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Humanitas 58 (2006) 229-252 APOSTILAS PARA A EDIÇÃO CRÍTICA DO LIVRO DA CORTE ENPERIAL J. M. DA CRUZ PONTES Universidade de Coimbra A obra conhecida e citada com este título recebe‑o do acontecimento que descreve: “Reais cortes fez o Celestial Enperador por grande proveito e honra de todo o senhorio.” (Fol. 2 va 13). Os fólios que precedem o texto dão o índice, abrindo com notícia dos principais intervenientes: “Este livro he chamado corte enperial em qui he desputada a ffe christãa com os jentyos e judeus e mouros.” No início pormenoriza o conteúdo (Fol. 1 ra 20): “... trauta de grandes cousas e de muy altas questooes asy como da essencia de Deus e da trindade e da encarnaçom diuynal e de outras materias proueitosas pera conhecer e entender o senhor deus segundo o poder da franqueza humana” 1 . Os cadernos que transmitem o texto são precedidos de alguns fólios – a cujo caderno foram cortados para aproveitamento os que pode supor‑ se encontrarem‑se em branco – que trazem no segundo fólio, além do título da obra, o índice dos capítulos ou subtítulos ou partes, com caligra‑ fia semelhante ao do texto: “Este livro he chamado corte imperial em qui he desputada a ffe cristãa com os jentyos e judeus e mouros segundo claramente se mostra nos capitolos em esta tauoada escriptos por saber a quantas folhas jazem alem do primeiro prolego.” No anterior, com o título vem o nome do possuidor do códice: “Este livro he chamado corte ________________ 1 V. Mário Martins, «O Livro da Corte Imperial» in As Grandes Polémicas Portuguesas, I — Séculos XII‑XIX (Direcção Literária de Artur Anselmo), Lisboa, Verbo, 1967, p.27‑49.

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APOSTILASPARAAEDIÇÃOCRÍTICADOLIVRODACORTEENPERIAL

J.M.DACRUZPONTESUniversidadedeCoimbra

Aobraconhecidaecitadacomestetítulorecebe‑odoacontecimentoquedescreve:“ReaiscortesfezoCelestialEnperadorporgrandeproveitoe honra de todo o senhorio.” (Fol. 2 va 13). Os fólios que precedem otexto dão o índice, abrindo com notícia dos principais intervenientes:“Estelivrohechamadocorteenperialemquihedesputadaaffechristãacomos jentyos e judeus emouros.”No início pormenoriza o conteúdo(Fol.1ra20):“... trautadegrandescousasedemuyaltasquestooesasycomodaessenciadeDeuseda trindadeedaencarnaçomdiuynaledeoutras materias proueitosas pera conhecer e entender o senhor deussegundoopoderdafranquezahumana”1.

Oscadernosquetransmitemotextosãoprecedidosdealgunsfólios–acujocadernoforamcortadosparaaproveitamentoosquepodesupor‑se encontrarem‑se em branco – que trazem no segundo fólio, além dotítulodaobra,oíndicedoscapítulosousubtítulosoupartes,comcaligra‑fiasemelhanteaodotexto:“Estelivrohechamadocorteimperialemquihe desputada a ffe cristãa com os jentyos e judeus e mouros segundoclaramentesemostranoscapitolosemestatauoadaescriptosporsaberaquantas folhas jazem alem do primeiro prolego.” No anterior, com otítulovemonomedopossuidordocódice:“Estelivrohechamadocorte________________

1 V.MárioMartins, «O Livro da Corte Imperial» inAs Grandes PolémicasPortuguesas, I—SéculosXII‑XIX (DirecçãoLiteráriadeArturAnselmo),Lisboa,Verbo,1967,p.27‑49.

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imperial o qual livro he d’ Afonso Vaasquez de Caluos morador naCidadedoPorto”.

Daquiparececoncluir‑sequepodeidentificar‑seocalígrafodaparteinicialcomoconfeccionadordoconjuntodaobra, jáquea indicaçãodopossuidoreaelaboraçãodoíndicesãoposterioresàrealizaçãodocódice.

O copista do membranáceo portuense em letra gótica caligrafoualgumaspalavrasclaramenteerradas,comoondeselê“contodedois”ou“conto de deus” (Fol. 41 rb 31) em vez de, manifestamente, “conto detrês”.Tantopodecaberaonossocopista comoaodomodelodeque seserviu encontrar‑se “Tito que era prinçepe em aqueles regnos” (Fol. 89rb12) em lugarde“Ciro”.Ocompiladorportuguês tinhaperante siumtextodeNicolaudeLyra,não imprescindívelparacorrigiracópiaouoseumodelo.

Jáomesmosenãopassaquandose cometeudistracçãomuito fre‑quente e se omitem algumas perícopes entre uma palavra e a suarepetição, mais adiante, como por exemplo: “porque mais annos sepassaromdeloquartoannodelrrey(...)delrreySedechias”(Fol.81rb24),onde se saltou da primeira para a segunda grafia da palavra delrrey,omitindo o correspondente à versão do latim de Nicolau de Lyra:“Sallomonisinquafundataestdomusprima,usquead11annum”2.

Palavrasentrelinhadasouriscadasmesmoquandodepoisde“eosaltos feitos” inutiliza imediatamenteaseguiroqueentão jácaligrafa“eos altos fectus” (Fol.1 ra 18) são percalços que facilmente encontra ecompreendequemestejafamiliarizadocommanuscritosmedievais.

Quando, porém, existe um só apógrafo e as omissões são apreciá‑veis,comonosaltoatrásreferido,unicamenteorecursoàsfonteslatinas,quandoashajae tenhamsidoencontradas,permite reconstituiro texto.TalacontecenoLivrodaCorteEnperial,emumpoucomaisdemeiadúziade lacunas, a que pode acudir‑se com a descoberta do latim corres‑pondentedeNicolaudeLyraedeRaimundoLulo.Assimseviabilizaria

________________

2 Cf. J.M. da Cruz Pontes,Estudo para uma edição crítica do Livro da CorteEnperial, Univ. de Coimbra, 1957, p.346. Não se trata com propriedade deseparata da revista Biblos 32 1956, p.1‑400, saída do prelo no ano seguinte,conforme impropriamente se lê na página de rosto do Estudo..., mas antes doaproveitamento de uma mesma composição tipográfica disposta em manchasdiferentes.

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quanto possível uma edição crítica, por outras razões, mais adianteregistadas,umpoucotemerárianascircunstânciaspresentes3.

Foi CarolinaMichaëlis quem pela primeira vez descobriu algumaafinidade – mais pela fantasia teatral e pelos temas da polémica comgentios, judeus e muçulmanos – entre o Livro da Corte Enperial e Rai‑mundoLulo,expondoem1897nacolaboraçãoprestadaaGustavGröberqueeranecessáriocompará‑locomoLiberdegentiliettribussapientibus4.

Terá Carolina Michaëlis sido porventura conduzida ao conheci‑mentodoapógrafoportuensepelanotíciaqueAlexandreHerculanoderaem1840nosemanárioOPanorama,dizendoque“olivrodacorte impe‑rialprovaquenaquelaépocase tratavamemvulgarasárduasmatériasdeteologiapolémica”5?

Quantos, mais tarde, remetem o texto português para o círculoluliano nada avançando na investigação, recolhem o contributo deCarolinaMichaëlis sem o referirem, como logo em 1898 Teófilo Braga,opinandosimplesmente“queasdoutrinasfilosóficasdeRaimundoLulodominavamemPortugalnoséculoXV,”aocomentarSousaViterbo6.

________________

3Anotíciade1967(inVerbo,EnciclopédiaLuso‑BrasileiradeCultura,Vol.VI,cols.52‑53)tinhaporbaseainformaçãoquerecebêramosetransmitimosnoartigo«A Controvérsia com os muçulmanos e as fontes árabes do “Livro da CorteEnperial”» in Monumenta, Comissão dos Monumentos Nacionais de Moçam‑bique, nº3, Lourenço Marques, 1967, p.43‑49; cf. p.49, n.6: «Está adiantada apreparação de nova leitura e edição, a publicar pelo Centro de Estudos dePsicologiaedeHist.daFilosofiaanexoàFac.deLetrasdaUniv.deLisboa».

4 G. Gröber,Grundriss der Romanischen Philologie, II B., 2 Abt., Strassburg,K.J.Trübner,1897,p.251,n.4.

5 O Panorama – Jornal litterario e instrutivo da Sociedade Propagadora dosConhecimentos Uteis, IV, n. 140 (4 de Janeiro de 1840), p.7. Este artigo deHerculano, segundo bibliotecário na Biblioteca Pública do Porto (1833‑1836) edepois(1839)nomeadoporD.Fernando,maridodeD.MariaII,directordaRealBiblioteca daAjuda e da Biblioteca do Palácio dasNecessidades, é o terceiro eúltimo da série intitulada «Novellas de cavallaria portuguesa», reunida nosOpúsculos,TomoIX(Lisboa,1907),p.104.OsOpúsculos têmediçãomaisrecente,comintroduçãoenotasdeJorgeCustódioeJoséManuelGarcia(6vols.,Lisboa,1983‑1988).

6 «Raimundo Lulo. Nota apresentada à Academia Real das Sciencias emsessão de 24 de Fevereiro de 1898». Em comentário à comunicação de Sousa

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JoaquimdeCarvalhoescreveuqueaficçãoliteráriadotextoportu‑guês“recordaa lendadosSantosBarlaame Josafat,oCuzaride JehudaHalevi,oLiberdelgentiledelostressavisdeRaimundoLulo,eoLibrodelosEstadosdeD. JuanManuel,eemboranãopossamosdeterminarqualdestes livrosa sugeriu, semdúvida sedeve integrarnogénero literárioqueelesexprimem”7.

AquiloqueinduziuCarolinaMichaëlisaaproximaroLivrodaCorteEnperial do Maiorquino parece ter sido todavia o aparato cénico dadisputa.

Nas páginas da Disputatio Raymundi Christiani et Hamar Saraceni,escritaemárabe,cujomanuscrito,perdido,LulodememóriaredigiuemLatim,érelatadaadiscussãoiniciadaempúblicoeprosseguidanaprisãodeBugia,em1307,cujascircunstânciassãodescritasnoprólogo:

Dicitur,quodquidamHomoChristianusArabicus,cujusnomeneratRaymundus,quidiulaboravit,utInfidelesvenirentadSanctamCatholicamFidem,etutTerraSancta,inquanosterDominusJesusChristusfuitvivusetpassus, recuperareturaSaracenis colentibusMahometum,quidixit suopopulo:inDeononestTrinitas,necChristusestDeus,quipraedictusRay‑mundusivitadquandamcivitatemSaracenorum,cujusnomeneratBugia,inquaipsepraedicandoetlaudandosanctamCatholicamFidem,inplateaaSaracenisfuitcaptus,percussusetincarcerempositus:dumRaymundussicstabat in carcere, frequenter veniebat ad eumquidam literatus Saracenus,quivocabaturHamar,cumaliisSaracenis,addisputandumcumeodeFide

________________ Viterbo,relatadaemBoletimda2ºClassedaAcademiadasScienciasdeLisboa,I(1898‑‑1902),PorOrdemenaTypografiadaAcademia,1903,p.49.

7JoaquimdeCarvalho,«DesenvolvimentodaFilosofiaemPortugaldurantea Idade Média»,O Instituto, 75 (Coimbra, 1928), p.68‑89; cf. p.75. Trata‑se dodiscurso pronunciado na inauguração dos trabalhos da «Sección de CienciasHistóricas,FilosoficasyFilologicas»doCongresodelaAsociaciónluso‑españolapara el Progreso de lasCiencias emCádiz no ano anterior, a que juntou notasbibliográficas, retomando por vezes alguns parágrafos, no capítulo sobre«Culturafilosóficaecientífica»,naHistóriadePortugal,dirigidaporDamiãoPeres,vol. IV (Barcelos, 1932), p.475‑528; cf. p.493. Na edição da Obra Completa deJoaquimdeCarvalhoorganizadaporJ.VitorinodePinaMartins(Lisboa,FCG)oprimeiro textoestá incluídonovol. I (1978,p.337‑354)eooutronovol.II (1982,p.221‑305).

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ex parte praecepti Episcopi Saracenorum, qui dicebatur essemagnus lite‑ratus,ipsisopinantibus,RaymundumdeducereadFidemMahometi8.Emdoisexcertos,pelomenos,dosprimeiroscapítulosdaobrapor‑

tuguesa, cujamanifesta origem luliana não conseguimos identificar, háargumentações afins ao Liber de gentili et tribus sapientibus9. Mas nestecomonoutrosescritosLuloquasesódeixaàimaginaçãoacomposiçãodolugarealgunspoucospormenores10.

Um certo número de intervenientes aparece e se manifesta. Masneste e em outros escritos, mais se fixa a introdução do cenário, pros‑seguindo a discussão filosófico‑teológica sem grandes floreações defantasia.

Lembre‑sequeLuloéigualmenteautordeumascomoquenovelasfilosófico‑sociais, como o Libre de Evast e Blanquerna, geralmente desig‑nadosóporBlanquerna,ecompôsnumerosasrimasemvernáculo.

Nas discussões doutrinais, todavia, parece empenhar‑se mais naargumentação do que na descrição das circunstâncias que lhe sãoexteriores.

NãoassimnoLivrodaCorteEnperial, emcujopalcoosactores rea‑gem, manifestam júbilo, cantam louvores e expressam alterações fisio‑nómicasdeargutoregistopelorelator11.

CarolinaMichaëlis poderia ter‑se dado conta do sabor luliano doLivro da Corte Enperial ao encontrar no prólogo que o autor se propõetratar as questões “provando todo per autoridades da santa scripturacom declarações e exposiçooes de doutores e per razooes euidentes e________________

8R.Lulo,Opera,IV(Mogúncia,1729).9Vd.J.M.daCruzPontes,Estudo...,p.151‑156.10AtaispormenoresaludeaVidacoetânea,provavelmenteredigidacercade

1311 talvez pelo «socius sorbonicus» Thomas Myésier sobre relato do próprioRaimundo. Edição dos textos latino e catalão preparada por M. Batllori e M.Caldentey,Obras literáriasdeRamonLlull,Madrid,BAC,1948,p.45‑77;ed.críticade H. Harada, Raimundi Lulli, Opera Latina, VIII (Corpus Christianorum –Continuatio Mediaevalis), Turnhout, 1980, p.272‑309. Versão portuguesa por M.SantiagodeCarvalho,Coimbra,Ariadne,2004.

11Vd. Id.,Estudo..., o capítulo «Originalidade literária doLivroda “CorteEnperial”»,p.185‑193;MárioMartins,EstudosdeLiteraturaMedieval,Braga,Livr.Cruz,1956,p.417‑421(Cap.XXXI,«Amúsicareligiosana“CorteImperial”»).

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neçesarias” (Fol.1 ra27‑30).LuloescrevenocomeçodoprólogoLibrededemostracions, composto em Maiorca entre 1273‑1275, “per tal que lsinfeels sien enduyts a la sancta fe catòlica e que al entendeniment siaconegut l’ onrament e la vera luu per la qual Deus l à inluminat compuscaentendrelosarticlesperrahonsnecessaries”12.

OmesmoseverificanopreâmbulodaDisputatioRaymundiChristianiet Hamar Saraceni, de onde advêm para o português os capítulos deremateeaconclusão,afimdeprovarque“perestasrazõoesqueditaseymostra‑sequea leydoschristaãosheverdadeiraea leydosmouroshefalsa”(Fol.122va6)13.

OMaiorquinoquerapoiar‑senosmestresprecedentes:«Quiaomnesmagistri inTheologiaasseruntseutestantur,quodquaecumqueobiectiopropositacontrafidemcatholicamsacrossanctampotestsolviperneces‑sarias rationes, scilicet intelligendo ipsarum rationum consequentias,manifeste sequitur ergo, quod sancta fides catholica possit iuxta eorumtestimoniaperrationesnecessariasapprobari;ethocpermodumintelli‑gendi,nontantummodopermodumcredendi»14.________________

12Librededemonstracions.Liberdemirandarumdemostrationum.Textocatalão,ed.deSalvadorGalmés inObresdeRamonLullXV,PalmadeMallorca,1932.Otexto latino encontra‑se na edição de Salzinger, Beati Raymundi Lulli DoctorisIlluminatietMartyrisOperum,IV,Mogúncia,1729.

13A.Llinarès,«LeséjourdeRaymondLullàBougie(1307)etlaʺDisputatioRaymundiChristianietHamarSarraceniʺ»,EstudiosLulianos,IV(P.deMallorca,1961)p.63‑72.

14 De Ostensione, per quam fides catholica est probabilis atque demonstrabilis.Raimundi Lulli Opera Latina II, edenda curavit F. Stegmüller: 240‑250. OperaMessanensia. 251‑280OperaTuniciana edidit J. Stöhr, PalmaeMaioricarum, 1960,p.165;Vd.A.‑M. Jacquin,O. P., «Les “rationes necessariae”de SaintAnselme»,MélangesMandonnet, II, Paris,Vrin (BibliothequeThomiste,XIV), 1930,p.56‑78;R.Aubert,«Lecaractèreraisonabledel’actedefoid’aprèslesthéologiensdelafinduXIIIsiècle»,Revued’HistoireEcclésiastique,39(Louvain,1943),p.22‑29;B.Xiberta, «La Doctrina del Doctor Iluminado Beato Ramón Llull sobre lademostración de los dogmas jusgada a la luz de la Historia y de la SagradaTeologia»,Studiamonographicaetrecensiones,1(PalmadeMallorca,1947)p.5‑32;B. Salvà, «Qualiter fidei articuli sint ratione demonstrabiles ex b. RaimundiLulli sententia», Studia monographica et recensiones, 12‑13 (P. deMallorca, 1955);S. Garcias Palou, «Las “rationes necessariae” del Beato Ramón Lull, en losdocumentos,presentadosporélmismoalaSedeRomana”,EstudiosLulianos,VI

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O redactor português não se apresenta como autor doutrinal dotexto,declarandonoprólogo,a terminar longaoraçãopor«queanossauoontadeenflamadaporboodeseiopossaacharaquelloquedemanda»(Fol.1rb11‑13);«começoesteliuronomcomoautoreachadordascousasemellecontheudasmascomosimprezaiuntadordellasemhuũvellume»(Fol.2rb25).

DepararnoL.C.E.comdigressãocomoesta–«esabedequeespeçiahe espelho que se faz em no homem com o qual asy como com estor‑mentoentendesymesmoeasoutrascousasrepresentando‑asemelleouapropriedadedoseuentendimentoeaopoderiodelleemnaqualespeçialhe reduzemasycomoemespelhoeemestavidaperespeçiaquequerespelhoentendeohomemDeuseovecomestemeyomaisemnaoutravidanonha este espelho» (Fol.54 ra 17) – nãopodedeixarde evocar asentença Paulina: «Videmus nunc per speculum in aenigmate: tuncautemfacieadfaciem»(ICor.,XIII,12).

Quandolemos:«EmnadeuijndadepesoaheditahũaexistencianomcomunicaujldanaturadiuinalqueestaemnanaturadeDeus»(Fol.29va1)lembramos a definição de Boécio15; e omesmo,mais adiante, quanto aoutradefinição (Fol. 50 rb 2): «E emna eternidadenompode auerpri‑meironemderadeiroquesomcousasepartesdo tenpocaaeternidadequeheduraçomperdurauillsemcomeçoesemfimhetodaasũadaenomhehũaparteprimeiroeaoutradespois»16.

________________ (P.deMallorca,1962),p.311‑325; J.Stöhr,«Las“rationesnecessarias”deRamonLlull a la luzde susultimasobras»,EstudiosLulianos,XX (P.deMallorca, 1976),p.5‑52.

15«Personaestnaturaerationalisindividuasubstantia»,Deduabusnaturisetuna persona Christi, 3.Migne, P.L. 64, 1345.Amesma definição se encontra emváriosdosoutroschamadosOpúsculosteológicos.Cf.Opusculiteologici.TestoconintroduzioneetraduzionediEmanueleRapisardi,UniversitàdeCatania(secondaedizione riveduta) 1960,p.52, 56, 57.Não seriaporventura improfícuapesquisaaveriguar afinidades entre os capítulos do L.C.E. sobre Deus e a criação, aTrindadeeaIncarnaçãoeadoutrinadeBoécio.

16«Aeternitasigiturestinterminabilisvitaetotasimuletperfectapossessioquod ex collatione temporalium clarius liquet»,De consolatione philosophiae, V,Prosa 6. Migne, P.L. 63, 858. Edidit Ludovicus Bieler (Corpus Christianorum,SeriesLatina,XCIV)Turnhout,p.101.

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Uma observação não deve porém omitir‑se.No segundo caso, emqueseseguiaoLiberdequinquesapientibus,olatimlulianoéinterrompidopara interposição do inciso de sabor boeciano, com breves palavras decomentário,antesdeprosseguirautilizaçãodeRaimundo17.

Opassoanterior,sobreanoçãodepessoa,encontra‑seemumincisointercaladoentredois trechosbuscadosemIsidorodeSevilha,mascujaorigemnãosurgiuporenquantoemnossasinvestigações18.

OnomedeAristóteles: («DeusnãosepodeconronpernemmudarasycomodizAristotiles»(Fol.30vb24)aparecedeformatãoindetermi‑nadaquenãopermiteaveriguarsetemalgumacorrespondênciaouper‑tenceacontextoaindanãoidentificado.

Um pouco atrás, duas vezes, ocorre alusão a SantoAgostinho: «EestoconuemcomaopiniomdesantoAgostinhocadizemosjudeusqueSamuelouuetemorqueochamauamperaojuizodeDeus.»(Fol.23vb4);e,adiante:«EsealguũquiserdizersegundoaoutraopiniomaqualtrazesantoAgostinhoconuemasaberquenomfoyuerdadeiramenteSamuelaquelequeapareçeo...»(Fol.24ra1).Todavia,acitaçãoéprovenientedotextodeNicolaudeLyra,queseestáatraduzir19.

Nãoassimemestaoutra:EestaprimeiracausachamaromperestenomeDeus.E estomeesmodizhouosodoutorAgostinho emno liuroque chamamda çidadedeDeus» (Fol.31 ra 7).Masé tãovagaquenãopossibilita localização – se é que também o autor português não estátraduzindotextoalheio20.

Quemredigeotextoportuguêsnãoidentifica,porém,osautoresdequesesocorreparaaconstruçãodosdiálogosdaquelacorteede formaexpressasóindicaumadasfontesqueincorpora.

________________ 17Cf.Estudo...,p.258.18Ibid.,231‑234.19Vd.Estudo...,p.214‑215.20Osnoveprimeiros livrosDeCivitateDei têmporobjectivodemonstrara

falsidade dos deuses pagãos e incapacidade para assegurar a felicidade doimpério e da vida do além. Releve‑se por exemplo a expressão: «illum Deumcolimus, qui naturis a se creatis et subsistendi et movendi initia finisqueconstituit» (VII, 30). Ou estoutras: «Hoc ergo ut esset, creatus est homo, antequem nullus fuit» (XII, 20); «Hominem vero, cuius naturam quoadammodomediam inter Angelos bestiasque condebat, ut si Creatori suo tanquam veroDominosubdituspraeceptumeiuspiaobedientiacustodiret...»(XII,21).

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É verdade que desde o início se apresenta dizendo: «começo esteliuro nom como autor e achador das cousas em elle contheudas maiscomosinprezajuntadordellasemhuũuellume»(Fol.2rb25).

Doscercadedoisterçosdaobrasomenteéidentificadaautilizaçãodopoemadepseudo‑OvídioDeVetula,emcujoterceirocantoseapropriada astrologia do Introductorium Maius in Astronomiam e doDe MagnisConiunctionibus do árabeAbuMa’shar, entre os latinos nomeado comoAlbumasar21.

SeachamadarenascençacarolíngiatinhasidoaidadedeVirgílio,E.K.RanddesignouadosséculosXII‑XIIIcomoa«aetasOvidiana».Numcatálogodeautorescompiladoem1424jáodominicanoholandêsArnoldGheylhoven tomava posição contrária às opiniões que aceitavam aautenticidadeovidianadoDeVetula,eescreviasobreeste:«quemlibrumscripsit magister Ricardus de Fournivalle cancellarius Ambianensis etimposuit Ovidio». Foi escrito entre 1222 e 1266/68 e o humanismo dePetrarca pela primeira vez com sentido crítico autorizado rejeitou nasEpistolae Seniles (II, 4 – 1360/1374) a autenticidade da atribuição doDeVetulaaOvídio22.

________________ 21 Vd. Richard Lemay,AbuMa’shar and Latin Aristotelianism in the Twelfth

Century – The Recovery of Aristotle’s Natural Philosophy through Arabic Astrology,AmericanUniversity of Beirut (Publication of the Faculty ofArts and Sciences.Oriental Series, N.º 38), 1962. Sobre o Introductorium Maius in Astronomiam eomissões ou leituras erradas das versões latinas de João de Sevilha (1133) e deHermann de Caríntia (1140) algo relacionados com o tema em questão, vd.Richard Lemay, «Fautes et contresens dans les traductions arabo‑latinesmédiévales:l’IntroductoriuminAstronomiamd’AbouMa’shardeBalkh»,RevuedeSynthèse,3ªsérie,SérieGénérale,T.LXXXIX,n.ºs49‑52(Janvier‑Décembre1968),XIIe Congrès International d’ Histoire des Sciences – Colloques. Textes desRapports,Paris(A.Michel),p.101‑123.

22 Vd. P. Klopsch, Pseudo‑Ovidius de Vetula. Untersuchungen und Texte,Leiden‑Köln, E. J. Brill, 1967. Saiu depois nova edição do De Vetula, D. M.Robathan, The Pseudo‑Ovidian De Vetula, Texte, Introduction and Notes,Amsterdam,A.M.Hakkert,1968.Aautorapublicarapreviamente«IntroductiontothePseudo‑Ovidian“DeVetula”»,TPAPhA1957197‑207.OproblemadeixoudeserquestionadoquandoHippolyteCocherispublicouLaVieilleouLesdernièresAmours d’Ovide, Poème français du XIVe siècle – Traduit du Latin de RichardFournivalparJeanLefèvre,Paris(chezAugusteAubry),1861.

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Interpretando as conjunções astrais como profetizadas antes deCristoecomosignificandoonascimentodeváriasreligiões,oDeVetulaanunciaoaparecimentodareligiãocristãmostrando‑aaumfilósofogen‑tiocomoamaisperfeitadetodas23.________________

23 Vd. Estudo…, p.430‑443; J. M. da Cruz Pontes, «Ciência e Filosofia: daAstrologia árabe à apologéticamedieval cristã»,Leopoldianum, 11 32 1984 51‑57;Id., «Astrologie et apologétique auMoyen Age»,Didaskalia 15 1985 3‑10 e «L’HommeetsonUniversauMoyenAge».ActesduSeptièmeCongrèsInternationalde Philosophie Médiévale edités par Ch. Wenin, II (Philosophes Médiévaux,XXVII, Louvain‑la‑Neuve, 1986), p.631‑673; Id., «Astrologia», Dicionário deHistóriaReligiosadePortugal,I,A‑C.(DirecçãodeCarlosMoreiraAzevedo,Lisboa,CírculodeLeitores,2000)p.154‑158.

Teófilo Braga escrevia na Historia da Litteratura Portugueza – Introdução,Porto (Imprensa Portugueza – Editora), 1870, p.231: «Esta obra pertenceu álivraria de el‑rei Dom João I e quasi que a podemos attribuir á penna d’ esteillustremonarcha;éumaobranogostomysticodasnovellasdecavalariaceleste.DalivrariadeDomDuartepassouparaosfradesdeSantaCruzdeCoimbra,d’onde veiu para a Bibliotheca do Porto, depois da extinção dos conventos. Paraque se faça uma ideia deste precioso monumento da nossa litteratura, aquiapresentamospelaprimeiravezoíndiceepartedoprologo».

Em Historia da Universidade de Coimbra nas suas relações com a InstruçãoPublica Portuguesa, I, 1289 a 1555, Lisboa (Academia Real das Sciencias), 1892,p.220,diz:«OmanuscritoqueactualmenteexistenaBibliothecadoPorto,n.º803empergaminhoin4ºde134folhasequepertenceraàLivrariadeSantaCruzdeCoimbra termina: Este livro se chamaCorte enperial em que he disputada a ffechristãcomosJudeosemourossegundoclaramentesemostranoscapitolosemestatavoadaescritos».[...]Éumlivromysticocomformanovellesca,umacomodegeneração da cavalleria celeste». Enquanto que na Introdução e Theoria daHistoria da Litteratura Portugueza, Porto (Livraria Chardron), 1896, afirma: «NocelebremanuscriptodaCorte Imperial, capitulo IX, cita‑seumpoemaeruditooOvídio da Velha, escripto no seculo XVI em latim com o titulo De Vetula, porRicharddeFournivaletraduzidoparaversofrancezpelomesmotempoporJoãoLefèvre» [...] No canto III do poema é que se encontra a referencia da CorteImperialrelativaáinfluenciadosplanetasnoapparecimentodasreligiões.ComoviriaparaestepaizopoemadeRichardFournival?».

OLivrodaCorteEnperialnãoconstadoCatálogodosCódicesdaLivrariadeMãodo Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na Biblioteca Pública Municipal do Porto(Coordenação de Aires Augusto Nascimento e José Francisco Meirinhos),Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1997. Duas contraditórias referências

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O redactor português pouco após referir ao filósofo gentio opseudo‑Ovídio:«todasestascousas sobredictasquediseopoetaOuui‑dio Naso som scriptas em aquele seu liuro que chamam Ouuidio daUelhaoqualuosdiuiadesasaber...»(Fol.112ra22),paraoAlcorãoremeteomuçulmano:«CaMafomedeemnoliuroAlcaromemqueheescriptaauosaleyeospreçeptosqueuoseldeuoqualliuroheprinçipaleauten‑tico antre uos diz Mafomede…» (Fol.112 vb 2). Todavia, quando porvezes aos árabes propõe: «Aindamais quero prouar (…) que a ley deMafomedehefalsaea leydoschristaãosheuerdadeira»(Fol.114va16)ou,emredacçãoinversa,«quealeydoschristaãosheuerdadeiraealeydos mouros he falsa» (Fol.115 va 22), o que repete em parágrafosseguintes, está simplesmente a traduzir quanto encontra elaborado nalulianaDisputatioRaymundiChristianietHamarSaraceni24.

Quandoo jesuítaAbílioMartins em1938 exemplificouumparale‑lismo textual comaobraportuguesaeem1942deupequenasamostrasdequeoautoraproveitatrêstratadosdeRaimundoLulo,abriucaminhoanovasefecundasinvestigações.

RegistadojáquenaparterespeitanteàcontrovérsiacomosjudeusoautorportuguêsquaseinteiramenteincorporoudoisopúsculosdeNico‑laudeLyra intercalandoalguns extractosda suaglosa sobre aEpístolaaosHebreuseaoSalmo10925,nãodeixedeobservar‑sequeareferênciaatrásfeitaaoAlcorão(Fol.112vb2),aencontramosemumpassodoPugioFideideRamonMarti,quaseseguidadacitaçãodeBucari:«OutrosydizemestagujzanoliuroquehechamadoBucary»(Fol.112vb33)26.________________ posterioresdeTeófiloBraga,dizendooDeVetulaoraescrito,ora traduzidoporFournival, nos conduziram ao incunábulo parisiense que então nos serviu. Cf.Estudo…,p.170.

24 Não parece estar perante o texto alcorânico. E não nos podemosinterrogarquantoaoBucarieoutrostextosmuçulmanos?Cf.Estudo…,p.449,452‑‑461,463‑464,467‑470,473‑475.

25Cf.Estudo…,p.119‑147,197‑231,280‑303,337‑392e425‑430.26Vd.Estudo…,p.444.Utilizámos o textodaRefutatioAlcorani doAlcorani

Textus Uniuersus, II (de L. Marracio, Patavii, MDCXCVIII), recorrendo a umespecialistaarabistacomabaldadaintençãodeaveriguarseostextosalcorânicosproviriamdooriginalárabeoudeversão latina.OColegaAdelSidaruscorrigeadulteraçõesdotextonaredacçãodostítulosalbozeburat,apresentandovaliosoquadrode citações alcorânicas doL.C.E. quepoderãoprovir tambémdeMarti,«LeLivrodaCorteEnperialentrel’apologétiquelullienneetl’expansioncatalane

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O capítulo onde o redactor português trata do tema «De como aRainhadizquepostoqueAdamnompecaraque JhesuChristo tomaracarneemaUirgem»(Fol.73ra24)segueaumpequenoparágrafolulianoqueencontramosnoLiberApostrophe27:«OutrosyseDeusperalghũacria‑tura (…) ergo segue‑se seer a encarnaçom» (Fol.72 rb 18), que vinhaseguindo até quase ao fim do intitulado «De como a rainha prova aencarnaçomdeChristoJhesu»(Fol.72vb18).

É um tema especificamente luliano apesar de a sua originalidadehaversidoatribuídaaDunsScoto.Estáporémaveriguadoque jádesde1294noLiberdequinquesapientibusenosanosseguintesnoDearborescien‑tiae (1295), De articulis fidei (1296), De Contemplatione Raimundi (1297),Medicina de peccat (1299) eDictatRaimundi (1300) defendiadiscutir «AnChristusfuissetincarnatus,siAdamnonpeccasset»28.

EmboranoSermodeBeatoSimoneetIudaApostolisafirme:«Ideomaledicunt aliqui, qui dicunt, quod si peccatum originale non fuisset, Deusnonfuissetprincipaliterincarnatus.Quoniamsipropterhocfuissetprin‑cipaliter incarnatus, tunc fuisset incarnatus propter finem minorem, etnonproptermaiorem;propterminorembonitatem,etnonproptermaio‑rem;et sic suomododealiispotestdici;quodest impossibile et contraveritatem»29.

Nãoparecequeoredactorportuguêsse tivesseconfrontadocomarestriçãodosSermones,ondeLulojáafirma:«Etideodico,quodpeccatumoriginalefuitoccasioistiusincarnationisbeatissimae,sednoncausa;sedhumanitas Christi hominis fuit causa; quae quidem fuit supra omniaentiacreataexaltata»30.

________________

ausiècle»,DiálogoFilosófico‑religiosoentrecristianismo,judaísmoeislamismodurantela Edad Media en la Península Ibérica (Actes du Colloque International de SanLorenzo de El Escorial, 23‑26 juin 1991, édités par Horacio Santiago‑Otero),Turnhout,Brepols,1994,p.131‑172;cf.p.144‑146.

27Vd.Estudo…,p.323.28Vd.RaimundiLulli,OperaLatina, III, 118:Liber dePraedicatione,Dist. I –

Dist. IIA, edidit A. S. Flores (Palmae Maioricarum, 1961), p.133; cf. L. Eijo yGaray, «La finalidad de la Encarnación según el beato Ramón Lulio», RevistaEspañoladeTeología,2,Madrid,1942,p.201‑227.

29R.Lulli,OperaLatina,IV,LiberdePraedicatione,118,DistinctioIIB,ed.A.S.Flores(PalmaeMaioricarum,1963),p.317.

30Ibidem.Vd.Estudo...,pp.153‑154,exemplodeparalelismocomLulo.

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AfisionomiadeCristoAatençãodoeruditoinvestigadorjesuítaAbílioMartinsexemplifi‑

coupelaprimeiravezem1940 teroLivrodaCorteEnperialdependênciado texto em relação aNicolau de Lyra e, em 1942, omesmo quanto aRaimundoLulo31.

Em 1938 perguntara‑se: «Ora uma das características essenciaisdestegéneroliterárioconsisteessencialmenteemqueéummixtodedoiselementosfundamentaisheterogéneos:oelementopessoaldoescritoreoelementoalheiopreexistente,queeleutilizoueinseriunasuaobra.

«Como descriminar a heterogeneidade destes dois factores? Maisemconcreto, comoestabelecernaCorte Imperial oque édevidoexclusi‑vamenteaopensamentoeàpenadoseuautor, eaquiloquepertenceaoutremeelese limitouatransmitir,depoisdeoterenquadradonasín‑teseliteráriaquenoslegou?

«Os meios e os métodos, que nos permitem esta dissociação dosdiversoselementos,sãomúltiplosedamaisdiversaorientação.

«Contentemo‑noscomchamaràatençãoparaumdessescritérios:aestruturadafraseeoritmodalinguagem».[...]

Eadiante:«Mas,oque jánãoserásemutilidade,éaplicaçãodesteprincípio às passagens daCorte Imperial que, a julgar unicamente peloconteúdo, tanto poderiam ser integralmente do nosso autor medievalcomodequalquerdas fontes literáriasqueelepossa terutilizado.Umaboametadedaspáginasdolivro,aomenosestánestascondições.Expri‑mamos esta ideia numa fórmula de ordem prática. Estilo, em quepredominam o equilíbrio, o ritmo, a melodia denota de regra geral,dependênciaúnicadoescritor.Estiloaquefaltamaquelascaracterísticas,apresentamaioresprobabilidadesdetersofridoinfluxosalheios,quantoàideiaouquantoàexpressãoexterna.Nãodevemosdar,evidentemente,a estes princípios um valor absoluto. Durezas de frase podem provir,simplesmente, da complexidade do pensamento, ou das deficiênciasduma língua ainda não formada; do mesmo modo que é possível,

________________

31 «Literatura Judaica e a “Corte Imperial”», Brotéria 31 1940 15‑24; «Afilosofia deRaimundoLulo na literatura portuguesamedieval», Ibid., 34.5 1942473‑482.

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também,explicaroritmoeamelodiaporinfluxosdumautoremquejápreexistamessamelodiaeesseritmo»32.

Concordando com a metodologia proposta por Abílio Martins,nossointeressenãointerrompidodesdehádecéniospelasfontesdoLivroaCorteEnperialfoicompensadocomoencontrodaorigemdoparágrafoquefazadescriçãodafiguraimaginadadeJesus.

AtentativaderepresentaroudescreverafisionomiadeCristotemumahistóriaquevemdelonge.

Dopontodevista iconográfico emerge a figuraçãodo controversoSantoSudáriodeTurim,consideradocomosendoolençolqueenvolveuocorpodeJesusnosepulcro.Algunsestudiososidentificaram‑nocomaimagemsobreumtecidodescobertaem525emEdessa.QuantoaoretratodeTurim,referenciadopelaprimeiravezemLyrei,pertodeTroyes,emrelatóriode1389pelobispoPierred’ArcisaopapaClementeVII,guar‑dadona catedral emurnadeprataqueum incêndio em1532derreteu,danificando‑o,amortalhafoirestauradapelasClarissasdeChambery.DenovoameaçadaemAbrilde1997esalvaporbombeiros,viu‑seobjectodecuidados de reparação em 2002 pela especialista suiçaMechtild Flury‑Lemberg,discutindo‑sesedevemounãomanter‑sedesdobradosos4,37metrosdecomprimentodolençolpor1,11delargura.EmMarçode2002realizou‑seemTurimumsimpósiomundialemquevoltouaquestionar‑seavalidadedasconclusõesdasanálisesdolinhocomC‑14.PertençadaCasadeSaboiadesde1452,oSudáriodeTurim,ondeestádesde1578,foioferecidoporHumbertodeSaboiaaJoãoPauloII.

Asdescrições literáriasda fisionomiade Jesus repartem‑se entre oque Isaías profetiza do Servo de Javé, “sem figura nem beleza, semaspectoatraente,desprezadoe evitadopeloshomens comohomemdasdores, experimentado nos sofrimentos, diante do qual se tapa o rosto,menosprezadoedesestimado” (Is.LIII,2‑3)–eoversículodoSalmista:“omaisbelodosfilhosdoHomemeemteuslábiossederramouagraça”(SalmoXLV,3).

NaPatrísticagregadoséculoIIS.JustinoMártirdi‑lo“sembeleza”(DiálogocomTrífon,88:ajeidou=º; cf.85: semglóriaesemhonra;100:semformosura,semhonraesofredor);na latina,Tertulianoapresenta‑o________________

32 «Originalidade e ritmona “Corte Imperial”»,Brotéria 36.4 1938 368‑376.Emnota(p.370)justifica,remetendoparaaspáginasdoLivrodaCorteEnperialdaediçãodeSampaioBruno(Porto,1910).Vd.Estudo...,p.153.

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como “nec humanae honestatis corpus fuit” (De carne Christi, 9). Poroutroladovemosdeentreosgregos,porexemplo,SantoIreneudeLyon,ouvintedeS.PolicarpoeatravésdeesterelacionadocomoscristãosdeÉfeso,umpoucoantesde Justino,aconfessarque“a imagemcarnaldeJesusnosédesconhecida”eSantoAgostinhoque“comoseriaoseurostointeiramenteoignoramos”.

Oretratopoéticoda figuradeCristoédescritonoséculoXIVpelodominicanoquedepoissefezcartuxo,LudolfodaSaxónia.EntraparaonoviciadodeEstrasburgoem1340,ondeprofessoueficouaté1343,anoemquefoieleitopriordaCartuxadeCoblença,demitindo‑secincoanosmais tarde,a fimdeseconsagrarmelhoràvida interioraqueaspirava,transferindo‑se para Mogúncia de onde regressou a Estrasburgo e aífaleceuem10deAbrilde1377.

AlgunsparágrafosdoLivrodaCorteEnperialpoderiasupor‑seprovi‑remtambémdaimaginaçãoliteráriadocompiladorportuguês.ÉocasodafiguraçãodapessoadeCristo.Anossainvestigaçãolevou‑nosades‑cobrir a utilização de fonte latina. Trata‑se do aproveitamento de umretrato fantasiadoda imagem física de Jesus, provavelmentede origemgregamasredigidoemlatimedivulgadopelaEuropaemfinsdoséculoXIIIouprincípiosdoseguinte, inseridoemumapócrifopostoacircularcomo sendoCarta de Lêntulo, ou Públio Lêntulo, dito “governador deJerusalém”, endereçada “ao Senado e ao povo romano”, concluindoque Cristo era, como predizia o salmo XLV, 3, “speciosus inter filioshominum”.

Esta Epistula Lentuli, quanto à forma actual, foi retocada por umhumanistadoséculoXVouXVI.

LivrodaCorteEnperial

EpistulaLentuli

Eemaquellarrealcadeyraqueeramaisalta ssya seentado hũu barom muyaposto e muy fremoso, a estadura doseucorpoerameãaebemcompostadeseusnembros.Oseuuultoerauenerabile onesto e de tal aspeito que aquellesqueooolhassembemopoderiamamare temer. Os seus cabellos da cabeçaeramdecollordeauelhãabemmadurae eram chãaos ata as orelhas e ahy a

...homo quidem statura procerusmediocrisetspectabilis,vultumhabensvenerabilem, quem possent intuentesdiligere et formidare, capillos habenscoloris nucis avellanae praematurae,planos fereusqueadaures,abauribus(vero) circinnos crispos, aliquantulumceruliores et fulgentiores, ab humerisventilantes,discrimenhabensinmediocapitis, juxta morem Nazaraenorum,

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fundo eram encrespados e ja quantoamarellos e mais splandeçentes e che‑guavvam ataa os onbros. Este gloriosobarom avvia espartidura em a cabeçaasy como auiam em custume os naza‑reus que antre os judeus eramosmaissantus. A fronte daquelle barom eraplana emuy clara e as suas façes semmagoa e sem rruguadora com colloruermelha temperada que lhe dauagrande fremosura. A sua boca e o seunariz eram taaes que non avia quereprenderasuabarbaeraauondosadecabellostodosiguaaesebemconcorda‑dosnomeralonguamaserapartidaemduaspartesemnoqueixo.Oseuoolharera simprez e maduro de grande cur‑duraosolhosguazeosemuyfremosos.As suas mãaos e os seus braços erammuy delleitosos pera ueer. Tal era suaapostura que uerdadeiramente he ditodellequehemaisfremosoquetodolloshomĕes.(Fol.2vb14)

frontem planam et serenissimam, cumfaciesinerugaetmacula(aliqua),quamrubor(moderatus)venustat;nasietorisnullaprorsus(est)reprehensio;barbamhabens copiosam capillis concolorem,non longam sed in mento (medio)parum bifurcatam; aspectum habenssimplicem et maturum, oculis glaucisvariis et claris existentibus; inincrepatione terribilis, in admonitioneblandiens et amabilis, hilaris servatagravitate; aliquando flevit et nunquamrisit; in statura corporis propagatus eterectus, manus habens et brachia visudelectabilia,incoloquiogravis,rarusetmodestus, ut merito secundum pro‑phetam diceretur: «Speciosus interfilioshominum»33.

AVitaChristi impressaemColóniaem1472,quando jádesde1470

circulavam excertos de versão alemã em manuscritos, e, pouco apósváriasimpressõesfrancesasaindanoséculoXV,seguindo‑seacatalãdeJuanRoysdeCorella(Valência,1495),acastelhanadeFreiAmbrósiodeMontesino(AlcaládeHenares,1502‑1503),e,adiante,aitaliana,impressaporFranciscoSansovino(Veneza,1570),foiaobraqueprimeiroincluiuaapócrifa Epistula Lentuli (mais de centena e meia de manuscritos emnumerosasbibliotecaseuropeias).

________________ 33Vd.ErnestvonDolbschütz,«Christusbilder»inTexteundUntersuchungen,

N.F.,III,vol.18(Leipzig,1899),Beilagen,p.308xx‑330xx;Vigouroux,DictionnairedelaBible, IV, Paris, 1904, cols. 168‑172, s.v. ‘Lentulus Publius’. Servimo‑nos datranscriçãodadaporGiuseppeRicciotti,VitadiGesùCristo (trad.portuguesada14ªediçãoitalianaporH.BarrilaroRuas,Coimbra,CasadoCastelo,1963,p.183).

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Alémda inserçãonoprólogodaVitaChristi,deLudolfo,aEpistulaLentulifoiacolhidanaintroduçãoàsobrasdeSantoAnselmodeCantuá‑ria(Nuremberga,1491).

Para comparar com a redacção do Livro da Corte Enperial parecevaler a pena transcrever da ediçãodaVitaChristi este longoparágrafo,na tradução, quanto à primeira parte, de FreiNicolauVieira.A versãodo latimdacelebradaobradoCartusianorealizadaapedidodaInfantaD. Isabel, duquesa de Coimbra, senhora de Montemor, casada com oirmão do rei D. Duarte, o regente D. Pedro, e tio do rei D. Afonso V,dava‑se por terminada em 1445. Esta tradução foi impressa em Lisboaentre 14deMaio e 20deNovembrode 1495porNicolaude Saxónia eValentim de Morávia, o Livro intitulado de Vida de Cristo, a mando deD. JoãoIIe«perordenançaemandadodamuyesclarecidadesangueevirtudeseantreasprincesasdacristandadeilustrissimasenhoraRainhaDonaLianor,suamuivirtuosamolher»34.________________

34OP.AugustoMagnenasAnotaçõescríticasaoprimeirovolumedasuaedição da Vita Christi (p.389‑400) indica duas outras versões portuguesas daEpistula Lentuli anteriores à da Legenda Aurea ou Flos Sanctorum de Jacobo deVoragine (m. 1298) cuja impressão por Herman de Campis e Roberto Rebeloestava concluídaem15deMarçode1515: «naúltima folhadaPaixãodoSenhorquecopiosamenteilustrada»(…)traduzidodooriginalespanholabreigualmentea dois ou três Flos Sanctorum publicados naquela língua tivemos à nossadisposição…» (Ibid., p.398‑400); e naVida e Legenda dos SantosMartiresde JoãoPedroBonhomini,domesmoano,quenaopiniãodeA.MagnepoderiaconstituiracontinuaçãodosAutosdosApóstolos,impressosem1505.Vd.MárioMartins,«Atradução da “General Estoria” e da “Formula VitaeHonestae” em Português»,«Aversãoportuguesada“VitaChristi”eos seusproblemas»,«VidasePaixõesdosApóstolos»e«OsAutosdosApóstoloseoLivrodeS.Tiago» inEstudosdeLiteraturaMedieval,Braga,Livr.Cruz,1956,p.93‑104,105‑110,111‑117e118‑129.Id.,«OoriginalemcastelhanodoFlosSanctorumde1513»e«OLivroeLegendadosSantosMartireseoFlosSanctorum»inEstudosdeCulturaMedieval»,Lisboa,Verbo,1969,p.255‑267e269‑280.

Em 1916 Artur Viegas publicou um fragmento de códice português comversãoinéditadoséculoXVdaLegendaAureadeVoragine.NaBibliotecaPúblicadeÉvoraencontrouoP.AvelinodeJesusdaCostaoitopáginasdeumatraduçãoportuguesademeadosdoséculoXVdaVitaChristidoCartusiano.Em1949deunotícia da descoberta, na Biblioteca Nacional de Lisboa, de um fragmento deversão portuguesa do séc. XIV‑XV dasVidas e Paixões dos Apóstolos. Vd. A. de

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AugustoMagnedeu‑secontadequedoincunábulode1495daVitaChristitinhamsidoosprimeirosseiscadernostraduzidosporFreiNico‑lauVieira jáentre1428e1438,quandoFreiBernardo,emobediênciaaoabadeD.EstevãodeAguiar,prosseguiuestaversãoparaserimpressaem1495,conformeocólofondocódicealcobacense:«FreiBernardo,mongedoditomosteiro,dêsos sete cadernos ataaqui e foi acabado15diasdeJunho do ano de 1445 anos. Laus tibi Christe, quoniam liber explicitiste»35.

Para entrega à imprensa a linguagem foi actualizada segundo osimprimidoresafirmamnaProhemialepistola:«Aqualobratamvirtuosaecomoperteĕnçeassicastigadapellovenerauelpadreedeuotoreligiosofrey Andree obseruante da religiam de sam Francisco de vossa e suaalteza orador deuotissimo: ĕmendada e bem corregida emhomododesentenciar.Epostoquedosantigosvocablosnapresenteobraalgunsseachem que aos modernos destes nossos tempos, os quaes de gentijs edoçestermosseprezam,eosenueteradoscomogrossosemgeitam,gostodesuauidadenomoffereçernemhaqueiromdesicomocousafastidiosae insipida vomitar a penuria dos nouos vocabulos a esso dando causamuygrandedondehodictopadrehemaisdignodeveniaquederepre‑hensom»36.

«Lee‑senoslivrosãnuaaesquehamosRomaãosqueJesuChristoquehe chamado dos gentios propheta da verdade, foy de statura do corpograndenomdescompassadamasmeaãoevistosaahonrosaereuerente.Eacarateuedignadehonraaqualpoderiamamaretemerosqueovissem.Os

________________

JesusCosta,«FragmentosPreciososdeCódicesMedievais»,recolhidoemEstudosde Cronologia, Diplomacia, Paleografia e Histórico‑Linguísticos, Porto (SociedadePortuguesadeEstudosMedievais),1992,p.55‑108.

35Vd.A.Magne, introduçãoaLudolfoCartusiano,OLivrodeVitaChristiemlingoagem português. Edição fac‑similar e crítica do incunábulo de 1495 cotejadocomosapógrafosporAugustoMagne,S.J.,ColecçãodeTextosdaLínguaPortuguesaArcaica,I,RiodeJaneiro,MinistériodaEducaçãoeCultura,CasadeRuiBarbosa,1957,p.XI‑XIV.

36 Pois que A. Magne fez, segundo declara, leves alterações à prosa doincunábulo,alémdelhecorrigiralgunslapsosouerrostipográficosconfrontandocomo códice alcobacense emque se baseou a edição de 1495, fizemos a trans‑crição com uma leitura nossa, por parecer mais próxima, porventura contem‑porâneaatédoLivrodaCorteEnperial.

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seus cabellos eram d’auellaãmadura e cheguauam aas orelhas yguaaes echaãosedallyafundoquantoquercrisposelourosecobriameauanauamsobreosombros.Enomeodacabeçatiinhahũaspartadurasegundocus‑tumedosNazareos.Atestachãaemuyclaraeafaçesememverrugaduranemmagoa:aqualafremosentauaavermelhidomtemperada.Donarizedaboca non auia tacha nem reprehendimento alguũ. A barba era grossa oufartadecabellosnomlongamasnafimforcada.Eseuesguardamentoerasimprez e sesudo os olhos de collores e claros, em seu reprehendermuyspantoso,emamoestarblandoeamauioso,alegrecompeso.Algũasvezeschorou mas nunca rijo. E a feitura do corpo bem fundado e dereito. Asmaãos e braçosmuy pareçentes, em a falla pessado e de autoridade bemarazoadodepoucaspallaurasecertas.Eporemcomrazomdizopsalmista,fremosoheemsuafeiturasobretodososfilhosdoshomĕs»37.UmsóapógrafoDoLivrodaCorteEnperialsóumapógrafochegouaténós.Umapó‑

grafo, realizado eventualmente paraAfonsoVasques, guarda‑se actual‑mentenaBibliotecaMunicipaldoPorto.

O exemplar que o copista do apógrafo portuense tinha perante sihavia anteriormente encontrado leitor, que colocou à margem ou aofundodaspáginasalgumasnotas,eatéumaafirmaçãodefé:«Itacredofirmiter». Este copista introduziu‑as no correr do texto, embora distin‑guindo‑as em azarcão, que serve também geralmente para iluminar asmaiúsculas iniciais de parágrafo ou de capítulo ou títulos de secções,depoisdeutilizadono«pertence»enoíndiceinicial.

Ou omodelo de que o copista se serviu era já defeituoso, ou elecometeulapsos,omitindoalgumaspalavrasouresponsabilizando‑seporalgunserros.

Há notícia de outras cópias. Amais antiga será a que a dá comofazendopartedos«livrosdelingoagemdoclaroReyD.Duarte»,cujorol

________________ 37LeituradoPrólogodeLudolfosegundoaediçãode1495,queA.Magne

(Fol.6‑9;p.21,n.º53)compõecomocódicealcobacensequeserviuàcomposiçãotipográfica,cujoFol.4vreproduzanastaticamente(Fol.4v;op.cit.,p.402).Anote‑‑se que D. Duarte mandou fazer trasladado do livro da Vita Christi, que é ocapítuloLXXXVIIdoLealConselheiro.

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aparecenalivrariadaCartuxadeÉvora,publicadoem1739porD.Antó‑nioCaetanodeSousa38.

Poderá ou não ter sido o mesmo códice aquele que pertenceu àInfantaDonaBeatriz, filhadoInfanteD. João,casadacomD.Fernando,duquedeBeja,quefoimãedeD.Manuel,doduquedeViseuedaRainhaDonaLeonor,mulherdeD.JoãoII.PormandodeAntamd’Oliveiraem21deDezembrode1507,oporteirodeDonaBeatriz,Luísd’AtauguiadeRuyPaaes,emcumprimentodasdisposições testamentárias,entregou‑oaovigárioefradesdomosteirodeSantoAntóniodeBeja39.

Pelaprimeiravez,oProf.JoséMarquesdeuinformaçãosobreumalivrariademão,pertençadodoutorMartimLourenço,doadanasegundametade do século XV ao mosteiro beneditino de Vilar de Frades emBarcelos,queoarcebispobracarenseD.FernandodaGuerra(desde1417a 1467) extinguiu por não ter religiosos, fazendo‑o primeira casa doschamadosLóios,CónegosSecularesdeS.JoãoEvangelista.Nestaexistia«huumCorteImperialemlinguagem»40.

Sóalgumasdatas‑limitepodemserapontadasparaaépocadaela‑boraçãodoL.C.E.Sabendo‑sequeumexemplarexistianabibliotecade________________

38«Memoriados livrosdeusodelReyD.Duarte,aqualestánodito livroantigodaLivrariadaCartuxadeÉvora,dondeafezcopiaroCondedaEriceira,D. Francisco Xavier de Menezes», in D. António Caetano de Sousa, Provas daHistória Genealógica da Casa Real Portuguesa, I, Lisboa, 1739, p.544‑546. Cf.InocêncioFranciscodaSilva,«Memoriaacercadabibliotecadeel‑reiD.Duarte»,na revista Panorama 11 1854, terceiro da terceira série, p.315. Joseph Piel deutambémalistade«os livrosquetinhael‑reiD.Duarte»,segundooms.3390daBiblioteca Nacional de Lisboa, fol. 163, na edição crítica do Leal Conselheiro,Lisboa, Bertrand, 1942, p.414. Mais recentemente encontra‑se em Livro dosConselhosdeEl‑ReiD.Duarte (LivrodaCartuxa), transcriçãoeediçãodiplomáticadeJ.J.AlvesDias,Lisboa,Ed.Estampa,1982,p.206‑209.

39 O inventário, segundo o manuscrito do Arquivo da Torre do Tombo(antiga Casa da Coroa,maçoN.º 155, N.º 2), foi publicado por A. BraamcampFreire,ArquivoHistóricoPortuguês, IX,Lisboa, 1914,p. 64‑110; referência àCorteEnperialnap.95.

40AdescriçãoconstadodocumentodoArquivoDistritaldeBraga,VilardeFrades,vol.12(antigo),fol.73,publicadoporJoséMarques,ArquidiocesedeBraganoséculoXV,Lisboa,INCM,1988,p.879‑880,reproduzidoem«LivrariasdemãonoPortugalMedievo»,PensamientoMedievalHispano.HomenajeaHoracioSantiago‑‑Otero(coord.J.M.SotoRábanos),I,Madrid,CSIC,1998,p.801‑814;cf.p.812.

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D.Duarte,éanteriora1438,datadoseufalecimento.Equesejaderedac‑ção anterior a esse ano manifesta‑o o facto de no Leal Conselheiro(Cap.LXVeLXVI) se encontrardefiniçãodepecados edevirtudes emformamuitopróximado latim lulianodaDisputatioRaymundiChristianietHamarSaraceniedoPortuguêsdaCorteEnperial41.

Pelas características da linguagem são unânimes os especialistasem situar a elaboração do L. C. E. entre fins do séc. XIV e inícios doséc.XV42.

António José Saraiva, a partir da grafiadepalavras como «neçesi‑dat»oudomuitofrequenteplural«gentijs»,insinuaqueoLivrodaCorteEnperialnãosejaobraredigidaoriginariamenteemportuguês,masantesutilização de fontes catalãs de Raimundo43. Poderia contrapor‑se quetambémaliselê,paradarumsóexemplo,«semildoenes»(Fol.32ra19),próximodolatim«similitudines».

Sabe‑se,poroutrolado,queLuloredigiuemárabe,catalãoelatim.OLibredelgentiledelstrêssaviseoLiberdeContemplacióenDèu,compos‑tos em árabe, foram pelo próprio autor vertidos em catalão. Conformeatrás ficou dito, perdido o texto árabe do Liber Disputationis RaymundiChristiani etHamarSaraceni redigidoemBugia, em1307, elemesmoemPisa o reelaborou no latim em 1308. No «explicit» daArs consilii lê‑se:«Istum librum fecit Raimundus primo in arábico, et postmodum inromantiumtranslatavit,etderomantiofecit inlatinoponi»44.Eaindasenão teveemcontao reparodeMiguelCruzHernandez:«Lasversioneslatinas, pese a las inevitables correcciones de copistas, editores, etc.,presentam frecuentes catalanismos, como exaloch, greech, lebeich,maistre,palmos,transmontana»45.

Preocupadocomgarantiro conhecimentoeaperpetuidadedasuaobra, em testamento de 1313 deixou aos executantes testamentáriosordenseverbaspara talnecessárias:«Voloetmandoquodfiant indeet________________

41 Vd. J. M. da Cruz Pontes, «Raimundo Lulo e o Lulismo medievalportuguês»,Biblos,521986p.51‑76;cf.p.70.

42 Cf. José Leite de Vasconcelos, Textos Arcaicos, 5ª ed., Lisboa (ClássicaEditora),1970,p.59.

43AntónioJoséSaraiva,HistóriadaCulturaemPortugal,I,Lisboa,1950,p.693.44RaimundiLullii,OperaLatina,II,cit.suprananota14,p.269.45M.C.Hernandez,ElpensamientodeRamonLlull,FundaciónJuanMarch/

EditorialCastalia,1977,p.417.Cf.T.eJ.CarrerasyArtau,Op.cit.,I,p.274.

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scribantur libri inpergameno inromantioet latinoex librisquosdivinafaventegratianovitercompilavi»46.

O Livro da Corte Enperial não encontra em qualquer outra línguaparalelodoqualpossa supor‑sehaver sido traduzido,nemsevê seme‑lhança na arquitectura literária com que se encadeiam as longas falasteológicas, filosóficas ou exegéticas. E não será arrojado sugerirgratuitamentequeonossoautorquisiludiroleitoralterandoumoriginalcatalão para afirmar as suas falas como «declaradas de latim emlinguagempurtugues»(Fol.1ra31)?

Poderá apresentar‑se‑lheum inspirador, quedesdeoprimeiro tra‑balho lembrámos47.Em1263oconversocristãodominicanoPauCrestiàouPabloChristianidisputoupublicamentenasinagogadeBarcelona,napresençadobispo,deconfrades seuse talvezdopróprio reideAragãoJaimeI,comumdosmaisfamososjudeus,ogerundenseRabiMoisésBenNachman, Nachmianides ou Nahmanide, conhecido também comoBonastrucdePorta48.Acontrovérsianãoterátidobomremate49.

Suscitou, porém, no cisterciense alcobacense Frei João, conhecedorda línguahebraica,queescrevia comcaracteres latinos,umaespéciededesagravoemcontra‑respostaàpolémicadorabinodeGerona,redigindo

________________

46 Texto latino e tradução castelhana emFranciscodeBofarull y Sans, «EltestamentodeRámonLullylaEscuelalulianaenBarcelona»,MemoriasdelaRealAcademiadeBuenasLetrasdeBarcelona,V(1910),p.435‑476;cf.p.454,apudTomáseJoaquínCarrerasyArtau,HistoriadelaFilosofiaEspañoladelossiglosXIIIalXV,I,Madrid,1939,p.273,n.5.Ovol.Icontémpormenoresdotestamento,p.254,n.56;ovol. II relata comose cumpriuo testamento (Cap.XIX,«El lulismomedieval»,p.59ess.).

47Vd.Estudo…,p.70‑75e187.48T.yJ.CarrerasyArtau,Historiade laFilosofiaEspañola.FilosofiaCristiana

de los siglos XIII al XV, I, Madrid, 1919, p.47; J. M. da Cruz Pontes, Estudo…,p.51‑52.

49JaimeVillanuevapublicouahistóriadodebaterelatadapelopróprioem«Acta disputationis R. Moysis Gerundensis cum Fr. Paulo Christiano Ord.Praedicatorum», Viaje literário a las iglesias de España; XII (Madrid); MoïseNahmanid, La dispute de Barcelone (trad. de E. Smilévitch, Lagrasse, 1984); cf.Estudo…,p.51.Vd.J.Millás,«SobrelasfuentesdocumentadasdelacontroversiadeBarcelonaenelaño1263,AnalesUniv.Barcelona (1940)p.25‑44;C.Roth,«ThedisputationofBarcelona(1263)»,TheHarvardTheol.Review431950117‑144.

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em latim um Speculum hebraeorum ou Speculum disputationis contrahebraeos,dequeexistemdoiscódices,umdatadode1333eoutrode1375,ondeexplicaaligaçãocomaqueladisputa50.

ConcluindoPorque haveria o Livro da Corte Enperial de ter chegado até nós

somenteatravésdodefeituosoapógrafoportuense?Já lembrámos que poderia ter acontecido a esta obra algo de

semelhante ao que se passou com a versão portuguesa daVita Christi,de que existe notícia de exemplares haverem seguido com os mari‑nheiros de Quatrocentos, com finalidades missionárias, salvando‑seapenas dois espécimes conhecidos da edição de 149551. Remetíamos,então, para os testemunhos a propósito abonados pelo rei bibliófiloD.ManuelII52.

Acrescentaremosumnovoelementoinformativo.AofeitordeCochimPedroQuaresmachegavaem1518comdestino

aosmissionáriosfranciscanos«humvitaChristiemlatimeoutroemlin‑guagememquatrovolumes»53.

Menosdecinquentaanosapós,em1565,seimprimiaemGoaatra‑dução portuguesa do judeu converso Jerónimode Santa Fé,médico doaragonêsanti‑papaPedrodeLuna,comonomedeBentoXIII,oTratadoquefezmestreHierónimo,medicodopapaBeneditoXIIIcontraosjudeusemqueseprovaoMessiasdaleyservindo54.

________________ 50 Vd. Mário Martins, «Frei João, Monge de Alcobaça e Controversista»,

Brotéria42.41946412‑421,incluídoemEstudosdeLiteraturaMedieval,cit.,p.317‑326.51 Vd. J. M. da Cruz Pontes, «Raimundo Lulo e o lulismo medieval

português»,Biblos52198675.52El‑ReiD.Manuel II,Livrosantigosportugueses (1489‑1600)daBibliotecade

SuaMagestadeFidelíssimadescritosporS.M.El‑ReiD.ManuelIIemtrêsvolumes–I,Cambridge,1929,p.58e243ss.

53 A. da Silva Rego,Documentação para a História do Padroado Português doOriente,I,Lisboa,1947.

54Vd.MárioMartins,«ApolémicareligiosanalgunscódicesdeAlcobaça»,Brotéria, 42.3 1946241‑250 (cf.p.249), incluídoemEstudos deLiteraturaMedieval,Braga,Livr.Cruz,1956,p.307‑316(cf.p.315);T.yJ.CarrerasyArtau,Op.cit.,I,pp.49‑50;J.M.daCruzPontes,Estudo…,pp.59‑60.

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Que o coordenador do Livro da Corte Enperial se apresente comoʺsimprezaiuntadorʺdostextosdoutrinaisqueutilizaenãohajanomeadoosseusautores,nemeleprópriosetenhaidentificado,nãosurpreenderá.A IdadeMédia não havia construído ainda amitologia da celebridadeliterária.Oqueimportavaerafazermovimentarospensamentoseactuarasargumentaçõesdaverdadeconsideradacomum.Paratalosautoresseocultavamatésobnomesdeescritorescélebres,quedessemautoridadeàs suas obras, fizessem creditar aquilo que tinham como verdade,fazendo‑as correr como apócrifos, atribuídas a autoridades clássicas.A verdade é de todos. Para Santo Agostinho, esta atitude, já comantecedentes, poderia ser sintetizada na fórmula: “Omnis veritas aquocumquedicaturaSpirituSanctoest”55.

O Livro da Corte Enperial é testemunha da cultura portuguesa deentre os séculos XIV‑XV. Foi veículo das doutrinas de Raimundo Lulocomo no Leal Conselheiro, no Boosco Deleitoso, em Gil Vicente56, eacrescente‑se porventura Frei João Claro, cuja obra Mário Martinsanalisouemcódicesalcobacenses57.

Nãotendooriginalidadedoutrinal,écontudoespécimeliteráriodesignificadoapreciável.

E,principalmente, aparece comoumdos expoentes linguísticosdaépoca,deonde lheadvémsingular interessemorfológico‑fonético.Exis‑tindoumúnicoapógrafo,oLivrodaCorteEnperialnãopodeprescindirdoconfrontocomostextosquecomprovadamentelheserviramdefonte.Aspáginasdemanifestainspiraçãolulianaserãoresumosouadaptações,ouantesextractosdetextosdeRaimundo,aindainéditos,ouaguardandoacontinuaçãodeediçõescríticascomoasquevêmsendopublicadasdesdeháanos?

De aí a pergunta: uma edição crítica do Livro da Corte Enperialquantotempoprecisaráaindaqueesperar?

________________

55 Vd.De Doctrina christiana, I, 2; II, 40. Cf. Franco Simone, «La ‘ReductioartiumadSacramScripturam’qualeespressionedell’umanesimomedievalefinoalsecoloXII»,Convivium,VI,(Torino,1949),p.887‑927;cf.p.893.

56 Vd. J. M. da Cruz Pontes, «Raimundo Lulo e o lulismo medievalportuguês»,cit.p.59e67‑71.

57 Mário Martins, Vida e Obra de Frei João Claro, Coimbra, Por Ordem daUniversidade,1956,p.79‑87.

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