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“Seu amor é grosso demais”: Necropolítica, corpos e afetos negros a partir de Beloved. Sara Martins Ramos 1 Palavras-Chave: Beloved; raça; afetos; necropolítica; subjetividade Resumo: O presente trabalho propõe discorrer sobre as questões de corpo e afeto negros que cercam o romance Beloved, publicado em 1987 pela escritora, editora e professora negra estadunidense, Toni Morrison. A narrativa se ambienta por volta de 1873, momento pós-guerra e de Reconstrução, cerca de dez anos após a abolição da escravatura estadunidense. Compreende-se que, nesse momento histórico em que a narrativa se desenvolve, a sociedade de então começava a lidar com as cicatrizes e resultados econômicos, sociais e psíquicos da escravidão. Investiga-se, a partir das personagens negras do romance, de que modo a autora elabora as nuances dos afetos e subjetividades negros, e como suas estratégias literárias podem dialogar com os processos históricos a partir da diáspora. Com base na narrativa ficcional e na memória das personagens, pretende-se imergir nos aspectos da violência colonial e buscar entender de que forma ela incide sobre os dilaceramentos afetivos, subjetivos e corporais. Introdução Elas sonhavam sonhos que ninguém conhecia nem mesmo elas próprias, não de um modo coerente e tiveram visões que ninguém poderia entender. Elas vagaram ou repousaram pelos campos, cantarolando canções de ninar para fantasmas. Alice Walker Sabe-se que as narrativas “oficiais” e canônicas a respeito da população negra da diáspora - processo de migração forçada dos povos africanos -, tanto científicas quanto literárias, em sua maioria elaboradas por homens brancos, conseguiram fixar imaginários e discursos nas relações sociais que ainda hoje perduram. Enquanto os europeus criavam a máquina de imprensa e revolucionavam a força das suas narrativas, o negro virava mercadoria e objeto. O que se considerava mercadoria, por vezes qualificada em termos de animalidade e selvageria, pouco foi narrada - tendo em vista o legado escravocrata - e, quando o foi, inscrevia-se pela predominância do olhar colonizador. Esse olhar colonizador produz, enquanto herança literária, a escassez de personagens, narrativas, temas e perspectivas negras e negros. Dentro desse já pequeno universo de representações, tanto no Brasil como nos Estados unidos, “a falta de afeto é uma constante ainda presente em muitas obras” (SILVA, 2011). 1 Pesquisadora e militante. Graduada em Comunicação Social - UFRJ

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Page 1: “Seu amor é grosso demais”: Necropolítica, corpos e afetos ... · à casa Paul D, também um ex-escravo da fazenda Doce Lar, a mesma de Sethe. Convidando-o a entrar, Sethe diz:

“Seu amor é grosso demais”: Necropolítica, corpos e afetos negros a partir de Beloved. Sara Martins Ramos1 Palavras-Chave: Beloved; raça; afetos; necropolítica; subjetividade

Resumo: O presente trabalho propõe discorrer sobre as questões de corpo e afeto negros que cercam o romance Beloved, publicado em 1987 pela escritora, editora e professora negra estadunidense, Toni Morrison. A narrativa se ambienta por volta de 1873, momento pós-guerra e de Reconstrução, cerca de dez anos após a abolição da escravatura estadunidense. Compreende-se que, nesse momento histórico em que a narrativa se desenvolve, a sociedade de então começava a lidar com as cicatrizes e resultados econômicos, sociais e psíquicos da escravidão.

Investiga-se, a partir das personagens negras do romance, de que modo a autora elabora as nuances dos afetos e subjetividades negros, e como suas estratégias literárias podem dialogar com os processos históricos a partir da diáspora. Com base na narrativa ficcional e na memória das personagens, pretende-se imergir nos aspectos da violência colonial e buscar entender de que forma ela incide sobre os dilaceramentos afetivos, subjetivos e corporais.

Introdução Elas sonhavam sonhos que ninguém conhecia – nem

mesmo elas próprias, não de um modo coerente – e tiveram visões que ninguém poderia entender. Elas vagaram ou

repousaram pelos campos, cantarolando canções de ninar para fantasmas.

Alice Walker

Sabe-se que as narrativas “oficiais” e canônicas a respeito da população negra da diáspora - processo de migração forçada dos povos africanos -, tanto científicas quanto literárias, em sua maioria elaboradas por homens brancos, conseguiram fixar imaginários e discursos nas relações sociais que ainda hoje perduram. Enquanto os europeus criavam a máquina de imprensa e revolucionavam a força das suas narrativas, o negro virava mercadoria e objeto. O que se considerava mercadoria, por vezes qualificada em termos de animalidade e selvageria, pouco foi narrada - tendo em vista o legado escravocrata - e, quando o foi, inscrevia-se pela predominância do olhar colonizador. Esse olhar colonizador produz, enquanto herança literária, a escassez de personagens, narrativas, temas e perspectivas negras e negros. Dentro desse já pequeno universo de representações, tanto no Brasil como nos Estados unidos, “a falta de afeto é uma constante ainda presente em muitas obras” (SILVA, 2011).

1 Pesquisadora e militante. Graduada em Comunicação Social - UFRJ

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Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN Consócio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros – CONEABs Universidade Federal de Uberlândia – (UFU)

Em Beloved, deparamo-nos com a estória de Sethe e, através de suas memórias, compreendemos que cerca de vinte anos atrás a protagonista havia fugido da fazenda em que era cativa, levando junto seus filhos. Passa a viver com sua sogra, Babby Suggs, já liberta. Após apenas um mês de liberdade, o antigo feitor encontra o 124, como era chamado o lar de Sethe e Suggs. A protagonista o vê chegar pelo seu quintal e, diante da possibilidade de que fossem levados de volta, tenta tirar a vida dos próprios filhos. Mas somente a bebê de dois anos, cujo nome verdadeiro nunca é revelado, falece. No túmulo da filha assassinada, Sethe pede para que entalhassem uma única palavra: Beloved ou, na tradução, Amada. Assim é chamado o fantasma dessa criança destituída de vida e nome próprio e que vive, no 124, com Sethe e sua filha mais nova, Denver. Posteriormente, Amada retornará sob o corpo de uma jovem de 20 anos, como uma lembrança viva e morta, não sepultada, gerando uma nova dinâmica de afetos e memórias dentro do 124.

Para, então, investigar a questão da subjetividade negra diaspórica, passemos por uma contextualização histórica O primeiro momento desse “vertiginoso conjunto”, nas palavras de Achile Mbembe (2014), insere-se no contexto do tráfico do Atlântico, em que se viu a oportunidade de saqueamento e comercialização de vidas. Essas, transformadas em “homens-objeto, homens-mercadoria, homens-moeda”2.

As primeiras capturas e travessias forçadas já se davam de maneira a incutir naquela população, por duas formas muito simbólicas, o senso de desumanização: a perda do direito ao nome próprio e a qualquer status social de origem eram reforçados, pelos traficantes, através da violência física e da tortura, principalmente se houvesse, por parte dos cativos, alguma resistência ou lamentação. Além de serem afastados de suas famílias e aldeias, eram geralmente transportados e enviados às fazendas junto com indivíduos das mais diversas etnias, com o intuito de que não houvesse, num primeiro momento, uma língua comum, isto é, uma fácil comunicação entre os capturados.

Para refletir a vivência específica dos indivíduos socialmente identificados como “negros”, sobretudo a da mulher negra, pretende-se consultar alguns textos da escritora e ativista afroamericana bell hooks3. Dentre seus diversos trabalhos, hooks analisa as experiências das mulheres negras com a escravidão e o sexismo:

Inicialmente, cada escravo a bordo do navio era marcado com ferro quente. Um chicote de nove tiras era utilizado pelos escravagistas para atacar os africanos que chorassem de dor ou resistissem à tortura. As mulheres eram severamente chicoteadas por chorarem.4 (HOOKS, 2015, p. 18, tradução minha).

2 Original: “em homens-objecto, homens-mercadoria, homens-moeda” 3 bell hooks, pseudônimo de Gloria Jean Watkins, é escrito em minúsculas por escolha da autora. 4 Original: “Initially, every slave on board the ship was branded with a hot iron. A cat-o’-nine-tails was used by the

slavers to lash those Africans that cried ot in pain or resisted the torture. Women were lashed severely for crying.”

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Nas primeiras transações de escravos, os colonos norte-americanos priorizavam o tráfico de homens negros para o trabalho nas plantações (Ibidem p.15). No entanto, a partir de um maior contato europeu com a cultura das nações africanas, começou-se a compreender as vantagens econômicas na captura de mulheres para o tráfico escravagista: mais baratas que os homens, elas eram acostumadas tanto às atividades domésticas quanto ao trabalho braçal; eram, também, vistas como uma garantia da reprodução dos cativos, cuja prole era legalmente propriedade do feitor (Ibidem, p. 16). Estrategicamente, o traficante europeu submetia homens e mulheres negras a bordo a torturas brutais, de maneira a minar o senso de humanidade dos cativos (Ibidem, p. 19). Era preciso que desembarcassem nas terras coloniais de acordo com o que os compradores de escravos esperavam, isto é, domesticados, sem resquícios de resistência. À diferença dos homens negros, as mulheres, sempre desnudadas, eram, ainda, submetidas à violência sexual; o estupro como ferramenta de poder e dominação segue existindo durante todo o período escravocrata:

A nudez da mulher africana servia como um lembrete constante de sua vulnerabilidade sexual. O estupro era um frequente método de tortura que os traficantes utilizavam para dominar mulheres negras desobedientes. A ameaça de violação sexual ou outra brutalidade física estimulava o terror psíquico nas africanas deslocadas.5 (Ibidem, p.18, tradução nossa).

Muitas mulheres eram capturadas junto com seus filhos, ou até mesmo grávidas; segundo os estudos de bell hooks, nos porões dos navios “os traficantes brutalizavam as crianças para assistir à angústia de suas mães”6 (Ibidem, p. 19, tradução nossa). Já nas fazendas, elas se deparariam com o fato de que seus filhos não eram realmente seus, visto que podiam ser vendidos ou enviados para outras plantações sem que as mães, ou melhor, as consideradas “reprodutoras” (DAVIS, 2016, p. 19), tivessem o direito de opinar.

Durante a travessia, os negros capturados eram brutalizados de forma a reprimir “sua consciência de si mesmos como pessoas livres, e a adotar a identidade escrava que lhes era imposta”7 (HOOKS, 2015, p. 19, tradução nossa). Nas plantações, mulheres negras desempenhavam trabalhos braçais tão árduos quanto os realizados pelos homens. No que diz respeito às punições, embora fossem aplicadas com a mesma brutalidade para ambos os sexos, as escravas eram geralmente expostas à nudez durante os castigos, além de viverem sob a constante ameaça de violência sexual.

5 Original: “The nakedness of the African female served as a constant reminder of her sexual vulnerability. Rape was

a common method of torture slavers used to subdue recalcitrant black women. The threat of rape or other physical

brutalization inspired terror in the psyches of displaced african females.” 6 Original: “Often the slavers brutalized children to watch the anguish of their mothers.” 7 Original: “These methods of terrorization succeeded in forcing African people to repress their awareness of

themselves as free people and to adopt the slave identity imposed upon them.”

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Levando em conta as flagelações sucessivas por parte dos colonos em função de exterminar o domínio do negro escravizado sobre si e, também, a sua consciência de ser um sujeito, um ser humano (livre), nota-se a relação direta entre uma memória traumática e os dilaceramentos afetivos. Se elementos de expressividade humana, como a revolta, a fala, o choro, o lamento, o companheirismo ou amor entre escravos, podiam se tornar motivos para que os senhores os torturassem e/ou assassinassem, não é de surpreender que a lógica dos escravizados em relação aos afetos e à própria noção de vida seja passível de uma profunda e dolorosa distorção. EU E VOCÊ, NÓS TEMOS MAIS PASSADO QUE QUALQUER UM8

O tempo narrativo do romance investigado, Beloved, se dá em vinte anos após o infanticídio. Sethe e Denver vivem sozinhas no 124 - Baby Suggs já havia falecido e os dois filhos, Howard e Buglar haviam fugido de casa. A vizinhança, em sua maioria composta por ex-escravos, não mais frequentava o 124. Logo nas páginas iniciais, chega à casa Paul D, também um ex-escravo da fazenda Doce Lar, a mesma de Sethe.

Convidando-o a entrar, Sethe diz: “só espero que não repare na casa.” Antes de por os pés no 124, Paul D pressente:

“Está com visita? ”, ele sussurrou, franzindo a testa. “De vez em quando”, disse Sethe. “Meu Deus”. Ele recuou da porta de volta à varanda. “Que mal é esse que tem aí dentro? “Não é mal, é só tristeza. Venha. Entre de uma vez.” (MORRISON, 2011, p.27).

Imperativa, essa última resposta a Paul D parece ser também direcionada ao leitor para que adentre a história da forma que Morrison incita: sem suavidades, pelas arestas do 124. Ao sentir a presença invisível, Paul D a expulsa da casa e passa a viver com Sethe e Denver. Nota-se uma reflexão realizada pelo ex-escravo, quando este observa a relação da mãe e da filha:

Arriscado, pensou Paul D, muito arriscado. Para uma mulher negra que era escrava, amar alguma coisa tanto assim era perigoso, principalmente se era a própria filha que ela havia resolvido amar. A melhor coisa, ele sabia, era amar só um pouquinho; tudo, só um pouquinho. (MORRISON, 2011, p. 76-77, grifo nosso).

Paul D, nesse momento da narrativa, ainda desconhece o infanticídio cometido por Sethe. Sua reflexão, no entanto, já aponta para o que seria uma “normalidade” de relações que a maior parte dos escravos se permitiam ter: amar a própria filha, por exemplo, seria muito arriscado. A repressão dos sentimentos e da fragilidade era

8 (MORRISON, 2011, p. 385).

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frequentemente encarada pelos negros escravizados como uma condição básica não para a vida, mas, pelo menos, para a sobrevivência: “muitos negros têm passado essa ideia de geração a geração: se nos deixarmos levar e render pelas emoções, estaremos comprometendo nossa sobrevivência” (HOOKS, 2006, s/p).

O conceito filosófico de “afeto”, elaborado por Gilles Deleuze e Guattari (2010) a partir de Espinoza, torna-se mais corrente nos campos de cultura, artes e comunicação. A disseminação se permite e se justifica na medida em que a concepção deleuziana se afasta dos sentidos usuais atribuídos ao afeto, para se aproximar dos tratamentos e efeitos da linguagem (FERRAZ, 2016 apud DELEUZE E GUATTARI, p.1991). Esta será investigada, a partir do embasamento teórico dos afetos, no romance Beloved.

Para penetrar a obra de arte a partir dos afetos, será consultado o capítulo “Percepto, Afecto e Conceito” de O que é a filosofia: “Os afetos são precisamente estes devires não humanos do homem, como os perceptos (entre eles a cidade) são as paisagens não humanas da natureza.” Entende-se, portanto, a “humanização” como a homogeneização da singularidade. Por outro lado, o devir, proveniente do francês “devenir”, remete ao movimento puro e infindável, um fluxo não passível de fixação: assim se “configuram” os afetos (FERRAZ, 2016, p. 2). No entanto, a nomeação daquilo que é singular justamente por “ser” um fluxo contínuo, faz-se necessária para que possa existir a comunicação. O homem, então, simplifica, pela linguagem e pela fala, aquilo que é puro devir. É quando, por exemplo, tenta-se identificar devires únicos, suis generis, através de termos como “luto”, “culpa”, “amor”; embora necessários, buscam apenas expressar o que é inapreensível pela linguagem. O conjunto de afetos e perceptos seria, segundo Deleuze, um “bloco de sensações”. Este é aquilo que se conserva, o que faz a arte ser “a única coisa no mundo que se conserva. ” É importante ressaltar que afetos e perceptos não se reduzem às percepções acerca do vivido, de sentimentos e espaços reais, pois se trata justamente de ultrapassá-los, através da arte:

Com efeito, o artista, entre eles o romancista, excede os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido. [...] Ele viu na vida algo muito grande, demasiado intolerável também, e a luta da vida com o que a ameaça, de modo que o pedaço de natureza que ele percebe, ou os bairros da cidade, e seus personagens, acedem a uma visão que compõe, através deles, perceptos desta vida, deste momento, fazendo estourar as percepções vividas numa espécie de cubismo, de simultanismo, de luz crua ou de crepúsculo, [...] Trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate incerto. (DELEUZE E GUATTARI, 2010, p. 222, grifo nosso).

Em Beloved, Morrison elabora uma narrativa que, como lemos na citação deleuziana acima, imerge em aspectos da vida e da história profundamente perturbadores, quase intragáveis. Sabe-se que a autora se inspirou em Margaret Garner, uma escrava fugitiva de Kentucky que, ao ser encontrada por seu antigo “Senhor”, A.K.

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Gaines, em 1856, assassina a própria filha para impedir que retornasse à condição de escrava. No entanto, Beloved não se trata de um relato sobre Garnet, mas de uma escrita ficcional que se propõe a ampliar e redimensionar, não apenas a simbologia acerca do infanticídio, mas dos tormentos e complexidades de afetos que circulam nas vidas aprisionadas.

“O 124 era rancoroso. Cheio de um veneno de bebê”: eis como se inicia a narrativa de Beloved. Compreendemos, então, a dinâmica afetiva dos dois sentimentos principais que habitavam o 124; de um lado, a “culpa” aparentemente conformada, representada por Sethe, e o “ressentimento” cheio de solidão, representado pela filha assassinada. Sobre o infanticídio da personagem, bell hooks escreve:

A memória do terror é tão profundamente inscrita no corpo de Sethe e em sua consciência, e a associação de terror com a branquidade é tão intensa que ela assassina a própria filha para que nunca conheça o terror. Explicando suas ações para Paul D., ela diz que é seu trabalho "mantê-los longe do que eu sei que é terrível". Claro que a tentativa de Sethe de dar fim à angústia histórica dos negros apenas a reproduz de uma forma diferente.9 (HOOKS, 1992, p. 176, tradução nossa).

hooks também trata, em diversas obras, das barreiras emocionais que a experiência escravocrata inscreve nos homens e mulheres: “condições muito difíceis para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual.” Esse tipo de dilaceramento do indivíduo não se limita aos traumas parentais criados durante o sistema escravocrata: subjetividades e comportamentos repassados através das gerações, como uma “memória adquirida”, atravessam o sujeito negro da diáspora, ainda que este não tenha vivido o período colonial. O jornalista afroamericano Ta-Nehisi Coates, no livro Entre o mundo e eu, de 2015, escreve uma carta ao filho, ressaltando uma configuração espiritual da família negra que não finda com a abolição:

Os negros amam seus filhos com uma espécie de obsessão. Você é tudo que temos, e já nos chega em perigo. Penso que preferiríamos matá-lo nós mesmos a vê-lo morto pelas ruas que a América criou. Esta é a filosofia dos descorporificados, das pessoas que nada controlam, que nada podem proteger [...] (COATES, 2015, p. 88).

O romancista que busca produzir afetos e perceptos se dispõe a expressar as singularidades de experiências, encontrando palavras e construções outras, através do desvio rítmico do devir. Com efeito, o acontecimento central do romance - o gesto assassino de Sethe - não se apresenta, ou melhor, não é dito objetivamente em nenhuma

9 Original: “The memory of terror is so deeply inscribed on the body of Sethe and in her consciousness, and the

association of terror with whiteness is so intense that she kilss her young so that they will never know the terror.

Explaining her actions to Paul D., she tells him that it is her job "to keep them away from what I know is terrible." Of

course Sethe's attempt to end the historical anguish of black people only reproduces it in a different form.”

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passagem: de tão imensurável, não pode ser simplificado. Por narrativas indiretas e “blocos de sensações”, o leitor apreende um infanticídio que flutua e se ressignifica interminavelmente durante toda a leitura. A ondulação dos afetos dos personagens está impressa na escrita, que também adota sutis desvios rítmicos – desvios de quem narra, inscrição de poemas e canções, o balbuciar de uma Amada em devir de morte, fantasmagoria, corpo e memória.

Fratz Fanon acreditava que a violência colonial e de raça implicava, no colonizado, a sensação de “morte incompleta” (FANON, 1959 apud MBEMBE, 2014, p. 277). Achile Mbembe, em resgate dos pensamentos de Fratz Fanon sobre a violência colonial, e aliado às teorias foucaultianas, avança a partir do biopoder para a criação do conceito de necropolítica. Nessa perspectiva, a detenção excepcional do poder estaria atrelada à autorização da vida e da morte: “a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer.” (MBEMBE, 2018, p. 5).

Ao pensar a necropolítica em contexto colonial, Mbembe observa que, na colônia, surge “uma forma peculiar de terror. A característica mais original dessa formação de terror é a concatenação entre biopoder, o estado de excessão e o estado de sítio” e a raça seria o elo fundamental de tal relação (MBEMBE, 2018, p.31). Nessa lógica, a raça, como “condição para aceitabilidade do fazer morrer” (FOUCAULT, p. 228 apud MBEMBE, 2018, p.18), é geradora de genocídio, terrores e catástrofes. Um delírio gerador de delírios e enlouquecimentos. Para que o projeto colonial se sustentasse, a violência era “um componente da etiqueta” (MBEMBE, 2018, p. 29). Era preciso que o escravo soubesse que sua vida existia por um triz, ou ainda, que sua existência não passava de uma “morte-em-vida” (Ibidem, p. 29). Em A Crítica da razão negra, lemos que:

A violência colonial era, por fim, uma violência fenomênica. Nessa medida, tocava tanto os domínios dos sentidos como os domínios psíquicos e afectivos. Provocava problemas mentais difíceis de curar e de tratar. Excluía qualquer dialética de reconhecimento e era indiferente a qualquer argumento moral. (MBEMBE, 2014, p. 276).

Em Amada, a linguagem titubeia através dos personagens para articular minimamente o relato da violência: “Ela [Sethe] e Baby Suggs tinham concordado, sem falar, que aquilo era indizível” (MORRISON, 2011, p. 95). São diversos os momentos em que o romance cita, deliberadamente, personagens secundários que foram acometidos a loucuras e alucinações:

Uma vez [Paul D] encontrou um negro de catorze anos que morava sozinho no bosque e dizia que não conseguia se lembrar de nenhum outro lugar. Viu uma negra maluca presa e enforcada por roubar patos que acreditava serem seus bebês. (Ibidem, p. 105) [...]

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Um negro velho maluco estava parado perto da lenha com um machado. Dava para saber na hora que era louco porque estava grunhindo – fazendo barulhos baixos, como um gato. Uns doze metros adiante desse negro havia outra pessoa – uma mulher com uma flor no chapéu. Louca também, provavelmente, porque também estava parada imóvel feito pedra, mas sacudindo as mãos como se tirasse teias de aranha da sua frente. (Ibidem, p. 216-217).

O acontecimento central – o que não significa tema central – apresentado pelo romance é justamente o infanticídio cometido por Sethe. Seu gesto efetua um paradoxo: a violência cometida para evitar a violência. Para refletir sobre esse ato da ex-escrava direcionado aos seus, é preciso retirar a universalidade da violência. Em Fanon, o que separa a violência do colonizado e a violência colonial é uma diferença de natureza (FANON, 1968 apud MBEMBE, 2014, p. 278). Enquanto uma se impõe como ideológica, a outra provém de uma condição reativa:

A violência do colonizado não é, à partida, ideológica. É exatamente o oposto da violência colonial. Antes de ser conscientemente voltada para o esmagamento colonial durante a guerra de libertação nacional, manifesta-se enquanto pura descarga – violência ad hoc, reptilínia e epiléptica, gesto assassino e afecto primário que o “homem perseguido”, “de costas para a parede”, “faca na garganta ou, para ser mais preciso, eléctrodo nas partes genitais”, executa, pretendendo com isto, de maneira confusa, “dar a entender que está preparado para defender a sua vida[...]”.(MBEMBE, 2014, p. 278).

A violência cometida por Sethe, embora tenha sido direcionada aos seus, tratou-se de uma reação energética que, em todos os campos simbólicos, desestabilizou a lógica do poder colonial. O Professor, como era chamado o antigo feitor, chega ao 124 e encontra Sethe com um bebê sangrento no colo. Esse é um dos poucos momentos em que o narrador assume, ainda que indiretamente, o ponto de vista do poder colonial. Diante daquela cena, qualquer racionalidade se perde e o Professor já não quer mais levar de volta uma escrava “estragada”:

De imediato ficou claro, para o professor principalmente, que ali não havia nada a retirar. [...] Porque a mulher – tinha alguma coisa errada com ela. [...] Que diabo, ele tinha apanhado um milhão de vezes, e ele era branco. Uma vez, doeu tanto e ele descontou em Sansão – umas pedradas, foi tudo. Mas nenhuma surra jamais o deixou... Quer dizer, não tinha jeito de ele... Porque ela pegou e fez aquilo? (MORRISON, 2011, p. 217 -218).

Para Mbembe (2014), a violência do colonizado pode significar um processo de emancipação, por permitir que sujeito escravizado embaralhe a lógica de poder associada à distribuição da morte, operando, dessa forma, “uma reviravolta sobre si próprio.” Nota-se, assim, uma ressignificação política no ato de violência, principalmente pelo fato de que entra em cena a reciprocidade e “uma relativa igualdade perante a

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arbitrariedade suprema que é a morte” (Ibidem, p.273): “Vou explicar para ela, mesmo que não precise. Por que eu fiz aquilo. Como, se eu não tivesse matado, ela teria morrido e isso é uma coisa que eu não ia aguentar que acontecesse com ela. (MORRISON, 2011, p. 287). Na perspectiva da protagonista, seu gesto assassino foi um gesto de amor. Quando Paul D descobre o que realmente aconteceu, diz a Sethe: “Seu amor é grosso demais”.

A linguagem do trauma negro frequentemente traz a analogia de um desmembramento corporal, de uma amputação. Amada é essa humanidade destroçada e destruída pelo olhar branco, uma subjetividade desmantelada pela linguagem da selva criada pelo europeu. A filha que retorna efetua um duplo de Sethe e sua linguagem é, também, cindida:

Vejo o rosto dela que é meu é o rosto que ia sorrir para mim no lugar onde a gente estava agachada agora ela vai [...] meu rosto está chegando tenho de ter o rosto estou esperando a junção estou amando tanto o meu rosto meu rosto escuro está perto de mim [...] ela mastiga e me engole eu desapareço agora sou o rosto dela meu próprio rosto me deixou [...] estou sozinha quero ser nós duas quero me juntar.

Fanon, apontava não a contradição, mas a ambiguidade inescapável ao movimento reativo do indivíduo submisso. Ao passo que devolver a violência era frequentemente o único caminho para que o indivíduo negro tomasse o controle da própria vida, o colonizado também se abria à possibilidade de mais um contato com o trauma; arriscar-se à “extraordinária vulnerabilidade da psique confrontada com traumas do real” (MBEMBE, 2014, p. 274), ou ainda, “se escolher a ‘contraviolência’, o colonizado abre porta à possibilidade de uma muito funesta reciprocidade – o ‘vaivém do terror’” (FANON, 1968, p. 70 apud MBEMBE, 2014, p. 280).

A escolha de Sethe é justamente esse reflexo de “sobrevivência” ao terror que ela conhece - ao qual ela não quer submetidos os seus. A palavra-chave que deve ser frisada, sem os contornos de uma moralidade, é escolha. Esta, proveniente de uma vida já marcada pelas atrocidades da escravidão, é aquilo a que a ex-escrava quase nunca teve acesso, e simboliza sua maneira confusa e distorcida de se elevar ao patamar de quem autoriza a vida e a morte. Como bem elabora bell hooks (1992), direcionando a violência aos filhos, Sethe acaba por reproduzir a ideologia genocida do pensamento ocidental. Não por acaso, é esse o trauma, o trauma de uma ação que é espelho da linguagem racista, que mais arrebata a personagem, sua família, e, também, a comunidade negra de Cincinnati. Num contexto de necropoder, faz sentido quando Homi K. Bhaba afirma, em análise de Beloved, que a morte e o retorno da filha assassinada significa “a mãe escrava retomando, através da presença da criança, o direito de posse sobre si mesma.” (BHABHA, 2014, p. 43). Embora este duplo signifique a revisitação de traumas, permite, também, aquilo que Bhaba chama de “uma espécie de autoamor, que é também o amor

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do outro”. Uma subjetividade afetiva em reconstrução: “Amada, ela minha filha.” / “Amada é minha irmã” / “Eu sou Amada e ela é minha”.

Quando Amada retorna ao 124 no corpo de uma jovem de 20 anos, Sethe mergulha cada vez mais nos aspectos sombrios de seu passado e passamos a conhecer, também, seus traumas ainda latentes que se originaram na Doce Lar. Não conhecemos tão profundamente, pela narrativa, a vida dos outros escravos da fazenda. As lembranças da protagonista permitem, no entanto, certa noção do que lá acontecia. Sethe se recorda de Seiso que, acusado de roubar um leitão, desafia o Professor pela lógica:

O professor sorriu: “Você matou o leitão?”. “Sim, senhor. Eu matei.” “Você limpou o leitão?” “Sim, senhor.” [...] “Bom, então. Comeu o leitão?” “Sim, senhor. Comi, sim” “E que me dizer que isso não é roubar?” “Não, senhor. Não é.” “O que é então?” “É melhoria da sua propriedade, sim, senhor” “O que?” “Seiso planta centeio para ter mais chance de preço alto. Seiso pega e cuida do chão, dá colheita maior para o senhor. Seiso pega e enche a barriga de Seiso para trabalhar mais.” Esperto, mas o professor bateu nele mesmo assim para mostrar que as definições pertencem aos definidores – não aos definidos. (MORRISON, 2011, p. 272 – 273, grifo nosso).

A fábula da raça, os discursos e práticas que dela advém carregam o aspecto do delírio, do irracional, do inventado. A dificuldade, então, de elaboração de um passado perpassado pela barbárie é contornar justamente o irracional. Frantz Fanon já ressaltava:

Eu competi contra algo irracional. Os psicanalistas dizem que nada é mais traumatizante para a criança do que estes encontros com o que é racional. Eu diria, pessoalmente, que para um homem cuja arma é a razão, não há nada mais neurótico do que o contato com o irracional. (FANON, 2008, p. 118).

O trauma de que ele trata é a realidade racista em si, aquela que infecta e torna frágil a capacidade do sujeito de entrar “no mundo da linguagem humana” (MBEMBE, 2014, p. 274. É do percepto da Doce Lar que Sethe herda grande parte dos traumas, como quando capatazes e alunos do professor a violentaram, mamaram de seu leite e a chicotearam até ela ter uma cicatriz em forma de árvore nas costas. Esta marca corporal, resultado de uma violência no corpo de Sethe, evoca também o atravessamento de afetos:

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[...] “Tem uma árvore nas minhas costas e um fantasma na minha casa, e nada entre uma coisa e outra além da filha que está aqui nos meus braços. [...] “Que árvore nas costas? Tem alguma coisa crescendo nas suas costas? [...] “A moçabranca. Era assim que ela falava. Eu nunca vi, nem nunca vou ver. Mas era isso que ela disse que parecia. Uma árvore de arônia. Tronco, galhos e até folhas. Folhinhas pequenas de arônia. (Ibidem, p. 36).

No original, fala-se de “chokecherry tree”, uma marca da violência que podia ter a beleza de uma árvore, como os afetos de Sethe sobre a Doce Lar:

[...] embora não houvesse uma única folha naquela fazenda que não lhe desse vontade de gritar, a fazenda se desdobrava na sua frente em desavergonhada beleza. Nunca parecera tão terrível como agora e a fazia pensar se o inferno seria um lugar bonito também. [...] (Ibidem, p. 24).

Sethe associa os elementos delirantes que viveu com aqueles que testemunhou, e tais lembranças se engendram nela de tal forma que seus afetos e pensamentos se tornam gradativamente mais paranoicos e catárticos. Adiante, em um dos diálogos com Amada, Sethe revela algo que não havia dito a ninguém, mas que marca a personagem:

Ele estava sentado com os alunos dele e ouvi ele dizer: “com quem vocês estão fazendo? ”. E um dos rapazes respondeu: “Com a Sethe”. [...]. Eu estava quase indo, virando para ir embora e ir lá buscar o véu, quando escutei ele dizer: “Não, não. Não é desse jeito. Falei para você colocar as características humanas dela à esquerda; as animais à direita. E não esqueça de alinhar todas.” Comecei a andar para trás [...]. Quando bati numa árvore estava com o cabelo arrepiado. [...]. Minha cabeça coçava que era o diabo. Como se alguém estivesse enfiando umas agulhas finas no couro cabeludo. (Ibidem, p. 276-277).

Tanto a humanidade quanto a maternidade roubadas de Sethe são o que ela busca, de qualquer forma, recuperar. A atmosfera de morte que cerca sua vida é aquela que ela não quer na vida de seus filhos – a escravidão como morte metafórica e, em sua perspectiva, mais danosa que a morte em si: “E ninguém, ninguém neste mundo, enumeraria as características de sua filha no lado animal do papel da lição..” (Ibidem, p. 356-357). Retornando ao tempo presente da narrativa, Amada comportava-se cada vez mais como uma memória rancorosa que pedia, de Sethe, o contar daquilo que era indizível. Ouvir as histórias era o que mais satisfazia a menina, e o que mais perturbava a ex-escrava. Mãe e filha entram numa relação enclausurante, de culpa, cobranças e violências físicas e verbais. Denver é deixada de lado. A casa que ninguém visitava passou a também a fechar as portas. Nenhuma das três saía; Sethe havia sido demitida. A loucura e a fome passaram a ser características, ou melhor, sensações do 124. Nos momentos finais do romance, a personagem Denver ganha destaque. Anteriormente obcecada pela irmã-fantasma e, posteriormente, pela irmã corporificada

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– temia que sua mãe pudesse matá-la novamente. Diante da dinâmica de violências sem fim instaurada no 124, a menina percebe que quem corria perigo era sua mãe; que era preciso sair de casa e pedir ajuda. Este é a primeira ruptura de Denver: “ia ter de sair do quintal; dar um passo além do limite-mundo” (Ibidem, p. 345). Na tentativa de sair de casa após muitos anos, Denver se lembra de um diálogo que testemunhou entre Sethe e Baby:

[...] “eles me tiraram da cadeia” Sethe disse uma vez para Baby Suggs. “Eles também botaram você lá”, ela respondeu. “Eles atravessaram você para o outro lado do rio” “Nas costas de meu filho” “Te deram esta casa” “Ninguém me deu nada” [...] “Ah, alguns são bons com a gente” “E toda vez isso é uma surpresa, não é?” “Você não falava assim antes” “Não discuta comigo. Tem mais de nós que eles afogaram do que deles jamais viveu desde o começo dos tempos. Baixe a espada. Isto não é uma guerra, é uma debandada.” (Ibidem, p. 346-347).

Denver se torna inerte depois dessa recordação. Pondera que, fora de seu quintal, pode haver ajuda, mas há também gentebranca e a “debandada”. Em seguida, lemos a passagem que empurra Denver para frente e para longe do memorioso 124:

[...] e então Baby Suggs riu, mais claro que tudo: “Está me dizendo que nunca contei para você nada da Carolina? Do seu pai? Você não lembra nada de por que eu ando do jeito que eu ando e dos pés de sua mãe, sem falar das costas dela? Nunca te contei nada disso? Por isso é que você não consegue descer a escada? Minha nossa. Nossa.” Mas você disse que não tem defesa. “Não tem” Então o que eu faço? “Saiba, e saia desse quintal. Vá” (Ibidem, p.347).

A passagem tem um quê de revolucionário tanto para Denver, que sai do lugar em que criara seu “limite-mundo”, quanto para um leitor negro da diáspora: se associarmos o “quintal” a esse lugar traumático, Morrison parece realizar um trabalho, pela literatura, com o trauma e o ressentimento. Pela voz de Suggs, a passagem implica que se saiba a inevitabilidade da experiência racista no mundo presente; que se conheça o passado e seus fantasmas, não para neles se estagnar e ressentir, mas em favor de, enfim, dar o salto em direção ao novo, para fora dos limites “estabelecidos” pela fábula da raça.

Em uma perspectiva política, a ondulação dos afetos de Denver, que a leva de uma vigília inerte à ação, caminha em paralelo com as vidas negras contemporâneas

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que, como ela, não viveram a escravidão mas têm de, rotineiramente, conviver com a memória adquirida e encarar a “selva” plantada e cultivada pela supremacia branca.

No contato com o mundo exterior, Denver ganha novas perspectivas: “Era uma ideia nova, ter um eu para cuidar e preservar. E isso poderia não lhe ter ocorrido se não tivesse encontrado Nelson Lord [...]. Tudo o que ele fez foi sorrir e dizer: ‘Cuide-se, Denver’, mas ela ouviu aquilo como se fosse o objetivo de existir a linguagem. (Ibidem, p. 357-358). Também arruma um emprego e coloca comida na casa.

A vizinhança, através do relato de Denver, passa a saber o que acontecia dentro do 124. As mulheres negras de Cincinnati, que antes condenavam Sethe, concordaram que “ninguém precisava de um mal adulto sentado à mesa com ressentimento”, porque já bastavam os males diários. Trinta delas colocam-se à porta do 124 para intervir no mesmo dia em que Denver começaria a trabalhar na casa dos Bodwin. A menina sentava na calçada, aguardando a carona que o patrão havia prometido. Quando o patrão de Denver desce a rua para buscá-la, Sethe o vê, e o mesmo cenário de dezoito anos antes parece se duplicar em sua mente:

[...] ela o vê. Conduzindo a égua, reduzindo a marcha, chapéu preto largo o bastante para esconder seu rosto, mas não seu propósito. Ele está vindo para o seu quintal e está vindo em busca de sua melhor coisa. [...] E se ela pensa em alguma coisa, é não. Nãonão. Nãonãonão. Ela voa. (Ibidem, p. 371).

O que se segue é narrado de maneira abrupta: Sethe corre para atingir o branco que se aproxima. Sua “associação do terror à branquidade” talvez estivesse tão arraigada que qualquer corpo branco vindo em direção a sua casa evocaria a mesma reação. Sethe não efetua o gesto assassino, porque as mulheres negras a impedem de fazê-lo. No entanto, ele é simbólico. Após muito tempo, ela põe os pés para fora do 124. E, ainda, depois de imóvel por muito tempo, ela corre. Nesse correr, Sethe larga a mão da filha:

[...] agora sua mão está vazia. Sethe está correndo para longe dela, correndo, e ela sente o vazio na mão que Sethe estava segurando. Agora ela está correndo para os rostos das pessoas ali paradas, se juntando a elas e deixando Amada para trás. Sozinha. De novo. (Ibidem, p. 371).

Faz-se importante pontuar que, dessa vez, o gesto assassino não é direcionado

à Amada, ou aos “seus”. Não é a reprodução da violência colonial contra os negros, cheia de um sentimento de impotência e "quase morte”, mas o salto de violência contra a colonização, personificada no indivíduo branco. Ainda que toda violência seja abertura para possíveis traumas, o que essa passagem talvez provoque, ao inserir contornos diferentes do infanticídio, é a violência emancipadora do colonizado: “Seja o que for, aquilo que concede à violência do colonizado sua dimensão ética é sua estreita relação com as temáticas dos tratamentos e da cura [...]” (MBEMBE, 2014, p. 281).

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A não repetição do gesto assassino contra sua própria prole indica que Sethe, de algum modo, enxerga que a vida em suas mãos tem tanto valor quanto qualquer vida branca, indicando um salto na subjetividade. Lemos ainda, em A Crítica da razão negra, que a violência do colonizado participa “do processo geral da cura. Por fim, tem por objetivo sepultar todos os que tombaram, ‘abatidos pelas costas’. Deste ponto de vista, desempenha uma função de enterramento.” (FANON, 1960 apud MBEMBE, 2014, p. 283). Não é à toa que diante desse cenário – o atentado à figura colonial – a filha morta, por fim, não mais retorna. É o largar do 124 e da mão da filha assassinada, desses elementos que a retinham no passado, que faz Amada finalmente desaparecer.

Quanto à tentativa de assassinar Bodwin, é de extrema importância o fato de que as mulheres negras a impediram. Evitaram que entrasse em cena o “vaivém do terror” (FANON, 1968, p. 70) que pode ser causado pela violência, ainda que emancipadora, do colonizado. A passagem, em geral, reitera a importância da comunidade que as intelectuais negras vêm afirmando: “Sem comunidade não há libertação, só o mais vulnerável e temporário armistício entre uma pessoa e sua opressão. Mas comunidade não deve significar uma supressão de nossas diferenças, nem a pretensão patética de que essas diferenças não existem.” (LORDE, 2007, p. 112). Considerações finais - Precisamos de um tipo de amanhã.10

Nós sabíamos que éramos diferentes, separadas, exiladas do que é considerado “normal”, o branco-correto. E à medida que internalizamos este exílio, percebemos a estrangeira dentro de nós e, muito frequentemente, como resultado, nos separamos de nós mesmas e entre nós. Desde então estamos buscando aquele eu, aquele “outro” e umas às outras. E em espirais que se alargam, nunca retornamos para os mesmos lugares de infância onde o exílio aconteceu, primeiro nas nossas famílias, com nossas mães, com nossos pais.

Gloria Alzandú

Conceição Evaristo, escritora brasileira e estudiosa da literatura negra, observa:

A visão do corpo negro como “coisa” desprovida de qualquer subjetividade deixou as suas reminiscências na literatura brasileira. Encontramos ainda textos em que metaforicamente o negro surge aprisionado por um olhar que insiste em considera-lo como o estranho, o diferente, o Outro. O corpo negro aparece como um simples objeto a ser descrito. (2009, p.23)

A literatura não se propõe, em absoluto, a ser espelho ou representação da realidade. Em sua autonomia, no entanto, ela não se esquiva de ser parte da costura 10 (MORRISON, 2011, p.385)

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que interliga tempo, espaço e contextos das relações dos indivíduos com o mundo, e dos indivíduos entre si. O que dela se extrai pode ser revelador quanto à uma determinada sociedade, assim como os seus silêncios, e naquilo em que se ausenta. O percurso do discurso literário dominante nas américas, no tocante ao corpo negro, construiu-se não apenas através de estereotipias do Outro, mas, sobretudo, de um silêncio ensurdecedor. Morrison desafia a ausência de vestígios, escritos, museus e memoriais através da ficção. É nela que os mortos podem falar, e os vivos expurgar seus fantasmas; é nela, igualmente, que as profundidades podem ser elaboradas sem que banalizem. Quando, nas últimas páginas, o narrador repete que “Esta não é uma história para passar adiante”, não se trata de compartilhar ou não Beloved em si; mas de não passar adiante (no original “pass on”) a tortura, o irracional e as barbáries que se proliferam ancorados em a fábulas como a da raça. Ou ainda, como observa Bhabha, a repetição da frase é feita “a fim de gravar o evento nos recônditos mais profundos de nossa amnésia, de nossa inconsciência.” (2014, p. 46).

Os esforços das autoras negras contemporâneas têm sido o de recontar a história, não no sentido de embelezar a tragédia, mas de compreender a distorção emocional promovida pela escravidão e de pontuar, de maneira política e resistente, de que modo essa população, de antes até os dias atuais, vem elaborando o reaprendizado dos afetos após o trauma.

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