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APLICABILIDADE DO EFEITO SUSPENSIVO NO RECURSO DISCIPLINAR E O
PRINCÍPICO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Vanessa Aparecida de Souza Fontana
(UNINTER – Centro Universitário Internacional Uninter)
Contato: [email protected]
Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2007). Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal do Paraná (2002). Licenciada e Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (2000). MBA em Gestão de Pessoas, IBPEX, 2006. Atualmente cursa bacharelado em Direito pela FAPI e pós graduação lato sensu em Planejamento e Gestão de Trânsito pela UNICESUMAR. É Presidente da EDUTECBRASIL, gere Grupos de Pesquisas na área de Trânsito, Educação e Segurança. Ministra palestras sobre trânsito e Segurança Pública. Atua como consultora de políticas públicas para a área de Trânsito, bem como, em Segurança Pública junto à APRA e ao Fórum Paranaense de Segurança Pública. Atua hoje como Coordenadora do Curso de Segurança Pública e Privada no UNINTER. Possui um blog sobre ciência política, política, direito e atualidades http://vanessadesouza.wordpress.com/
Jayr Ribeiro Junior
(APRA – Associação de Praças do Estado do Paraná)
Contato: [email protected]
Bacharel em Direito (2005/2010). Especialista em Direito Administrativo Disciplinar, do Núcleo de Pesquisa em Segurança Pública e Privada da Universidade Tuiuti do Paraná. Especialista em Polícia Judiciária Militar. Aprovado no EOAB. Pesquisador da ABDConst., - Academia Brasileira de Direito Constitucional. Policial Militar do Paraná. Coordenador do grupo de estudos sobre assuntos jurídicos da APRA – Associação de Praças do Estado do Paraná. Classificado atualmente na DEP – Diretoria de Ensino e Pesquisa do Colégio da Polícia Militar do Paraná. Docente nas escolas de formação da Polícia Militar do Paraná. Docente no Colégio da Polícia Militar do Paraná. Encarregado de vários procedimentos e processos administrativos na Polícia Militar do Paraná (Escrivão de IPM, Escrivão de Sindicância, Encarregado de FATD, entre outros).
RESUMO
O presente artigo tem a intenção de apresentar um estudo sobre o efeito suspensivo nas
transgressões (punições) disciplinares aplicadas aos militares estaduais, principalmente nas
Corporações que aplicam o RDE – Regulamento Disciplinar do Exército - Decreto Federal n.º
4346, de 26 de agosto de 2006, como norma disciplinar de regência. Deste modo, de forma
indissociável comentarmos sobre os atributos e requisitos do Atos Administrativos, postulados
mandamentais de sua validade, principalmente o da presunção de legitimidade versus
presunção de inocência. Nesse ínterim, a questão do caderno (processo) investigativo
disciplinar envolvendo os militares dos estados, não se resume na independência e
aplicabilidade de sanções ao livre arbítrio das respectivas autoridades que detém competência
disciplinar, devendo ser respeitado o princípio da simetria das normas constitucionais, bem
2
como da presunção de inocência - daí reside o cerne da aplicabilidade do efeito suspensivo
nos recursos disciplinares de forma cogente, e não facultativa, sob pena de incorrer em abusos
e ilegalidades. Data vênia, a questão da inaplicabilidade do efeito suspensivo por falta de
previsão legal no Decreto n.º 4346/06, com certeza não autoriza o pré-julgamento de ser
considerado culpado sem encerrar a esfera recursal (leia-se trânsito em julgado) administrativo.
Palavra-chave: presunção de inocência – efeito suspensivo – militar estadual
1. INTRODUÇÃO
A questão envolvendo a aplicabilidade do efeito suspensivo nos recursos disciplinares
contra as decisões nas questões envolvendo as transgressões militares das Forças Armadas e
das Polícias Militares dos Estados, com certeza merecem extrema importância para o mundo
acadêmico, posto que seus códigos entraram em vigência no período em que os militares
estavam no poder, através do Decreto Lei n.º 1001 – Código Penal Militar e Decreto Lei n.º
1002, ambos de 21 de outubro de 1969.
Como visto, os códigos ultrapassam mais de 45 (quarenta e cinco) anos desde a sua
vigência, decretados por força dos militares detentores do poder na época do regime militar,
através dos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, que usando
das atribuições que lhes confere o art. 3º do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969,
combinado com o § 1º do art. 2º do Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968.
Nesse entendimento, também encontramos o RDE – Regulamento Disciplinar do
Exército, Decreto Lei n.º 4346, de 26 de agosto de 2006, aplicado ao Exército Brasileiro,
sancionado pelo Presidente da República, que usando da atribuição que lhe confere o art. 84,
inciso IV, da Constituição, e de acordo com o art. 47 da Lei n.º 6.880, de 9 de dezembro de
1980, aplicado subsidiariamente as Polícias Militares dos Estados.
Todavia, o Decreto Federal vem sendo aplicado as polícias militares dos estados que
não editaram normas disciplinares (leia-se código disciplinares) próprios. Não obstante, será
exposto os efeitos do recurso disciplinar, principalmente sobre o enfoque do respeito do
comando constitucional do princípio da presunção de inocência, de que ninguém será
considerado culpado antes de sentença judicial transitado em julgado.
2. NOÇÕES DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR SENTIDO LATO
A Lei n.º 9.784, de 29 de janeiro de 2009, regula o processo administrativo disciplinar
no âmbito da União, sendo que traz em seu art. 2º, a obediência aos princípios da legalidade,
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finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa,
contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.1
Por sua vez, em seu art. 61, P. U., nos deparamos com o poder discricionário do
Administrador, em havendo justo receio de prejuízo de difícil ou incerta reparação decorrente
da execução, a autoridade recorrida ou a imediatamente superior poderá, de ofício ou a pedido,
dar efeito suspensivo ao recurso.2
As sanções que estão sujeitos os servidores civis estão descritas no art. 127, I usque
VI, da Lei n.º 8.112, de 11 de dezembro de 1990.3
Todavia, o Decreto Federal n.º4.346, de 26 de agosto de 2002, em seu art. 24 e
seguintes, descreve e classifica as punições que estão sujeitos os militares estaduais.4
Destarte, com exceção da advertência, repreensão e do licenciamento e a exclusão a
bem da disciplina, encontramos no impedimento, detenção e a prisão o cerceamento da
liberdade do indivíduo.
Não por acaso, encontramos diferença ontológica do diploma de regência do PAD
aplicado aos servidores civis da União (Lei n.º 9.784/99), e do PAD aplicado aos militares dos
Estados, ou seja, cerceamento da liberdade por força de punição disciplinar, que guarda linha
tênue sobre o direito de locomoção e de buscar o remédio constitucional no caso de sofrer ou
se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por
ilegalidade ou abuso de poder.5
Nesse toar, apresentamos a diferença e a importância da aplicabilidade do efeito
suspensivo no recurso administrativo disciplinar aplicado aos militares estaduais, evitando
consequências danosas para a administração e administrado, esvaziando os efeitos do
recurso, ou seja, de possível arquivamento, atenuação ou absolvição em instancia recursal.
1 Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. 2 Art. 61. Salvo disposição legal em contrário, o recurso não tem efeito suspensivo. Parágrafo único. Havendo justo receio de prejuízo de difícil ou incerta reparação decorrente da execução, a autoridade recorrida ou a imediatamente superior poderá, de ofício ou a pedido, dar efeito suspensivo ao recurso. 3 Art. 127. São penalidades disciplinares: I - advertência; II - suspensão; III - demissão; IV - cassação de aposentadoria ou disponibilidade; V - destituição de cargo em comissão; VI - destituição de função comissionada. 4 Art. 24. Segundo a classificação resultante do julgamento da transgressão, as punições disciplinares a que estão sujeitos os militares são, em ordem de gravidade crescente: I - a advertência; II – o impedimento disciplinar; III - a repreensão; IV - a detenção disciplinar; V - a prisão disciplinar; e VI - o licenciamento e a exclusão a bem da disciplina. 5 Art. 5º. (...) XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;
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3. ATRIBUTOS E REQUISITOS DO ATO ADMINISTRATIVO
O binômio dos atributos e requisitos se tornam indissociáveis no caso envolvendo a
validade dos Atos Administrativos, sendo de bom alvitre acordarmos sobre sua aplicabilidade
nos atos administrativos aplicados aos militares estaduais.
Os Atributos estão pacificamente solidificados pela doutrina como sendo: presunção de
legitimidade; imperatividade; auto-executoriedade; e tipicidade.
Não obstante, “... a presunção de legitimidade não impede que, desde que utilizados o
meios corretos, possa o particular sustar o efeitos de um ato administrativo defeituoso.”6
Nesse toar, DI PIETRO apresenta alguns fundamentos que doutrinadores indicam para
justificar o atributo supracitado, in verbis:
“1. o procedimento e as formalidades que precedem a sua edição,
os quais constituem garantia de observância a lei;
2. o fato de ser uma das formas de expressão da soberania do Estado,
de modo que a autoridade que pratica o ato o faz com o consentimento
de todos;
3. a necessidade de assegurar a celeridade no cumprimento dos atos
administrativos, já que eles têm por fim atender ao interesse público,
sempre predominante sobre o particular;
4. o controle a que sujeita o ato, quer pela própria Administração, que
pelos demais Poderes do Estado, sempre com a finalidade de garantir
a legalidade;
5. a sujeição da Administração ao princípio da legalidade, o que faz
presumir que todos os seus atos tenham sido praticados de
conformidade com a lei, já que cabe ao poder público a sua tutela.” 7
destaquei
Pois bem, na visão da renomada doutrinadora, a presunção de legitimidade deve estar
em sintonia com a lei, ou seja, seguindo os comandos normativos definidos em lei.
Com efeito, daí nasce o imperativo do cumprimento dos ditames definidos em lei, posto
que segundo o princípio da legalidade, a Administração Pública, lato sensu, só pode fazer o
que a lei permite, portanto, difere do particular que lhes é permitido fazer o que a lei não proíbe.
Isto posto, conclui-se que a “...Administração Pública não pode, por simples ato administrativo,
6 Alexandrino, Marcelo e Paulo, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. p. 417 7 Di Pietro, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo. p. 191
5
conceder direitos de qualquer espécie, criar obrigações ou impor vedações aos administrados;
para tanto, ela depende de lei.”8
A imperatividade, também nominado como poder extroverso do Estado, permite que
unilateralmente possa criar e impor obrigações, enquanto a auto-executoriedade dispensa a
Administração de obter autorização judicial prévia para sua prática, inclusive se for necessário,
uso da força.
A tipicidade aparece como segurança para os administrados, ou seja, evitando arbítrios
unilaterais e arbitrários do administrador, devendo estar definido em lei.
Logo, em face do exposto, o atributo da presunção de legitimidade não pode se
sobrepor ao princípio da presunção de inocência, sob pena de gerar instabilidade nas relações
atinentes ao processo administrativo disciplinar.
4. RDE - DECRETO FEDERAL n.º 4.346, de 26 de agosto de 2006
O Decreto governamental em questão, tem por finalidade especificar as transgressões
disciplinares e estabelecer normas relativas a punições disciplinares, comportamento militar
das praças, recursos e recompensas.9
As Polícias Militares do Estados, consideradas forças auxiliares e reserva do Exército,
conforme descrito no art. 144, §6º, sendo que as Corporações que não dispõe de regulamento
disciplinar próprio, são aplicados os respectivos dispositivos.10
Os recursos estão descritos no art. 52, ipsis litteris:
“Art. 52. O militar que se julgue, ou julgue subordinado seu, prejudicado, ofendido ou
injustiçado por superior hierárquico tem o direito de recorrer na esfera disciplinar.
Parágrafo único. São cabíveis:
I - pedido de reconsideração de ato; e
II - recurso disciplinar.”
Conforme disposto, encontramos o pedido de reconsideração de ato e recurso
disciplinar, sendo ‘silente’ sobre seus efeitos.
Contudo, ao silenciar sobre os efeitos tem-se interpretado como sendo aplicado como
devolutivo, por força de uma intepretação ‘equivocada’ do princípio da legalidade.
8 Di Pietro. Op., cit. p. 68 9 Art. 1o O Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) tem por finalidade especificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas a punições disciplinares, comportamento militar das praças, recursos e recompensas. 10 Art. 144. (..) § 6º As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
6
DI PIETRO assevera que:
“A observância do referido preceito constitucional é garantia por meio de outro direito
assegurado pelo mesmo dispositivo, em seu inciso XXXV, em decorrência do qual “a lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão” ainda que a
mesma decorra de ato da Administração. E a Constituição ainda prevê outros remédios
específicos contra a ilegalidade administrativa, como a ação popular, o habeas corpus,
o habeas data, o mandado de segurança e o mandado de injunção; tudo isto sem falar
no controle pelo Legislativo, diretamente ou com auxílio do Tribunal de Contas, e no
controle pela própria Administração.”11
Entendimento este que, o Administrador militar não concede o efeito suspensivo devido
não haver previsão legal no Decreto, mas, ‘não podemos renunciar que devemos ir além dos
muros que ladeiam os quarteis’, devendo ser interpretado o recurso disciplinar de forma
sistemática-teleológica a luz da Constituição Federal de 1988, bem como das Garantias
Constitucionais descritas no artigo 5º, considerados verdadeiros alicerces de um Estado
Democrático de Direito.
Conforme previsão constitucional, ‘somente’ são consideradas norma de eficácia plena,
cláusula pétrea, e “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em
que a República Federativa do Brasil seja parte.”12
Sob o viés antagônico, encontramos a contradição descrita no próprio RDE, quando
apostila sobre o respeito ao contraditório e a ampla defesa, em seu art. 35 e seguintes.
“Art. 35. O julgamento e a aplicação da punição disciplinar devem ser feitos
com justiça, serenidade e imparcialidade, para que o punido fique consciente e
convicto de que ela se inspira no cumprimento exclusivo do dever, na
preservação da disciplina e que tem em vista o benefício educativo do punido e
da coletividade.
§ 1o Nenhuma punição disciplinar será imposta sem que ao transgressor sejam
assegurados o contraditório e a ampla defesa, inclusive o direito de ser ouvido
11 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. p. 12 Art. 5º. (...)§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...)I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.
7
pela autoridade competente para aplicá-la, e sem estarem os fatos
devidamente apurados.
§ 2o Para fins de ampla defesa e contraditório, são direitos do militar:
I - ter conhecimento e acompanhar todos os atos de apuração, julgamento,
aplicação e cumprimento da punição disciplinar, de acordo com os
procedimentos adequados para cada situação;
II - ser ouvido;
III - produzir provas;
IV - obter cópias de documentos necessários à defesa;
V - ter oportunidade, no momento adequado, de contrapor-se às acusações
que lhe são imputadas;
VI - utilizar-se dos recursos cabíveis, segundo a legislação;
VII - adotar outras medidas necessárias ao esclarecimento dos fatos; e
VIII - ser informado de decisão que fundamente, de forma objetiva e direta, o
eventual não-acolhimento de alegações formuladas ou de provas
apresentadas.”13
Como visto, o direito de protocolar recurso, mesmo que já tenha sido punido pela
ausência de previsão legal do efeito suspensivo do recurso, restaria esvaziado a pretensão de
eventual arquivamento, atenuação ou absolvição da transgressão imputada.
Não obstante, a incoerência também reside na redação que permite o militar recorrer
sucessivamente das decisões interpostas, através de requerimento em escalas ascendentes,
ou seja, até a mais alta Autoridade funcional.
Vejamos:
“Art. 54. É facultado ao militar recorrer do indeferimento de pedido de
reconsideração de ato e das decisões sobre os recursos disciplinares
sucessivamente interpostos.
§ 1o O recurso disciplinar será dirigido, por intermédio de requerimento, à
autoridade imediatamente superior à que tiver proferido a decisão e,
sucessivamente, em escala ascendente, às demais autoridades, até o
Comandante do Exército, observado o canal de comando da OM a que
pertence o recorrente.”
Por conseguinte, o Direito para ter reconhecido seu significado como ordenamento
fundamentado em garantias e previsibilidade, no atual ambiente globalizado, necessita de
13 Destaquei
8
elementos de coerência e consistência. Ele deve ser sistêmico, possibilitando a incorporação
do valor à regra.14
Conclui-se, portanto, que um Decreto não pode se sobrepor aos comandos
constitucionais, em sendo, com certeza teremos um desequilíbrio no ordenamento vigente, seja
pelo processo hermenêutico sistêmico, ou piramidal do positivismo kelseniano.
5. DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS
5.1 Presunção de Inocência
Ao reunir o estudo sobre os efeitos do recurso administrativo disciplinar, seja ele
adstrito aos militares estaduais, ou sobre processos administrativos em geral, lato sensu, não
podemos deixar de pontuar o ‘princípio da presunção de inocência’, postulado mandamental
constitucional assegurado a todos os jurisdicionados.15
Assim, através de sua aplicação, pode-se evitar o cumprimento prematuro das
transgressões disciplinares militares, pendentes de decisão de recurso, não restando
percorrido a esfera recursal administrativa. Com efeito, cabe ainda ressaltar a questão do
conceito de transgressão disciplinar, cujo conceito é muito amplo e genérico.16
Neste viés, nota-se que não se apresenta silogismo jurídico infundado para determinar
a obrigação do administrador respeitar o ‘princípio da presunção de inocência’, e sim,
preservando a melhor inteligência do descrito na Constituição Federal de 1988.
Assevera NUCCI que as pessoas nascem inocentes, sendo esse o seu estado natural,
razão que para ocorrer a quebra de tal regra, torna-se indispensável que o Estado, na função
de acusador, reúna provas suficientes para considerar o réu culpado. Ressalta, ainda que,
integra-se o princípio a prevalência do interesse do réu, indubio pro reo, garantindo em caso de
dúvida, absolvição do réu17.
5.2 Tratados Internacionais
Embora o estudo habite na questão interna, aplicada aos militares estaduais, cabe
advertir que os Tratados Internacionais devem ser respeitados pelos aplicadores do direito,
‘inclusive as Autoridades militares que detém competência disciplinar’.
14 Cruz, Paulo Márcio. Princípios Constitucionais e Direitos Fundamentais. p. 10. Juruá: Curitiba, 2006. 15 LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; 16 Decreto Federal n.º 4.346/06. Art. 14. Transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe. 17 Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. p. 81 usque 82
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Não raras vezes, ao se falar em tratados e convenções, pouco são exploradas pelos
jurisconsultos, mas, por força do art. 5º, § 2º da Constituição Federal de 1988, conforme
remissivo anteriormente citado, ‘não devem ser desprezados ou desrespeitados’ pelos
responsáveis pela aplicação da lei.
Com efeito, o Decreto n.º 678, de 06 de novembro de 1992, estabelece em seu art. 1º,
que “...deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém.”18 De igual maneira, não
por acaso, encontramos descrito no Pacto de San José da Costa Rica (art. 8º), as Garantias
judiciais, sendo assegurada a todas as pessoas o direito de que se presuma sua inocência,
enquanto não for legitimamente comprovada sua culpa.19
Ademais, sem grandes esforços, para que seja considerado legitimo e valido a
instrução do processo administrativo disciplinar, devem ser respeitados os direitos e garantias
fundamentais dos jurisdicionados, inclusive os militares, fortalecendo o devido processo legal,
sentido lato, insculpidos no art.5º, LV, LVI, LVII, LXIII.20
Nesse entendimento, é oportuno colacionar o descrito pelo Min. Celso de Mello, no
AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 782.649, in verbis:
“Vale referir, no ponto, a esse respeito, a autorizada advertência do
eminente Professor LUIZ FLÁVIO GOMES, em obra escrita com o
Professor VALÉRIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI (“Direito Penal –
Comentários à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos/Pacto de San José da Costa Rica”, vol. 4/85-91, 2008,
RT):
“O correto é mesmo falar em princípio da presunção de
inocência (tal como descrito na Convenção Americana), não em
princípio da não-culpabilidade (esta última locução tem origem no
18 Art. 1° A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), celebrada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, apensa por cópia ao presente decreto, deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém. 19 Artigo 8º - Garantias judiciais 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: 20 Art. 5º. (...) LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos; LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; (...) LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
10
fascismo italiano, que não se conformava com a idéia de que o
acusado fosse, em princípio, inocente). Trata-se de princípio
consagrado não só no art. 8º, 2, da
Convenção Americana senão também (em parte) no art. 5°, LVII, da
Constituição Federal, segundo o qual toda pessoa se presume
inocente até que tenha sido declarada culpada por sentença
transitada em julgado. Tem previsão normativa desde 1789, posto
que já constava da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Do princípio da presunção de inocência (‘todo acusado é
presumido inocente até que se comprove sua culpabilidade’) emanam
duas regras: (a) regra de tratamento e (b) regra probatória. ‘Regra
de tratamento’: o acusado não pode ser tratado como condenado
antes do trânsito em julgado final da sentença condenatória (CF, art.
5°, LVII).
O acusado, por força da regra que estamos estudando, tem o direito
de receber a devida ‘consideração’ bem como o direito de ser tratado
como não participante do fato imputado. Como ‘regra de tratamento’,
a presunção de inocência impede qualquer antecipação de juízo
condenatório ou de reconhecimento da culpabilidade do imputado,
seja por situações, práticas, palavras, gestos etc., podendo-se
exemplificar: a impropriedade de se manter o acusado em exposição
humilhante no banco dos réus, o uso de algemas quando
desnecessário, a divulgação abusiva de fatos e nomes de pessoas
pelos meios de comunicação, a decretação ou manutenção de prisão
cautelar desnecessária, a exigência de se recolher à prisão para apelar
em razão da existência de condenação em primeira instância etc. É
contrária à presunção de inocência a exibição de uma pessoa aos
meios de comunicação vestida com traje infamante (Corte
Interamericana, Caso Cantoral Benavides, Sentença de 18.08.2000,
parágrafo 119).” (grifei)
Destarte, não se almeja esgotar as minucias envolvendo os tratados internacionais, e
sim, proporcionar um estudo concatenado quanto a sua aplicabilidade nas transgressões
disciplinares militares.
5.3 Precedentes do Supremo Tribunal Federal
A aplicabilidade do ‘princípio da presunção de inocência’ é fator preponderante no
estudo em questão, uma vez que de nada prosperaria as construções proporcionadas se não
estiverem em sintonia com o entendimento dos magistrados e dos tribunais pátrios.
11
Acompanhamos precedentes da Corte Suprema à respeito.
EMENTA: POLÍCIA MILITAR DO DISTRITO FEDERAL. CURSO DE
FORMAÇÃO DE SARGENTOS (PM/DF). CABO PM. NÃO
CONVOCAÇÃO PARA PARTICIPAR DESSE CURSO, PELO FATO
DE EXISTIR, CONTRA REFERIDO POLICIAL MILITAR,
PROCEDIMENTO PENAL EM FASE DE TRAMITAÇÃO JUDICIAL.
EXCLUSÃO DO CANDIDATO. IMPOSSIBILIDADE.
TRANSGRESSÃO AO POSTULADO CONSTITUCIONAL DA
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). RECURSO
EXTRAORDINÁRIO IMPROVIDO. - A recusa administrativa de
inscrição em Curso de Formação de Sargentos da Polícia Militar,
motivada, unicamente, pelo fato de haver sido instaurado, contra o
candidato, procedimento penal, inexistindo, contudo, condenação
criminal transitada em julgado, transgride, de modo direto, a
presunção constitucional de inocência, consagrada no art. 5º, inciso
LVII, da Lei Fundamental da República. Precedentes. - O postulado
constitucional da presunção de inocência impede que o Poder
Público trate, como se culpado fosse, aquele que ainda não sofreu
condenação penal irrecorrível. Precedentes.21
E segue.
E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO – POLÍCIA MILITAR DE
MATO GROSSO DO SUL – PROMOÇÃO DE POLICIAL MILITAR
INDEFERIDA, PELO FATO DE EXISTIR, CONTRA ELE,
PROCEDIMENTO PENAL EM FASE DE TRAMITAÇÃO JUDICIAL –
IMPOSSIBILIDADE – TRANSGRESSÃO AO POSTULADO
CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º,
LVII) – RECURSO EXTRAORDINÁRIO IMPROVIDO – RECURSO DE
AGRAVO IMPROVIDO22.
E mais.
Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo.
Competência do relator para negar seguimento a recurso
manifestamente inadmissível. Ato administrativo ilegal. Controle
judicial. Possibilidade. Concurso público. Soldado da Polícia
Militar. Inquérito policial. Investigação social. Exclusão do
certame. Princípio da presunção de inocência. Violação.
Impossibilidade. Precedentes.
1. É competente o relator (art. 557, caput, do Código de Processo Civil
e art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal)
para negar seguimento “ao recurso manifestamente inadmissível,
improcedente, prejudicado ou em confronto com a súmula ou com
jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal
Federal, ou de Tribunal Superior”.
21 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 565.519 DISTRITO FEDERAL 22 AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 782.649
12
2. Não viola o princípio da separação dos poderes o controle de
legalidade exercido pelo Poder Judiciário sobre os atos administrativos,
incluídos aqueles praticados durante a realização de concurso público.
3. A jurisprudência da Corte firmou o entendimento de que viola o
princípio da presunção de inocência a exclusão de certame público de
candidato que responda a inquérito policial ou ação penal sem trânsito
em julgado da sentença condenatória.
4. Agravo regimental não provido.23
Como visto, basta correr os olhos nos precedentes supracitados da Suprema Corte,
sendo que merece relevo alguns recortes do Min. Celso de Mello, se valendo da doutrina para
balizar sua decisão.
Vejamos.
“Há, portanto, um momento claramente definido no texto
constitucional, a partir do qual se descaracteriza a presunção de
inocência, vale dizer, aquele instante em que sobrevém o trânsito em
julgado da condenação criminal. Antes desse momento – insista-se -,
o Estado não pode tratar os indiciados ou réus como se culpados
fossem. A presunção de inocência impõe, desse modo, ao Poder
Público, um dever de tratamento que não pode ser desrespeitado por
seus agentes e autoridades, tal como tem sido constantemente
enfatizado pelo Supremo Tribunal Federal:
“O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE
INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO TRATE, COMO SE CULPADO
FOSSE, AQUELE QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO
PENAL IRRECORRÍVEL.
- A prerrogativa jurídica da liberdade - que possui extração
constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) - não pode ser ofendida por
interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em
preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por
consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias
fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia
da lei e da ordem.
Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime
indigitado como grave, e até que sobrevenha sentença penal
condenatória irrecorrível, não se revela possível - por efeito de
insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) - presumir-lhe a
culpabilidade.
Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a
natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que
exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em
julgado.
O princípio constitucional da presunção de inocência em nosso
sistema jurídico, consagra, além de outras relevantes conseqüências,
23 AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 753.331 RIO DE JANEIRO.
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uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se
comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao
réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente,
por sentença do Poder Judiciário.
Precedentes.”
(HC 95.886/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Por efeito, com o desígnio de colocar uma pá de cal na questão do efeito suspensivo
do recurso disciplinar aplicado aos militares dos estados, uma vez que diante do silêncio
normativo (doutrina, jurisprudência e do próprio RDE), tem-se como medida de justiça e
coerência o respeito ao princípio da presunção de inocência, devendo ser concedido ‘o efeito
suspensivo aos recursos administrativos, até que reste vencido a esfera recursal’.
Portanto, por meio dos precedentes do Pretório Excelso e da interpretação conforme a
supremacia da Constituição, de imediato reside a ideia do princípio da supremacia
constitucional advém da constatação de que a constituição é soberana dentro do ordenamento
(paramountcy), logo, todas as demais leis e atos normativos a ela tem o dever de adequar-se.24
Ao mesmo tempo, as normas constitucionais representam o gênero das demais
normas jurídicas, conservando atributos, dentre os quais a imperatividade. Via de regra, como
demais regras que integram o ordenamento jurídico, elas possuem mandamentos que
determinam ordem com força jurídica, e não tão-somente moral.25
6. CONCLUSÃO
Ante ao exposto, as construções corroboram que seria ilógico manter um recurso
meramente figurativo no RDE, não sendo aplicado o efeito suspensivo do recurso disciplinar.
De tal modo, a diferença é cristalina entre uma simples chamada de atenção verbal nominada
advertência ou até mesmo de uma suspensão, de uma medida punitiva que venha a cercear a
direito de ir e vir do cidadão, como no caso dos militares estaduais (impedimento disciplinar,
detenção e prisão).
Ou seja, através de uma interpretação da simetria das normas, bem como o direito
militar, sentido lato, por estar dentro do ordenamento jurídico como norma infraconstitucional,
assim como o direito penal e outros ramos do direito, como última ratio, onde é assegurado a
presunção de inocência, no âmbito militar não tem como ser adotado interpretação distinta, até
que sobrevenha o trânsito em julgado administrativo.
Por fim, através de um simples interpretação sistemática-teleológica, bem como
análogo as garantias de ser considerado inocente, alicerçado nos precedentes do Supremo
24 Bulos, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. p. 54. Saraiva: São Paulo, 2008. 25 Barroso, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas. 9ª ed. p. 76. Renovar: Rio de Janeiro, 2009.
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Tribunal Federal, como órgão máximo do Judiciário, e guardião da Constituição Federal de
1988, não podemos deixar de interpretar como sendo perfeitamente possível e em
determinados casos, envolvendo o cerceamento da liberdade dos militares estaduais, de ser
aplicado o efeito suspensivo do recurso, até que seja encerrada a esfera recursal, devendo ser
julgado o recurso pela mais alta Autoridade funcional das Corporações, que no caso das
Polícias Militares dos Estados, é o Chefe do Executivo.
Referências
ALEXANDRINO, Marcelo e Paulo, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. s/d.
Ato INSTITUCIONAL nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o § 1º do art. 2º do Ato
Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968.
BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas. 9ª ed. p. 76. Renovar: Rio de Janeiro, 2009. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. p. 54. Saraiva: São Paulo,
2008.
CÓDIGO PENAL MILITAR e Decreto Lei n.º 1002, ambos de 21 de outubro de 1969.
CRUZ, Paulo Márcio. Princípios Constitucionais e Direitos Fundamentais. p. 10. Juruá:
Curitiba, 2006.
Decreto Lei n.º 1001.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo. p. 191, s/d.
RDE – Regulamento Disciplinar do Exército, Decreto Lei n.º 4346, de 26 de agosto de 2006.