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APOSTILHAS de TEOLOGIA FUNDAMENTAL (Tradução de Resumo do livro “Teología Fundamental” de César Izquierdo Urbina. Ed. EUNSA. Pamplona 1998) Professor Pe. José Josivan Bezerra de Sales Recife, 2005

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Teologia

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APOSTILHAS de TEOLOGIA FUNDAMENTAL (Tradução de Resumo do livro “Teología Fundamental” de César Izquierdo Urbina.

Ed. EUNSA. Pamplona 1998)

Professor Pe. José Josivan Bezerra de Sales

Recife, 2005

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TEOLOGIA FUNDAMENTAL - ÍNDICE I.ORIGEM REAL E HISTÓRICA. ............................................................................................................................07 I.1. História I.2. Panorama das concepções mais importantes de Teologia Fundamental. I.2b. Duas “formas” essenciais de Teologia Fundamental I.3. O objeto da Teologia Fundamental I.3.1. A revelação, objeto primário. I.3.2. A credibilidade como objeto da Teologia Fundamental. I.3.3. Pressupostos dogmáticos. I.3.4. Conseqüências metodológicas. II. CONCEITO GERAL DE REVELAÇÃO ................................................................................................................10 II.1. Os elementos básicos sobre a revelação II.2. Vocabulário bíblico sobre a revelação II.3. Padres da Igreja II.4. A revelação na Idade Média II.5. Concílio de Trento II.6. Vaticano I II.7. Vaticano II: Dei Verbum III. A REVELAÇÃO NA HISTÓRIA .........................................................................................................................13 III.1. Revelação primitiva III.2. A revelação em Israel. III.2.2. Moisés III.2.3. O profetismo e a Monarquia III.2.4. A revelação do Antigo Testamento. III.3. Cristo, plenitude da revelação III.3.1. Cristo revelador e plenitude da revelação III.3.1.1. Cristo mediador III. 3.1.2. Cristo, revelação plena de Deus III.3.2. Revelação e encarnação. III.3.3. A revelação na Cruz e ressurreição III.3. A ação do Espírito Santo

IV. A TRANSMISSÃO DA REVELAÇÃO .................................................................................................................17 IV.1. Os apóstolos na transmissão da revelação IV.1.1. Os “Doze”, os apóstolos IV.1.2. Os Apóstolos, testemunhas da Revelação de Cristo IV.1.3. Os Apóstolos ensinados pelo Espírito Santo IV.1.4. A missão apostólica

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IV.1.5. A Transmissão apostólica da Revelação IV.1.6. Encerramento da RevelaçãO IV.1.7. O depósito da fé

IV.2. A revelação entregue à Igreja IV.2.1. A fé apostólica na Igreja IV.2.2. A revelação confiada à Igreja IV.2.3. Modo divino-humano da transmissão da revelação IV.2.4. A “inteligência da fé” da Igreja: “sensus fidei” e magistério IV.2.4.1. O “sentido da fé” como intérprete da revelação crida. IV.2.4.2 O magistério da Igreja, intérprete autêntico da revelação IV.2.5. A indefectibilidade da Igreja V. NATUREZA DA REVELAÇÃO ............................................................................................................................21 V.1. Revelação e salvação V.2. O chamado do homem à comunhão com Deus, pressuposto e fim da revelação. V.3. Revelação natural, histórica e escatológica. V.3.1. Revelação natural V.3.2. Revelação histórica V.3.3. Revelação escatológica V.3.4. Luz do conhecimento da revelação

VI. A REVELAÇÃO, ATO COMUNICATIVO .............................................................................................................23 VI.1. A revelação como palavra e como encontro VI.1.1. Palavra VI.1.2. Encontro VI.2. A experiência da revelação VI.3. O plano da revelação VI.4. Complementaridade de ações e palavras VII.TRANSCENDÊNCIA E SOBRENATURALIDADE DA REVELAÇÃO........................................................................24 VII.1. A verdade da revelação VII.4. Noção teológica de mistério

VIII. A FÉ ............................................................................................................................................................26 VIII.1. A fé na Sagrada Escritura. VIII.1.1. A fé no Antigo Testamento. VIII.2.2. A Fé no Novo Testamento VIII.3. Tradição e magistério sobre a fé VIII.3.1. Até o século VI. VIII.3.2 Idade Média VIII.3.3 Séculos XVI ao XIX.

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IX. FÉ HUMANA E FÉ DIVINA .............................................................................................................................29 IX.1. A fé humana. IX.2. Estrutura epistemológica da fé IX.3. Entendimento e vontade IX.4. A fé quanto conhecimento. IX.5. A fé em Deus: caráter teologal da fé. IX.5. Credere Deum (que Deus), Credere Deo ([a] Deus), Credere in Deum (em Deus). IX.6. Caráter eclesial da fé. X. A FÉ, DOM DE DEUS E COMPROMISSO DO HOMEM ..................................................................................32 X.1. Propriedades do ato de fé. X.2. Motivo e motivos da fé. X.3. Graça e liberdade no ato de fé.

XI. REVELAÇÃO E RELIGIÃO..............................................................................................................................33 XI.1. História da questão XI.1.1. Novo Testamento XI.1.2. Os Padres XI.1.3. Idade Média XI.1.4. A Ilustração XI.2. A polêmica sobre a religião no protestantismo. XI.3. A teologia católica XI.4. O magistério da Igreja XI.5. Vaticano II XI.7. Reflexão Teológica

XII. A FALTA DE FÉ ............................................................................................................................................37 XII.1. Delimitação de conceitos XII.2. Origens da falta de fé XII.2.1. Ateísmo no período pré-cristão e não cristão XII.2.2. A crítica da revelação: Idade moderna XII.3. Crítica da religião e revelação: O ateísmo moderno XII.3.1. Os Hegelianos XII.3.2. O ateísmo em nome dos valores e da liberdade. XII.3.3. O ateísmo em nome da ciência XII.4. Raízes antropológicas da falta de fé XII.5. Fenomenologia da falta de fé contemporânea XII.5.1. Secularização XII.5.2. Indiferença XII.5.3. Agnosticismo e Deísmo XII.6. Magistério da Igreja

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XII.7. A teologia diante da falta de fé XII. 8 . Vias de acesso ao conhecimento de Deus. XII.9. A possibilidade da revelação: pressupostos teológicos e antropológicos XIII. A CREDIBILIDADE DA REVELAÇÃO (Nível Objetivo) ....................................................................................43 XIII.1.1. A credibilidade pelos sinais na Sagrada Escritura XIII.1.2. As apologias patrísticas XIII.1.3. A credibilidade no Magistério XIII.2. Noção teológica de credibilidade XIII.3. Os sinais de credibilidade

XIV. A RACIONALIDADE DA FÉ (Nível subjetivo) ..............................................................................................45 XIV.1. Raízes da fé na psicologia humana XIV.2. Racionalidade e Liberdade XIV.3. Os signos de credibilidade XV. O MILAGRE .................................................................................................................................................46 XV.1.1.Sagrada Escritura XV.1.2. Nos Padres XV.1.3. A crítica ilustrada XV.1.4. Magistério XV. 2. Essência do milagre: XV.3. Teologia do milagre XVI.1. A PROFECIA .............................................................................................................................................48 XVI.2. O sentido bíblico de profecia

XVII. CRISTO, SINAL PRIMORDIAL DE CREDIBILIDADE. O ACESSO HISTORICO A JESUS ....................................48 XVII.1. Fontes do conhecimento histórico sobre Jesus XVII.1.1. Testemunhos extra-bíblicos XVII.1.1.1. Fontes romanas XVII.1.1.2. Fontes judias XVII.1.1.3. Os evangelhos apócrifos XVII.1.2. Testemunhos do Novo Testamento XVII.2. O conhecimento histórico de Jesus através dos evangelhos XVII.2.1. Sim a Jesus, não a Cristo XVII.2.2. Não a Jesus, sim a Cristo XVII.2.3. Sim a Jesus o Cristo XVII.3. Historicidade dos evangelhos XVII.3.1. O conhecimento histórico XVII.3.2. Princípios de interpretação XVII.3.2.1. O princípio dogmático

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XVII.3.2.2. O princípio literário XVII.3.2.3. O princípio histórico XVII.4. Critérios de autenticidade histórica XVII.4.1. Critérios fundamentais XVII.4.2. Critério secundário ou derivado XVII.4.3. Critérios mistos XVII.4.3.1. Inteligibilidade interna do relato XVII.4.3.2. Interpretação diversa e acordo de fundo XVIII. CRISTO, SINAL PRIMORDIAL DE CREDIBILIDADE (II) A CONSCIÊNCIA DE JESUS: MESIAS E SENHOR ......53 XVIII.1. Os títulos cristológicos XVIII.1.1. Messias XVIII.1.2. Filho do Homem XVIII.1.3. Filho de Deus XVIII.2. A autoridade de Jesus XVIII.2.2. Jesus e o reino XVIII.2.3. A Autoridade de Jesus XVIII.3. Os milagres de Jesus XVIII.3.1. Os milagres nos evangelhos XVIII.3.2. Historicidade dos milagres XVIII.4 Jesus diante da morte XVIII.4.1. Historicidade da morte em cruz de Jesus XVIII.4.2. Por que foi Jesus condenado XVIII.4.3. A previsão de Jesus sobre sua própria morte XVIII.4.4. O sentido que Jesus deu a sua própria morte

XIX. A RESSURREIÇÃO DE JESUS .....................................................................................................................58 XIX.2. O testemunho apostólico XIX.3. O sepulcro vazio e as aparições XIX.3.1. As aparições XIX.4. Em que sentido é histórica a ressurreição? XX. A IGREJA DE CRISTO, SINAL DE CREDIBILIDADE ........................................................................................60 XX.1. A “Eclesiologia Fundamental”: História da questão XX.2. A fundação da Igreja XX.2.1.2. Teologia contemporânea XX.2.2. Magistério da Igreja XX.2.3. A fundação da Igreja por Jesus XX.2.3.1. Jesus e a Igreja XX.2.3.2. O Reino de Deus XX.2.3.3. O novo Povo de Deus XX.2.3.4. Os Doze XX.2.3.5. Pedro XX.2.3.6. A Ceia

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XX.2.4. Cristo, fundamento da igreja XX.3. A Igreja, sinal XX.3.1. Via notarum XX.3.2. Via empírica XX.3.3. Igreja como sinal unido a Cristo XX.3.4. Os sinais da Igreja XX.3.5. A santidade da Igreja

NATUREZA DA TEOLOGIA FUNDAMENTAL I. Origem real e histórica. Origem real. É o resultado da pergunta do crente por seu próprio ser e situação de fiel. Teologia fundamental. Uma reflexão sistemática e científica a partir da atitude espontânea que surge em todo fiel: a fé que procura entender (fides quaerens intellectum). Origem histórica. Nasce a partir da apologética. Este nome substituiu o de apologética, como uma nova orientação de sua tarefa, motivada pela evolução da ciência, a cultura e o pensamento filosófico e teológico. I.1. História Novo Testamento: Mostra claramente a intenção de dar razão da fé já que tendem a demonstrar a judeus e pagãos que Cristo é Messias. Juan (10, 37): Jesus apela a suas obras como provas de sua origem no pai. Os quatro evangelhos apresentam a história de Jesus como o desígnio claro de levar à fé nele como Messias At 2,32 acentua o valor demonstrativo das aparições depois da ressurreição. Pablo em At 17, estabelece uma relação entre a religião dos atenienses e seu pregação. A carta magna da apologética é 1 Pd 3,15: “Sempre dispostos a dar razão da esperança a quem vos peça contas dela”. No NT o anúncio de Jesus é um anúncio situado que tem em conta os ouvintes concretos, a cuja racionalidade apela como caminho para chegar à fé. a) Os Santos Padres

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Século II. Três destinatários: (1) os imperadores e autoridades civis, em defesa das acusações contra os cristãos, (2) os judeus e pagãos para convencê-los de seus erros, (3) os mesmos cristãos para confirmá-los na fé no meio das provas. Século V. Santo Agostinho: De Vera Religione, De Utilitate Credendi e De Civitate Dei. É o iniciador de uma linha apologética que procura no interior do homem, no coração inquieto, o ponto de conexão para levar o outro à fé. b) Idade Média. Na sociedade medieval todos são cristãos. O impulso apologético decai. Santo Tomás de Aquino: Summa contra gentis, Summa Theologiae. Na Summa contra gentis distingue as verdades sobre Deus que são acessíveis à razão e as reveladas por Deus que excedem o alcance do entendimento humano. Há que mostrar que as verdades de fé não são opostas à razão natural c) O humanismo e a Reforma Há novas descobertas geográficas (s. XIV e XV), uma nova valoração de épocas pré-cristãs como as civilizações romana e grega. Isto propõe a elaboração de tratados De Vera Religione: Marsilio Ficino (1433-1499) A razão vai sendo um princípio que atua independentemente da fé. Influências da Reforma protestante: (1) a pergunta pela verdadeira religião se prolonga agora na pergunta pela verdadeira Igreja de Cristo, (2) diferente importância dada à relação da razão com a fé. Princípio “sola Scriptura”: só a Escritura é fonte de conhecimento teológico, não o Magistério nem a Tradição. A razão se desenvolve autonomamente, e acaba entregada ao juízo e opinião pessoais e ao subjetivismo: (a) interpretação pessoal, (b) fundamentalismo: toma-se literalmente e não há nada que interpretar. Princípio “sola fides”: somente a fé salva, uma fé sem apoios ou fundamentos racionais, puro abandono e confiança, a fé não é algo razoável; não se podem ter razões para crer. Estrutura-se então um Esquema Apologético: Três argumentos para demonstrar três verdades.

(1) argumentação religiosa para demonstrar que Deus existe (De Religione ), contra os céticos (2) argumentação cristã para demonstrar que Deus falou através de Cristo (De Vera Religione), contra judeus e mulçumanos e (3) argumentação católica para demonstrar que Deus fundou a Igreja Católica por meio de Cristo (De Vera Ecclesia Christi), contra os protestantes e *acatólicos. Este esquema está vigente mais ou menos assim até hoje. A obra de Pierre Cahrron (1541-1603) Dês Trois Verites é um primeiro delinear-se das três demonstrações: a religiosa, a cristã e a católica. Fontes. Necessidade de responder aos protestantes sobre a Tradição e Magistério como “lugares” (fontes) dos que a Teologia podia extrair seu conhecimento da revelação. Melchor Cano: De locis theologicis

d) Séculos XVII-XVIII. A apologética agora será a união dos dois tratados: o das três demonstrações e o de locis. A mudança de ponto de partida na filosofia (separação fé-razão) acabou afetando diretamente à

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teologia. A filosofia vai considerando progressivamente injustificável racionalmente a teologia. A Ilustração (só o que se apóia na razão vale) polarizou a apologética fazendo que se orientasse a demonstrar o caráter veritativo da fé, isto é, que a revelação é verdade. Depois de Kant, o racionalismo da Ilustração começa a ser idealismo, isto é, uma filosofia do sujeito e do espírito. A fé numa revelação não pode ser já resposta a algo objetivo que vem de fora do sujeito. As possibilidades são: (1) agnosticismo: não se pode afirmar nem que Deus existe nem que não existe; (2) panteísmo; (3) a redução da revelação a filosofia, da fé a conhecimento racional.

e) Século XIX Século da apologética, atravessado pelo problema da relação fé-razão. Vaticano I. Constituição dogmática sobre a fé Dei Filius: ocupou-se da revelação, da fé e das relações entre fé e razão. f) Século XX M. Blondel: “método de imanência”: o verdadeiramente importante não é uma demonstração intelectual da origem divina do cristianismo, sobre a base de argumentos extrínsecos, mas dar atenção ao conjunto de disposições interiores do sujeito. Cultiva-se a apologética clássica: Gardeil, Garrigou-Lagrange, Bainvel, Tanqueray, Nicolau. I. 2. Panorama das concepções mais importantes de Teologia Fundamental. Objeto: não é tudo o relacionado com a fé, sim são as realidades de caráter fundamental: A REVELAÇÃO, A FÉ e a Credibilidade, que faz possível que a revelação chegue ao mesmo homem. Método: (1) apologético: racional mas sem prescindir da fé (2) dogmático: a partir da fé, tomando a Escritura, a Revelação e os documentos da Igreja. Credibilidade. A partir do aspecto apologético, adquire relevo esta propriedade da revelação. Cinco pontos de referência. (1) revelação, (2) fé, (3) credibilidade, (4) método dogmático, (5) método apologético. I. 2b. Duas “formas” essenciais de Teologia Fundamental *Teologal. Considera como elemento fundamental o fato da revelação divina entendida como mistério e dom de Deus. A fé como resposta é necessária. Atende primeiramente à Sagrada Escritura e à Tradição. A mediação eclesial tem lugar através do Magistério e do sensus fidei. Estuda também a credibilidade, considerando o espírito humano em sua dimensão cognoscitiva. Na linha de Dei Verbum. Teologia Fundamental desde acima, da ação de Deus à recepção humana. *Antropocêntrica. Enfrenta a análise do espírito humano chamado a acreditar na revelação de Deus. Reflete sobre as formas e categorias que determinam a atividade-receptividade do sujeito. Com isto se consideram as condições de possibilidade de toda revelação. Teologia Fundamental desde abaixo.

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I.3. O objeto da Teologia Fundamental I. 3. 1. A revelação, objeto primário. Objeto primário: A REVELAÇÃO em quanto tal. Constituída pela revelação da pessoa, as obras e palavras de Jesus Cristo. Não é só um conceito que se determina formalmente, senão que é a autocomunicação pessoal e livre de Deus aos homens; é Deus que vai ao encontro do homem para salvar-lhe e introduzir-lhe em sua vida divina. A revelação não supõe o desaparecimento do mistério de Deus, senão que representa ao mesmo tempo a máxima aproximação a Deus e a máxima transcendência. A revelação é sobrenatural, dom gratuito de Deus, realidade divina. I.3.2. A credibilidade como objeto da Teologia Fundamental. É necessário que entre a revelação e o espírito humano se dê uma descontinuidade (porque se não pertenceria ao mundo do naturalmente conhecível) e uma continuidade (caso contrário não poderia ser conhecida).

A revelação apela ao homem histórico com vocação sobrenatural, diante do qual se apresenta como uma oferta e uma resposta perfeitamente adequada ao que ele precisa. Interroga ao nível de sua razão, de sua existência pessoal e de sua vida em sociedade. Apresenta-se como credível (digna de fé porque responde à busca da verdade plena). A revelação exige o homem saia de si mesmo e responda com a entrega da fé, entrega orientada não só ao futuro, mas também ao presente. I. 3.3. Pressupostos dogmáticos. Deus. O Deus que se revela é o Deus absconditus a quem ninguém viu jamais, Deus misterioso que se manifesta como Pai através de seu Filho encarnado por meio do Espírito Santo. Esta revelação de Deus só tem lugar pelo amor e a misericórdia. Homem. O homem, caído e necessitado, está chamado com uma vocação sobrenatural à vida divina. Criação e revelação. A revelação não está no mesmo plano que a criação. A revelação não se situa na ordem do devido e sim do gratuito, não vem limitar a natureza ou corrigi-la, mas dar a conhecer o amor de Deus a suas criaturas e o âmbito divino ao que foram elevadas. I.3.4. Conseqüências metodológicas. Método fundamentalmente dogmático: aquele proceder que considera como fontes do conhecimento teológico da revelação a Sagrada Escritura e a Tradição recebidas e interpretadas na fé da Igreja. Na prática se utilizará também o método apologético, sobretudo ao tratar da credibilidade. O método apologético se caracteriza por procurar um discurso da fé, que seja válido ao ser dirigido a quem não têm fé. Também se adiciona uma verdadeira análise fenomenológica do espírito humano. II. CONCEITO GERAL DE REVELAÇÃO II.1. Os elementos básicos sobre a revelação A revelação é a autocomunicação de Deus ao homem, que implica a vontade amorosa de Deus de entregar o mistério de sua vida aos homens.

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II.2. Vocabulário bíblico sobre a revelação Antigo Testamento: não existe propriamente o conceito de revelação divina (se consideram as palavras e ações de Deus como um todo). A revelação de Deus se descreve como uma presença e uma palavra de Deus através de: teofanias (Ex 24,16ss: o Sinai; Ex 40,34), de manifestação de Deus em forma humana (Abraão: Gen 18), em acontecimentos históricos (saída de Egito Sl 77,15-21). A revelação de Deus no Antigo Testamento tem lugar através de sua palavra, a revelação é fundamentalmente ouvida. O Dabar Yahwé se designa como palavra de Deus Não só signo lingüístico da realidade mediante o conhecimento, mas uma realidade expressiva e cheia de energia. Implica a idéia de projeção para adiante do que está detrás, no coração (Gn 12,17) e de “dizer” (Sl 45,2; Gn 11,1). É o que sai da boca ou dos lábios, mas tem sua origem no coração. O conteúdo da palavra não é só a expressão de uma idéia, mas uma verdadeira comunicação pessoal pelo que o sujeito se introduz de alguma maneira em sua palavra, dando-lhe assim uma força e eficácia que se convertem em fidelidade. Debar Yahwé: 242 vezes no Antigo Testamento. Modo de comunicar algo (sentido noético) e primeiro momento do desígnio salvador de Deus, quando Deus se dá a conhecer (sentido dinâmico). ´amar *Yahwé: 90 vezes. Originalmente “ser claro”, depois passou a significar “dizer”. A palavra dita, a manifestação visível do interior da coisa (Sl 19, 3 ss; Job 22,28). Novo Testamento: também não aparece um termo que englobe a revelação de Deus. Ainda que, o desvelar-se de Deus (1 Tm 6,16) segue-se dando pela palavra. Sinópticos: o que Cristo faz é pregar (khruvssein) ou evangelizar (eujaggelivzeqai), ensinar (didavskein), revelar (ajpokaluvptein). Prevalecem: pregar (khruvssein) e ensinar (didavskein). São Paulo: Esquema fundamental: mistério e evangelho. O mistério revelado de Deus constitui a boa nova da salvação. Distingue entre a ação de Deus e dos Apóstolos. São João: não aparece “revelar”, “pregar” nem “evangelizar”, senão “testemunho” (marturiva) 13 vezes II.3. Padres da Igreja Sua reflexão nos três primeiros séculos se caracteriza por:

(1) caráter não sistemático (2) a revelação era uma novidade de vida trazida por Cristo (3) Jesus Cristo ocupa o centro do que os Padres afirmam sobre a revelação

As constantes na apresentação patrística da revelação são as seguintes: 1) Deus saiu de seu mistério e manifestou-se aos homens. 2) A revelação de Deus significa que o Pai deu a conhecer seu mistério por Cristo. 3) O plano da revelação, responde a uma ação pedagógica de Deus (Santo Ireneu, Clemente, etc.) é uma condescendência (sugkata) de Deus. 4) A revelação de Deus tem caráter histórico, 5) A revelação de Deus é diferente das “novitates” dos hereges, revelação que se transmite, “parádosis”. O critério indicador da interpretação autêntica é o da apostolicidade. II. 4. A revelação na Idade Média A revelação equivale à Sagrada Escritura. Identificam revelação com a Bíblia. Não há distinção entre revelação e inspiração. Conceito formal de revelação: a revelação de Deus se caracteriza porque supera a capacidade da razão humana.

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Há uma aceitação da filosofia aristotélica. A filosofia e teologia são platônica, pela influência de Santo Agostinho: o homem está feito para a verdade e toda verdade lhe aperfeiçoa. Não há diferença entre iluminação de um conhecimento ou de outro, o que deu lugar a uma mútua assimilação entre cultura e revelação, o cristianismo se considerava como a verdadeira sabedoria. A revelação se dá como um ensinamento divino: Deus é o mestre que ensina aos homens o fim que atribuiu à vida humana e como quer conduzir essa vida a seu fim. O homem aceita, crê essa instrução divina. A revelação: o revelado é aquilo cuja verdade se afirma além e independentemente do alcance da razão. II. 5. Concílio de Trento Os postulados teológicos do protestantismo acabaram afetando a noção de revelação, pelo qual interveio o Concílio de Trento. Aspectos particulares da interpretação protestante:

(1) a redução de fato e explícita, do papel da razão no conhecimento de Deus; o único conhecimento de Deus que interessa é o que nos vem pela revelação de Jesus Cristo

(2) a fé fiducial: A única fé que justifica é a “fé-confiança”. Crer é entregar-se a um Deus externo ao homem, um Deus juiz que por graça olha ao homem com benevolência e perdão. Princípio da Sola Scriptura: a Sagrada Escritura é a única regra de fé, e sua interpretação a realiza o indivíduo com a assistência do Espírito Santo. A fé não conta já com a mediação da Igreja. Abre-se um caminho para o subjetivismo e o racionalismo.

Concílio de Trento: Sobre a doutrina da Sagrada Escritura e a Tradição, e a natureza da fé. 1) Decretum de libris sacris et traditionibus recipiendis: sessão IV (8 de abril de 1546). O Concílio utiliza o termo Evangelho para designar a revelação. A Igreja ensina:

(1) recebeu a boa nova anunciada pelos profetas, promulgada por Jesus Cristo e pregada pelos Apóstolos a toda criatura. O Evangelho é a fonte única de toda verdade saudável e de toda disciplina de costumes.

(2) a verdade salvífica e a lei do atuar moral, cuja fonte única é o Evangelho, contém-se nos livros sagrados e na tradições não escritas.

(3) recebe com igual piedade e reverência os livros do Antigo Testamento e do Novo Testamento e as tradições não escritas que procedem da boca de Cristo ou do ditado do Espírito Santo e se conservam na Igreja Católica mediante a sucessão apostólica.

2) Decretum de iustificatione (sessão VI, 13 de janeiro de 1547)

Cap 5: necessidade da graça e da livre cooperação do homem com a ação divina.

Cap 6: atuação da fé para a justificativa : II. 6. Vaticano I Dei Filius: Antes de tratar do conhecimento natural de Deus e da revelação desenvolve, no capítulo I o ensino sobre a criação. Afirma a distinção de Deus respeito ao mundo, e que Deus o criou livremente e não para atingir maior perfeição. Frente ao deísmo afirma que Deus cuida e governa o mundo com sua providência.

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Capítulo 2 (De revelatione) Afirma a cognoscibilidade natural de Deus. A revelação é afirmada como ação que manifesta o se de Deus. A revelação é um ato de amor (bondade) e de ensino (sabedoria); é um ato de transmissão do conhecimento que Deus tem de si mesmo e de seu desígnio salvador sobre os homens. São verdades que podem ser conhecidas pela razão, e que graças a que foram reveladas podem ser conhecidas “por todos, facilmente, com firme certeza e sem mistura de erro”. A revelação é absolutamente necessária para participar dos bens divinos aos que o homem está chamado, e que superam absolutamente à inteligência humana (D.3005/1786). Capítulo 3 (De fide) A revelação em relação com a razão: Pela fé cremos que “são verdadeiras as coisas reveladas por Deus não pela intrínseca verdade das coisas conhecidas com a luz natural da razão, senão pela autoridade do mesmo Deus que se revela, que não pode nem enganar-se nem enganar-nos” (D.3008/1789). A revelação é uma comunicação realizada por Deus que é aceita pela autoridade do mesmo Deus que se revela e não pela evidência da manifestação.

II. 7. Vaticano II: Dei Verbum Constituição Dogmática Dei Verbum: promulgada oficialmente o 18 de novembro de 1965, recolhe o termo revelação divina, tema central da Teologia. II. 7.a. Perspectiva de Dei Verbum Situa-se no rastro dos concílios de Trento e Vaticano I. Quis oferecer uma apresentação completa sobre a revelação. Dei Verbum consta de cinco capítulos, dos quais a Teologia Fundamental se interessa pelo capítulo I (De ipsa revelatione) e II (De divinae revelationis transmissione), e mais em concreto pelos números 2-7. Descreve sumariamente a natureza da revelação (nº 2), a revelação no povo de Israel (nº 3), em Cristo (nº 4). Só depois de tratar da fé (nº 5) refere-se ao conhecimento de Deus pela criação (nº 6). No nº 7, já dentro do capítulo II, sobre a transmissão, trata-se do papel dos Apóstolos, o qual serve de introdução ao ensino sobre a Tradição e as relações entre Sagrada Escritura, Tradição e Magistério (nº 8-10).

II. 7. b. Natureza e objeto da revelação (Dei Verbum 2) A revelação não é uma mera comunicação de uma mensagem, mas um encontro no que Deus fala como um amigo e convida a entrar em sua companhia: auto-comunicação de Deus ao homem. Há uma centralidade teologal da revelação divina: não se trata já de uma realidade que se define por sua relação negativa com outra, mas pelo mesmo mistério de Deus que se apresenta e fundamenta desde si mesmo, e cuja ação entre os homens não tem outra razão de ser que sua liberdade.

O mistério de Deus é sua vida íntima, trinitária, manifestada por Cristo, e à qual os homens têm acesso pelo mesmo Cristo no Espírito. A autocomunicação de Deus não implica somente a abertura e manifestação de alguns atributos de Deus, mas também do desígnio salvador de Deus. A revelação de Deus é apresentada desde o princípio numa essencial união com a salvação. A revelação responde a um plano, a uma economia, que se administra pelas palavras e fatos (gesta, verba), intrinsecamente conexos entre si. Os fatos e as palavras evocam a “bondade e sabedoria” de Deus que se manifestam na revelação inseparavelmente unidas. A revelação tem lugar na história, como história de salvação, e ao mesmo tempo é uma comunicação de verdade. Os fatos “manifestam e confirmam a doutrina”. Inseparabilidade entre gesta e verba: característica sacramental da revelação. Através das palavras e dos fatos, é o mistério de Deus o que se entrega. Autocomunicação que tem sua plenitude em Cristo “mediador e plenitude de toda revelação”, palavra feita carne.

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III. A REVELAÇÃO NA HISTÓRIA

A característica fundamental da autocomunicação divina é a liberdade. Deus interveio na história, em lugares e tempos determinados. O concílio se refere em primeiro lugar ao “testemunho perene de si mesmo nas coisas criadas” que Deus dá na criação e conservação (DV 3). Deus se manifestou pessoalmente desde o princípio aos primeiros pais. Depois da queda, alentou neles a esperança da salvação. A ação de Deus é dupla: com respeito ao gênero humano: “um cuidado incessante… para dar a vida eterna a todos os que procuram a salvação com a perseverança nas boas obras (cfr. Rm 2,6-7) (DV 3); quando à promessa “de redenção”, começa a se realizar por meio do povo de Israel, ao que Deus elege e mediante o qual atua na história e dá a conhecer seu plano de salvação.

III.1. Revelação primitiva O magistério da Igreja não se pronunciou nunca sobre a revelação primitiva como tal. A revelação histórica começa propriamente com a vocação de Abraão (Gn 12). Os relatos anteriores (Gn 1-11) formam a revelação das origens, uma “protología”.

III.2. A revelação em Israel. Começa com Abraão. A partir dele, todo o Antigo Testamento recolhe as relações de Deus com o povo que se origina no patriarca. A revelação a Abraão começa como uma vocação acompanhada de uma promessa. Abraão responde com fé: marcha de sua terra (Gn 12,4), e crê a promessa recebida de Deus (Gn 15,6). Revela-se uma promessa cujo correlato é a obediência da fé. Da revelação a Abraão nasce o Povo de Israel, o Povo de Deus. Deus sela a constituição do Povo com uma Aliança cujo conteúdo é uma relação de fidelidade: Deus será sempre fiel a sua promessa, e a mudança exige que o Povo lhe reconheça como único Deus (Gn 17,3-8). A revelação de Deus se mostra inseparavelmente unida à salvação: o Deus que se revela é um Deus salvador (Gn 15,14-16). “Por ti serão abençoadas todas as linhagens da terra” (Gn 12,3). A eleição de Israel é, desta maneira, o começo de um cuidado mais intenso de todas as nações. Destino universal da bênção de Deus.

III. 2.2. Moisés Deus se manifesta a Moisés para cumprir a Aliança feita com o Povo. A ocasião é a escravidão e o aniquilamento a que estão sendo submetidos os israelitas no Egito. Na teofania da sarça ardendo (Ex 3), Deus se revela a Moisés como o Deus vivo da história: o “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob” (Ex 3,6; 6,3), o Deus da Aliança que vai cumpri-la; e ao mesmo tempo se revela pela primeira vez como Yahwé, como O que é, (“Eu sou o que sou”; “Eu sou” me enviou a vocês»: Ex 3,14, cfr. Ex 6,3). À revelação de Deus lhe acompanha o chamado a Moisés, o envio para cumprir uma missão: “Eu te envio a Faraó para que tire o meu povo” (Ex 3,10).

A ação salvadora e reveladora de Deus se mostra com as palavras e as ações. Estes fatos são, por um lado, realização da promessa inicial, mas por outro, não são a realização definitiva, mas somente sua figura.

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No Sinai, Deus confirma solenemente a Aliança com Israel e determina os conteúdos nos que a fidelidade do Povo se deve expressar: “as dez palavras”, a Torah (Ex 20-24). A partir desse momento, Deus quer habitar no meio de seu Povo (a Arca da Aliança). A resposta do Povo à Aliança não está isenta de traições (Ex 32).

III. 2.3. O profetismo e a Monarquia:

Yahwé segue sendo o único Deus e Senhor de Israel, mas seu governo se realiza através de um mediador. É o rei que tem uma particular relação com Deus. Tem lugar a construção do Templo, fenômeno histórico do que se serve Yahwé para conduzir o Povo para um sentido mais pleno de sua presença e do culto que lhe deve. As tentações dos reis de Israel são o esquecimento, a apostasia e a infidelidade à Aliança. Deus decide pôr fim a Israel como povo. Por volta do ano 600 a.C. Israel é deportado a Babilônia. É neste momento quando o profetismo adquire toda sua importância. A revelação de Deus pelos profetas começa com o chamado dos mesmos profetas por parte de Yahvé: Ele chama para que transmita sua palavra e a interprete ante os homens. Experimentam a ação da palavra de Deus, que tem eficácia exterior. É a boca de Yahvé (Jer 15,19), através da qual Deus proclama sua mensagem aos homens. Interpretam a história reclamando ao povo a fidelidade à Aliança. Época do desterro: a voz dos profetas se faz clamor, desvelam o sentido dos acontecimentos (sua infidelidade). O povo deve preparar-se para a vinda do Messias, Yahvé fará uma nova aliança no interior do homem que atingirá todos os povos. (Is 19,19 ss; 55,3; sobretudo Jer 31,31-34).

III.2.4. A revelação do Antigo Testamento. Características: a) A revelação do Antigo Testamento é a revelação da promessa. A revelação-promessa faz que o passado seja signo do que vai vir, do que chegará com o Novo Testamento.

b) Verdadeira revelação de Deus. Deus se dá a conhecer como Senhor (El Sadday), único Deus, ser vivo que escuta, Criador de céu e terra. Deus se dá a conhecer como Deus glorioso. c) A revelação é histórica. Deus intervém na história através dos fatos. Cumprimento e ao mesmo tempo expectação são os elementos da experiência reveladora e salvadora de Israel. d) A revelação de Deus no Antigo Testamento chega ao Povo através de mediadores (profetas), que falam as palavras de Deus aos homens e) O Antigo Testamento conhece uma revelação de Deus que se dá a conhecer a todo homem através da criação e do sentido moral.

III.3. Cristo, plenitude da revelação

Cristo completa a revelação e confirma a salvação do pecado e da morte. Dei Verbum fala de uma centralização teologal da revelação (é trinitária). A revelação é o encontro com o mistério de Deus vivo que se entrega e se dá a conhecer aos homens. É o Pai que no Espírito se revela pelo Filho: “Por Cristo, a Palavra feita carne, no Espírito Santo, se tem acesso ao Pai e se fazem partícipes da natureza divina” (Dei Verbum 2). A auto-comunicação de Deus acaba abrindo o mistério íntimo de Deus (intima Dei: DV 4).

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III.3.1. Cristo revelador e plenitude da revelação Concílio: Cristo é “ao mesmo tempo mediador e plenitude de toda a revelação” (Dei Verbum 2), isto é, revelador e revelação de Deus ao mesmo tempo e necessariamente. Partindo de que Jesus Cristo pertence a Deus e aos homens, é possível abordar a revelação de Deus que ele é tomando em conta tanto seu caráter de mediador (forma da revelação) como de plenitude da revelação (conteúdo da revelação).

III.3.1.1. Cristo mediador Afirmação fundamental: Cristo é o revelador de Deus, mediador perfeito da revelação já que como Verbo de Deus que se encarnou é Deus eterno e homem perfeito; realiza as obras de Deus; fala do que viu; conhece a Deus e sabe o que há no homem. Revelação veterotestamentária: parece excluir em princípio uma revelação do Deus Trino já que afirma que Yahvé é único e um. A resposta a dá o Novo Testamento: Cristo, o Filho de Deus, é o “Tu” eterno do Pai, os homens são em Cristo “tu” de Deus. A revelação cujo Mediador é Jesus Cristo apresenta uma forma trinitária, tem lugar como revelação de tal modo que aparece claro que a Trindade, além de conteúdo, é princípio formal da mesma revelação. Desde fora de Deus não há acesso à profundidade de seu mistério, só se abrem desde dentro, por seu Filho. Por Cristo a invisibilidade do Pai se faz visível. III. 3.1.2. Cristo, revelação plena de Deus A revelação é revelação do mistério, autocomunicação que o Pai faz do mistério do próprio ser. O mistério que Deus dá a conhecer: “mistério de sua vontade” (Ef 1,9), desígnio salvador de Deus que nos *predestina a ser seus filhos por Jesus Cristo (Cfr. Ef 1,14). Não é outro que o “mistério de Cristo” (Ef 3,4). Em Cristo, Deus se dá a conhecer como Pai e salvador. A revelação do amor de Deus em Cristo é já salvadora, sua verdade é verdade salvadora. A resposta a essa revelação é a aceitação de Cristo, não só de uma doutrina, senão do mistério de Deus que chama a participar em sua própria vida divina.

Cristo revela ao Pai quanto que é o Filho e o Verbo eterno. É autêntica revelação de Deus: quanto Filho, Cristo é a glória de Deus; quanto Verbo, sua verdade. Cristo-Filho: Em S. Juan se expõe o modo como o Filho é a revelação do Pai: “Se me conhecêsseis, conheceríeis também a meu Pai” (Jo 8,25); ou “o Pai e eu somos um” ( Jo 10,30); ou finalmente, “quem me vê a mim vê ao Pai” (Jo 14,9). O texto mais claro é Jo 17: Jesus deu a conhecer a seus discípulos o Nome do Pai (Jo 17,6), e o deu a conhecer através de Si mesmo. A manifestação do Nome do Pai é a mesma pessoa de Cristo que equivale a glorificar ao Pai. A revelação de Cristo como Filho consiste em fazer visível ao Pai, dar a conhecer seu Nome e comunicar a salvação.

Cristo-Verbo:O termo Logos aparece somente três vezes no Novo Testamento (Jo 1,1; 1Jn1,1-2; Apoc 19,13). No seio de Deus há já um falar eterno. Desde a eternidade o Pai diz sua Palavra, que é seu Filho; fala de uma forma única, estabelecendo ao mesmo tempo unidade e distinção eternas, comunicação mútua absoluta no espírito Santo. O Logos é a verdade, o que nos dá a conhecer a mesma verdade porque é a Palavra do Pai, o Filho único que vive no seio do Pai e, ao mesmo tempo, a síntese da revelação “Verbo vivente da verdade divina” Quanto Verbo aponta à

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interioridade do Pai, a seu mistério e à liberdade de sua manifestação. Por isso, a verdade que o Verbo comunica é sempre a verdade do amor de Deus.

III.3.2. Revelação e encarnação. “O Verbo se fez carne” significa que o Verbo eterno entrou na história, fez-se palavra histórica, próxima aos homens. Em Cristo, a revelação de Deus que tem lugar “pela palavra e fatos intrinsecamente unidos” (Dei Verbum 2) , é Palavra feita carne, é mais do que mensagem, é um fato, carregado de significação. A autocomunicação de Deus culmina na encarnação do Filho-Logos. É a suprema comunicação de Deus à criatura intelectual, por isso, a função reveladora está necessariamente incluída na mesma constituição de Cristo, e se compreende à luz de alguns dados fundamentais: *realismo do ser humano de Cristo *caráter pessoal de Cristo como Filho de Deus, imagem de seu ser divino, palavra eterna do Pai *a encarnação como apropriação de nosso ser humano pelo Filho de Deus *experiência religiosa própria do homem Jesus como Filho de Deus: nela vive o mistério de sua filiação divina. *o testemunho de Cristo como auto-revelação pessoal de Deus aos homens.

A encarnação é o ponto crucial onde o divino e o humano se articulam de acordo com uma estrutura sacramental que regula não só a comunicação da graça, senão a mesma revelação de Cristo. A revelação de Cristo tem lugar pela tensão criadora a que dá lugar a inseparabilidade entre a humanidade e a Pessoa do Verbo. Em Jesus Cristo, Deus se fez maximamente próximo e compreensível para o homem a quem revela não só o mistério de Deus, senão o mistério do próprio homem. A revelação em Cristo se apresenta não só *somo a “resposta esperada” mas também como a iluminação do que no homem ficaria sem ela ignorado. Este homem que Cristo revela ao mesmo homem é o destinatário da revelação, o que permite que se possa falar de caráter “antropológico, e inclusive antropocêntrico, da revelação oferecida aos homens em Cristo”.

III.3.3. A revelação na Cruz e ressurreição

O modo como Cristo leva a cabo a revelação o explica Dei Verbum 4: Evoca o gestis verbisque do n. 2 que se repete por três vezes:

(1) o Filho-Verbo foi enviado para manifestar a profundidade de Deus e para habitar entre os homens;

(2) Jesus Cristo fala palavras de Deus e leva a cabo a obra da salvação que o Pai lhe confiou; (3) depois de expor o modo da revelação, afirma-se que Deus vive entre nós para liberar-nos do

pecado e da morte.

A revelação salvadora de Deus tem seu momento culminante na morte e ressurreição de Jesus Cristo. Lutero destaca a tal ponto a revelação da Cruz —a theologia crucis— que pensa que aí se encerra o autêntico conhecimento de Deus: “o ser de Deus se faz visível e presente no mundo como representado no sofrimento e a cruz”. A Cruz é, segundo Lutero, a origem do verdadeiro conhecimento de Deus. A teologia católica: não admite a proposta dualista luterana da theologia crucis oposta ao

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conhecimento natural de Deus (theologia gloriae). A revelação na Cruz se constitui junto com a ressurreição como o momento cume da revelação divina. Deus já se manifestou abundantemente antes da Cruz. Mas a morte de Jesus na Cruz é a síntese e o núcleo de sua mensagem. Na Cruz, Deus revela que assume o destino do homem até as últimas conseqüências: Deus é amor, amor mais forte do que o pecado e do que a morte, amor que ante o mau se converte em misericórdia. A Cruz é o extremo ao que pode chegar Deus em seu amor. A Cruz revela, junto com o amor do Pai aos homens, a atuação plena da filiação divina de Jesus. A resposta do Pai à entrega de Cristo é a ressurreição na que recebe a glorificação como “Senhor”. Quanto “Senhor”, Cristo envia ao Espírito Santo aos homens. O Espírito Santo é o perpétuo doador de sentido, da verdade do mistério de Cristo para sua Igreja.

III.3. A ação do Espírito Santo: A partir do envio do Espírito Santo, a economia cristã é definitiva: completou-se a revelação e salvação, as quais, desde agora, anunciam-se e realizam na história com a atualidade que lhe dá o mesmo Espírito Santo que preside o hoje da graça e no entendimento. Não se deve esperar nenhuma revelação pública que complete ou aperfeiçoe à recebida de Cristo no Espírito Santo. As tentativas de superar ao Espírito Santo de Cristo, com a conseguinte apelação a uma nova economia reveladora, respondem a propostas defeituosas desde o ponto de vista da teologia trinitária e da eclesiologia, e estabelecem um dualismo destruidor da unidade da história.

IV. A TRANSMISSÃO DA REVELAÇÃO

IV.1. Os apóstolos na transmissão da revelação Os Apóstolos são o elo essencial entre Cristo e a Igreja de todos os tempos, e sua pregação constitui a norma da fé para os crentes.

IV.1.1. Os “Doze”, os apóstolos Mc 3, 13 e Lucas narra: “Quando chegou o dia chamou a si os discípulos e escolheu a doze deles a quem deu o nome de Apóstolos” (Lc 6, 13). Os Doze. Ao eleger doze discípulos Cristo estabelece uma ruptura e uma continuidade, ao mesmo tempo, com o povo de Israel. Doze tinham sido os patriarcas e doze as tribos descendentes deles, que formavam o povo. Por isso, o número “doze” era signo de plenitude. “Os Doze” simbolizam, e ao mesmo tempo são o começo e fundamento do novo Povo de Deus que descansa sobre eles como sobre seus alicerces. Apóstolos. O termo apóstolo (“apostolos”) já existia no âmbito extrabíblico. No entanto o significado que tem no Novo Testamento é completamente original. Pode significar o fato do envio de uma frota ou a frota mesma; mais tarde significou um grupo de colonizadores e a mesma colonização. O enviado não é “apostolos” mas “aggellos” ou “khrux”. O uso que os cristãos fizeram da palavra “apóstolo” inclui a idéia de autorização. Se a instituição do apostolado não pode ser deduzida da cultura extrabíblica, tem estreita relação com a instituição judia do “schaliach”: é o mandatário de uma ou várias pessoas a quem representa e defende. Está obrigado a cumprir exatamente a missão para a que está autorizado.

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IV.1.2. Os Apóstolos, testemunhas da Revelação de Cristo Para anunciar aos homens que foram salvos, por fatos que tiveram lugar uma só vez, num momento e lugar determinados, requerem-se testemunhas: A Igreja, por isso, está fundada sobre a obra de Cristo e sobre o testemunho dos apóstolos. Testemunhas: em sentido estrito são somente “os Doze”. Eles são conscientes da especificidade de seu depoimento (2Pe 1, 16; At 2, 32). A eleição de Matias (At 1, 15-26) supõe, por um lado completar o número dos Doze “” depois da traição de Judas; e por outro conferir, a quem já era testemunha, a missão do depoimento. Os apóstolos são as testemunhas privilegiadas, “eleitos de antemão” (At 10, 41) e “separados” (Rom 1,1) para ser “ministros da palavra” (Lc 1, 2) e “fundamento” da Igreja (Ef 2, 20-21). Cristo os chamou, convocou-os, para que estivessem com ele, para que fossem seus colegas de viagem, os ouvintes de sua palavra, as testemunhas de suas ações. Sua missão é uma participação na missão que Cristo recebeu do Pai. Rasgos característicos pelos que os apóstolos são as testemunhas de Cristo num sentido único:

1) ter sido eleitos por Deus; 2) ter convivido com Cristo sendo testemunhas de sua vida pública e depois da ressurreição; 3) ter recebido a missão.

IV.1.3. Os Apóstolos ensinados pelo Espírito Santo Dei Verbum: “tinham aprendido por inspiração do Espírito Santo” Há por tanto aqui um ensino sobre a fonte pneumatológica da revelação originária. A missão reveladora de Cristo inclui a ação do Espírito Santo, que é o Amor revelador presente já na origem da Encarnação (Lc 1, 35) e que como dom para a Igreja foi ganhado por Cristo na Cruz: a revelação do Espírito Santo faz parte da mesma revelação de Cristo. Concílio Vaticano II: “com o envio do Espírito completa a revelação” (Dei Verbum 4).

IV.1.4. A missão apostólica Pregar a Boa Nova, o Evangelho (Mc 3, 13-14; Mt 28, 19). A missão de pregar que eles recebem é única entre os demais, porque deriva de sua eleição particular como testemunhas de Cristo e ensinados pelo Espírito Santo. Eles são as testemunhas autenticamente diretas de Cristo, os únicos que têm o conhecimento imediato e pleno do mistério revelador do Verbo encarnado. O envio dos Apóstolos por Cristo é um momento ulterior do envio de Cristo pelo Pai. A missão apostólica responde a uma disposição eterna do Pai. A pregação apostólica do que Cristo fez e disse, bem como sua inteligência do mistério (Ef 3,4) tem valor de Revelação.

IV.1.5. A Transmissão apostólica da Revelação Os Apóstolos realizam a encomenda de transmitir o Evangelho de um duplo modo: pela pregação oral e por meio de seus escritos (cfr. DV 7). Da mesma forma que Jesus ensinou de palavra, a pregação apostólica é desde o princípio oral, e essa pregação era a que dava testemunho de Cristo e convertia à fé (cfr. At 2 e 3). A transmissão da fé é por tanto inicialmente pela pregação oral e, como adiciona o Concílio Vaticano II “in exemplis et institutionibus”, isto é através da própria vida dos Apóstolos e das instituições (ritos sacramentais e formas de organização, etc.) que neles têm sua origem.

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Os Apóstolos puseram por escrito, num segundo momento, a mensagem da salvação. Neles, sob a inspiração do Espírito Santo se fixa por escrito a mesma pregação apostólica, a memória Christi dos Doze que eles tinham entregado, e continuavam fazendo-o, à Igreja. Ao pôr por escrito a pregação oral, os Apóstolos atuavam em linha de continuidade com o Antigo Testamento. Os Apóstolos primeiro pregaram e depois deixaram a pregação por escrito.

IV.1.6. Encerramento da Revelação

Enquanto eles viviam neste mundo, o tempo da Revelação permanecia aberto porque podiam seguir dando sua palavra e mostrando a vida de testemunhas únicas, no sentido já assinalado, de Cristo. Esta missão fundante da revelação e da Igreja tem seu final quando o último Apóstolo desaparece da história. Por isso a revelação pública ficou encerrada com a morte do último Apóstolo (D. 3421). Se a Revelação acabou com o desaparecimento dos Apóstolos isto quer dizer que a partir desse momento, a fé em Cristo passa essencialmente pela mediação apostólica. Pôde-se falar por isso de uma transmissão vertical da revelação (de Cristo e do Espírito Santo aos Apóstolos) e de uma transmissão horizontal (dos Apóstolos a seus sucessores, ou à Igreja). A traditio apostolica é a norma de qualquer outra tradição eclesiástica e o critério de qualquer ulterior desenvolvimento da fé.

IV.1.7. O depósito da fé Depósito: (1Tim 6, 20) Contido da pregação apostólica que foi recebido de uma vez para sempre e tem de ser transmitido fielmente, sendo assim medida da fé ortodoxa. Uma vez terminada a pregação apostólica, esta adquire o caráter de um depósito, o depositum fidei: “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus confiado à Igreja” (DV 10). O depósito da fé implica exclusividade, contém tudo e só aquilo que os Doze receberam e transmitiram. Neste sentido a alteração do depósito, as novitates de que falam os Santos Padres, supõe uma falta de fidelidade que situa a quem o pretenda fora da communio fidelium. A custódia e a fidelidade ao depósito da fé não exclui um autêntico progresso, não na extensão do conteúdo, mas na inteligência do inesgotável mistério de Cristo.

IV.2. A revelação entregue à Igreja

IV.2.1. A fé apostólica na Igreja Com a morte do último apóstolo, o testemunho apostólico se acha completo e concluído. “Ide e ensinai a todas as gentes (... ) Eu estarei convosco até a consumação do mundo” (Mt. 28, 29). “Deus dispôs que o que tinha revelado para a salvação de todas as gentes, conservasse-se íntegro e fora transmitido a todas as gerações” (DV. 7). O serviço de conservar e transmitir a revelação cristã que compete à Igreja não é o resultado de uma pura determinação histórica. Tem que evitar o perigo de corrupção, dissolução e encapsulamento.

IV.2.2. A revelação confiada à Igreja

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A revelação foi confiada à Igreja, com a missão de ser-lhe fiel (conservá-la) e anunciá-la (transmitir). Por isso, a Igreja se acha na mesma linha da mediação de Cristo participada pelos Apóstolos. Ela continua essa mediação que faz acessível aos homens a mensagem da Salvação, e os introduz no mistério de Deus revelado em Cristo. A relação entre revelação e Igreja não se deve entender como uma relação extrínseca, mas como uma dependência mútua, de forma que a Igreja implica a revelação, e a revelação implica a existência da Igreja.

Conclusão: é necessário ter fé na Igreja, num duplo sentido: como âmbito e lugar da revelação: ter fé na Igreja é chegar a Jesus Cristo e encontrar-lhe na Igreja. O sentido de lugar da fé que corresponde à fé na Igreja, deve ir além, até confessar à Igreja como objeto mesmo de fé. Ter fé em lhe Igreja significa também reconhecer sua relação essencial com a revelação e seu caráter divino, quanto realidade querida por Deus, e que tem sua origem na Santíssima Trindade.

IV.2.3. Modo divino-humano da transmissão da revelação O “depósito” não é propriedade da Igreja; ela está a seu serviço. O sentido da Igreja depositária é essencialmente dinâmico, porque o depósito é a revelação vivente e atuante que só se conserva realmente na medida em que é vivido e transmitido. A Igreja transmite quanto lhe foi entregado pelos Apóstolos através de sua palavra, de sua vida e de seu culto (DV 8). A Igreja não transmite um objeto, mas seu próprio ser, sua essencial relação com Cristo e o Espírito Santo que são os que a fazem existir; transmite sua fé e sua entrega à Santíssima Trindade. A doutrina e a vida como meios de transmissão prolongam as palavras e os fatos por meio dos quais tem lugar a revelação (DV2) .

Culto, da liturgia, a qual “contribui um sumo grau a que os fiéis expressem em sua vida, e manifestem aos demais, o mistério de Cristo e a natureza autêntica da verdadeira Igreja” (SC 2) O culto está constituído por uma “palavra-ação”, e por sua natureza sacramental, é a representação mais clara do caráter divino-humano da transmissão da revelação. A conservação e transmissão da revelação foi confiada à Igreja em sua totalidade: toda a Igreja está chamada a presencializar a revelação de Deus. O serviço à revelação de Deus se realiza na Igreja de acordo com a igualdade radical que provem do batismo, e a diferença ministerial. A Igreja não é uma mera comunidade de crentes, senão uma realidade animada pelo Espírito Santo.

IV.2.4. A “inteligência da fé” da Igreja: “sensus fidei” e magistério A inteligência da revelação se realiza na Igreja através do “sentido sobrenatural da fé” ( ou simplesmente “sensus fidei” ) e do magistério da Igreja. IV.2.4.1. O “sentido da fé” como intérprete da revelação Concilio Vaticano II: Os fiéis, quando unanimemente crêem uma verdade como pertencente ao depósito da fé, não podem equivocar-se, senão que neles atua o Espírito Santo, e por isso são infalíveis em sua fé (infalibilidade in credendo). Pode-se falar de uma função ativa na ordem da vida de fé e caridade, que encontra sua expressão no consentimento universal de todo o Povo de Deus numa verdade revelada. Para que esse consentimento seja infalível é preciso que tenha unanimidade, ao menos moral, na verdade crida.

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IV.2.4.2 O magistério da Igreja, intérprete autêntico da revelação “Munus docendi”: transmitido pelos apóstolos a seus sucessores, os Bispos, junto com o “munus regendi” e o “munus santificandi” As relações entre revelação e magistério aparecem descritas na Constituição Dogmática Dei Verbum 10. O ensino do concílio se pode resumir nos seguintes pontos: 1) O depósito sagrado da palavra de Deus (Tradição e Sagrada Escritura) foi confiado à Igreja —pastores e fiéis— a qual se mantém unida na fidelidade à doutrina apostólica, através da conservação, prática e profissão da fé recebida. 2) Só o magistério interpreta autenticamente a Palavra de Deus

3) O magistério não está acima da palavra de Deus, senão a seu serviço. O magistério “não é norma constitutiva da fé senão diretiva”. 4) O Espírito Santo garante com sua assistência o cumprimento do mandato divino sobre o magistério. 5) Por último, o Concílio ensina a íntima relação entre Tradição, Escritura e Magistério, de maneira que não possa dar-se nenhum deles sem que os demais fiquem essencialmente afetados, e perdida a garantia eficaz da salvação das almas.

IV.2.5. A indefectibilidade da Igreja Só se a Igreja é indefectível tem autêntico sentido sua fidelidade à missão de conservar e transmitir a revelação bem como a adesão que pede aos fiéis. A indefectibilidade, se aplica a seu conhecimento e expressão da verdade da revelação, chama-se infalibilidade. Possui um carisma recebido de Deus mediante o qual em seu ato essencial de conhecimento, de expressão e de pregação do dom da revelação divina que lhe foi confiada, não pode equivocar-se. Uma exposição sistemática sobre a indefectibilidade da Igreja e sua concretização na infalibilidade compreende os seguintes pontos: 1. A indefectibilidade em quanto permanência através do tempo, em identidade consigo mesma é uma propriedade da Igreja que lhe assegura que chegará à vida eterna. 2. A indefectibilidade não só afeta ao ser da Igreja, senão também a sua fazer.

3. A infalibilidade da Igreja é participada e relativa. O único infalível é Deus. 4. A Igreja é infalível porque goza da assistência infalível 5. Só a Igreja é, estritamente falando, infalível. Essa realidade se realiza tanto no crer (in credendo: sentido da fé) como no ensino (in docendo: magistério). A infalibilidade do sucessor de Pedro, do Concílio Ecumênico e do magistério ordinário universal são os modos concretos como o Espírito Santo assiste aos Pastores.

V. NATUREZA DA REVELAÇÃO

V.1. Revelação e salvação A revelação foi definida anteriormente como a autocomunicação de Deus. Vai essencialmente unida ao ato pelo que Deus chama ao homem a sua intimidade e o libera do mal e do pecado. A revelação vai essencialmente unida à salvação. A revelação é o aspecto cognoscitivo da salvação. Ilumina a

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história da salvação, dá o sentido profundo dos fatos, descobre a presença e a ação de Deus na história. A revelação faz parte da salvação, mas não se confundem.

V.2. O chamado do homem à comunhão com Deus, pressuposto e fim da revelação. A revelação e salvação que Deus oferece ao homem existem já desde os primeiros pais (Dei Verbum 3). Há dois momentos sucessivos nesta salvação:

(1) o chamado do homem à comunhão com Deus (elevação à ordem sobrenatural),

(2) a salvação depois da queda, do pecado e de suas conseqüências.

A elevação do homem à ordem sobrenatural é outra maneira de dizer que a revelação divina é livre e dom de amor, e não está implicada no puro ato criador. O chamado do homem ao dom gratuito da comunhão com Deus é pressuposto e fim de toda revelação.

V.3. Revelação natural, histórica e escatológica. Ao falar de revelação de Deus, referimo-nos à revelação histórica, a que tem lugar num tempo e num espaço determinados. Também se pode falar do plano natural e escatológico.

V.3.1. Revelação natural A possibilidade de um conhecimento de Deus unido à natureza aparece com clareza na Sagrada Escritura. Em Sb 13,1; Sl 19, 1-2; At. 17,24-29, a Deus se pode encontrar através da criação. O texto bíblico mais claro é o de Rm 1, 19-21, no que se afirma a cognoscibilidade do Deus invisível a partir da criação visível. A “revelação” natural responde —como afirma São Paulo— a uma autêntica iniciativa de Deus, de maneira que não é só a conseqüência de um estado de coisas. Concílio Vaticano I afirma a cognoscibilidade racional de Deus. Só se o homem pode conhecer naturalmente a Deus, pode-se dar o passo seguinte e “chamar ao homem um ser religioso” (Catecismo, 28).

V.3.2. Revelação histórica Coincide com o que chamamos revelação sobrenatural de Deus. A revelação de Deus é um acontecimento localizado no tempo e no espaço, num contexto cultural e lingüístico determinados, por sua ação e palavra. A revelação não tem lugar num ponto único da história, mas através de uma sucessão de intervenções descontinuas. A revelação é um acontecimento progressivo. Conseqüência do caráter histórico da revelação: a importância que adquirem a cultura, as categorias, a linguagem, as sociedades concretas, através das quais teve lugar a revelação.

V.3.3. Revelação escatológica

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A revelação escatológica é a manifestação plena das realidades que percebemos pela fé, não já através de palavras ou signos, senão em si mesmas, como tais realidades; é a visão (1Jo 3,3), a “epignosis”,ou conhecimento perfeito (1Cor 13,12). Visão de Deus (“cara a cara “:1Cor 13,12) e ilimitado (“como Ele é”: 1Jn 3,3). Será uma “revelação de Jesus Cristo”, uma “revelação de sua glória” (1Tim 6,14; 1Pe 4,13). Os únicos limites do conhecimento serão os de nossa própria finitude.

V.3.4. Luz do conhecimento da revelação A cada etapa da comunicação de Deus corresponde uma iluminação particular de nosso conhecimento:

COMUNICAÇÕES DE DEUS

conteúdo do conhecido

características modo de conocer

luz atitude

Revelação natural

Deus como causa; Deus pessoal, livre e transcendente

mediata; impessoal

Pelas obras criadas (Sb 13,1; Sl 19,1-2; At 17,24-29; Rm 1,19-21)

inteligência (lumen rationis)

adoração

Revelação histórica

Deus no seu mistério (mistério para a fé)

imediata (através dos Apóstolos e profetas); pessoal

pelos sinais, ações, palavras (Hb 1)

fé (lumen fidei)

piedade filial (aceitar o compromisso da fé)

Revelação escatológica

Deus no seu mistério (mistério que supera a capacidade de visão)

pela visão beatífica (1 Jo 3,3; 1 Cor, 13,12; 1 Tim 6,14; 1 Pe 4,13)

visão epignosis (lumen gloriae)

piedade filial

VI. A REVELAÇÃO, ATO COMUNICATIVO Tem seu âmbito de entendimento na conexão com a salvação: Deus se autocomunica pela palavra e pela graça que justifica e salva.

VI.1. A revelação como palavra e como encontro VI.1.1. Palavra “O falar consiste num intercâmbio espiritual imediato entre seres dotados de inteligência”, um sujeito com quem se encontra o falante e com quem mantém um intercâmbio espiritual. É uma forma de entrega, acompanhada da esperança de ser atendido, entendido, aceitado e respondido. Deus se expressa por sua palavra, o Verbo de Deus, a Palavra eterna que existia no princípio, “estava junto a Deus e era Deus” (o 1,1). Deus fala:

(1) profere sua Palavra desde a eternidade, Deus engendra ao Filho-Verbo,

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(2) a “encarnação” progressiva da palavra de Deus é a plenitude da revelação tanto por ser a palavra última e definitiva de Deus como por oferecer a máxima inteligibilidade possível através de sua humanidade

(3) a comunicação de Deus aos mediadores da revelação, a que se chamou “inspiração profética” ou “carisma de profecia” : recebem a palavra para transmití-la.

(4) fala, ademais, através de palavras, aos profetas que transmitem uma mensagem divina (“Assim diz Yahwé; “Yahwé me disse”), e sobretudo as palavras de Jesus Cristo. Com elas tem lugar o encontro de Deus com seu interlocutor humano.

VI.1.2. Encontro Na ação de falar a alguém já tem lugar um encontro. A iniciativa reveladora de Deus dá lugar a um encontro com o homem quando este responde com a fé. A revelação e a fé com as que Deus e o homem se encontram são essencialmente interpessoais. Características do encontro levado a cabo pela fé:

1.- Deus tem sempre a iniciativa. 2.- O encontro com Deus em sua palavra implica uma opção básica e definitiva. 3.- O encontro com Deus dá passo a uma profunda comunhão do homem com Deus.

VI.2. A experiência da revelação A revelação cristã não é uma mera comunicação de uma mensagem objetiva que o homem deve aceitar intelectualmente sem que afete ao sujeito em seu ser total. A experiência da revelação consiste em viver a revelação recebida na fé. A experiência da revelação na consciência dos que tem fé é uma experiência vivida sob o regime da fé.

VI.3. O plano da revelação

A apresentação da revelação como “locutio Dei atestans” foi relativamente comum na teologia. A revelação seria a ação de Deus que fala testemunhando, independentemente da história. Os fatos somente contribuem um elemento exterior certificante: os milagres. Os fatos fazem parte da revelação divina junto com as palavras (“gestis verbisque intrinsece inter se connexis” : Dei Verbum, 2). A revelação se dá de um modo descontinuo na história, sem identificar-se com ela. “kairós”, “kairoi” designa os tempos de especial densidade nos que tem lugar a revelação, designa no tempo um momento determinado por seu conteúdo. Diferencia-se de “aion “: duração, um espaço de tempo. No Novo Testamento, “kairòs” é empregado para designar o momento ou a ocasião especialmente favorável frente à história da salvação. São os momentos escolhidos por Deus para realizar sua salvação os que formam a história da revelação e salvação de Deus.

VI.4. Complementaridade de ações e palavras A economia da revelação inclui às palavras e aos fatos como elementos essenciais da autocomunicação divina, intrinsecamente unidos entre eles. “Dei Verbum”: as obras manifestam e confirmam a doutrina e as afirmações transmitidas pela palavra; por sua vez, as palavras proclamam as obras e esclarecem o mistério que nelas se contém. Ao ter lugar a revelação por meio de

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palavras e fatos intrinsecamente unidos, a teologia descobriu que se dá nela uma analogia com os sacramentos, nos que há também palavras e fatos que unidos realizam a salvação pela graça. Por isso se falou do caráter sacramental da revelação.

VII.TRANSCENDÊNCIA E SOBRENATURALIDADE DA REVELAÇÃO

Quanto ato comunicativo, a revelação divina entrega a verdade de Deus. A revelação de Deus é sempre a manifestação de um “logos” que alumia a inteligência do que tem fé e a abre a uma verdade mais plena que deve receber como dom. Esta comunicação de logos chega a sua plenitude com a encarnação, na que o Logos pessoal de Deus se faz presente entre os homens.

VII.1. A verdade da revelação Vários teólogos apoiados na diferença entre uma verdade bíblica e uma verdade filosófica, acabam afirmando que a única verdade é Cristo em quem se realiza a fidelidade, a sabedoria, a revelação do desígnio salvador de Deus. Parece chegar-se a uma oposição entre a verdade bíblica e a verdade no âmbito da filosofia e das ciências, ou entre uma verdade existencial e uma verdade objetiva. Teólogos como W. Kasper reagiram contra as simplificações a que leva essa proposta. Em último termo, se a Teologia Fundamental —ciência da revelação— pretende realizar afirmações gerais e cientificamente comunicáveis, não pode extrair-se à necessidade de responder à pergunta pela verdade da revelação de Deus. Trata-se de saber se são verdadeiras no sentido de reais, não imaginárias nem subjetivas. Da resposta a estas perguntas, provem precisões essenciais sobre a mesma natureza da revelação, e sobre as relações entre fé e razão. O Concílio Vaticano I: Deus quis revelar “por outra via e esta sobrenatural a si mesmo e os eternos decretos de sua vontade ao gênero humano” (D.3004/1785). Vaticano II: especifica o conteúdo dessa revelação, que é “o mistério de sua vontade pelo que os homens, por mediação de Cristo, Verbo feito carne, têm acesso no Espírito Santo ao Pai” ( Dei Verbum 2). Existe, por tanto uma realidade que só se conhece por revelação.

VII.4. Noção teológica de mistério

A categoria que permite expressar a transcendência e sobrenaturalidade da revelação é a mistério. Este mistério que Deus dá a conhecer em sua revelação não é a só manifestação do que o homem não pode chegar a conhecer, senão que é principalmente o “mistério de sua vontade” (Ef. 1,9), isto é o mistério do desígnio salvador de Deus, o “mistério de Cristo” (Ef.3,4). O mistério nunca é algo absurdo ou contraditório. O mistério se refere ao âmbito divino, e só secundariamente a outras verdades de fé. O mistério aponta à realidade de Deus que se revela. Essa é a razão pela que se considera tradicionalmente que existem três mistérios fundamentais (mysteria stricte dita):

1) o mistério de Deus Trino,

2) o mistério da encarnação do Verbo,

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3) e o mistério da graça.

A revelação cristã dá a conhecer o mistério como mistério salvador.

Propriedades que caracterizam os mistérios: 1. Transcendência: o Vaticano I a expressa através da idéia bíblica do que está oculto: “mysteria in Deo abscondita” 2. Gratuidade: já que não há conexão necessária entre o conhecimento humano e os mistérios, só pode chegar o homem a eles se os recebe como dom gratuito. 3. Cognoscibilidade analógica: uma vez revelados, os mistérios não são verdades herméticas que há que aceitar sem saber nada do que contêm. Os mistérios podem ser objeto de reflexão e de conhecimento que será sempre insuficiente.

VIII. A FÉ Introdução. A fé é resposta. Deus tem a iniciativa de autocomunicar-se. O homem acolhe a revelação com a fé: é sua reposta. Correlato subjetivo. A fé vem depois da revelação. A fé é o correlato subjetivo correspondente ao correlato objetivo que é a revelação. São estes os dois termos da relação. Ato complexo e simples. A fé em Deus é um ato complexo pelos diversos aspectos da pessoa que devem cooperar para que tenha lugar. É também um ato simples porque crer é só isso. Acreditar em Deus e crer a Deus é um ato único no homem: do modo como se acredita em Deus e a Deus não se acredita em nada nem a ninguém. Aqui vai interessar-nos o ato da fé, não a virtude da fé.

Teologia do ato fé. Desenvolveu-se modernamente igual que a Teologia da revelação. Segundo como se entenda a revelação, assim se entenderá a fé. A Teologia da fé aparece com clareza desde o princípio da reflexão cristã.

VIII.1. A fé na Sagrada Escritura. VIII.1.1. A fé no Antigo Testamento. Etimologia. No Antigo Testamento não existe um único termo para a fé senão mas bem um campo semântico, pelo qual o conceito de fé é muito amplo.

‘amam: manter-se fiel a, ser estável, estar fundado, Deste verbo procede o “amém” que significa a resposta incondicional da fé. *batah: esperar confiantemente em alguém. *bè emín: apoiar-se em algo ou em alguém. Este termo aparece 13 vezes. A forma normal do homem de relacionar-se com Deus é “apoiar-se” ou “acredita em Deus”. O homem deve crer que Deus cumprirá sua promessa apesar de que o homem se encontre às vezes afastado de Deus (no exílio ou ao sair do Paraíso) e apesar de que veja situações que desmentem a promessa de Deus. Esta promessa se converte em pacto com Noé (Gn 9,16) e em aliança com Abraão (Gn 17).

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VIII.2.2. A Fé no Novo Testamento No Novo Testamento se designa a relação filial do homem com Deus que se revelou. No Novo Testamento a fé é como a essência do ser cristão. (2 Ts 1, 10: chama aos cristãos os que acreditam) Etimologia: pistis, pisteuein: aceitação de verdades escatológicas (Mc13,21), crença nos milagres (Mc 2,5), cumprimento da lei. A fé vai através dos mediadores no Antigo Testamento enquanto no Novo a fé é aceitação da mensagem de salvação que por iniciativa divina tem lugar de uma vez para sempre em Cristo. Em Cristo, Deus fala “com rosto”, há uma personalização da fé: o que importa já não é tanto a fidelidade do povo senão a conversão pessoal do indivíduo.

A fé é o ato com o que tem lugar a conversão, no que se faz presente a esperança e confiança. Aspecto subjetivo: “fides qua creditur” (a fé com a que se crê) e aspecto objetivo: “fides quae creditur” (a fé que se crê, que é o conteúdo da revelação).

VIII.3. Tradição e magistério sobre a fé VIII.3.1. Até o século VI. Ao princípio se vive do ensino bíblico sobre a fé. Pouco a pouco se vai elaborando uma reflexão sobre a revelação. a) Gnosticismo. século II. Consideram que a fé é um conhecimento de segundo ordem e opõem este conhecimento (pistis) ao verdadeiro (gnose). A fé é opinião pessoal, (doxa), sem fundamento, que deve ser substituída a fé pelo conhecimento perfeito (gnose). A isto a Igreja reagiu assinalando o caráter de certeza da fé (episteme), é conhecimento rigoroso e fundado. Não se mede pela fragilidade do homem senão pela fidelidade de Deus b) Regula Fides. Este termo o utilizam os Padres para referir-se à fé que se devia ter por norma. Nos séculos II, III e IV tem lugar um processo de ordenação de verdades. A Regula Fides (regra da fé) se refere aos elementos essenciais da fé que o fiel deve aceitar. O termo contrasta o que é a fé frente às heresias: a regula fides é o que está em relação com o caráter apostólico, o que vem da tradição apostólica. Tem que ver mais com a fides quae (o que se crê) do que com a fides qua (a fé com do que se crê, que é o aspecto subjetivo).

c) Santo Agostinho. Possui uma profunda capacidade de análise psicológica do homem que se move ou se resiste à fé. Distingue três tipos de conhecimento: contemplação, ciência e fé. A fé se orienta por uma autoridade ou por um testemunho a diferença da contemplação ou a ciência. A fé é o termo ao que chega o «coração inquieto» do homem que não encontra sua felicidade enquanto não consegue descansar em Deus. Define assim a fé: «crer é pensar com consentimento» («credere est cum assensione cogitare)

VIII.3.2 Idade Média

Santo Tomás expõe a fé sobre o conceito aristotélico de ciência. A fé é um modo de saber no qual o objeto do saber é conhecido mediante o testemunho de um terceiro, de uma testemunha, que é Deus. Ao crer em Deus, o homem tem acesso a uma ciência objetiva que é a ciência de Deus. «Actus credentis non terminatur ad enuntiabile sede ad rem» [O ato (de fé) do fiel não se detém no enunciado, senão na realidade (enunciada)] (S. Th. 2-2, 1, 2, ad2)

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O ato de fé se relaciona com o amor, este impulso que no homem leva à fé procede da vontade. A virtude da fé é o hábito da mente com o que começa a vida eterna em nós, fazendo ao intelecto assentir a realidades que não se vêem.

VIII.3.3 Séculos XVI ao XIX. 1. Martinho Lutero. Reage contra o que considera um abandono da mensagem da Escritura, e defende que a justificação tem lugar pela fé somente, fé que não é a que se expressa por meio de afirmações intelectuais, mas o encontro existencial com um Deus benigno, que é entrega confiada e sem reservas (fé fiducial) ao Deus incompreensível em sua vida e sua graça. Pelo princípio sola fides ao excluir-se a justificação pelas obras se acaba excluindo a possível colaboração da inteligência com a fé. A fé é agora confiança verdadeira e segurança plena e forte do coração pela qual se acede ao cristianismo. Aqui falta o elemento de consentimento às verdades de fé. 2. Concílio de Trento. Dá resposta a Lutero e aos protestantes. Não se ocupa diretamente da fé, mas se tem um ensino sobre a fé que se pode resumir nos seguintes seis pontos:

(1) A fé faz parte das disposições para a justificação (D1526/798). A fé é graça, resposta e consentimento à verdade da revelação salvadora. (2) A fé, a esperança e a caridade se recebem no ato da justificação junto com a remissão dos pecados (D1530/800). (3) A fé é o começo da salvação, e o fundamento e raiz de toda justificação (D1532/801). (4) Não existe nenhum sinal seguro de predestinação verdadeira pelo que não convém abandonar-se temerariamente à confiança de estar justificado. Para estar justificado não é necessária uma fé fiducial de que se está justificado, mas uma firmíssima esperança (D1541/806). (5) A fé e as obras cooperam no crescimento e aumento de justificativa. (6) Pelo pecado grave se perde a graça e a caridade, mas não a fé, a não ser que se trate de um pecado contra a fé. A fé pode manter-se como fé morta.

3. A Ilustração. Neste tempo a fé se vê rebaixada progressivamente em sua função cognoscitiva e finalmente relegada ao campo do irracional.

4. Concílio Vaticano I. Interessa o ato de fé «De fide» (capítulo 3). Vaticano I não quis recolher um ensino completo sobre a fé, mas ressaltar alguns aspectos importantes postos em perigo pelos erros modernos: Estamos obrigados a prestar à fé um pleno obséquio de nosso intelecto e vontade. Sobre a fé diz o concílio: é início da salvação humana (humanae salutis initium) (citando a Trento). D1789: é “uma virtude sobrenatural mediante a qual, impulsionados e ajudados pela graça de Deus, cremos que são verdadeiras as coisas divinamente reveladas por Ele, não pela verdade intrínseca das coisas conhecidas com a luz da razão, mas pela autoridade do mesmo Deus que se revela, que não pode nem se enganar nem enganar-nos”.

Apresenta a fé como afirmação da verdade dos “credenda” o que se há de acreditar. Fala também da relação da fé com a razão no mesmo ato de fé: a fé é serviço conjunto da razão e não um “movimento cego do espírito”. A fé vai preparada por signos externos (milagres e profecias) que

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acompanham aos auxílios da graça e fazem à fé razoável. Por outra parte a fé é dom de Deus e não só decisão humana, que o homem deve aceitar livremente.

5. Concílio Vaticano II. Dá um breve ensino explícito sobre a fé, preparado pela teologia da primeira metade do século XX. Vaticano II assinala também o caráter pessoal da revelação (DV2 e 4) e da fé (DV5). A ação da fé e suas relações com as diversas manifestações do mundo moderno: relações da fé com a cultura (GS 57-59) e sua eficácia frente ao ateísmo (GS 21), o mesmo que a ação e o papel da fé frente à evangelização do mundo e à conjuntura da segunda metade do século XX (LG 23, AG 36).

Ensinos explícitos do Concílio sobre o ato de fé em si mesmo: (1) Dignitate Humanae (n. 10): A Liberdade do ato de fé: afirma-se o caráter voluntário da resposta de fé ensinado na Palavra de Deus e nos Padres: o ato de fé é voluntário por sua própria natureza, já que o homem, não pode aderir-se a Deus que se revela a si mesmo, se, atraído pelo Pai, não rende a Deus o obséquio racional e livre da fé. Não se pode impor nada em matéria religiosa. (2) Dei Verbum (n. 5): Depois de apresentar a revelação em Israel (3), em Cristo (4), ocupa-se da fé (5): A Deus que se revela, se lhe outorga a obediência da fé mediante a qual o homem presta um consentimento voluntário à Revelação dada por Ele; o homem se confia inteira e livremente. Para chegar à fé é necessário a graça de Deus e os auxílios internos do Espírito Santo. Caráter pessoal da Fé: A fé afeta não só à inteligência, mas à inteira existência do crente. A fé é, antes de tudo uma entrega total da pessoa a Deus. A fé adquire a mesma propriedade que a revelação (2-4), a personalização. O necessário consentimento da inteligência no ato de fé, faz parte da mesma entrega da pessoa em sua totalidade. Isto não supõe fechar o passo à atividade da inteligência fora do âmbito da fé (6). 6. Catecismo da Igreja Católica. Ocupa-se ao mesmo tempo do caráter pessoal e eclesial da fé. Trata da fé depois de ter-se ocupado não só da revelação divina em sua constituição (Israel, Cristo), mas depois inclusive da presença da revelação na Igreja (Escritura, tradição). Pela fé o homem submete completamente sua inteligência e sua vontade a Deus. Com todo seu ser, o homem dá seu consentimento a Deus que se revela (DV 5) N. 143 150: «A fé é antes de mais nada uma adesão pessoal do homem a Deus; é ao mesmo tempo e inseparavelmente o consentimento livre a toda a verdade que Deus revelou.» Características da fé: É graça (153), ato humano (154), livre (160), necessário para a salvação (161), começo da vida eterna (163). Pela primeira vez se apresenta a fé em sentido trinitário: crer só em Deus (150), em Jesus Cristo (151), no Espírito Santo (152).

IX. FÉ HUMANA E FÉ DIVINA Introdução. A fé é a resposta do homem à autocomunicação de Deus; situa-se no contexto da fé humana, da fé como modo de relacionar-se entre os homens, como atitude vital e como modo de conhecimento.

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IX.1. A fé humana. O verbo crer está cheio de matizes (a) Crer: acreditar em o sentido de opinar. (b) Acreditar em algo ou ter crendices (c) Crer algo a alguém. Alguém deixou uma mensagem para ser aceita. (d) Fé em Deus. A fé religiosa pode acompanhar ao conhecimento natural de Deus. O conhecimento que aqui se tem de Deus procede do mundo (cosmos) e de si mesmo (consciência). Esta fé é um dos elementos essenciais da religião natural. (f) Fé interpessoal (“eu creio em ti”; “acredito em ti”). O outro está maximamente personalizado: o conhecemos e sabemos qual é sua atitude para nós. Esta fé entre pessoas é uma forma de conhecimento e também de encontro. Afeta o conjunto da pessoa e não só o aspecto intelectual: é uma forma de entrega e de aceitação mútuas. Latim: credere: cor–dare (dar o coração). Inglês: believe: be love (ser amor). (g) Fé no Deus revelado, fé em Cristo. Não é a fé religiosa ou a fé em Deus porque agora o homem não responde a um conhecimento indireto de Deus, mas responde a Deus que se comunica ao homem como um “eu” a um “tu”, entregando-se e pedindo uma resposta. A fé sobrenatural é um caso excepcional e único da fé interpessoal (“acredito em ti”). Quando o “tu” é Deus, adquire um sentido único porque Deus é o fundamento da verdade e da realidade. Esta fé se converte num dinamismo de entrega absoluta que é a explicação do que significa “acreditar em” Cristo.

IX.2. Estrutura epistemológica da fé Se procura explicarem que lugar exato do conhecimento humano se situa a fé. Santo agostinho tinha caracterizado a fé como «cum assensione cogitare». Santo Tomás em De Veritate desenvolve cinco modos de conhecer que se articulam em torno do consentimento e à investigação. A posição central da fé é expressão de sua imperfeição e de sua grandeza:

A investigação (cogitatio) e o consentimento (assensus), em princípio se excluem o um ao outro. Em tanto existe a investigação, não pode haver consentimento. Quando tem lugar este consentimento, a investigação cessa. A Fé ocupa um lugar intermédio. Por um lado é consentimento firme, não pela evidência do objeto, mas sob o império da vontade que empurra à inteligência a cobrir o trecho que leva da credibilidade à fé. Essa credibilidade é o objeto da investigação anterior ao consentimento; Depois do consentimento, a investigação continua como busca teológica. O seguinte quadro resume a análise de Santo Tomás em torno dos dois termos da definição de fé de Santo Agostinho, e que se encontra em De Veritate, q. 14, a. 1

dúvida

opinião

ciência

evidência de simples apreensão

Cogitatio investigação

Investigação anterior ao assentimento e que continua depois

Investigacão anterior, mas diminuída logo

nada

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pela evidência da demonstração

Assensus assentimento

nada certo assentimento, mas acompanhado de dúvida e de temor de que o contrário seja verdadeiro

Total e pleno, firme sob a força da vontade, pois não há evidência objetiva

firme, pela evidência mediada pelo raciocínio

evidência imediata

A fé não pode ser reduzida nem à opinião, nem à ciência. O consentimento da fé é total e firme. A fé é subjetivamente inferior à ciência porque procura a evidência em seu conhecer (fides quaerens intellectum) sem que por isso a falta de evidência afete à firmeza do consentimento. A fé como conhecimento implica necessariamente a intervenção da inteira pessoa que deve aceitar o compromisso que supõe chegar à fé. IX.3. Entendimento e vontade Crer é, entre outras coisas, fazer um juízo que afirma a verdade do revelado (isto é assim, amém). A inteligência intervém em três momentos: (1) entende a palavra que se diz, (2) julga a similitude com a verdade, possibilidade e a credibilidade, (3) intervém no ato de fé confessando a verdade do revelado (consentimento). A fé não é só assunto da inteligência como pretende o racionalismo. No ato de fé intervém a vontade. É livre: “creio se quero, porque quero” e “se não quero, não creio”, a vontade assente voluntariamente ao que a inteligência conhece. No entanto, não basta querer crer para crer, porque a fé é graça, ainda que é necessário querer para crer. “Crio porque quero” se entende também num sentido amplo como “creio porque amo”. É a fé interpessoal, o “te crio a ti” que se dá entre dois sujeitos. Entendimento e vontade intervêm harmonicamente no ato de fé. A inteligência conhece e julga, sem chegar à evidência subjetiva; a vontade é a que decide crer. Se não interviesse a inteligência o ato de fé seria cego. Se não interviesse a vontade não se chegaria ao ato de fé nunca, ou a fé seria ciência (só inteligência).

A fé tem um caráter pessoal: afeta a toda a pessoa, é entregar-se totalmente a Deus e deixar-se afetar em toda a profundeza de seu ser. Por isso a ação própria do crente é o depoimento, ser testemunha até o final, mediante a palavra, a vida e até a morte. O crente se entregou a uma pessoa tal que tem a capacidade de exigir o dom total e sem condições, da vida e da morte. Esta pessoa só pode ser Deus. Quando o homem se entrega dessa maneira a Deus, não se perde a si mesmo senão que atinge a plenitude.

IX.4. A fé quanto conhecimento.

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A fé é uma forma de conhecimento específico que é verdadeiro e irredutível a qualquer outra forma de conhecer. O que crê sabe, chega à verdade mediante o testemunho de outro que conhece diretamente.

Magistério da Igreja. A fé é consentimento às verdades reveladas não pela intrínseca verdade das coisas, mas pela autoridade do mesmo Deus que revela (Trento, Concílio Vaticano I). Fides quae e fides qua. Fides quae. Conteúdo da fé plasmado em proposições ou dogmas. Sentido objetivo. Fides qua. Ato ou atos interiores do sujeito mediante os quais se decide a crer. Sentido subjetivo.

IX.5. A fé em Deus: caráter teologal da fé.

A fé em Deus é diferente da fé humana. Na fé humana não é lícito crer de uma maneira absoluta e incondicional em nada nem em ninguém porque o “tu” humano não é infalível. A mera fé interpessoal não é salvadora. A fé em Deus é diferente da fé religiosa. O acreditar em Deus está afetado da incondicionalidade porque Deus é infalível. A fé meramente religiosa é teìsta, é fé em Deus a partir de uma mediação do cosmos e da consciência, e é provisória porque está sujeito a uma possível correção: a que Deus se revele e se faça interlocutor meu.

A fé cristã não é teísta, mas teologal. Estabelece uma relação imediata entre Deus que se revela e o homem que crê (destinatário da revelação). A fé cristã tomada a obediência e a incondicionalidade da fé religiosa, e tomada o caráter interpessoal da fé humana. O «acredito em ti» se dirige ao “Tu” absoluto que condescendeu a chamar, em Cristo, “tu” a sua criatura.

Expressão da fé teologal: A fé é uma ato singelo e nítido (creio), mas ao mesmo tempo um ato pessoal de natureza complexa que afeta e compromete a todo o sujeito. IX.5. Credere Deum (que Deus), Credere Deo ([a] Deus), Credere in Deum (em Deus). Santo Agostinho: Tratado sobre o evangelho de São João, 29 . Santo Tomás: Suma Teológica. Estas três formas explicitam diversos níveis da fé teologal:

credere Deum: Deus como objeto material da fé. Crer que existe Deus.

credere Deo: Deus como objeto formal da fé. Crer a/em Deus que se revela e crer-lhe por sua autoridade. credere in Deum: Deus como fim. Crer para Deus. Expressa o matiz voluntário e dinâmico da fé. Manifesta o caráter vital e o caráter escatológico da fé.

As três formas manifestam um mesmo ato de fé do que Deus é o centro, fundamento e fim.

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IX.6. Caráter eclesial da fé. A revelação nos chega na Igreja. Nós acreditamos (em+a) Igreja. A fé é um ato pessoal. Mas a fé não é um ato isolado, e por isso este ato precisa ser completado com a dimensão eclesial do crer.

“«Crer» é um ato eclesial. A fé da Igreja precede (creio in Ecclesia), engendra (é a Igreja a que em mim põe a fé), conduz e alimenta (mediante os sacramentos) nossa fé”. Para que o ato de fé seja pessoal e eclesial deve dar-se uma identificação do fiel com a Igreja: (1) O fiel está na Igreja e dela recebe o conteúdo e o modo de crer. O ouvir a fé (auditus fidei) (Cf. Rm 10, 17) é “in Ecclesia” e “per Ecclesiam”; o cristianismo é necessariamente eclesial. (2) A Igreja é communio fidelium (comunidade dos fiéis). Há um envolvimento mútuo entre o ato de fé do fiel a fé da Igreja. A coerência fé-vida dos fiéis é um importante signo de credibilidade. (3) O “creio” da fé é o creio do indivíduo e ao mesmo tempo expressão da Igreja que crê. Os Concílios expressavam a fórmula: “esta é a fé da Igreja Católica (IV de Toledo)”.

X. A FÉ, DOM DE DEUS E COMPROMISSO DO HOMEM X.1. Propriedades do ato de fé. No ato de fé convergem a ação de Deus que chega ao homem com a graça e a resposta livre do homem a essa graça. A fé sem o dom de Deus (graça) seria pura decisão humana por algo criado. Por outro lado, a fé seria uma imposição se não tivesse resposta livre. A fé é consentimento livre a toda a verdade que Deus revelou e adesão pessoal do homem a Deus que se revela em Cristo (Cf. Catecismo da Igreja Católica 150). (a) sobrenatural. Não é o resultado da liberdade humana . (b) escura. Só pode ter fé aquele que não vê ou não sabe por si mesmo, mas que aceita o testemunho de outro. Todo ato de fé humano ou sobrenatural é escuro .

(c) verdadeira. Quanto consentimento total à Revelação, a certeza acompanha necessariamente a fé. Seu fundamento é a autoridade infalível de Deus As “dúvidas” em tanto não afetem a certeza do crer não constituem um estado de dúvida; podem desempenhar um impulso para a fé. (d) livre. A liberdade da fé não é só uma propriedade específica sua. Desde o lado humano a liberdade é a causa da fé. Só se quer acreditar .

X.2. Motivo e motivos da fé.

Motivo formal da fé. É Deus mesmo e sua autoridade (motivo objetivo e subjetivo). Nesta fé tudo está fundado se é Deus quem fala, e se não é Deus quem fala, nada dessa fé está fundado. Motivos da fé. É tudo aquilo que move a crer. Os motivos atuam sobre o sujeito e lhe movem a crer. Atuam na ordem subjetiva, na ordem da credibilidade.

X.3. Graça e liberdade no ato de fé. A fé é graça de Deus e ato humano ao mesmo tempo. O homem se pode preparar para a fé, mas ao final a fé é sempre dom de Deus. «A fé é um dom de Deus, uma virtude sobrenatural infundida por ele» (Catecismo da Igreja Católica 153). O homem só crê se conhece o objeto de fé e livremente quer crer. Sobrenaturalidade do ato de fé: aparece claramente na iniciativa gratuita de Deus-Trinidad através do dom do Espírito Santo no ato de fé.

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O homem é chamado à fé e realiza essa vocação na história, no livre acontecer histórico e em sua própria autodeterminação. O chamado à comunhão com Deus já é graça, pois esse chamado não é parte da natureza humana. Textos onde se afirma a ação de Deus que leva crer. «Por aquele tempo exclamou Jesus: “Pai, Senhor do céu e da terra, eu te louvo porque mantiveste ocultas estas coisas aos sábios e prudentes e as revelaste aos pequeninos”» (Mt 11, 25). «Jesus lhe respondeu: “Feliz és, Simão, filho de Jonas, porque isso não to ensinou a carne nem o sangue, mas meu Pai que está nos céus”» (Mt 16, 17). (At 16, 14). (2 Cor 4, 6). (2 Cor 1, 21-22). (Jo 6, 44-45). (1 Jo 5, 6). Todos expressam que a iniciação na fé é obra de Deus, que Deus faz primeiro e convida a crer.

Tema XI. REVELAÇÃO E RELIGIÃO A religião é objeto de análise e estudo no âmbito filosófico, e faz parte também do objeto da teologia, que se ocupa disso na Teologia das Religiões, que estuda a relação entre as diversas formas religiosas que existem e a salvação trazida por Cristo. Questão teológico-fundamental: antes que tivesse lugar a revelação judeu-cristã, existiram e existem outras formas de relação dos homens com a divindade ou com Deus. O fato da religião é em si bom, porque a relação religiosa do homem com Deus expressa a natureza humana. A revelação cristã se apresenta como a última, definitiva e plena palavra de Deus aos homens, e A Cristo como o único nome em que podemos ser salvos (At 9, 12). Uma vez que teve lugar a revelação em Cristo conservam as diversas religiões algum valor, ou foram todas elas anuladas e substituídas pelo cristianismo?. Qual a relação entre fé e crença religiosa e o modo como tem lugar a salvação: a salvação de Cristo atua independentemente das religiões, ou atua através das religiões? XI.1. História da questão XI.1.1. Novo Testamento O anúncio de Cristo se faz a judeus e a gregos; a crentes e pagãos. At 17, 16-34: mostra como São Paulo estabelece uma relação entre religião e cristianismo. Ao tomar como ponto de partida o altar “ao Deus desconhecido”, assume o valor da religiosidade como preparação para a fé, mas não da religiosidade em general senão de uma forma indeterminada de divindade ao que Paulo se propõe dar um nome e um conteúdo.

XI.1.2. Os Padres Duas orientações: 1) Pensam que as religiões recolhem realidades autênticas porque Deus está presente em toda criatura, e toda verdade tem sua origem última nele (Justino , Clemente de Alexandria) 2) Inclina-se a uma consideração negativa da religião pagã que, devido a sua profunda corrupção moral era vista como obra do diabo (Tertuliano, etc.)

XI.1.3. Idade Média

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A questão da religião passa a um segundo plano. Duas linhas merecem ser postas de relevo: a permanência da doutrina de Santo Agostinho e a polêmica com judeus e muçulmanos. Santo Tomás: analisa o ato de fé cristã, recolhe a doutrina do Hiponense em seu tratado da virtude da religião (moral). Não é uma comparação entre o cristianismo e as religiões, mas da religião como virtude, como estrutura do atuar humano, na que se fundamenta a fé cristã, que é a verdadeira “religação” com Deus.Reconhece que os infiéis podem realizar obras boas e admite sua salvação sempre que possuam a fé em Cristo Redentor; esta fé pode ser, de todos modos, implícita.

XI.1.4. A Ilustração

Começa a pôr-se em dúvida a oportunidade e a possibilidade de uma religião positiva e revelada, que implicaria uma exclusão das demais que não o são. Surgiu o ideal de uma religião natural independente de toda revelação e ação histórica. Cherbury, Tindal, Locke, Toland, entre outros, seguidos por Voltaire, Rousseau, defendem uma religião que seja meramente uma dedução racional de verdades morais sem base histórica.

XI.2. A polêmica sobre a religião no protestantismo.

XI.2.1. F. Schleiermacher (1768-1834) O homem se relaciona com Deus não pelo conhecimento, senão pelo “sentimento” do infinito, experiência universal e específica que caracteriza à religião Todas os religiões expressam esse sentimento, pelo que todas são radicalmente válidas.

XI.2.2. K. Barth Entre revelação e religião há oposição irreconciliável. Com sua teologia dialética afirma que Deus não é conhecido nem como objeto de raciocínio teológico (via positiva), nem de forma somente negativa, pensando o que Deus não é (via negativa), mas como sujeito que misteriosa e milagrosamente se revela a si mesmo aos homens em sua própria liberdade incondicional. O único acesso a Deus é a gratuidade do ato divino pelo que ele se aproxima: não há conhecimento de Deus fora de Cristo. Deus é o totalmente outro, no entanto, vem à história: manifesta-se em Israel, faz-se presente em Cristo, atua na Escritura e na Igreja Distingue entre a fé cristã, baseada na revelação que faz Deus de Si mesmo em Jesus Cristo, e toda religião que representa para o homem uma busca inútil. A partir da oposição absoluta entre religião e revelação propugnada por Barth, alguns de seus seguidores chegaram à conclusão de que é melhor preparação para a fé o ateísmo do que a atitude religiosa (Bonhoeffer). Todo este conjunto de idéias acabou influindo na Teologia “da morte de Deus” com suas idéias de um “ateísmo cristão”.

XI.3. A teologia católica

Primeira postura: (Danièlou, H. de Lubac, Maurier, Cornelis). As religiões não cristãs pertencem ao reino da criação; por tanto, a uma esfera diferente da salvação. A partir da ferida que a criação recebeu pelo pecado, as religiões são meios ambíguos e constituem obstáculos para a salvação. Não são caminhos de salvação, porque carecem de meios

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de salvação. Deus só salva ao homem através de Cristo que segue atuando na Igreja. Isto não impede que tenha autênticos valores nas religiões, pois, apesar de sua ambigüidade, as religiões representam diversas etapas do caminho humano da humanidade para Cristo: nela há certas “sementes do Verbo”, e constituem pierres d'attente dispostas na criação e na humanidade com vistas à Igreja.

Segunda postura: O. Karrer publica sua obra O religioso na humanidade e no cristianismo. Representantes: T. Ohm, J. Mouroux e sobretudo K. Rahner. H. R. Schlette, R. Panikkar, G. Thils e outros. Rahner: parte de dois princípios fundamentais: a vontade salvífica universal de Deus e o “realismo” da graça. Para que a primeira possa ser tomada em sério, a graça tem que afetar ao homem de um modo ordinário, não extraordinário. A graça entra dentro dos constitutivos essenciais do homem entre os que aparece como um constitutivo histórico, aquele que Rahner chama “existencial sobrenatural”. Surge assim a teoria dos cristãos “anônimos”. Se toda graça é necessariamente crística, e essa graça se dá de alguma maneira em todo homem já que a todos atinge a vontade salvadora de Deus, resulta que todo homem é radicalmente “cristão”, ainda que em tanto não se abra plenamente a Cristo, é “anônimo”. H. Küng: deu uma expressão radical à tese de Rahner chegando a sustentar que o cristianismo é “caminho extraordinário” de salvação enquanto as demais religiões constituiriam os “caminhos ordinários”. Formas ou aproximações como resultado da discussão sobre a relação entre cristianismo e religião:

XI.4. O magistério da Igreja Só se ocupou das religiões e de sua relação com o cristianismo em época recente: Ponto de partida: princípio “extra Ecclesiam nulla salus” fora da Igreja não há salvação, que Origens e S. Cipriano formularam quase simultaneamente no século III . Século XIII: aparece pela primeira vez o “extra ecclesiam nulla salus” em textos que se referiam a cismáticos, com a finalidade por tanto, de reforçar a necessidade da Igreja . Século XIX: Pio IX, ocupa-se, sobretudo da salvação dos não cristãos. Afirma a possibilidade de salvação para quem sofrem ignorância invencível da verdadeira religião e guardam a lei natural; conseguem a vida eterna “pela operação da virtude da luz divina e da graça” (DS 2866, cfr D. 1647) Vaticano I: frente a quem excluíam a revelação da religião, o Concílio afirma a existência de um dupla ordem de conhecimento de Deus, o que se adquire por razão natural e o próprio da fé divina. Isso significa que o conhecimento de Deus que se adquire independentemente da fé é um conhecimento verdadeiro. Não é necessariamente um conhecimento religioso, mas nele se podem apoiar legitimamente as religiões.

XI.5. Vaticano II . Até Paulo VI, os Papas e os concílios não tinham falado dos não “cristãos”, e muito menos de religiões “não cristãs”. Foi Paulo VI em sua encíclica “Ecclesiam Suam” (1964) quem pela primeira vez se referiu às religiões não cristãs: o cristianismo não pode renunciar ao direito de ser a única religião verdadeira, mas não deixa de prestar atendimento e reconhecimento “aos valores espirituais e morais das diversas religiões não cristãs”. O Vaticano II se ocupou diretamente dos não cristãos e das religiões não cristãs. Destas últimas só na Declaração Nostra Aetate. No resto dos documentos conciliares se trata sempre dos não “cristãos”.

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Os “não cristãos” no concílio

Deus da testemunho perene de si nas coisas criadas, e, manifestou-se pessoalmente a nossos pais já desde o princípio. “Teve incessante cuidado do gênero humano, para dar a vida eterna a todos os que procuram a salvação com a perseverança nas boas obras (cfr. Rm 2, 6-7)” (DV 3). Os não cristãos podem conseguir a salvação eterna não por si mesmos (cfr. Ad Gentes 8), mas “ajudados pela graça divina” (cfr. LG 16). Cristo é o princípio de salvação para todo mundo. (LG. 48). Ad Gentes: O desígnio salvador universal de Deus “se realiza de um modo quase secreto na mente dos homens, mas também por esforços, inclusive religiosos, com os que o homem procura de muitas maneiras a Deus, (... ) precisam ser alumiados e sanados, ainda que, podem considerar-se alguma vez como pedagogia para o Deus verdadeiro ou preparação evangélica... “(Ad Gentes 3)

Gaudium et Spes: afirma-se que a incorporação ao mistério pascal de Jesus está aberta a todos os homens de boa vontade “em cujo coração faz a graça de modo invisível (cfr. LG 16). Cristo morreu por todos, e a vocação suprema do homem em realidade é uma só, isto é, divina. Em conseqüência, devemos crer que o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de que, na forma só de Deus conhecida, associem-se a este mistério pascal” (GS 22).

XI.7. Reflexão Teológica

Vaticano II (*DV 3): Deus se manifestou a Si mesmo desde o princípio ao homem para abrir-lhe o caminho da salvação eterna.

Dá aos homens um depoimento de si mesmo na criação e conservação de tudo pelo Verbo.

Antes de Abraão, e contemporaneamente com ele, existem homens religiosos. A religião, em conseqüência, tem sua origem na criação, não na revelação. É certamente movimento que parte do homem em procura a Deus, mas movimento que se funda e é fato possível por um prévio telefonema divina. O desejo de eternidade, a busca de uma resposta aos grandes interrogantes do homem, as ânsias de infinito, a esperança num destino futuro são eco da imagem de Deus, de Deus presente no homem.

A religião estabelece uma autêntica relação do homem com Deus. Em quanto ação humana implica um lançar-se para uma luz que apareceu na inteligência.

A religião também está afetada pelo pecado que pode inclusive desviar, a autenticidade da religião. a) não todas as religiões gozam da mesma perfeição. b) A religião pode experimentar um enfraquecimento de sua relação com Deus e substituí-la por uma espécie de auto-suficiência.

As religiões são a concretização histórica de uma experiência religiosa vivida numa comunidade ao longo de um lapso de tempo mais ou menos longo. Aqui encontra seu lugar o conceito patrístico das “sementes do Verbo”, que significa o caráter referencial de alguns elementos das religiões.

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Vaticano II: refere-se a uma ação da Revelação sobre as religiões que poderíamos resumir em duas funções: purificação e elevação.

A unicidade e universalidade de Cristo atinge também à Igreja: A salvação, que para todo homem só pode vir de Cristo, faz referência também à Igreja que anuncia a Cristo e continua sua obra redentora. Deve-se afirmar que a ação da graça fora do recinto da Igreja, não tem lugar independentemente da Igreja considerada em seu mistério. Dignitatis humanae sobre a liberdade religiosa: “Cremos, diz o Concílio, que esta única verdadeira religião subsiste na Igreja católica e apostólica, à qual o Senhor Jesus confiou a obrigação de difundi-la a todos os homens”

XII. A FALTA DE FÉ (ATEÍSMO)

Durante séculos o cristão e o homem religioso esgotavam praticamente o universo do homem que habita a terra. Todo homem era cristão ou pagão. A situação mudou notavelmente. Agora a relação entre cristianismo e religiões deve abrir-se a uma nova realidade: a dos que não acreditam em Cristo, nem admitem nenhuma religião porque desconhecem ou negam a existência de Deus. Esta nova situação não introduz uma terceira possibilidade objetiva já que se caracteriza por não admitir nem o objeto da revelação (Cristo revelação do Pai) nem da religião (Deus como ser Supremo e Senhor). Ou melhor, propõe um único objeto (o homem e a natureza) que faz impossível a revelação e a religião. A falta de fé moderna surgiu no Ocidente como uma reação frente ao cristianismo

XII.1. Delimitação de conceitos

ateísmo teórico: negativo (ignorância de Deus) indiferentismo: a indiferença ou desinteresse com respeito ao problema de Deus. positivo (negação da essência e da existência de Deus, ou da possibilidade racional de conhecê-lo). categórico-doutrinal: quando pretende demonstrar a não existência de Deus postulatório: quando a não existência de Deus aparece como conseqüência necessária da exigência de emancipação do homem cético: quando se põe em discussão tanto a possibilidade de um conhecimento verdadeiro e seguro de Deus agnóstico: quando, aparte do anterior se nega a possibilidade do conhecimento racional de Deus. ateísmo prático: comportamento ou atuar que responde à convicção atéia. Apresenta-se como um ateísmo existencial, como a rejeição da existência de Deus. XII.2. Origens da falta de fé XII.2.1. Ateísmo no período pré-cristão e não cristão Civilização greco-romana: existe um ateísmo de tipo religioso-político (crítica do culto oficial da pólis ou do império, rejeição de formas de representação antropomórficas da divindade): Culturas do Ásia meridional: a diversidade de categorias de representação e pensamento faz difícil fazer-se cargo sobre as possíveis manifestações de ateísmo. Parece claro o ateísmo dos “negadores” (nstikh) pertencentes a uma corrente cética ou materialista.

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Conclusão: no âmbito pré-cristão e não cristão da Antigüidade é difícil encontrar um ateísmo radical que negue toda forma do divino.

XII.2.2. A crítica da revelação: Idade moderna:

A crítica à idéia de revelação se desenvolveu em duas fases: a) Crítica filosófica(ataca a possibilidade da revelação) Com a Ilustração começou a formular-se a crítica aos fundamentos metafísicos do cristianismo. O homem entendido como razão, a natureza como o necessário e universal, e Deus como a origem da necessidade e universalidade. A natureza é a manifestação perfeita e necessária de Deus, por tanto, “o natural” é tudo o que existe. Conseqüência: a rejeição de todo sobrenaturalismo. b) Crítica histórica (ataca a realidade da revelação) S. XIX: o cansaço de uma especulação abstrata e geral fez que os homens se voltassem para a vida concreta e individual e para sua expressão na história. Este movimento promoveu, em teologia, o exame crítico das fontes históricas do cristianismo. Cedo se discutiram questões sobre a autenticidade e fidelidade dos relatos evangélicos, sobre a data de sua composição, a questão sinóptica, a forma original do texto. Núcleo do problema: O espírito —a essência do cristianismo— é o não histórico, enquanto os fatos expressam a realidade histórica. Nasce assim a distinção entre o Jesus da história e o Cristo da fé entre os quais já não se admite uma correspondência, e que é a base de toda a problemática moderna em torno da historicidade dos evangelhos, e fundamento da crítica das origens do cristianismo. Coincidem em que todo elemento de aparência sobrenatural deve ser recusado como não histórico. Cristo não é senão a idealização e divinização do personagem histórico Jesus.

XII.3. Crítica da religião e revelação: O ateísmo moderno

A falta de fé de nosso tempo apresenta características específicas, mas tem em sua base o pensamento de alguns autores que pretenderam formular coerentemente sua postura atéia. Todos eles representam de uma forma ou outra um projeto de humanismo ateu, isto é, um projeto do homem que reclama como algo seu e próprio o que a crença encontra em Deus.

XII.3.1. Os Hegelianos L. Feuerbach (1804-1872). Todas a virtualidades do homem que vão além dele mesmo são projetadas num ser superior. Deus, então, é-o tudo, enquanto o homem é nada. Daí o princípio de que “a essência da teologia é a antropologia”. A religião é alienante, é inútil e nociva, porque leva ao homem a desinteressar-se pela vida presente, pelos valores humanos. “A religião, pelo menos a cristã, é a relação do homem consigo mesmo, ..., com sua essência, mas considerada como uma essência estranha”. K. Marx (1818-1883) serve-se do conceito de alienação, elaborado por Hegel e utilizado por Feuerbach, com um sentido diferente. A alienação é uma situação na que o homem caiu como resultado de fatos históricos. Depende de uma situação de opressão —resultado no último termo da economia— que deve ser eliminada para que a tendência religiosa desapareça por si mesma. Enquanto o homem primitivo se sentia oprimido pelas forças da natureza que não conseguia

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dominar, na época industrial a opressão se origina pelo capitalismo. Assim, as classes oprimidas acreditam em Deus e numa vida futura feliz para consolar-se da miséria terrestre, e os patrões opressores tranqüilizam sua consciência convencendo-se de que as desigualdades sociais respondem a um plano querido por Deus. A religião nasce da injustiça, justifica-a, perpetua-a. O homem se constrói mediante a praxe e o trabalho, sem relação alguma com nada transcendente, e ao mesmo tempo transforma a natureza da que é solidário (ateísmo positivo). A autonomia humana não tem limites; ao mesmo tempo, o homem está encerrado dentro de seus limites terrestres.

XII.3.2. O ateísmo em nome dos valores e da liberdade. F. Nietzsche (1844-1900) Deus só existe na consciência dos fiéis, os quais, por esta crença, vêem-se impedidos de crescer e afirmar-se. Sua origem está no sentido de impotência e desconfiança que domina ao homem em sua busca da própria felicidade. O super-homem nasce precisamente da morte de Deus, a partir da qual o homem se vê impulsionado ao limite de suas possibilidades. Objeto particular da crítica nietzscheana é o cristianismo com seu “moral de escravos” e seu signo do crucificado que é a antítese da vontade de poder que caracteriza ao super-homem. J. P. Sartre (1905-1980) representante do ateísmo chamado existencialista. Sua rejeição de Deus como opção existencial é um dos aspectos de sua alternativa para “uma liberdade absoluta que inventa a razão e o bem, e que não tem mais limites do que ela mesma”. O homem só pode ser livre sem Deus, isto é sendo sujeito que não é feito objeto por ninguém que lhe olhe.

XII.3.3. O ateísmo em nome da ciência

S. Freud (1856-1939) ocupou-se da religião em suas obras O porvir de uma ilusão, Totem e tabu e Moisés e o monoteísmo. Em síntese, vem dizer que a religião é uma forma de neurose coletiva que tem sua origem no complexo de Édipo. Os sentimentos religiosos nascem de uma frustração fundamental que consiste na angústia e indefesa do homem diante dos problemas da vida, e da avidez de felicidade eterna e absoluta que nunca conseguirá. A religião é uma ilusão que brota do inconsciente, dos desejos mais profundos do indivíduo e da humanidade, desejos infantis provocadas pela falta do pai. Deus é uma projeção da imagem do pai que gera —segundo o complexo de Édipo— um sentimento duplo: desejo da segurança e poder que representa o pai e, ao mesmo tempo, rebelião e ciúmes, porque lhe disputa o favor da mãe. Cristo, Filho de Deus feito homem, reconcilia com sua morte aos filhos com o pai. Mas ante o Deus cristão o indivíduo permanece numa ambivalência radical, entre o amor e a agressividade latente que desencadeia o sentimento de culpabilidade.

Empirismo lógico, ou neopositivismo, do Circulo de Viena (Schlick, Carnap, etc.): não existe nenhum problema metafísico, porque a linguagem metafísica carece de sentido. O critério de sentido vem dado pela possibilidade de verificação. Quando não se pode verificar algo, a proposição não é empírica, carece de sentido. Proposições como “a alma existe”, “Deus existe”, etc., estão privadas de sentido, e não há nenhum procedimento capaz de demonstrar sua verdade ou falsidade.

XII.4. Raízes antropológicas da falta de fé

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Pressuposto: a falta de fé, o mesmo que a fé é resultado de uma opção; não é resultado de um rigoroso processo racional, porque não pode ter razões suficientes que a produzam, mas é fruto de uma decisão, de uma opção existencial. Não é livre do mesmo modo e com o mesmo sentido que a fé.

A fé e a falta de fé podem sofrer influxos que limitam, de fato, a liberdade pessoal. Mas na medida em que a fé surge como um ato de elevada qualidade moral (a fé como compromisso), sua relação com a liberdade é mais clara e, sobretudo, mais de acordo com a verdade. “O homem, ensina ao Vaticano II, efetivamente, quando examina seu coração comprova sua inclinação ao mau e se sente oprimido por muitos males que não podem ter origem em seu santo Criador. Ao negar-se com freqüência a reconhecer a Deus como seu princípio, rompe o homem a devida subordinação a seu fim último, e também toda sua ordenação, tanto pelo que toca a sua própria pessoa como às relações com os demais, e com o resto da criação. — É isto o que explica a divisão íntima do homem. Toda a vida humana, a individual e a coletiva, apresenta-se como luta, e por certo dramática, entre o bem e o mau, entre a luz e as trevas.” (GS 13) A “divisão íntima do homem” de que fala o concílio se manifesta em três âmbitos principais: no conhecimento, na liberdade e no sentido mesmo de sua vida. A estas três raízes antropológicas —conhecer, atuar, perguntar-se pelo sentido— que se dão no homem quanto tal homem, há que adicionar a contribuição da cultura, da educação e da história. Todos eles, no entanto, não atuam como justificantes da falta de fé, ainda que a explicam.

XII.5. Fenomenologia da falta de fé contemporânea Em 1965, o Concílio Vaticano II se ocupou da falta de fé e do ateísmo (GS19): “A palavra “ateísmo” designa realidades muito diversas. Uns negam a Deus expressamente. Outros afirmam que nada pode dizer-se a respeito de Deus. Outros que submetem a questão teológica a uma análise metodológica tal, que reputa como inútil a própria proposta da questão. Muitos, rebaixando indevidamente os limites das ciências positivas, pretendem explicar tudo sobre esta base puramente científica ou, pelo contrário, recusam sem exceção toda verdade absoluta. Há quem exalta tanto ao homem, que deixam sem sentido a fé em Deus, já que lhes interessa mais, ao que parece, a afirmação do homem que a negação de Deus. Há quem imagina um Deus por eles recusado, que nada têm que ver com o Deus do Evangelho. Outros nem sequer se propõem a questão da existência de Deus porque, ao que parece, não sentem inquietude religiosa alguma e não percebem o motivo de preocupar-se pelo fato religioso. Ademais, o ateísmo nasce às vezes como um violento protesto contra a existência do mal no mundo ou como uma adjudicação indevida do caráter absoluto a certos bens humanos que são considerados praticamente como sucedâneos de Deus. A mesma civilização atual, não em si mesma, mas sim por sua sobrecarrega de afeiçoamento à terra, pode dificultar em grau notável o acesso do homem a Deus”. Trinta anos depois se vê que algumas dessas formas perderam força, enquanto outras cristalizaram em certa maneira: a secularização, a indiferença religiosa, o agnosticismo contemporâneo, e o deísmo.

XII.5.1. Secularização

Indica a progressiva dissolução do santo ou sagrado no mundano ou profano. É uma dessacralização do que se considerava acima do alcance do homem porque pertencia a uma ordem superior ou divina. A secularização afeta às pessoas e às sociedades, e é nestas onde as

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manifestações são mais claras. A religião vê debilitada ou perde sua função pública, passando a ser um pouco de caráter privado. No terreno dos fatos: a secularização como fato sociológico, tem estado intimamente unida ao ateísmo. A resposta cristã deve consistir numa reflexão sobre o autêntico sentido do valor cristão do trabalho, da ciência, da técnica na linha de uma teologia da secularidade.

XII.5.2. Indiferença

A ausência de inquietude religiosa, inclusive de uma proposta do problema religioso. Nesta postura se acha implícito o convencimento de que a existência de Deus, ainda que fora real, não seria um valor: o problema de Deus não interessa. Vai unida à secularização da vida e da sociedade.

XII.5.3. Agnosticismo e Deísmo

Mantém um teórico reconhecimento de Deus, mas que não toca na vida. O agnosticismo comum não é normalmente uma postura que leve a negar a possibilidade de conhecer a Deus. Mais bem é uma situação na que se encontram as pessoas que realizaram uma inferência espontânea. Este agnosticismo pode ir acompanhado de uma aceitação de Deus por outras vias que as da razão, caindo assim num fideismo. A Deus não se lhe pode conhecer —se pensa—mas a educação recebida, o comportamento de pessoas fiéis, o peso do cristão, seus próprios interrogantes levam a manter aberta à referência a esse “algo” desconhecido ao que chamam Deus. Esse Deus não tem nada que ver com o mundo, não existe a providência. Agnosticismo e deísmo são com freqüência formas de ateísmo prático, porque possibilitam modos de viver como se Deus não existisse.

XII.6. Magistério da Igreja

Vaticano I: Cânon I do cap. I de Dei Filius condena a quem negue que “existe um único e verdadeiro Deus, criador do visível e do invisível” (D 3021). Vaticano II: falta de fé e ateísmo em Gaudium et Spes. Depois da descrição das diversas formas do ateísmo realiza um juízo capital: “Quem voluntariamente pretendem apartar de seu conhecimento a Deus e esquecer as questões religiosas, não seguem o ditame de sua consciência e não carecem de culpa”(GS 19 c). Gaudium et Spes faz uma consideração especial para o ateísmo sistemático. Dois sistemas ateus aparecem recolhidos: o ateísmo ocidental, de corte individualista, e o ateísmo materialista, isto é, o marxismo e comunismo (GS 14). Paulo VI erigiu na Cúria Romana o Secretariado para os não-crentes, que posteriormente deveio o Conselho Pontifício para o diálogo com os não-crentes, que, a sua vez, acabou fundindo-se com o Conselho Pontifício para a Cultura. João Paulo II na mesma linha do Concílio e de Pulo VI, ocupa-se da falta de fé em seus discursos e encíclicas: o ateísmo aparece como um pecado, junto com a idolatria e a apostasia; o ateísmo mantém uma relação com o racionalismo mecanicista e acaba no desprezo à pessoa humana, do qual são testemunho a luta de classes marxista e o militarismo.

XII.7. A teologia diante da falta de fé À teologia lhe compete duas atividades em relação com a falta de fé: a apologética e o diálogo que não são nem plenamente separáveis, nem idênticas.

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1) Exercendo sua função apologética frente à falta de fé, a Teologia Fundamental responde aos ataques e desfigurações que “desde fora” se fazem à revelação e à fé. Os objetivos aos que se aponta são:

a) mostrar o infundado da negação de Deus; b) pôr de manifesto as conseqüências dessa negação nos diversos níveis da realidade; c) apresentar a Cristo como a revelação de Deus e do homem.

Conseqüências: a) A negação de Deus não é criticável desde um ponto de vista empírico: Requer-se por tanto o uso da filosofia, e não de qualquer filosofia. b) A Teologia Fundamental não pode apelar à teologia natural em sua função apologética, por outro lado, é possível pôr de manifesto as conseqüências da negação de Deus, para o qual basta com examinar a experiência comum do mundo e da humanidade que derivaram dessa negação.

2)Quanto ao sentido da existência humana: Não se pode negar a realidade do mistério ou do enigma que é o homem, nem se pode evitar dar uma resposta a esse interrogante. Sem Deus, nada faz sentido. 3) A apologética só não basta, é necessário um “prudente diálogo”. O diálogo com os ateus obrigou a seguir um processo de mínimos no que se afirmava sobre Deus. A quem pretendia que de Deus não se pode afirmar nada se lhe apresentaram juízos elementares, quase minimalistas, sobre sua realidade. O terreno principal de encontro desencontro da fé e do ateísmo é o próprio homem. Questões como a justiça social, o valor da liberdade, os direitos humanos, a justiça entre os povos, a paz, o papel da mulher, etc., são alguns campos nos que podem convergir as propostas cristãs e algumas propostas dos não cristãos.

4) Além da apologética e do diálogo com o ateísmo é necessário anunciar a Jesus Cristo, mostrando a resposta que se encontra para os interrogantes mais profundos do homem.

O Vaticano II apresentou esta resposta às inquietudes mais profundas do homem. Em síntese o que se afirma é o seguinte: α) Cristo manifesta plenamente ao homem não só o que é, mas também o que está chamado a ser (vocação à participação da vida divina). β) Cristo, homem perfeito, devolveu à descendência de Adão a semelhança divina e a elevou a dignidade sem igual (homem imagem). γ) Cristo é modelo da humanidade porque foi plenamente homem, e ao encarnar-se “se uniu em certo modo com todo homem”. Trabalhou, pensou, atuou, amou com seu ser humano. δ) Cristo salvou aos homens mediante sua morte livremente aceitada: mereceu-nos a vida, “nos reconciliou com Deus”, “libertou-nos da escravidão do pecado”, “abriu-nos o caminho no que a vida e a morte adquirem novo sentido e se santificam. ε) O homem cristão, conformado com a imagem do Filho, recebe o Espírito Santo com o qual pode reger-se pela lei do amor, e mediante o qual o mesmo homem se restaura interiormente. O cristão deve lutar e experimentar tribulações, mas sócio ao mistério pascal e configurado com a morte de Cristo chegará à ressurreição.

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ζ) Por Cristo e em Cristo se ilumina o enigma da dor e da morte “que fora do Evangelho nos envolve em absoluta escuridão”. η) Esta ação de Cristo vale não só para os cristãos, mas também para todos os homens de boa vontade

5. Para uma valoração moral do ateísmo: A. Não há possibilidade intrínseca do ateísmo “natural” . B. Não há possibilidade de ser ateu sem culpa própria

XII. 8 . Vias de acesso ao conhecimento de Deus. O Catecismo ensina que o ponto de partida do acesso a Deus é a criação, e concretamente o mundo material e a pessoa humana. Partindo do mundo, e atendendo ao movimento e devir, à contingência, à ordem e à beleza se pode conhecer a Deus como origem e fim do universo (n.32). O homem é também via pela que acedemos ao conhecimento de Deus. A pergunta por seu próprio ser, pela abertura à verdade e à beleza abre no coração humano um processo que conduz para a verdade plena. Especialmente importante para o acesso a Deus é o sentido moral, a liberdade e a consciência.

XII.9. A possibilidade da revelação: pressupostos teológicos e antropológicos Para fundar a possibilidade da revelação se requer contar com um conceito de Deus e do homem que façam possível que Deus se autocomunique ao homem e que o homem possa receber e responder à iniciativa divina. a) Só pode ter revelação se existe um Deus transcendente, pessoal e livre. Só pode revelar-se a pessoa que possui uma intimidade própria à que somente se acede por sua automanifestação, e que, ao mesmo tempo, é capaz da decisão livre de dar-se a conhecer. b) O homem, destinatário da revelação de Deus, só pode recebê-la se é capaz de relação com Deus, e se a mensagem e ação divinas não lhe destrói como homem em sua razão ou em sua liberdade.

XIII. A CREDIBILIDADE DA REVELAÇÃO (Nível Objetivo)

A fé não se reduz à razão, mas também não a destrói. A fé, diz o Concílio Vaticano I em Dei Filius, é “obsequium”, mas este obséquio deve ser “rationi consentaneum” (D. 3009/1790). O que faz à revelação digna de ser crida é a credibilidade. A sua vez, o que constitui à fé em ato coerente com o ser racional do homem é a racionalidade. Credibilidade da revelação e racionalidade da fé são dois aspectos inseparáveis de uma mesma realidade: o primeiro expressa o caráter objetivo (revelação), e o segundo o subjetivo (fé), que fazem ao ato de fé coerente com o modo humano de conhecer e, por tanto, eticamente perfeito.

XIII.1.1. A credibilidade pelos sinais na Sagrada Escritura

Na Sagrada Escritura a ação de Deus faz sempre referência à história, bem porque tinha sido anunciada, ou porque representa uma confirmação de que é Deus o que atua, ou porque é

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proclamação dessa ação de Deus. Unida à ação vai inseparavelmente a palavra de Deus. Em quanto acontecimentos da história, essa ação e essa palavra são acessíveis a todo homem.

Novo Testamento: “Semeion” João: o signo, realidade visível que se impõe ao homem, indica sobretudo à pessoa de Jesus. Do único signo fundamental, que é Jesus, derivam e tomam forma os diversos signos (sêmeia, êrga) que são conseqüência do poder e da força de Cristo. Jesus multiplica os signos precisamente porque é o Messias (Jo 11, 47; 20, 30): Caná, a multiplicação dos pães, a cura do cego, a ressurreição de Lázaro, estão tão unidos à mensagem revelada que formam uma só coisa com ele. Essa mensagem afirma que Jesus é alimento (“Eu sou o pão vivo”, depois da multiplicação dos pães: Jo 6, 34), a Luz (“Eu sou a luz do mundo” (antes da cura do cego): Jo 9, 5), a Vida (“Eu sou a vida” (antes da ressurreição de Lázaro): Jo 11, 25). Em João, a diferença em isto dos Sinópticos, os signos preparam normalmente para a fé (Jo 2, 11; 6, 14; 11, 42). Nos Atos dos Apóstolos, “semeion” aparece só 3 vezes (4, 16-22; 8, 6; 8, 13) para designar milagres de Pedro ou de Felipe. Mais freqüente nos Atos é a �� �expressão que aparece com sentido positivo para caracterizar a retomada dos milagres do êxodo. Nos Sinópticos e em João, ao contrário, tem um sentido negativo (signos e prodígios feitos por falsos profetas ao final dos tempos: Mc 13, 22; ou a petição desmesurada de sinais: Jo 4, 48).

Distinção entre signo e milagre: No Antigo Testamento, os signos e prodígios se referem normalmente ao que chamamos milagres. Nos Sinópticos, há uma distinção entre ambos: Os milagres são designados como dynamis, atos de poder de Deus que atua por Jesus (Cfr. Mt 11, 21; Mc 6, 5-6). Este é o poder comunicado por Jesus a seus Apóstolos (Mc 6, 7; Lc 10, 19), e pelo Espírito Santo em Pentecostes (At 1, 8). Em João, os milagres são signos (semeia ) como já se viu, e também erga. As obras de Jesus são signos na medida em que são obras do Pai: “as palavras que eu vos digo não as digo por minha conta. O Pai que mora em mim é quem realiza suas obras” (Jo14, 10-11). E também: “as obras que faço em nome de meu Pai são as que dão testemunho de mim” (Jo 10, 25; 10, 37). Os signos aparecem na Sagrada Escritura dirigidos essencialmente à fé. “Estes foram escritos para que creiais que Jesus é o Messias, o Filho de Deus” (Jo 20, 31). Não dão a fé, mas têm um papel ativo no caminho que conduz para ela, e estão em função dela.

XIII.1.2. As apologias patrísticas Na Igreja primitiva, a credibilidade não se propõe somente como um modo de justificar racionalmente a fé, mas também de justificar e defender sua presença na sociedade, na civilização e na cultura greco-romana. Ante os ataques, a credibilidade adquire um matiz de defesa da fé. Foram precisamente esses ataques os que provocaram as apologias dos chamados Padres Apologistas do s. II e III.

XIII.1.3. A credibilidade no Magistério

Vaticano I: Cap. III de Dei Filius: A fé tem de ser “obsequium rationi consentaneum”. A racionalidade da fé se apóia na vontade de Deus de dar uns “argumentos externos de sua revelação, isto é, fatos divinos, e em primeiro lugar milagres e profecias que ao mostrar com toda clareza a onipotência e infinita sabedoria de Deus, são signos certíssimos e acomodados à inteligência de todos” (D. 3009/1790). Estes signos externos se unem aos auxílios internos do Espírito Santo. Vaticano II: O termo credibilidade está ausente em seus documentos. Segue duas direções: 1) faz alusão ao testemunho dos cristãos como um signo que credencia a revelação; 2) relaciona-se com o

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ensino sobre a revelação: sua finalidade não é justificar ante a razão a credibilidade da fé desde fora dessa mesma fé. O que agora interessa é apresentar a automanifestação de Deus como um mistério no que se encerra sua própria significatividade. o signo fundamental da revelação é o mesmo Cristo (“signum Christi”: LG15).

XIII.2. Noção teológica de credibilidade Credibilidade” é um termo abstrato para designar a relação entre a fé e as razões ou motivos que conduzem a ela.

“As obras” que dão um ponto de apoio ao homem em sua própria realidade para crer são as que fazem que a fé não seja um puro salto no vazio, fruto de uma mera decisão da vontade, mas algo que se faz contando com um fundamento no próprio modo de conhecer. A Credibilidade é a propriedade da revelação cristã pela que, através de signos verdadeiros, aparece credenciada como realidade adequada ao modo do conhecer humano, e por tanto digna de ser crida. Só assim a entrega da fé é razoável. A credibilidade da revelação não se atinge por meio da fé, mas é objeto de comprovação humana.

A credibilidade da revelação realiza uma tripla missão:

1) fazer compreender o sentido e o alcance da mensagem de Jesus; 2) dar crédito a essa mensagem como proveniente de Deus 3) provocar a resposta de fé.

XIII.3. Os sinais de credibilidade O mistério, seu entregar-se na história tem lugar através de acontecimentos e palavras que, ao ser recebidos pelo homem, constituem signos de credibilidade, porque levam em si mesmos a verdade do mistério salvador.

Natureza dos signos: definição clássica: id quod inducit in cognitionem alterius = aquilo que uma vez conhecido leva ao conhecimento de outro. Ele deve ser sensível, histórico, significante, universal. Para a credibilidade da revelação, os signos que importam são, sobretudo, os signos pessoais. A credibilidade não se dirige a um objeto, mas à pessoa que se expressou mediante esses objetos. É a pessoa, com todo seu mundo, que inclui a intimidade, oculta à observação direta e expressável só por signos, a que resulta credível, e de fato é credível para mim. Quando se trata de um testemunho e de uma testemunha, a credibilidade não só deve levar à aceitação da credibilidade da testemunha, mas também do testemunho.

XIV. A RACIONALIDADE DA FÉ (Nível subjetivo) Revelação e fé não se confundem, mas ao mesmo tempo se pode afirmar que não é possível uma fé sem revelação, nem uma revelação sem fé; igual ocorre com a racionalidade e a credibilidade.

XIV.1. Raízes da fé na psicologia humana Todo homem está chamado à comunhão com Deus, e este chamado não é algo acidental ou sobreposto a uma prévia realidade humana consistente em si mesma.

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As principais manifestações deste chamado: α - Abertura ao Divino No homem se dá uma abertura constitutiva, ontológica, a Deus, que pertence à estrutura fundamental de seu ser. Somente se o homem põe em ato essa abertura se realiza plenamente como homem. Essa abertura se manifesta existencialmente e de uma forma imediata na experiência de afirmação e limitação. Experiência de afirmação: aponta a uma plenitude. A afirmação do bem, da beleza, do a paz, etc., que o homem experimenta sempre de forma parcial e limitada, vai acompanhada de uma aspiração a estes mesmos bens mais plenos e duradouros. Experiência de limitação: da finitude e da debilidade que abrem à pergunta pela explicação das coisas. β - Condição religiosa do homem É conseqüência natural de sua abertura ao divino. O homem religioso não só está passivamente aberto a uma clara notícia de Deus, mas procura ativamente relacionar-se com essa divindade. γ - Busca da Felicidade A aspiração de todo homem à felicidade é um princípio antropológico radical: o homem quer ser feliz, e sente a necessidade de sê-lo particularmente quando é infeliz. Proposta Cristã: apresenta a identificação entre a Felicidade (fim último subjetivo) e Deus (fim último objetivo). A Busca da felicidade conduz à questão do sentido. δ - A Questão do Sentido Se pode abordar a dois níveis: A realidade como é não tem uma explicação suficiente, ou não é coerente, e inclusive pode parecer absurda. Que sentido tem ser homem? Se não existisse uma resposta ou resultasse insuficiente, não seria possível superar o absurdo e a falta de esperança. A fé cristã apresenta a Cristo como a resposta ao problema do sentido do homem. XIV.2. Racionalidade e Liberdade

A racionalidade e a liberdade da fé são aspectos mutuamente implicados. Por ser o ato da fé razoável, pode ser livre, e graças a que é livre, pode ser razoável. A disposição que prepara ao homem para a fé é a que lhe põe, com respeito ao Deus que lhe oferece sua comunhão, numa atitude de abertura, de submissão e de acolhida filiais. Através dela o homem se arrisca, expõe-se a ser atingido pela verdade e o amor de Deus. Um elemento fundamental da vida moral que prepara a aceitação da revelação por parte do sujeito é a disposição frente à conversão. Para que o homem capte a significatividade da revelação de Deus é preciso que tenha consciência viva de sua necessidade de salvação, acompanhada pela consciência concomitante de sua limitação e pecado. Somente se crê se quer, ainda que o querer não basta para chegar à fé. Essa ação da liberdade no querer começa no processo que conduz à certeza moral da revelação divina. XIV.3. Os signos de credibilidade Graças aos signos, o ato de fé cristão está afastado de todo voluntarismo ou fideísmo. Ao mesmo tempo, não existe uma percepção unívoca dos signos, já que sua força significativa depende também da percepção do sujeito que os percebe.

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XV. O MILAGRE A revelação de Deus, que tem também uma natureza pública e social, expressa-se também através de fatos, além das palavras, e também através dos fatos prodigiosos que são chamados milagres. XV.1.1.Sagrada Escritura

São João os designa como erga (Jo15, 24: obras que “ninguém fez”) porque são obras do Pai (Jo 5, 36; 9, 3), e ao mesmo tempo do Filho (Jo 5, 36). Sinóticos e São Paulo: o termo que se usa é “dynameis”. Erga e dynamis põem de manifesto o aspecto realista do milagre, que é uma obra transcendente, impossível às criaturas, pelo que supõem necessariamente uma intervenção especial da causalidade divina. XV.1.2. Nos Padres Do milagre se destaca seu caráter de signo bem como a função, que lhe é própria, de orientar ao homem para a revelação. Justino: o importante dos milagres é que são fatos que cumprem a promessa. Santo Agostinho: No milagre o que importa é seu valor de signo, e não tanto sua transcendência física. “Chama-se propriamente milagres e signos àquilo que, ainda que constituído da mesma matéria corporal, apresenta-se a nossos sentidos para transmitir-nos algo divino”. XV.1.3. A crítica ilustrada A resposta da apologética às críticas aos milagres insistiu sobretudo na possibilidade dos milagres e na “quebra das leis naturais” que os caracteriza, e que só Deus pode realizar. O resultado foi que o caráter de signo seguia no esquecimento, e a própria argumentação apologética corria o risco de confundir a inexplicabilidade científica de alguns fatos, que até então não se podiam desentranhar, com a impossibilidade metafísica. Esta noção apologética do milagre tem sobrevivido até nosso século. XV.1.4. Magistério

Concílio Vaticano I (D. 3009/1790): Os milagres são fatos divinos que ao assinalar com toda clareza (luculenter commoustrent) a onipotência e a ciência infinita de Deus, são signos certíssimos acomodados a todos da revelação divina. Vaticano II: Afirma que “os milagres de Jesus permitem comprovar (comprobant) que o Reino de Jesus já chegou à terra” (LG 5). Em Dei Verbum os milagres aparecem dentro da seqüência “palavras e obras, signos e milagres”. Em Dignitatis Humanae, finalmente se afirma que Cristo “apoiou e confirmou sua pregação com milagres para excitar e robustecer a fé dos ouvintes, mas não para exercer coação sobre eles”.

XV. 2. Essência do milagre: não está no puro fato insólito ou extraordinário, que o cientista pode julgar como “inexplicável”. Esta inexplicabilidade não é ponto de chegada, mas de partida, é uma pergunta pela realidade do que sucedeu. Só se percebe autenticamente o milagre quando o fenômeno inexplicável se mostra unido a sua significação religiosa e salvadora. Daí que para o discernimento dos milagres seja necessária uma determinada disposição do sujeito de forma que se capte como um mesmo fato o prodígio e sua significação.

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Definição: o milagre é um prodígio sensível, que tem lugar ao mesmo tempo na ordem cósmica e num contexto religioso, realizado por uma intervenção especial e gratuita do poder misericordioso de Deus de forma que se mostra seu caráter de sinal da presença e ação salvadora do mesmo Deus entre os homens.

XV.3. Teologia do milagre O milagre é parte integrante da natureza teológica da revelação: É uma das formas como tem lugar a auto-comunicação reveladora de Deus; sua natureza específica é a das obras que acompanham às palavras, e mediante os quais —obras e palavras— tem lugar a revelação. São sinais do poder misericordioso de Deus: são obras e atos de poder que pertencem à grande obra que Deus começou com a criação do mundo e acabou com a redenção. São sinais do reino messiânico que chegou aos homens (cfr. Mc 1, 35-39; Lc 7, 22; Mt 12, 28: “se expulso os demônio pelo Espírito de Deus, é que o Reino de Deus chegou a vós. São sinais da missão divina: o milagre garante a origem divina da missão e o enviado que a leva a cabo: “Ao ver os sinais de Jesus, muitos acreditaram em ele” ( Jo2, 23). São sinais da glória de Cristo: São João: As obras do Filho são os sinais que o homem precisa. São sinais da salvação: não só acompanham à palavra para confirmá-la, mas são revelação, mensagem, palavra; decifram e ao mesmo tempo representam a realidade do mistério. São sinais escatológicos: prefiguram as transformações que terão lugar ao final dos tempos nos homens e no universo. XVI.1. A PROFECIA Situa-se dentro de um tipo de milagres, o dos intelectuais, aqueles que se produzem “quando um homem mostra uns conhecimentos ou uma capacidade intelectual que superam todas as possibilidades do entendimento humano”. “Consiste na predição de um fato futuro, contingente e naturalmente imprevisível”.

Dois fatos se fazem necessários comprovar para afirmar a verdade histórica da profecia: 1) a clareza e especificidade da predição, que tem de ser concreta; e 2) a conformidade igualmente concreta do fato realizado com a predição clara e específica. XVI.2. O sentido bíblico de profecia: profeta (profetés, em grego; nabí, em hebreu) é o que fala com clareza em lugar de outro, o que fala em nome de Deus aos homens; chamado por Deus (Jr 1, 2; Is 6, 1) para cumprir uma missão que exige uma disponibilidade total. São homens profundamente inseridos na história, à que interpretam e na que anunciam ações de Deus em relação com a fidelidade do povo à Aliança. Fala-se de Jesus como um profeta (Mt 21, 45), e inclusive como o profeta (Jo7, 40). De fato, comportou-se e falou com o mesmo estilo dos profetas. Jesus era “mais do que um profeta”, “mais do que Jonas” (Mt 12, 41), “mais do que Salomão”, “mais do que o templo” (Mt 12, 42.16). Em relação com os profetas, a Jesus se pode aplicar o título de profeta só analogamente, já que, falava e atuava sempre em primeira pessoa, o qual é impensável num profeta. Pertence ao sentido bíblico o aspecto de anúncio de um fato. Não se trata só de fatos particulares, mas da tensão para o futuro que atravessa o Antigo Testamento, e que se acha ponteada de anúncios intimamente unidos ao núcleo do acontecimento de Cristo: a promessa feita a Abraão (Gn 22, 17s), vai-se concretizando em Judá (Gn 49, 10); as esperanças messiânicas se unem depois à casa de Davi; apesar de sua debilidade os profetas anunciaram que o portador da salvação messiânica procederia dela .

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A pessoa e a pregação de Jesus se apresentam como o cumprimento das profecias. Só depois de que a paixão e morte do Senhor pusesse de relevo a verdadeira imagem do Messias, e de que se tivessem afundado as falsas esperanças dos discípulos, estes atingiram um reto entendimento das escrituras (Lc 24, 32). Não se pode pretender que o fato do cumprimento seja aceito —como fato— por todos. Para que as profecias tenham valor de credenciamento, é necessária a fé em Cristo. A profecia é, por tanto, um argumento interno à fé: apóia-se, sobre a verdade de Jesus, sua sintonia com o Antigo Testamento, sua autoridade, etc.

XVII. CRISTO, SINAL PRIMORDIAL DE CREDIBILIDADE. O ACESSO HISTORICO A JESUS A revelação de Deus ao homem tem seu centro e sua plenitude em Jesus Cristo. Jesus é Senhor (1Cor 12, 3; Fil 2, 11). Nessa fórmula se acham contidos os dois elementos da fé cristã. a) um fato ou acontecimento da história: Jesus de Nazaré. b) desse homem se confessa uma propriedade misteriosa: é Senhor, isto é, um ser transcendente situado ao nível de Yahvé. Se em quanto acontecimento Jesus é acessível a todo homem, em quanto mistério só é acessível à fé. Tanto o acontecimento como o mistério fazem parte da única realidade de Cristo, e são inseparáveis.

XVII.1. Fontes do conhecimento histórico sobre Jesus

XVII.1.1. Testemunhos extra-bíblicos XVII.1.1.1. Fontes romanas

Encontram-se três importantes textos de outros tantos historiadores romanos. Plínio o jovem: enviado como legado do imperador Trajano a Bitinia. Enviou uma carta o ano 112 ao imperador na que lhe perguntava sobre a conduta que tinha que ter com os cristãos. O cristianismo —afirma— é uma grande crendice. O texto põe de manifesto a difusão da fé em Cristo a começos do s. II. Tácito: autor (para o ano 115) de um texto mais longo e explícito, e ao mesmo tempo anticristão. Referindo-se ao incêndio de Roma escreve: “para cortar de raiz este rumor, ponhamos como pretexto uns culpados: pessoas odiadas por seus delitos, e a quem o povo chamava cristãos. Este nome lhes vem de Cristo a quem, sob o império de Tibério, Pôncio Pilatos tinha entregado ao suplício”. O texto de Tácito é um testemunho de: 1) a morte de Jesus num suplício romano; 2) que o fato teve lugar durante o governo de Pôncio Pilatos na Judéia; 3) da origem judia do cristianismo. Suetônio:(ano 120) Na Vida de Nero menciona a perseguição dos cristãos, “tipo de gente partidários de uma crendice nova e perigosa” (Vida de Nero XVI). Na Vida de Cláudio se refere também à expulsão dos judeus de Roma (da que fala At 18, 2). XVII.1.1.2. Fontes judias Flávio Josefo: fala de Jesus em dois famosos textos, de sua obra Antiguidades judias. O primeiro deles menciona o nome de Jesus, com o apelativo de Cristo: Seu segundo texto, Testimonium Flavianum aparece no livro XVIII no que Josefo conta os incidentes que tiveram lugar na Palestina durante o governo do procurador Pilatos. Flávio Josefo menciona Jesus, como irmão de Santiago, e o distingue de outros personagens do

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mesmo nome, com o apelativo de Cristo; conhece sua atividade doutrinal e taumatúrgica; menciona a iniciativa das autoridades judias para sua condenação e morte de cruz, e a intervenção decisiva de Pilatos; conhece ademais a existência de um movimento de discípulos judeus e gregos que apelam a sua pessoa e que afirmam do que o viram com vida depois da morte. XVII.1.1.3. Os evangelhos apócrifos Desde finais do s. I e sobretudo durante o s. II se produziram nos diversos ambientes e regiões cristãos uns escritos chamados “apócrifos”, secretos ou não canônicos que tinham uma dupla finalidade: biográfica-popular e apologética, na contramão das acusações procedentes do ambiente judeu ou pagão, e dos grupos heréticos (ebionitas, docetas, gnósticos). O valor histórico destes escritos não supõe nenhuma contribuição em relação com os evangelhos canônicos.

XVII.1.2. Testemunhos do Novo Testamento Cartas de São Paulo: são os primeiros escritos do Novo Testamento. Afirmam que Jesus, judeu da estirpe de Davi, viveu na Palestina, teve “irmãos” entre o que distingue a Santiago, reuniu um grupo de discípulos conhecidos como “os doze”, entre os que sobressaem Pedro e João; a véspera de sua morte celebrou com seus discípulos “a Ceia do Senhor”, foi entregado à morte, foi crucificado, e ressuscitado apareceu a diversas testemunhas. O conteúdo essencial do anúncio de Paulo está expressado em 1Cor 15, 3-7. Evangelhos canônicos: enumeram-se com a fórmula “evangelho segundo Mateus, Marcos, Lucas e João”, oferecem a documentação mais ampla e mais antiga sobre Jesus, sua atividade e seu ensino na Palestina. É necessário contrastar duas propriedades essenciais a eles: a autenticidade do texto, e a historicidade: O problema maior que apresentam os evangelhos é o de estabelecer criticamente sua historicidade, de maneira que através deles possamos responder as perguntas que nos fazíamos anteriormente e outras por que temos acesso ao Jesus de Nazaré que é o Cristo.

XVII.2. O conhecimento histórico de Jesus através dos evangelhos A historicidade dos evangelhos foi unanimemente aceita até o s. XVIII. Ao final do s. XVIII começa a pôr-se em dúvida por alguns autores o caráter histórico dos evangelhos. As diversas posturas sobre a historicidade dos evangelhos ocupam todo um leque de possibilidades. Algumas são radicalmente negativas; outras afirmam decididamente a veracidade histórica dos evangelhos.

XVII.2.1. Sim a Jesus, não a Cristo H. S. Reimarus (1694-1768): Desenha a personalidade de Jesus como a de um messias político, que pregava a chegada de um reino terreno e a libertação dos judeus do jugo estrangeiro. Não fez milagres nem falou de sua morte, e muito menos de sua ressurreição. Seu projeto fracassou e foi crucificado. Aqui começa a ação dos discípulos que viram frustradas suas esperanças com a morte de Jesus. Roubaram o corpo dele, anunciaram sua ressurreição e o apresentaram como o Messias. Reimarus foi o primeiro que introduziu nos evangelhos a distinção crítica entre o que seria “o verdadeiro Jesus” e o Cristo , isto é a figura idealizada pelos discípulos. D. F. Strauss (1808-1874) publicou em 1835 sua Vida de Jesus (Das leben Jesu), e nela ataca tanto a explicação naturalista como a sobrenaturalista dos evangelhos. Para compreender os evangelhos é necessário ir à categoria do mito. Cada época, cada autor via a Jesus segundo os moldes de seu tempo, segundo os ideais sociais e humanitários de cada época. Em definitiva, denuncia a

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substituição das idéias dogmáticas pelos pressupostos sociais, filosóficos e teológicos dos diversos autores. XVII.2.2. Não a Jesus, sim a Cristo As investigações a respeito do Jesus histórico acabaram num ceticismo geral, o qual provocou uma reação em alguns círculos protestantes. Pôs-se o acento numa fé em Cristo independente da história de Jesus. M. Kaähles:(1892) “O pretendido Jesus da história e o Cristo real da Bíblia”: defende que o Jesus histórico do que se ocupam os escritores modernos oculta o Cristo real da Bíblia. O único Jesus autêntico é o Cristo da pregação e da fé, já que esta representa o único meio capaz de pôr-nos em comunicação com o Cristo vivo no presente da Igreja. Introduz a distinção entre o Jesus da história e o Cristo do Kerigma. É este último o que interessa, porque do Jesus histórico sabemos muito pouco. R. Bultmann (+1976): Os evangelhos são confissões de fé, que oferecem o Kerigma, isto é o Cristo pregado. Não lhes interessa a crônica da vida de Jesus, nem sua personalidade moral, nem sua ação. De Jesus não podemos saber praticamente nada. O Kerigma deve ser rigorosamente interpretado. A desmistificação não consiste em apartar o elemento mítico, mas em interpretá-lo e traduzi-lo à linguagem acessível à geração da técnica do s. XX.

XVII.2.3. Sim a Jesus o Cristo As reações provocadas por uma posição radical como a de Bultmann se deram em diversos âmbitos, especialmente em ambientes protestantes. Surgiu a oposição a uma separação, e inclusive a uma antítese entre Kerigma e história. Jesus não pode ser só um símbolo, mas é necessário que haja uma verdadeira continuidade entre o Jesus da história e o Cristo dos evangelhos. E. Kösemann: propôs numa conferência pronunciada em Marburgo em 1953 uma revisão dos postulados dos exegeta. Separando o Cristo do Kerigma do Jesus da história se corre o risco de transformar a Cristo mesmo em mito, isto é, uma ideologia sem figura nem corpo. Em resumo, é a mesma fé, a fé dos apóstolos, a que exige a certeza da identidade entre o Jesus terrestre e o Cristo glorificado. G. Bornkam, J. Jeremías: reivindicam a possibilidade e a necessidade de estudar e conhecer o Kerigma; não se pode atingir ao Jesus histórico fazendo sistematicamente abstração do Kerigma; e ao mesmo tempo, o anúncio cristão primitivo está indissoluvelmente unido a um acontecimento que teve lugar em nossa história. H. Schürmann: Católico. trata de estabelecer a continuidade entre as palavras de Jesus transmitidas depois da páscoa e sua origem pré-pascual. Há uma continuidade na fé dos discípulos na palavra e obra de Jesus antes e depois da Páscoa, o qual permite concluir na continuidade também da tradição de suas mesmas palavras.

Conclusão: 1. Não é legitimo uma investigação unilateral da história de Jesus, ou do Kerigma. 2. Há uma continuidade histórico-teológica entre o Jesus da história e o Cristo do Kerigma. 3. Há uma unidade inseparável entre o Jesus histórico e o Cristo glorificado, e esta unidade está no núcleo da cristologia. XVII.3. Historicidade dos evangelhos Do percurso pelas diversas posturas se desprendem várias observações elementares: a) os evangelhos não podem ser lidos como um livro moderno de história; são históricos porque contêm história, mas são algo mais do que livros de história.

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b) a história que contêm é fundamental para a fé e a existência cristãs. c) a apreciação histórica dos evangelhos depende também de fatores subjetivos —não históricos— dos leitores.

Aspectos gerais e comuns aos evangelhos: XVII.3.1. O conhecimento histórico A história não é uma ciência puramente objetiva, porque seus protagonistas são homens, o qual significa que os fatos históricos estão constituídos por um elemento positivo e por um aspecto interior. A pretensão de exatidão e de plenitude deve ser necessariamente moderada pelo fato de que a “fontes” do conhecimento permitem uma “reconstrução” histórica válida até certo ponto, mas que em todo caso exigem uma interpretação.

XVII.3.2. Princípios de interpretação XVII.3.2.1. O princípio dogmático Segundo este princípio, a verdade que as Sagradas Escrituras ensinam “firmemente, fielmente e sem mistura de erro” é a verdade que Deus por nossa salvação (nostrae salutis causa ) quis que for consignada nas sagradas letras” (DV 11). Pelo princípio dogmático não todos os fatos narrados nos evangelhos têm a mesma importância. Há fatos fundamentais para a salvação que fazem parte do núcleo central do cristianismo: que Jesus tenha morto e ressuscitado, tenha-se apresentado como o Cristo e o Filho de Deus, etc., e fatos narrados nos evangelhos que são acidentais, ou que estão presentes no texto, mas não incidem na forma como a salvação tem lugar. XVII.3.2.2. O princípio literário Permite compreender o processo de elaboração dos evangelhos e da natureza do gênero “evangelho”. Os evangelhos passaram até chegar a nós por três estados (traditiongeschichte): a) Evangelistas: Os textos que possuímos são composições teológicas com a intenção particular de cada evangelista (Redaktiongeschichte); b) eles procedem de um estrato anterior, o da comunidade pós-pascal na que se anuncia a Jesus ressuscitado como Senhor e Salvador (Formgeschichte); c) este a sua vez procede da fonte original que é a pregação e a vida de Jesus de Nazaré. Os evangelhos são um gênero literário particular. Características: 1) são proclamação do acontecimento primeiro da história humana, que é a intervenção decisiva de Deus em Jesus Cristo; 2) são narração de acontecimentos, e confissão de fé sobre seu significado salvador; 3) vinculam-se a uma tradição já formada sobre o acontecimento Jesus à luz da Páscoa, do Antigo Testamento e de vida da Igreja nascente; 4) estruturam-se em forma de narração histórica, e contêm e transmitem história, mas não são biografias; 5) têm em mente as comunidades às que vão dirigidos, com seus problemas e necessidades concretas. XVII.3.2.3. O princípio histórico As três fases da redação dos evangelhos correspondem aos três estratos históricos fundamentais: Jesus, a comunidade, os evangelistas. Em quanto respondem a três momentos qualitativamente

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diferentes cada um deles é identificável a partir de suas próprias características, mas nenhum se pode conceber como uma realidade isolada ou independente dos outros. O passo de um estrato a outro se apóia numa correta utilização dos métodos da história “da redação” e “história das formas”, com os quais se descobre a continuidade literária, possível pela continuidade histórica original.

XVII.4. Critérios de autenticidade histórica XVII.4.1. Critérios fundamentais Aqueles “que têm um valor próprio, em si mesmos, e que portanto autorizam um juízo verdadeiro de autenticidade histórica” XVII.4.1.1. Critério de testemunho múltiplo “Pode considerar-se como autêntico um dado evangélico solidamente atestado em todas as fontes dos evangelhos (...) e nos outros escritos do Novo Testamento”. A certeza se baseia na convergência e independência das fontes. XVII.4.1.2. Critério de descontinuidade “Pode considerar-se como autêntico um dado que não pode reduzir-se às concepções do judaísmo ou às concepções da Igreja primitiva” . Não seria lícito usar de modo exclusivo este critério e negar a historicidade de tudo o que nos evangelhos está em continuidade com o judaísmo e a Igreja primitiva. Seria fazer de Cristo um ser intemporal. XVII.4.1.3. Critério de conformidade (de continuidade ou de coerência) “Pode-se considerar como autêntico um dito ou um gesto de Jesus em estreita conformidade, não só com a época e o ambiente dele (ambiente lingüístico, geográfico, social, político, religioso), mas também e sobretudo intimamente coerente com o ensino essencial, com o coração da mensagem de Jesus. Com este critério se justifica a historicidade das parábolas do reino, as bem-aventuranças, a oração do Pai-Nosso.

O critério de conformidade permite situar a Jesus em seu tempo, e na cultura e tradições de sua época. Ao mesmo tempo, o critério de descontinuidade permite captar sua originalidade e singularidade. Ambos critérios não se podem isolar como se se tratasse de dois absolutos, mas devem iluminar-se mutuamente. XVII.4.1.4. Critério de explicação necessária (Latourelle) “Se, ante um conjunto considerável de fatos ou de dados que exigem uma explicação coerente e suficiente se oferece uma explicação que ilumina e agrupa harmonicamente todos esses elementos, podemos concluir que estamos em presença de um dado autêntico (fato, gesto, atitude, palavra de Jesus”.

XVII.4.2. Critério secundário ou derivado É o resultado da análise e aplicação dos critérios fundamentais; é o que se pode chamar o critério de Jesus, não referido tanto ao estilo literário quanto àquilo que caracteriza a sua personalidade e permite identificá-lo como fonte de expressões ou fatos. XVII.4.3. Critérios mistos Aqueles nos que os indícios literários entram em composição com um ou com vários dos critérios históricos. XVII.4.3.1. Inteligibilidade interna do relato

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“Quando um dado evangélico está perfeitamente inserido em seu contexto imediato ou mediato e é ademais perfeitamente coerente em sua estrutura interna, pode-se pensar do que se trata de um dado autêntico”. Por si mesmo não constitui um critério de autenticidade histórica. Para sê-lo, precisa apoiar-se nos critérios fundamentais. XVII.4.3.2. Interpretação diversa e acordo de fundo A interpretação diversa de um ensino ou de um milagre corresponde à atividade de redação do texto. As diferentes interpretações que se dão, segundo a peculiaridade de cada evangelista, atestam a riqueza da única mensagem que nos é revelada. Assim sucede, entre outros, com a parábola do banquete, interpretada de diversa forma por Lucas (Lc 14, 16-24) e por Mateus (Mt 22, 1-14). Dá-se um acordo geral no fato, mas diversidade de interpretações; estas se devem à riqueza mesma do acontecimento. XVIII. CRISTO, SINAL PRIMORDIAL DE CREDIBILIDADE (II) A CONSCIÊNCIA DE JESUS: MESIAS E SENHOR

A consciência que Jesus teve de sua pessoa e de sua missão é uma questão fundamental para a credibilidade da fé nele. Só se Jesus sabia quem era pôde dar a suas palavras e a suas obras um sentido que é o que dá sentido ao consentimento e à adesão da fé. Para que a fé seja credível, é necessário que tenha uma continuidade entre a consciência que Jesus tinha de si mesmo e o significado da fé que o homem aceita e à que se entrega. Em relação à consciência que Jesus tinha de si mesmo se distinguem dois níveis: A consciência de Messias: se Jesus se considerou a si mesmo como o Messias anunciado pelo Antigo Testamento. A consciência divina: (filiação divina) se essa consciência messiânica incluía não só a eleição de Jesus por Deus como Messias, mas também uma autêntica filiação divina.

Estudamos isto pela Cristologia implícita: aqueles aspectos que sem constituir afirmações expressas sobre a consciência de Jesus, põem-na indiretamente de manifesto. É possível a partir de dados que conduzem a uma consciência concomitante de quem era (aceitação de títulos cristológicos e o modo de entender sua própria morte), e a consciência que está na origem do atuar e que é singularmente fonte de autoridade e de poder.

XVIII.1. Os títulos cristológicos XVIII.1.1. Messias A figura do Messias (Masiah, Cristo, ungido) é o núcleo do messianismo e o eixo da Bíblia. A expectação messiânica consiste na esperança de um futuro glorioso no que se instaurará o reino de Deus.

A) Messianismo real: Conformado pelo conjunto de crenças em torno de David e as promessas que recebeu; tudo isso no marco da aliança. Anuncia-se um rei ideal dos tempos futuros que já a partir de seu nascimento tem o império sobre seus ombros (Is 9, 6). B) Messianismo profético: No tempo do desterro aparece a figura de um Messias futuro, mas diferente do Messias rei. Agora a figura do Messias é a do Servo de Yahwéh (Is 42, 1-4. 5-7; 49, 1-6. 7-9; 50, 4-9; 52,13 - 53,12), C) Messianismo sacerdotal: Depois do exílio se vê revalorizada a figura do sacerdote por sua relação com o templo e com o culto. O Messias é anunciado sob um aspecto também sacerdotal

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(cfr. Zac 6, 11-13: O Coroamento do Sumo Sacerdote). No tempo de Jesus prevalecia sobretudo o modelo político: um rei político e nacional que seria “Filho de Davi” e “Rei de Israel” Isto explica as reservas de Jesus ante o título de Messias. Só em quatro lugares aparece em boca de Jesus (Mc 9, 41; Mt 16, 20-21; 23, 10; Jo17, 3). Jesus impõe silêncio quando se rompe o segredo de sua verdadeira identidade (Mc 1, 34). A explicação mais simples do segredo é a que apresentam os evangelhos: Em tanto a gente atribuía um sentido político ao Messias, que seria quem liberaria a Israel do jugo romano (Lc 24, 21). Jesus evitou positivamente o ser enquadrado nesse esquema. É sobretudo na hora da Paixão, quando a cercania da morte eliminava todo perigo de confusão quando ele proclama solenemente seu messianismo (Mc 14,61-62). Sobre essa consciência messiânica de Jesus se apoiou a Igreja primitiva depois da Páscoa, e à luz da ressurreição, proclamou que Jesus é o “Cristo”, até o ponto de que “Cristo” se converterá como um segundo nome de Jesus (At 2, 36). XVIII.1.2. Filho do Homem O título “Filho do Homem” é o preferido de Jesus, como o mostra o contraste com o de Messias “” (69 vezes nos sinópticos). Baseia-se no texto de Dn 7, 13-14. O que parece fora de toda dúvida é o fato de que Jesus usou realmente o título de Filho “do Homem” para referir-se a si mesmo e a sua missão. O título não era usado pela gente para referir-se ao Messias já que resultava enigmático: “Quem é esse filho do homem?”. 1) Textos relativos à vida terrena de Jesus que aparece com mais precariedade do que as raposas e os passarinhos (Mt 8, 20). E ao mesmo tempo dotado de poderes extraordinários como o de perdoar os pecados (Mc 2, 10), ou de ser superior à lei divina do Sábado (Mc 2, 28). 2) O segundo grupo de textos se refere ao destino final de Jesus: aqueles nos que ele anuncia a humilhação, o sofrimento e a cruz (Mc 8, 31; 9, 31; 10, 33ss). Aparecem fundidas as figuras do Filho do homem e a do Servo de Yahvé. 3) O terceiro grupo de textos inclui as expressões apocalípticas que falam de um filho do homem que virá sobre as nuvens do céu ao final dos tempos. Com grande poder e glória (Mc 13, 26 par; 14, 62 etc). Por que utilizou Jesus o título de Filho do Homem? Porque Filho do Homem tinha sobre Messias a vantagem de não ir acompanhado de uma significação política e nacional e porque nas referências evangélicas o Filho do Homem aparece uma espécie de tensão entre presente e futuro, entre a pobreza e humilhação por um lado, e o poder e a glória, pelo outro.

XVIII.1.3. Filho de Deus No Antigo Testamento, filhos de Deus são os anjos (Sl 29), o povo de Israel (Ex 4, 22), o rei (Sl 2,7) e os justos (Sl 73, 15). Trata-se de uma filiação moral, baseada na aliança, eleição e adoção, já que o rígido monoteísmo hebreu exclui qualquer derivação natural ou física. Fé cristã: confessa que Jesus é, não só Cristo, mas também “Filho de Deus” (Mc 1, 1) não só em sentido puramente adotivo como o judaísmo, nem em sentido mitológico como o paganismo. É o Filho originado do Pai, “filho próprio” (Rm 8, 3), o “Unigênito” (Jo1, 14). Sinópticos: aparece Jesus proclamando explicitamente sua filiação divina e, no entanto a consciência de sê-lo invade todo o evangelho. Jesus fala de Deus como de seu Pai, e dá claramente a entender que seu “ser filho” do Pai, não é assimilável a outras formas de filiação, mas é única. O uso do termo “abba: para referir-se a Deus, bem como a referência a meu “Pai”. (Mt 7, 21; 25, 34), diferente de Vosso “Pai: (Jo 20, 17), e sobretudo as referências contínuas a si mesmo como o “Filho”

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mostram com bastante clareza a especial filiação de Jesus respeito a Deus. O título de filho “de Deus” não tem, de todos modos, um significado unívoco nos evangelhos. Mas há algumas passagens nas que Jesus se chama a si mesmo Filho num sentido único e transcendente: Conclusão: pode-se afirmar com certeza que nos evangelhos Jesus mostra em sentido único e transcendente ter uma consciência de sua origem em Deus e de sua natureza de Filho do Pai. É a Igreja a que a partir desta cristologia implícita o proclama em sua confissão de fé como Filho de Deus, Filho consubstancial ao Pai.

XVIII.2. A autoridade de Jesus Em suas palavras e em suas obras reclamou para si e exerceu uma autoridade que nasce da consciência de um ser que está por em cima, na origem dos valores e das realidades mais próximas ao Deus revelado no Antigo Testamento: A lei era para os judeus o dom supremo de Deus, ninguém podia atrever-se a tocá-la ou a reformá-la. A atitude de Jesus ante a lei é de fidelidade e de liberdade.Vai além e corrige a lei mosaica. A lei não é eliminada (Mt 5,17), mas é radicalizada numa atitude de sinceridade e aperfeiçoada. Esta atitude ante a lei é o motivo que levaria aos dirigentes do povo a proceder contra Ele. XVIII.2.2. Jesus e o reino O reino se apresenta com características de juízo inexorável de Deus sobre o mundo e será precedido de sinais terríveis. Na pregação de Jesus o reino é tema central e fundamental. Contrasta com os ambientes judeus contemporâneos de Jesus nos que o reino não aparecia muito. O sentido que lhe dá Jesus ao reino é significativo: chegou já (Mt 12,28), e não vem precedido de grandes signos, mas de modo escondido, sem deixar-se sentir (Lc 17,20). O mais importante é a identificação de Jesus com o reino de Deus; identifica a causa do reino de Deus com a sua própria. Não se limita a indicar o caminho para ir a Deus, mas que exige que se lhe acolha a ele em pessoa (Mt 10,32-33). É o seguimento de Jesus, isto é, colocar-lhe no centro da própria existência. Ele é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6).

XVIII.2.3. A Autoridade de Jesus Em diversos lugares e de diferentes formas aparece nos evangelhos Jesus falando e atuando com uma autoridade mais do que humana. Não utiliza a fórmula dos profetas (“assim fala Yahvé”) mas a substitui pela própria força de sua palavra: “em verdade, em verdade vos digo...”. Outra característica é a utilização do “eu enfático” quando toma a potestade de reformar a lei do Antigo Testamento; “ouvistes que se vos disse... mas eu vos digo...” (Mt 5,21ss.). Declara imperfeita à Lei e a modifica com uma autoridade semelhante à de Deus. A mesma autoridade mostrada ao ensinar, põe-na em exercício ao atuar, concretamente ao realizar milagres; cura em nome próprio, não no nome de Yahvé como no Antigo Testamento. Outra ocasião na que utiliza esta autoridade é na purificação do Templo (Mc 11,15). A forma externa de pretensão de autoridade com a que se apresenta Jesus vem dada pela expressão “Eu sou” que no Antigo Testamento é exclusiva da transcendência divina. Textos: “Porque se não crerdes que eu sou morrereis em vossos pecados” (Jo 8,24); “quando levanteis ao Filho do Homem, então conhecereis que Eu sou” (Jo 13,19); “antes que Abraão existisse, eu sou” (Jo 8,58); “desde agora vo-lo digo antes que suceda, para que quando suceda creiais que eu sou” (Jo 13,19). XVIII.3. Os milagres de Jesus

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Critérios de agrupação dos relatos de milagres: As diversas tradições que tem um reflexo nos diversos relatos: há um único caso no que a tradição é comum aos quatro evangelhos: a multiplicação dos pães (Mc 6, 35-44 e paralelos). Outros 12 relatos pertencem a uma tríplice tradição e 11 aparecem num só evangelho. Tem-se em conta o gênero literário: exorcismos (Mt 8, 28-34); curas, nos que o enfermo é chamado a crer (Bartimeo em Mc 10, 52), milagres de legitimação, que Jesus faz para justificar seu comportamento (Lc 14, 1-6); milagres-dom, quando o beneficiário é a multidão (a multiplicação dos pães Mc 6, 35-44), ressurreições (o jovem de Naim, a filha de Jairo, Lázaro) XVIII.3.1. Os milagres nos evangelhos Os relatos de milagres vão unidos às diversas perspectivas dos evangelistas

Marcos: destaca a estreita relação entre os milagres, como atos de poder (dynámeis) de Jesus, e sua palavra: o primeiro exorcismo (Mc 1, 21-28) está encaixado entre dois versículos que falam do ensinamento de Jesus. Marcos sublinha o vínculo entre milagre e reino. Finalmente, os milagres querem responder à pergunta de quem é Jesus?

Mateus: domina a perspectiva catequética. Por isso abrevia a parte narrativa e amplia os diálogos, esquematiza o relato para que a atenção se concentre em Jesus (a cura do enfermo de Gadara Mt 8, 28). Os milagres são apresentados como o cumprimento das Escrituras (Mt 8, 16-17). Mateus sublinha abundantemente a importância eclesial dos milagres.

Lucas: os milagres se enquadram na perspectiva ampla da história da salvação, e sua finalidade é pôr de relevo a identidade de Jesus como o Salvador. Utiliza com freqüência o verbo “salvar” com o que se alude a uma característica que vai bem mais lá da esfera física (Cfr 7, 50; 17, 19; At 10, 38).

João: os milagres foram feitos para confirmar a fé dos leitores (20, 30). Os milagres são “sinais” da glória do Filho que começa a manifestar-se em Caná de Galiléia (2, 11). A relação milagres-reino de Deus dos sinópticos se converte em relação entre os sinais-obras de poder de Jesus com a vida eterna. Os milagres de Jesus em quanto sinais da revelação definitiva, são uma chamada à decisão da fé. XVIII.3.2. Historicidade dos milagres A historicidade dos milagres de Jesus segue o mesmo processo que a veracidade que os evangelhos em general. Os critérios de historicidade reforçam e precisam a veracidade histórica dos relatos: Critério de depoimento múltiplo: a atividade taumatúrgica de Jesus está amplamente atestada nas fontes: no evangelho de Marcos, em At 2,22 e 10, 38-39, e nos evangelhos apócrifos que ainda que com enfeites e exageros atestam a atividade taumatúrgica de Jesús, e no Talmud Babilônico (s. V dC). Critério de descontinuidade: os milagres de Jesus estão em neta descontinuidade com os dos profetas do Antigo Testamento e com os dos apóstolos. Só Jesus realiza milagres em seu próprio nome (Mc 1, 41; 2, 11; 5, 41; etc). Critério de continuidade: Os milagres estão em sintonia com a época em que viveu Jesus, atravessada de fortes tensões messiânicas, e também com a instauração do Reino de Deus, pois são seu sinal e começo.

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“Estilo de Jesus" que constitui um critério derivado: caracteriza sua forma de realizar os milagres: singeleza, sobriedade e autoridade. Evita a espetaculosidade e o recurso a procedimentos estranhos ou mágicos; não procura seu próprio interesse ou sucesso; não cria uma atmosfera especial, mas tudo sucede com a maior naturalidade, ainda que sempre num contexto religioso. XVIII.4 Jesus diante da morte Motivos pelos que interessa examinar a atitude de Jesus ante sua própria morte: Porque a morte violenta e humilhante de Jesus parece ser um desmentido radical a todos os elementos e sinais que pareciam levar a descobrir nele uma especial relação com Deus e uma consciência messiânica e divina. Frente a estes elementos a morte de Jesus se apresenta como um contra-sinal Também com sua morte leva a sua plenitude a revelação e a confirma com o testemunho divino (DV 4).

XVIII.4.1. Historicidade da morte em cruz de Jesus A morte em cruz de Jesus é um dado histórico incontrovertível, afirmada por Tácito, Flávio Josefo, Talmud Babilônico como pelos Evangelhos. Sabe-se que os relatos da paixão e da ressurreição constituíram o núcleo original da formação dos evangelhos; são a parte mais antiga da tradição e ao mesmo tempo a parte proporcionalmente mais desenvolvida. O acontecimento da Cruz está atestado pelo critério de testemunho múltiplo e de descontinuidade: um fato tão infamante como o da cruz chocava violentamente contra o ambiente judeu e romano.

XVIII.4.2. Por que foi Jesus condenado Reimarus: apresenta a morte de Jesus como o resultado da ação política que ele mesmo teria promovido. Para apoiar esta interpretação precisa necessariamente reinterpretar os textos dos evangelhos nos que aparece claramente que Jesus recusou explicitamente a tentativa de fazer-lhe rei (Jo 6, 15), a tentação de possuir o mundo como um reino (Mt4, 8), ou a luta armada para a realização do reino (Mt 26, 51-53). Jesus morreu na cruz por duas classes de motivos que se correspondem com os dois processos a que foi submetido, o processo judeu e o processo romano: Processo judeu (Mc 14, 53-65): as acusações apresentadas contra Jesus são somente de ordem religioso: sua identidade messiânica e divina, e a questão da destruição do Templo. As razões da aversão a Jesus por parte dos sumos sacerdotes e dos escribas de Jerusalém vinha motivada, não por razões políticas, mas porque com seu ensino punha em discussão as bases da ortodoxia judia. A acusação mais grave contra ele era o ter-se atribuído uma relação tão singular com Deus que parecia uma equiparação, o qual resultava inimaginável para os zelosos guardiões do monoteísmo judeu (Jo 5, 18) O tribunal judeu não podia, em tempos de Jesus executar a pena de morte. Para isso precisava a aliança com o governador de Roma. Processo romano: a acusação que se apresenta contra Jesus ao procurador é a de ser um dos pretendentes messiânicos que promoviam a luta de libertação contra os romanos (Lc 23, 2). Neste contexto é no que se cria a ambígua expressão fincada na Cruz: “Jesus Nazareno, rei dos judeus” (Jo 19, 19).

XVIII.4.3. A previsão de Jesus sobre sua própria morte Contém-se nas predições da paixão, mas é uma conclusão do itinerário de Jesus atestado com dados incontrovertíveis.

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Jesus não podia estar alheio ao possível destino que lhe aguardava: a espera do martírio aparece numas palavras suas já nas “controvérsias Galiléias” (Mc 2, 19-20). Neste e em outros textos, a ausência de alusão à ressurreição elimina a suspeita de que se trate de uma obra da comunidade. Sinópticos: aparecem três anúncios da morte e da ressurreição (Mc 8, 31; 9, 31; 10, 33-34 e par). Ainda que contêm elementos redacionais, o núcleo de fundo, isto é, o anúncio por parte de Jesus de sua paixão, morte e ressurreição se mantém.

XVIII.4.4. O sentido que Jesus deu a sua própria morte

Fé cristã: a obediência e a auto-doação de Jesus são o leito pelo que chega aos homens a ação salvadora de Deus. Trata-se agora de ver se Jesus compreendeu e aceitou realmente sua morte como uma entrega pela salvação dos homens. O conjunto da vida de Jesus: Desde o primeiro momento aparece claramente a cercania e a solidariedade de Jesus com os pecadores. O batismo recebido de João é a porta a um chamamento aos pecadores (Mc 2, 7). Jesus veio procurar o que estava perdido” (Lc 19, 10), e aí se encontra toda a humanidade sem exceção, a cujo serviço se põe ele mesmo. Tem aqui seu lugar o texto chamado “do resgate”, de Mc 10, 43-45. Aparece em primeiro lugar a idéia do serviço que corresponde plenamente à vida de Jesus.

Passagens claras: as palavras de Jesus sobre o esposo que lhes “será tirado” (Mc 2, 19-20) e do pastor golpeado (Mc 14, 27), o pastor dá a vida pelas ovelhas (Jo 10, 11. 15). Conclui Lambiasi: Jesus se identificou com a misteriosa figura do «servo» do que fala Is 52, 13 - 53, 12 .

A última Ceia: tem lugar a confirmação desta vontade de auto-doação de Jesus. Vincula sua morte iminente com a vinda do reino de Deus (Mc 14, 25). Viu sua morte como um acontecimento salvador porque a interpretou como a chegada do reino. XIX. A RESSURREIÇÃO DE JESUS A ressurreição de Jesus é o núcleo da mensagem dos apóstolos depois da Páscoa. Desde o começo da pregação de Pedro: “Deus lhe ressuscitou de entre os mortos e nós somos testemunhas disso” afirma Pedro (At 3, 15). Também o conteúdo da pregação de Paulo: “Deus lhe ressuscitou de entre os mortos. A morte de Jesus pelos pecados e a ressurreição é o núcleo do kerigma que Pablo transmite (1Cor 15, 3-8).

Acreditar em Jesus Cristo, em conseqüência, significa crer, junto com a encarnação e a cruz, em sua ressurreição de entre os mortos. A ressurreição constitui um mistério da fé, aquele que dá sentido à morte porque expressa o triunfo de Jesus sobre a morte e o pecado. Tem então um significado salvador. A ressurreição de Cristo é também signo de sua missão divina e garantia de nossa fé nele. Quer isto dizer que a ressurreição não é somente um mistério, mas também um acontecimento que tem uma dimensão histórica. Não é a fé a que gera a ressurreição, mas ao contrário, a ressurreição a que serve de apoio à fé.

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XIX.2. O testemunho apostólico “Cristo ressuscitou” (Rm 6,9): essa é a afirmação mais antiga que se encontra disseminada pelo Novo Testamento. O texto de 1Cor 15, 3-5 oferece uma síntese: “Transmiti-vos o que a minha vez recebi: que Cristo morreu por nossos pecados segundo as Escrituras; que foi sepultado; que ressuscitou ao terceiro dia segundo as Escrituras; que se apareceu a Cefas e depois aos Doze...” Mostra uma intenção de querer enumerar os fatos fundamentais do kerigma e, ao mesmo tempo, a identidade perfeita entre o Jesus morto e sepultado e o Cristo ressuscitado e aparecido. Este anúncio constitui a “boa notícia” sobre a que se fundamenta a fé. O texto se encontra num contexto especial: o interesse de Pablo de sublinhar mais a ressurreição dos fiéis do que a de Cristo, à que aqui se refere como um fato muito bem conhecido sobre o que não é necessário insistir.

Sinópticos e São João: Não se trata de relatos da ressurreição, da que não há testemunhas, mas dos fatos ocorridos antes e depois da ressurreição, atestados pelos que os viveram. Antes da ressurreição o fato fundamental é que Jesus morreu realmente, foi sepultado. Depois da ressurreição, os fatos concernem fundamentalmente ao sepulcro vazio e às aparições de Jesus a seus discípulos. Cada um conserva sua identidade própria: Marcos: o que importa é o aspecto de mistério; Mateus: o dado apologético aparece sublinhado. Lucas faz questão da função das testemunhas; João põe o acento no ver dos discípulos; Paulo oferece o testemunho mais antigo da profissão de fé. XIX.3. O sepulcro vazio e as aparições Constituíram um argumento ou “prova” da apologética sobre a ressurreição de Jesus. Deve-se reconhecer que o sepulcro vazio e as aparições são dois fatos que guardam uma relação muito estreita com a fé. Não produzem a fé na ressurreição, mas são o selo que atesta seu caráter de acontecimento real. O fato do sepulcro vazio não é em si mesmo prova irrefutável de nada; mas seria um argumento que atiraria por terra a realidade cósmica da ressurreição o que o sepulcro seguisse ocupado pelo cadáver de Jesus.

As aparições: umas aparições a testemunhas “escolhidas”, “aos que ele quis” poderiam ser interpretadas, em princípio, como acontecimentos interiores ou subjetivos. Mas se ninguém tivesse tido a experiência de ter visto a Jesus ressuscitado, não seria possível falar da ressurreição.

O sepulcro vazio e as aparições são rastros, sinais na ordem fenomenal do sinal que é a ressurreição de Jesus, e entre eles há uma relação muito estreita. Ambos se mostram como os efeitos da ressurreição de Jesus, as comprovações mais próximas ao fato da ressurreição.

XIX.3.1. As aparições Dos relatos de aparições se concluem três dados essenciais: (1) O que se aparece não é um fantasma, mas os encontros dos discípulos com ele têm lugar num quadro histórico de espaço e tempo concretos. (2) O Ressuscitado é o mesmo Jesus, o Mestre, com quem tinham convivido anteriormente; mas testemunha um novo e diferente modo de vida: faz-se ver quando quer e àqueles que quer e não está submetido como anteriormente às leis físicas. (3) Dá-se por sabido que os discípulos tiveram uma experiência real e física das aparições: o ter visto a Jesus ressuscitado lhes legitima para a missão de ser testemunhas da ressurreição (cfr. 1Cor 9, 1).

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XIX.4. Em que sentido é histórica a ressurreição? Teses diferentes: (1) A realidade da ressurreição significa que esta não é só o significado da morte. Cristo vive em toda sua realidade pessoal, não só na alma; esse é o sentido da ressurreição corporal. O testemunho dos discípulos sobre o Senhor não se baseia numa alucinação, mas num real “ter visto”. (2)A ressurreição não significa uma volta de Jesus à vida terrena, “histórica”. Nunca é descrita no Novo Testamento, porque é um acontecimento que tem lugar além do que pode ser expressado com categorias puramente históricas ou unicamente espaço-temporais. O fato mesmo da ressurreição escapa à verificação histórica, já que não teve testemunhas. Portanto, se a ressurreição de Jesus não é uma volta à vida terrena também não é uma continuação desta vida: retorna à vida, mas à vida nova, definitiva, à vida de Deus. Fica implicitamente respondida a questão do caráter histórico da ressurreição de Jesus: sua ressurreição é histórica posto que é real, isto é, ressurreição corporal, com manifestações por tanto no âmbito da verificação histórica. Neste sentido adquire sua significação o sepulcro vazio, como critério negativo, e as aparições de Jesus aos discípulos, que tiveram lugar numas coordenadas histórica concretas. Ao mesmo tempo, o fato da ressurreição supera o âmbito da história na medida em que não é uma volta à vida anterior, mas à vida gloriosa que não está sujeita a controle histórico porque se situa fora do espaço e do tempo. XX. A IGREJA DE CRISTO, SINAL DE CREDIBILIDADE O principal signo de credibilidade é Cristo mesmo no que se mostra a auto-doação do Pai no Espírito; ao lado dele não pode ter outro signo, qualquer que seja, está subordinado a Cristo, recebe dele sentido. A Igreja é signo de credibilidade quanto Igreja de Cristo, quanto expressa e realiza a ação de Cristo, e quanto à vida de Cristo e do Espírito adquire nela uma dimensão social, exterior e pública. Não se pode ter a Cristo nem sua força significadora se não é na Igreja. Cristo é a origem e fonte da Igreja; a Igreja é a que permite aceder a Cristo quanto Cristo pregado na Igreja. Os signos fundamentais Cristo e a Igreja, se concentrar num só signo, a saber, Cristo-em-a-Igreja. A Teologia Fundamental se centra na Igreja como instância que dá acesso e faz credível o conhecimento pela fé desse mistério. XX.1. A “Eclesiologia Fundamental”: História da questão A proposta teológica fundamental sobre a Igreja se origina no século XVI, quando começa a pôr-se em dúvida a fidelidade da Igreja desse momento a Cristo e se propugna uma ruptura entre a Igreja de Roma e Cristo. A relação entre a Igreja e Cristo era um postulado sobre o que não era necessário insistir, o qual não impedia que se reclamasse a reforma da Igreja (“Ecclesia semper reformanda”).

Doutrina dos Padres: desenvolve vários aspectos da realidade da Igreja: sua unidade (Inácio de Antioquia), a relação da unidade com a Eucaristia (Cirilo de Alexandria), o Corpo Místico de Cristo (Agostinho), a relação com a Trindade (Hilário). Idade Média: dá-se a relação da Igreja com o poder, que teve como resultado a sacralização do poder que outorgava à Igreja uma capacidade de arbítrio que equivalia à soberania indireta. Teve como conseqüência a secularização do papado, e umas relações com o poder temporário que contribuíam a forjar uma visão temporária e política da autoridade da Igreja. Reforma protestante: não questionou a relação original entre Cristo e a Igreja, mas a fidelidade da Igreja histórica ao desígnio de Cristo. A Igreja de Roma não é já a Igreja de Cristo porque se

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corrompeu. Tenta-se uma reforma com uma proposta eclesiológica implícita: negava-se o caráter visível e institucional da Igreja, a hierarquia de origem sacramental, o sacerdócio. A Confessio Augustana se refere à Igreja como “congregatio sanctorum, in qua evangelum pure docetur et recte administrantur sacramenta”.

Eclesiología católica: reagiu tomando uma tintura a (a Igreja católica é a única verdadeira). Roberto Belarmino apresenta à Igreja fazendo questão de seu caráter visível e hierárquico. Argumentou-se qual era a verdadeira Igreja de Cristo: nasceram os tratados De Vera Ecclesia Christi objeto da demonstratio catholica. O modo de demonstrar se baseava na via historica e na via notarum: Via Historica: apresentava à Igreja como uma sociedade na que a hierarquia era o essencial. Acabava desembocando numa via primatus: resultava essencial estabelecer historicamente a vontade de Jesus de instituir a Pedro como cabeça visível da Igreja, com primado de jurisdição, e demonstrar que o papa é o sucessor de Pedro. Via Notarum: S. XVI. Precisou-se o conceito e o número, ficando reduzidas às quatro do símbolo: uma, santa, católica, apostólica

Vaticano I: Ao tratar da fé e das razões para crer incluiu uma contribuição de Dechamps, Arcebispo de Malinas, na que a Igreja em si mesma é apresentada como um dos motivos de credibilidade. Esta via se denomina empírica. Vaticano II: Lumen Gentium. Há uma série de características: (1) Centra o mistério da Igreja no mistério de Cristo e da Trindade, e não em si mesma. Não relega o aspecto visível da Igreja, mas o coloca em unidade com o mistérico: a Igreja é “sacramento universal de salvação” (LG 48). Sociedade visível e comunidade espiritual (complexa realitas LG 8). (2) A Igreja é “o Povo de Deus” (LG 9) Estas imagens da Igreja superam sua apresentação como “societas perfeita”, e se serve do conceito “sacramentum salutis” com todas suas conseqüências. Pretende-se apresentar o mistério da Igreja em sua totalidade: é sinais da salvação de Deus operada em Cristo.

XX.2. A fundação da Igreja A fundação da Igreja por Jesus Cristo pertence à fé cristã no sentido de que a Igreja foi prevista, querida e iniciada por Jesus durante sua vida terrena. Pode-se precisar ulteriormente esta afirmação por meio de duas proposições: 1) A Igreja depende em seu ser da ação histórica de Jesus; 2) A Igreja, tal como existe, não é só resultado da ação de Jesus, mas também fruto da ação do Espírito Santo.

Via fundationis: Desenvolvida no s. XVI. Aspira a demonstrar que a Igreja católica foi fundada por Jesus Cristo. O armação do argumento: chamado dos Apóstolos e, sobretudo, a promessa do primado a Pedro durante a vida terrena de Jesus, e o ato de conferir-se depois da ressurreição. Teologia liberal protestante de fins do XIX: defendeu em geral que a Igreja não foi obra de Cristo, mas de seus discípulos. Alegam três razões fundamentais: a pregação de Cristo sobre o reino de Deus, sua postura escatológica e o fato de que a palavra “igreja” não é pronunciada nunca por Jesus.

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A. Loisy: “Jesus anunciou o reino, e o que chegou foi a Igreja”. Esta afirmação passou à história quase como o lema da postura que estabelece um hiato entre a Igreja e Cristo. Ensino dos manuais clássicos de apologética: vai na linha da instituição da Igreja num sentido visível e jurídico. A instituição significa que Jesus reuniu em torno dele doze discípulos, aos que foi confiado o tríplice poder de governar, ensinar e santificar. Jesus fundou sua Igreja ut societas proprie dita et visibilis. A natureza desta sociedade é hierarchica, monarchica et infallibilis. Ao mesmo tempo, reconhecem um duplo momento na fundação da Igreja: antes da morte de Jesus: preparada mediante a pregação e a eleição dos Apóstolos, a instituição do sacerdócio e dos demais sacramentos. Depois da ressurreição: completou a fundação da Igreja, conferindo a potestade sagrada aos Apóstolos e a Pedro como cabeça. Em Pentecostes, teve sua promulgação. XX.2.1.2. Teologia contemporânea Valorizava-se sobretudo o significado fundacional da Ceia. Alguns autores defenderam que a instituição da eucaristia tem de entender-se como “aliança que conduz à formação de uma nova sociedade religiosa, de um novo povo de Deus”. J. Ratzinger: a última Ceia deve conceber-se como o verdadeiro ato fundacional da Igreja por parte de Jesus. Na teologia católica, no entanto, propuseram-se também teorias que supõem de fato uma volta a posições do século XIX: “O Jesus pre-pascal não fundou em vida nenhuma Igreja”, afirma H. Küng; somente pôs os fundamentos, mediante sua pregação e atividade, para a aparição da Igreja pos-pascal. De modo semelhante, L. Boff pensa que a Igreja nasceu de uma decisão dos apóstolos impulsionados pelo Espírito Santo. XX.2.2. Magistério da Igreja Concilio de Vienne: (1312) recolheu a idéia patrística do nascimento da Igreja do custado de Cristo. Pio XII: Mystici Corporis (1943). Ao apresentar à Igreja como Corpo místico de Cristo se ampliava a apresentação excessivamente jurídica da Igreja que a teologia católica fazia até então. Vaticano II: foi muito sintético em suas referências à fundação da Igreja. Referiu-se a ela em três textos: Lumen Gentium 5: “o mistério da Igreja se põe de manifesto em sua fundação” Em Gaudium et Spes 40 se afirma a fundação da Igreja por Cristo, e se faz num contexto trinitário: “Nascida do amor do Pai Eterno, fundada no tempo por Cristo Redentor, reunida no Espírito Santo, a Igreja...”. Em Ad Gentes 5, finalmente, diz-se que Jesus, antes de subir aos céus, fundou sua Igreja como sacramento de salvação. Catecismo da Igreja Católica: Da Igreja se diz que está “fundada sobre as palavras e as obras de Cristo” (n.778). Nos outros dois lugares nos que se alude à fundação da Igreja, tem-se presente mais bem aos apóstolos, dos que se afirma que são “pedras de fundação da Igreja” (n.642); o caráter apostólico da mesma Igreja se deve a que está fundada sobre os apóstolos (n.857). XX.2.3. A fundação da Igreja por Jesus Se “fundação” significa um ato essencialmente de natureza externa e jurídica, não é adequado para ser aplicado à Igreja que é certamente instituição mas também e previamente mistério. A fundação da Igreja por Jesus aponta aos seus atos que põe de manifesto sua intenção, previsão e ação sobre a Igreja. Pretender que Jesus tenha deixado plenamente assinalados os detalhes da Igreja vai além, não só do que o conhecimento histórico pode contribuir, mas inclusive suporia um defeito teológico notável, já que separaria a ação de Cristo da do Espírito Santo.

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Jesus não é só o fundador da Igreja, mas também seu fundamento. Afirmar que o que Jesus seja fundamento é um enriquecimento teológico da noção de fundador, de forma que só de forma reducionista se podem separar. Também o Espírito Santo é fundamento da Igreja. XX.2.3.1. Jesus e a Igreja

Schmaus, Fries e outros observaram que não há que pensar num ato solene mediante o qual a Igreja tivesse sido proclamada. Deve-se falar de atos “de Cristo em ordem à fundação da Igreja” . A Comissão Teológica Internacional, depois de afirmar que não resulta um procedimento adequado unir toda a questão da fundação da Igreja a uma só palavra de Jesus ou a um só acontecimento particular de sua vida, expõe a seguinte relação de seus atos através dos quais se põe de manifesto e se transparenta a intenção de Jesus sobre a Igreja: α. Em sua pregação Jesus pressupõe as promessas do Antigo Testamento referentes ao povo de Deus. β. O apelo geral à conversão. γ. A vocação e instituição dos Doze como signo do restabelecimento futuro da totalidade de Israel. δ. A mudança de nome de Simão-Pedro, seu posto privilegiado no círculo dos discípulos e sua missão específica. ε. A rejeição de Jesus por Israel e a ruptura entre o povo, representado pelo o Sinédrio, e os discípulos de Jesus. ζ. Ao instituir a Ceia e enfrentar sua paixão e morte faz questão de pregar o Senhorio universal de Deus. A reedificação, depois da ressurreição do Senhor, da comunidade entre Jesus e seus discípulos, e a introdução depois da Páscoa na vida propriamente eclesial. η. O envio do Espírito Santo que faz da Igreja uma criatura de Deus (“Pentecostes” na concepção de Lucas) θ. A missão com respeito aos pagãos, e a conseguinte Igreja dos pagãos. ι. A ruptura radical entre o “verdadeiro Israel” e o judaísmo. κ. Todos eles, postos um depois de outro, “mostram bem que a fundação da Igreja deve compreender-se como um processo histórico da revelação”. XX.2.3.2. O Reino de Deus O núcleo da pregação de Jesus começou com o anúncio do reino de Deus e o convite para aceitá-lo. Desse fato não se deriva nenhuma conseqüência necessária em torno à origem da Igreja. Todo o problema reside em saber quando situava Jesus a chegada do reino. Há três soluções diversas: na geração presente (Mc 9,1); Em outros textos a tensão para o futuro, para o reino vindouro, é clara: “Venha teu Reino!”.(Mt 6, 10); Em outros, finalmente, Jesus afirma que o reino de Deus já chegou (Lc 11, 20). A primeira levaria implícita uma exclusão da Igreja: se o final estava tão próximo não faria sentido pensar numa Igreja com uma missão universal. Na proposição segunda a Comissão Teológica Internacional afirma que “Jesus conhecia o fim de sua missão: anunciar o Reino de Deus e fazê-lo presente em sua pessoa, seus atos e suas palavras para que o mundo seja reconciliado com Deus e renovado”.

Uma leitura histórica dos textos demonstra que não é objetiva a contraposição entre o Reino e a Igreja. Segundo a concepção judia, o específico do reino de Deus consiste em reunir e purificar aos homens para este reino. Em lábios de Jesus, “Reino de Deus” não significa alguma coisa ou algum lugar, mas o fazer atual de Deus. “Quando Jesus prega o Reino de Deus não anuncia simplesmente

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a grande mutação escatológica, convoca primeiramente aos homens para entrar no Reino”. E Jesus veio reunir aos que estavam dispersos (cfr. Jo 11, 52; Mt 12, 30), a reunir o novo povo.

XX.2.3.3. O novo Povo de Deus A relação de Jesus com Israel é original, porque ele se dirigiu ao povo de Israel como povo escolhido chamado a ser o definitivo Povo de Deus mediante a pregação e a aceitação do Messias. A rejeição de Jesus por parte de Israel tem em toda esta problemática um alcance fundamental. Lc 13, 34: “Jerusalém, Jerusalém... quantas vezes quis reunir a teus filhos como uma galinha reúne a seus pintinhos embaixo de suas asas, e não quisestes”. Como comenta a Comissão Teológica Internacional: “Este «não quisestes» mudou, não a intenção mas o caminho que tomará a convocação de todos os homens em torno de Jesus”. Conseqüência: a Igreja que Jesus queria somente adquirirá sua “forma” concreta de Igreja uma vez que ele tivesse consumado sua vida no mistério pascoal e os Apóstolos chegaram a compreender o significado profundo que implicava a rejeição de Jesus por parte de Israel. XX.2.3.4. Os Doze Um dos feitos claves para mostrar a vontade de Jesus sobre a Igreja é a eleição e instituição dos Doze dentro da comunidade dos discípulos.

Deve-se assinalar, em primeiro lugar, que Jesus teve discípulos. A originalidade de Jesus é que não eram os discípulos os que lhe elegiam, como era o normal, mas que era Jesus mesmo quem os escolhia a eles (Mc 1, 16-20). Jesus não uniu seus discípulos a uma escola ou tradição determinada, mas a sua própria pessoa. A eleição dos doze é um dos fatos mais importantes na vida pública de Jesus: “Subiu a um morro e chamando aos que quis vieram a ele, e designou a doze para que lhe acompanhassem e para enviá-los a pregar, com poder de expulsar aos demônios...” (Mc 3, 13 ss). Seguem os nomes dos doze eleitos, sendo Simão-Pedro o que encabeça a lista. O número “doze” estava carregado de significado. Doze eram os patriarcas, e doze as tribos (Mt 19, 28; At 26, 7). Israel é o povo das doze tribos, o qual indica plenitude; e plenitude é em general o simbolizado pelo número doze. Ao eleger aos doze, Jesus estava dizendo implicitamente que tinha chegado o tempo do novo povo de doze tribos, o novo Israel do espírito e não da carne, profetizado por Isaías e Jeremías. É tão importante este número que depois da traição de Judas, elege-se uma testemunha para substituí-lo: Matias. XX.2.3.5. Pedro A vocação de Pedro e a missão especial que Jesus lhe conferiu foi o ato que os manuais de apologética viram de um modo mais claro sua vontade direta sobre a Igreja. Escritos paulinos: aparece na antiga fórmula de fé, de origem pre-paulino, transmitida por Pablo como um elemento intangível da tradição, em 1 Cor 15, 3-7. Apresenta a Pedro como a primeira testemunha da ressurreição de Jesus Cristo. Gálatas: Aparece Paulo enfrentando-se a Pedro, mas precisamente por esse contexto polêmico, o testemunho de São Paulo tem mais relevo. Paulo, visita a Santiago, Pedro e João, “que eram considerados como colunas” (Gal 2, 9) a quem expõe o evangelho que anuncia entre os gentis “para saber se corria ou tinha corrido em vão”.

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João: Jo 21, 15-19, Cristo confere o primado a Pedro, aparece claramente a posição preeminente de Pedro, derivada do Senhor. Sinópticos: Nas quatro listas dos apóstolos há variantes diversas, mas todas coincidem em situar a Pedro no primeiro lugar. O posto especial de Pedro aparece também na fórmula “Pedro e seus colegas”. Mudança de nome de Simão a Pedro (Mt 16,17-19): foi chamado por Jesus “rocha-pedra”. O fato de que o termo aramaico “Kefas” tenha sido traduzido e tenha passado à história na forma grega de Pedro confirma que não se trata de um nome próprio de pessoa. Lutero: Jesus, depois de designar a Simão como “pedra”, se teria assinalado a si mesmo ao afirmar “e sobre esta pedra edificarei minha Igreja”, porque só ele é a rocha angular, e não Pedro cujo sucessor pretende ser o Papa. XX.2.3.6. A Ceia O relato mais antigo dos quatro com do que contamos no Novo Testamento 1 Cor 11, 23-25) é o de Paulo (1 Cor 11,23-25), escrito pelo ano 54. A Ceia de Jesus, celebrada como solene banquete pascal, é o marco no que as palavras de Jesus adquirem seu pleno significado. Mediante o acontecimento do jantar se cria e se estabelece a nova aliança escatológica que se funda na morte de Jesus, que se realiza e continua na Igreja. Ratzinger afirma que foi a verdadeira hora do nascimento do povo de Israel. Deve conceber-se como o verdadeiro ato fundacional da Igreja por parte de Jesus. XX.2.4. Cristo, fundamento da igreja A Igreja não é algo amorfo ou inespecífico, mas possui uma estrutura determinada, cuja armação vem dada por ministérios definidos.

A Igreja como é precisa encontrar também no Espírito Santo a fonte de seu ser. Agora bem, ação de Cristo e ação do Espírito Santo não podem dar-se isoladamente a uma da outra. Alguns consideram que Jesus não fundou a Igreja, esta é em sua totalidade faz do Espírito Santo, criação pos-pascal, cuja estrutura é fruto dos acontecimentos históricos (H. Küng).

A estrutura da Igreja é a que vem de Cristo por meio do Espírito Santo. Neste ir para Cristo a partir da Igreja, é necessário passar por Pentecostes, pela efusão do Espírito Santo sobre a Igreja. A ação do Espírito Santo no nascimento da Igreja pressupõe a ação, ou melhor, os atos “fundacionais” de Jesus, e entre eles, concretamente o ministério apostólico. O Espírito Santo é, em palavras de Y. Congar, “co-fundador da Igreja”. Sua ação não fica reduzida a uma simples atualização das estruturas da aliança estabelecidas pelo Cristo terrestre, antes que desaparecesse sua presença visível. A ação do Espírito Santo “é fonte de novidade na história. Mas se trata sempre de fazer a obra de Cristo, de fomentar e edificar o corpo de Cristo”. XX.3. A Igreja, sinal A existência de uma controvérsia sobre os critérios que deve reunir a verdadeira Igreja mostra a convicção de que existe uma única Igreja, e que esta deve ser unida. A unidade da Igreja era em todo caso a questão finque na discussão *apologética. Para chegar a ela se seguia a via notarum, a via historica e, a partir do Vaticano I, a chamada via empírica, proposta por V. Dechamps.

XX.3.1. Via notarum A credibilidade da Igreja veio apoiada na manualística de um modo particular sobre a via notarum,

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que se foi formulando a partir do século XVI. O esquema desta demonstração tinha como núcleo a prova de que as características com as que Jesus quis sua Igreja só se realizavam plenamente na Igreja Católica Romana. A unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade.

XX.3.2. Via empírica Ainda que desenvolvida a partir do Vaticano I, a via empírica contava com importantes precedentes em Santo Agostinho, Santo Tomás, Savonarola, Bossuet, etc. No início do Concílio, foi formulada pelo Cardeal Dechamps A via empirica se baseia no convencimento de que para chegar à origem divina da Igreja, não é necessário a análise crítica dos documentos históricos do século I, mas basta contemplar à Igreja como um fato presente e óbvio. A unidade, perdurabilidade, universalidade e santidade da Igreja põem de manifesto que é um “milagre subsistente”, ou um “milagre moral” (“uma ação ou série de ações externas realizadas por especial influxo de Deus, como sinal religioso contra o modo inconstante de ser dos homens). Dei Filius: depois de referir-se aos sinais de credibilidade da revelação que são os milagres e profecias, nomeia a Igreja como “motivo de credibilidade” e apela às mesmas propriedades que Dechamps tinha atribuído ao “fato exterior”. “A Igreja é por si mesma um grande e perpétuo motivo de credibilidade e um testemunho irrefutável de sua missão divina por causa de sua admirável propagação, de sua exímia santidade, de sua inesgotável fecundidade em toda classe de bens, da unidade universal e de sua invicta estabilidade...”

A partir do Vaticano II, tende-se a considerar a eclesialidade não de um modo excludente, mas gradual. À luz destes princípios se entende que podem dar-se elementos de autêntica eclesialidade também fora da Igreja católica, ainda que só nela se dê a plenitude dessa eclesialidade. Desse modo se tem de entender o ensino de Lumen Gentium quando afirma que a Igreja querida por Jesus “subsiste” (subsistit) na Igreja Católica. Depois de afirmar a profissão na Igreja “como uma, santa, católica e apostólica”, o Concílio afirma: “esta Igreja, estabelecida e estruturada neste mundo como uma sociedade, subsiste (subsistit) na Igreja católica (..) ainda que fora de sua estrutura (extra eius compaginem) encontrem-se muitos elementos de santificação que verdadeiramente, como dons próprios da Igreja de Cristo, impulsionam em direção à unidade católica”.

XX.3.3. Igreja como sinal unida a Cristo A inseparável relação entre a Igreja como sinal, e Cristo, supõe que se dá uma descentralização eclesiológica (a Igreja é sinal da salvação por sua união a Cristo), e concentração cristológica: “A Igreja é, em Cristo, como um sacramento, isto é, sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” A Igreja é sinal na medida em que conduz e transparenta a Cristo. No Concílio, a Igreja é chamada “sinal visível da salvação” (LG 9), e dela se diz que “não cessou de ser sinal de salvação no mundo” (GS 43). O ser sinal se atribui também, aos membros da Igreja: leigos (AA 16), bispos, sacerdotes e religiosos (LG 21, 28, 46). XX.3.4. Os sinais da Igreja

Para captar o modo como a Igreja e sua história são signo da presença e da ação de Deus, é necessário referir-se à Igreja em seu conjunto.

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A ação de Jesus em relação com a fundação da Igreja não é separável da ação do Espírito Santo em Pentecostes: a vida de Jesus e a efusão do Espírito constituem a única ação pela que Deus se dirige aos homens, congrega-os no novo povo e lhes confia a missão. A Igreja como “fenômeno vivo exterior” existe necessariamente no concreto devir histórico no que existe e se constrói como a concreta Igreja de Cristo. Nisso é fundamental a ação do Espírito Santo, cuja ação sobre a mesma Igreja, fica significada nas realizações concretas e históricas. Em Cristo não existe, nem pode existir, o pecado, e tudo nele é expressão de seu ser enviado pelo Pai. No caso da Igreja há que ter em conta que está constituída pela ação de Deus e inseparavelmente pela ação humana que vai necessariamente acompanhada pela debilidade e o pecado . XX.3.5. A santidade da Igreja Como explicar a presença do pecado na Igreja e ao mesmo tempo a santidade que é uma de suas propriedades? Desde o princípio, o cristianismo recusou que o pecado exclua da comunhão da Igreja. Imagens da Igreja no Novo Testamento. Povo de Deus: adotada pelo Vaticano II para apresentar o mistério da Igreja. Como Povo de Deus, não há lugar para uma separação entre uma Igreja ideal e o povo pecador. Esposa de Cristo (Ef 5, 24-27): expressa a iniciativa de Deus, além das relações interpessoais que Cristo tem com sua Igreja, e a riqueza dos dons que ela recebe dele. Corpo de Cristo: A Igreja é o Corpo de Cristo e, quanto tal, nunca se separará dele, ainda que alguns membros estejam mortos. A idéia de corpo põe de manifesto a diversidade orgânica dos membros e das funções desse corpo. Templo do Espírito Santo (PO 1): Está santificada pela presença e os dons do Espírito.

Conclusão, a nível dogmático: a tensão pecado-santidade na Igreja deve entender-se à luz dos seguintes princípios: (1) A Igreja, Povo de Deus, é Igreja de santos e de pecadores.

(2) A nota decisiva da Igreja é a santidade, e não o pecado; (3) A Igreja como totalidade é subjetivamente santa graças à fidelidade sem falha que lhe dá Cristo; (4) A Igreja é, independentemente da santidade ou do pecado de seus membros, sacramento universal de salvação; (5) A santidade dos membros depende de sua maior ou menor fidelidade a Cristo; (6) A Igreja totalmente pura e santa somente chegará a realizar-se na escatologia.