproximadamente 47% dos alunos do 5º ano não alcançam o nível “suficiente”

definido pelo parâmetro A (≥ 200 pontos), e cerca de 65% não alcançam esse nível de aprendizado

seguindo o parâmetro B (≥ 225 pontos), sendo que, para esses parâmetros, os alunos deveriam ter

proficiência em reconhecer uma fração como representação da relação parte-todo, com o apoio de

um conjunto de até cinco figuras (BOF, 2016). Já a situação dos alunos de 9º ano é mais

preocupante: tem-se que 75% dos alunos não atingem o parâmetro A (≥ 275 pontos), e 89% dos

estudantes não alcançam o parâmetro B (≥ 300 pontos), indicando que esses não possuem

proficiência em determinar a soma de números racionais em contextos de sistema monetário nem

localizar números racionais em sua representação decimal (BOF, 2016). Esses dados são

preocupantes, à medida que podemos inferir que os estudantes estão na escola, mas estão aprendendo

em torno da metade dos conceitos matemáticos, com isso a inclusão através da aprendizagem não

está ocorrendo.

O movimento internacional de todos na escola é uma realidade no contexto brasileiro

(DORNELES, 2010), no entanto, ainda não há educação para todos, não há a inclusão de todos nas

aprendizagens, conforme os dados do SAEB citados.

Garantir a aprendizagem de todos significa incluir todos no sistema escolar, com

aprendizagem em diferentes momentos do ciclo escolar, independentemente das diferenças entre os

estudantes, pois, durante a vida escolar, é comum os estudantes vivenciarem alguns obstáculos nas

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aprendizagens (MANTOAN, 2015), que podem estar relacionadas com a qualidade da educação

oferecida.

No Brasil, são escassas as pesquisas que investigam o raciocínio que as crianças brasileiras

têm sobre as relações entre as quantidades menores do que a unidade antes de receberem ensino

regular sobre fração na escola. Desse modo, buscou-se analisar se a compreensão dos estudantes

sobre a relação inversa entre numerador e denominador afeta a aprendizagem do conceito de frações

menores que a unidade e verificar as justificativas utilizadas pelos estudantes ao resolverem

problemas de frações menores do que a unidade. A opção pelo estudo das frações deve-se ao fato de

que representam o início da aprendizagem dos números racionais. O presente estudo teve como

problema: por que é tão difícil aprender frações para os estudantes do ensino fundamental?

A revisão teórica apresentada aqui descreve parte de uma pesquisa de doutorado realizado

pela primeira autora, cujo foco incidiu na compreensão das relações numéricas na aprendizagem das

frações.

Pesquisas têm apontado diferentes razões pelas quais a aprendizagem das frações representa

um dos primeiros desafios enfrentados pelos estudantes desde o 4º ano do ensino fundamental,

quando esse conteúdo é incluído no currículo, estendendo-se até o final dessa etapa escolar

(HALLETT; NUNES; BRYANT; THORPE, 2012; NUNES; BRYANT, 1997; SIEGLER,

THOMPSON; SCHINEIDER, 2011). O conceito de fração envolve compreender princípios tais

como: repartição de um todo ou unidade em partes iguais; nomenclatura das partes fracionárias;

requisição de dois números inteiros para sua representação numérica; relação entre o numerador e o

denominador; a função do denominador de indicar o número de partes pelo qual o todo foi dividido,

a fim de produzir o tipo de parte, sendo, desse modo, um divisor e também o fator que nomeia a

parte fracionária; a função do numerador é indicar o número de partes consideradas, sendo assim o

multiplicador; e o fato de que duas frações equivalentes são dois modos de descrever a mesma

quantidade (BEHR; LESH; POST; SILVER, 1983; KIEREN, 1993). No entanto, muitas vezes,

estudantes no ensino médio ainda têm dificuldade em usar frações para representar números e para

representar relações entre quantidades.

A seguir, apresentam-se três razões que indicam dificuldades específicas na aprendizagem de

frações. A primeira é a representação simbólica envolvendo a relação entre dois números inteiros, a e

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b, (onde b ≠ 0), para indicar a quantidade de uma fração ba , isto é, a quantidade que significa. Nunes

e Bryant (2015) destacam que a representação de uma quantidade usando dois números pode induzir

a criança a: 1) prestar a atenção a apenas um dos números, ou então não compreender que existe uma

relação inversa entre o numerador e o denominador; 2) estabelecer uma relação aditiva entre os dois

valores, e nesse caso, concluir que ⅖ e ⅝ são equivalentes, considerando que a diferença entre o

numerador e o denominador é a mesma; e 3) formar uma ideia de fração como parte de um todo e

concluir que 5

6 < 1.

Já a segunda dificuldade está relacionada aos procedimentos para realizar os cálculos

numéricos com frações. Em geral, a adição e a subtração de frações são mais complicadas em

comparação com a adição e subtração com os números naturais, principalmente quando os

denominadores são diferentes.

Por fim, a terceira dificuldade está em interpretar os significados do numerador e do

denominador, associados às diferentes situações em que as frações são usadas, podem modificar o

significado dos números racionais, tais como, parte-todo, quociente, operadores e quantidade

intensiva.

Dessa forma, podem-se destacar fatores correlatos envolvidos na complexidade do

conhecimento das frações: o conhecimento conceitual, o conhecimento processual e as diferentes

situações de fração. O conhecimento processual envolve a consciência da criança quanto às etapas de

processamento. É utilizado para executar as tarefas matemáticas, bem como corresponde a uma

sequência de ações, destinada a gerar a resposta correta para um determinado tipo de problema

(HALLETT; NUNES; BRYANT; THORPE, 2012). Acredita-se que o conhecimento processual

envolve a consciência das etapas necessárias para resolver um problema e para realizar as operações

aritméticas com fração. Para os autores, o conhecimento processual é o conhecimento que pode ser

separado do significado e ainda ser executado com sucesso.

Já o conhecimento conceitual é definido como a consciência dos símbolos de fração e a

capacidade de representar frações de diversas maneiras. Partindo do pressuposto de que é importante

adquirir conhecimento conceitual como base para a compreensão das quantidades representadas com

fração, esse conhecimento pode auxiliar os estudantes na escolha de estratégias e de procedimentos

para a resolução de problemas com fração (HECHT; VAGI; TORGESEN, 2007).

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Nessa perspectiva, Hecht (1998) investigou as relações entre o conhecimento matemático e

o conhecimento processual com fração, a compreensão conceitual das frações, as habilidades

básicas de aritmética e a capacidade de resolver problemas sobre frações. No conhecimento

conceitual, o autor verificou a compreensão da equivalência, como, por exemplo, comparar as

frações com números diferentes, 82 e 4

1 , que, na verdade, são equivalentes; e da ordenação, como,

por exemplo, identificar qual fração, 32 ou 4

3 , é maior. O conhecimento processual foi medido

usando questões de múltipla escolha, e os estudantes foram convidados a escolher um procedimento

para resolver um determinado problema. Os resultados indicaram que o conhecimento conceitual

previu sucesso na resolução de problemas sobre fração e, especialmente, precisão em tarefas de

estimativa, ao passo que os procedimentos não foram relacionados de forma independente para

qualquer um dos tipos de problema. Analisando os resultados obtidos por Hecht (1998), observa-se

que o conhecimento conceitual contribui para a variabilidade em todos os resultados de fração.

Apesar disso, os resultados sugerem que, independentemente do conhecimento que é adquirido em

primeiro lugar, o conhecimento conceitual e o conhecimento processual têm a mesma importância

para a aprendizagem geral de frações.

Por fim, as diferentes situações referem-se aos diferentes significados do numerador e do

denominador e a relação entre eles. A literatura indica diferentes situações nas quais as frações são

usadas (BEHR; LESH; POST; SILVER, 1983; KIEREN, 1993; NUNES; BRYANT, 2009). As

quantidades menores do que a unidade são representadas por dois tipos de situação de fração. A

primeira, situação parte-todo, envolve uma relação entre as partes em que um objeto foi dividido e as

partes relevantes na situação. A unidade passa a ser considerada como o todo ao qual a fração se

refere. O denominador da fração representa o número de partes em que o todo foi divido, e o

numerador da fração representa o número de partes às quais a quantidade se refere: ⅔ de uma pizza

significa que o outro ⅓ não faz parte da quantidade referida. O todo pode ser variável, mas a fração

indica as partes de um conjunto. Essa situação é a mais usada para dar significado às frações nos

anos iniciais do ensino fundamental, desse modo, a introdução do conceito de fração é explorada

através de formas geométricas e a representação simbólica da fração a partir de uma dupla contagem

de partes: o denominador indica o número de partes em que o todo foi divido, e o numerador indica

as partes representadas pela fração. Nesse caso, o ensino de frações parece simples e eficiente, pois

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requer que o aluno saiba apenas contar e identificar o nome dos termos na representação fracionária.

É importante observar que essa abordagem de ensino de fração não explora a natureza do sistema de

representação, que envolve uma relação entre os dois termos, numerador e denominador, pois a

contagem das partes é feita de modo independente.

A segunda, situação quociente, refere-se a uma situação de divisão, em que o numerador é

dividido pelo denominador. Por exemplo, se tivermos 1 pizza e a repartirmos por 3 crianças, a

quantidade que cada uma receberá será menor do que a unidade, e não poderá ser indicada usando

números inteiros. A fração ⅓ representa essa quantidade, na qual o numerador indica a quantidade de

pizzas e o denominador indica o número de crianças que vão repartir a pizza, e também pode

representar a quantidade de pizza que cada criança recebe.

A possibilidade (ou não) de relação entre essas situações de fração e a aprendizagem das

crianças foi investigada por Mamede, Nunes e Bryant (2005). Os autores analisaram a compreensão

das situações de fração quociente, parte-todo e operador de fração na resolução de problemas.

Participaram do estudo oitenta crianças, com idades entre seis e sete anos de idade. De modo geral,

elas não tinham instrução formal sobre frações, mas algumas já eram familiarizadas com as palavras

“meio” e “quartos” em contextos sociais. Os resultados indicaram que as crianças tiveram melhor

desempenho na situação quociente do que em parte-todo, considerando ordenação e equivalência de

frações, e que apresentaram um desempenho semelhante na resolução de tarefas de nomeação,

apresentadas nas situações parte-todo e quociente. Os níveis de sucesso das crianças na ordenação e

equivalência de frações, na situação quociente, sugerem que elas têm algum conhecimento informal

sobre a lógica de frações desenvolvido em sua vida diária, sem instrução escolar.

Um estudo de intervenção realizado no Brasil por Campos (2011) com estudantes do 4º e do

5º anos do ensino fundamental, e com objetivo de investigar a equivalência e a ordem das frações nas

situações de parte-todo e de quociente, apontam que trabalhar frações em situação quociente pode

promover novas reflexões sobre o conceito de fração.

Em resumo, esses resultados reforçam a ideia de que diferentes interpretações de frações

criam oportunidades distintas para as crianças compreenderem a relação inversa entre quantidades

menores do que a unidade em diferentes contextos.

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1 MÉTODO

Esse estudo transversal envolveu 90 estudantes brasileiros do 4º ano, com idades entre 9 e

11 anos, de uma escola da rede de ensino público da cidade de Porto Alegre. Um questionário com

16 problemas em versão adaptada (MAMEDE; NUNES; BRYANT, 2005) avaliou a compreensão

da relação inversa entre numerador e denominador em situações de fração parte-todo e quociente.

Para verificar o desempenho dos estudantes nas situações de fração, foram aplicados oito problemas

de ordenação e oito problemas de equivalência. Utilizou-se a média de acertos com a pontuação um

para as respostas corretas e a pontuação zero para as respostas restantes. Para identificar a existência

de correlação entre as situações investigadas, aplicou-se o teste Spearman (rs). Para verificar a

estratégia e o raciocínio utilizados na resolução dos problemas, foi solicitado que os estudantes

escrevessem uma explicação, e assim foram organizadas categorias com as justificativas por meio

das frequências relativas.

Os estudantes receberam um bloco com os problemas, organizados de modo a conter um

problema em cada folha, e distribuídos de maneira alternada por tipo de problema. O instrumento

foi aplicado individualmente, com tempo médio de dois minutos para resolução de cada um dos

problemas. A aplicação do questionário foi realizada pelas pesquisadoras, na sala de aula, durante o

turno escolar, com tempo médio de 50 minutos. Os problemas foram projetados em slides para a

turma, e lidos em voz alta pelas pesquisadoras para evitar a interferência de diferenças nas

habilidades de leitura no desempenho dos estudantes. Os problemas que compuseram o instrumento

são apresentados no Quadro 1.

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Quadro 1 – Exemplos de problemas de situação de fração parte-todo e quociente

Situações Ordenação Equivalência

Parte-todo

Marco e Lara têm pizzas

idênticas. Marco cortou sua

pizza em duas fatias iguais e

comeu uma. Lara cortou sua

pizza em três fatias iguais e

comeu uma. Marco comeu mais

pizza, menos pizza ou a mesma

quantidade de pizza do que a

Lara? Explica a tua resposta.

Rita e Olga têm bolos idênticos.

Rita dividiu seu bolo em dois

pedaços iguais e comeu um.

Olga dividiu seu bolo em quatro

pedaços iguais e comeu dois.

Rita comeu mais bolo, menos

bolo ou a mesma quantidade de

bolo do que a Olga?

Explica a tua resposta.

Quociente

Duas meninas dividem uma

pizza igualmente, e quatro

meninos dividem duas pizzas

igualmente. Cada menina come

mais pizza, menos pizza ou a

mesma quantidade de pizza do

que cada menino? Explica a tua

resposta.

Duas meninas dividem um bolo

de maneira igual, e três meninos

dividem um bolo de maneira

igual. Cada menina come mais

bolo, menos bolo ou a mesma

quantidade de bolo do que cada

menino? Explica a tua resposta.

Fonte: Adaptado de Mamede, Nunes e Bryant (2005).

A resolução dos problemas concentrou-se no raciocínio de ordenação e equivalência e nas

estratégias envolvendo as habilidades de comparar e estabelecer as relações entre quantidades, e

realizar o julgamento do valor relativo: “mais que; menos que; mesma quantidade que”. A solução

dos problemas envolveu três alternativas de múltipla escolha, sendo apenas uma alternativa a

correta, e as demais, erradas. Também foi solicitada uma explicação que justificasse a resposta.

2 RESULTADOS

O desempenho dos estudantes indicou uma média de 43% de acertos (DP=36) em ordenação

nas situações quociente, e 29% de acertos (DP=26) nas situações parte-todo em um universo de oito

problemas. Em relação à equivalência, o desempenho dos estudantes indicou uma média de 42% de

acertos (DP=35) nas situações quociente, e 13% de acertos (DP=23) nas situações parte-todo em um

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universo de oito problemas. Nas situações parte-todo, os resultados apontam diferença significativa

entre a ordenação e a equivalência (p=0,000).

Tabela 1 - Desempenho obtido pelos alunos, por tipo de problema de fração

Quociente (n = 90) Parte-todo (n = 90)

Ordenação Equivalência p-valor Ordenação Equivalência p-valor

Média (dp) 43 (36) 42 (35) 0,902 29 (26) 13 (23) 0,000

Os valores representam o percentual de acertos de cada tipo de problema.

Os resultados do coeficiente de Spearman apresentaram correlação estatisticamente

significativa (0,59; p<0,001), mostrando que quanto maior o desempenho dos estudantes na

resolução de problemas de ordenação nas situações de fração quociente, maior o desempenho nas

situações parte-todo com quantidades menores do que a unidade, conforme Tabela 2.

Tabela 2 - Correlações entre os diferentes tipos de problemas fração

*p<0,05; **p<0,01; Coeficiente de correlação de Spearman.

Conduziu-se uma análise qualitativa das explicações que justificaram as soluções para a

resolução dos problemas, procurando, assim, entender melhor como os estudantes pensam e

identificar as diferenças no desempenho entre os tipos de situação de fração. A fim de sistematizar as

justificativas apresentadas pelos estudantes, foi possível distinguir cinco diferentes categorias, a

partir das semelhanças entre as respostas: relação inversa (certo), raciocínio proporcional (certo),

relação direta (errado), quantidade inicial (errado) e inconclusivo/inválido (desiste). O Gráfico 1

apresenta a frequência em percentuais das justificativas para cada tipo de problema.

Quociente

Ordenação

Quociente

Equivalência

Parte-todo

Ordenação

Parte-todo

Equivalência

Quociente Ordenação 1

Quociente Equivalência 0,29** 1

Parte-todo Ordenação 0,59** 0,10 1

Parte-todo Equivalência 0,13 0,38** 0,24* 1

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Gráfico 1- Porcentagem em cada categoria de justificativas das situações de fração

Fonte: dados da pesquisa

Os dados do Gráfico 1 mostram que a Categoria Relação Inversa, considerada como

explicação correta para a solução dos problemas, foi a justificativa mais utilizada por 37,8% dos

estudantes nas situações quociente. Esse resultado evidencia que muitos estudantes apresentaram

dificuldades para justificar as soluções dos problemas.

A Categoria Relação Direta foi apontada por 60% dos estudantes como uma explicação

válida para o problema de equivalência na situação parte-todo. Esse dado corrobora com a média de

13% de acertos obtidos pelos estudantes neste tipo de problema. Esse tipo de justificativa sugere

que os estudantes estão usando mais a percepção, do que o estabelecimento de relações entre as

quantidades (NUNES; BRYANT, 2015).

Já a Categoria Inconclusivo/Inválido indica que, para alguns estudantes, é difícil explicar a

resposta na solução do problema. Os dados deste estudo fazem parte da pesquisa de doutorado

realizado pela primeira autora.

A Figura 1 ilustra uma explicação correta apresentada como solução de um problema de

ordenação na situação parte-todo. A criança justifica que Marco come mais pizza do que Lara

porque "Marco comeu uma parte maior e Lara comeu uma parte pequena das 4".

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

Quociente Ordenação

Quociente Equivalênica

Parte-todo Ordenação

Parte-todo Equivalência

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Figura 1. Exemplo de uma resposta da análise qualitativa

3 DISCUSSÃO

Os estudantes apresentaram desempenho insuficiente (inferior a 50%) na resolução dos

problemas em ambas as situações de fração, apesar de terem demonstrado uma melhor compreensão

da relação inversa entre o numerador e o denominador nas situações de fração quociente, mesmo

antes do ensino formal sobre frações na escola. Esse achado corrobora os estudos de Mamede,

Nunes e Bryant (2005), que evidenciaram que a situação de fração quociente favoreceu uma melhor

compreensão da ordenação e da equivalência de fração. Contudo, o desempenho insuficiente pode

ser atribuído a uma separação entre o conhecimento conceitual sobre frações e os conhecimentos

prévios sobre os números inteiros, e que isso ocorre devido ao fato de as operações de frações

contradizerem as propriedades dos números naturais, resultado evidenciado também no estudo de

Stafylidou e Vosniadou (2004).

Esse resultado aponta que os estudantes têm alguma facilidade para comparar as quantidades

e realizar julgamentos sobre o valor relativo da quantidade, antes mesmo de serem apresentados à

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representação numérica de fração. Considera-se que isso pode ter acontecido em virtude de os

problemas envolverem situações cotidianas familiares aos estudantes, solicitando-lhes, portanto, um

conhecimento adquirido em suas experiências diárias, e lhes permitindo o uso dos procedimentos de

distribuição e de partição. Nesse sentido, fica claro que a compreensão do conceito de fração requer

uma reorganização do conhecimento numérico, a fim de entender as frações como representações

de um número, que pode ser maior ou menor do que a unidade (SIEGLER; THOMPSON;

SCHNEIDER, 2011; STAFYLIDOU; VOSNIADOU, 2004).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo teve como objetivo analisar se a compreensão dos estudantes sobre a

relação inversa entre numerador e denominador afeta a aprendizagem do conceito de fração e

verificar as justificativas utilizadas pelos estudantes ao resolverem problemas de frações menores

do que a unidade.

No primeiro objetivo, percebe-se que a existência de correlação entre a situação quociente e

os problemas de ordenação e equivalência de fração evidencia um melhor desempenho dos

estudantes nessa situação. Tal resultado sugere que a situação quociente propicia a base para

compreender o conceito de fração, bem como a transição entre os números inteiros e os números

racionais.

Quanto ao segundo objetivo, nota-se que explicações usadas pelos estudantes na resolução

dos problemas sugerem a relevância da compreensão, muito mais que a repetição e apreensão de

estratégias procedimentais de resolução de problemas, isto é, a compreensão possibilita a criação de

estratégias mais simples e econômicas.

A principal implicação educacional deste estudo indica que as crianças compreendem a

natureza relativa das quantidades menores do que a unidade que fundamentam a equivalência e a

ordenação de frações, e que pode ser benéfico para a aprendizagem dos estudantes começar o

ensino de frações com problemas de situação quociente, seguido por situações de parte-todo. E

também, criar espaços de discussão nas salas de aula observando a diversidade e a heterogeneidade

como fatores que possibilitem a inclusão dos estudantes facilitadores no processo de ensino e de

aprendizagem. É importante ressaltar que os professores precisam estar cientes do fato de que

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deixar de explorar as diferentes situações de frações em sala de aula pode comprometer a

compreensão dos estudantes sobre os números racionais em vários níveis de ensino da Educação

Básica.

Mais pesquisas precisam ser realizadas a fim de explorar a forma de estimular a

compreensão da relação entre quantidades menores do que a unidade em situação de fração entre as

crianças nos primeiros anos do ensino fundamental.

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