pascal sévérac - o mais potente dos afetos

42
I O CONHECIMENTO COMO O MAIS POTENTE DOS AFETOS (Erkenntnis zum mächtigsten Affekt zu machen) 17 SPINOZA Conhecimento e afetividade em Spinoza* Pascal Sévérac** A filosofia spinozista, em simultâneo, se propõe tomar a afetivi- dade humana como objeto de conhecimento racional e, sobretudo, não visa o aperfeiçoamento ético senão por meio da produção de afetos li- beradores. O projeto spinozista nos propõe uma ética do conhecimento que certamente se distingue de uma moral da obediência; mas não se trata nunca de conhecer por conhecer, trata-se de conhecer para ser afe- tado, e ser afetado de tal forma que possamos viver felizes. Spinoza de fato, na Ética, visa conduzir-nos,“como que pela mão” 1 , até a beatitude da mente, ou seja, a um afeto de “amor divino” 2 , que nasce de a mente agir apreendendo as coisas mediante o mais alto gê- nero de conhecimento, a ciência intuitiva. E as “coisas” a serem conhe- cidas pelo homem são principalmente, como indica o prefácio da Ética III, os afetos humanos, os quais explicam seus comportamentos, seus tormentos, suas felicidades, frágeis ou duráveis. O itinerário ético é então um percurso do conhecimento, que, simultaneamente, toma por * Tradução de Homero Santiago, professor adjunto da USP (Universidade de São Paulo). ** Professor Doutor substituto da Université de Paris I e Diretor de Programa do Collège International de Philosophie. 1. Preâmbulo da Parte II. 2. Ética, Parte V, proposição 42, demonstração. O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 17

Upload: renata-ferreira

Post on 09-Nov-2015

18 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Pascal Séverac - O mais potente dos afetos

TRANSCRIPT

  • IO CONHECIMENTO COMO O

    MAIS POTENTE DOS AFETOS

    (Erkenntnis zum mchtigsten Affekt zu machen)

    17

    SPINOZA

    Conhecimento e afetividade em Spinoza*Pascal Svrac**

    A filosofia spinozista, em simultneo, se prope tomar a afetivi-dade humana como objeto de conhecimento racional e, sobretudo, novisa o aperfeioamento tico seno por meio da produo de afetos li-beradores. O projeto spinozista nos prope uma tica do conhecimentoque certamente se distingue de uma moral da obedincia; mas no setrata nunca de conhecer por conhecer, trata-se de conhecer para ser afe-tado, e ser afetado de tal forma que possamos viver felizes.

    Spinoza de fato, na tica, visa conduzir-nos,como que pela mo1,at a beatitude da mente, ou seja, a um afeto de amor divino2, quenasce de a mente agir apreendendo as coisas mediante o mais alto g-nero de conhecimento, a cincia intuitiva. E as coisas a serem conhe-cidas pelo homem so principalmente, como indica o prefcio da ticaIII, os afetos humanos, os quais explicam seus comportamentos, seustormentos, suas felicidades, frgeis ou durveis. O itinerrio tico ento um percurso do conhecimento, que, simultaneamente, toma por

    * Traduo de Homero Santiago, professor adjunto da USP (Universidade de So Paulo).

    ** Professor Doutor substituto da Universit de Paris I e Diretor de Programa do Collge Internationalde Philosophie.

    1. Prembulo da Parte II.

    2. tica, Parte V, proposio 42, demonstrao.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 17

  • objeto a afetividade humana e pretende transform-la, ou ao menosviv-la de outra maneira, para viver verdadeiramente. Trata-se de umpercurso puramente intelectualista, como puderam dizer? Em certosentido sim, j que, de um ponto de vista mental (mas, veremos, esseno o nico ponto de vista considerado por Spinoza), necessrio de-senvolver a potncia do intelecto3. Entretanto, essa potncia intelectual e sem dvida uma das grandes originalidades da tica spinozista ao mesmo tempo uma potncia afetiva. A palavra de ordem da trans-formao tica de si, na conquista da salvao, pode sem dvida resu-mir-se por duas das primeiras proposies da Parte IV:

    Nada do que uma ideia falsa tem de positivo suprimido pela presena doverdadeiro enquanto verdadeiro.4

    Um afeto no pode ser refreado nem suprimido seno por um afeto con-trrio e mais forte do que o afeto a ser refreado.5

    O conhecimento verdadeiro, enquanto tal, no tem nenhuma vir-tude teraputica. Ele no pode agir seno sendo apto a produzir afetosque nos permitam resolver certas lgicas afetivas, as do conhecimentoparcial, mutilado, confuso. At a ltima proposio, Spinoza mantmessa ideia: o que nos salvar, no o vo esforo, nascido talvez do co-nhecimento claro de nossos impedimentos, para nos livrar de nossosmaus afetos; mas o gozo de certa forma de afetividade, que ento nosdar a fora de experimentar menos aquela que no faz nossa felicidade.

    A beatitude no o prmio da virtude, mas a prpria virtude; e no goza-mos dela porque refreamos nossos impulsos; mas, ao contrrio, podemosrefrear nossos impulsos porque gozamos dela.

    Conhecer adequadamente para produzir afetos teis; ser afetadopara lutar contra os maus afetos, nascidos do primeiro gnero de co-

    O mais potente dos afetos

    18

    3. A beatitude identificada liberdade, no incio do esclio da proposio 36 da quinta parte da tica;e o ttulo dessa Parte V, lembremos, : Da potncia do intelecto ou da liberdade humana.

    4. tica, Parte IV, proposio 1.

    5. tica, Parte IV, proposio 7.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 18

  • nhecimento: as dinmicas do conhecimento e da afetividade esto es-treitamente ligadas em Spinoza. A fim de separar os fios desse emara-nhado, vamos organizar nossa pequena sondagem sobre as relaesentre conhecimento e afetividade em Spinoza a partir de trs questes:

    primeiro, uma vez que para conhecer preciso estar preparadopara conhecer, perguntar-nos-emos se existe uma afetividade es-pecfica que nos dispe ao conhecimento das coisas: existem cer-tos afetos particulares que nos determinam a conhecer? No setem, segundo Spinoza, de desenvolver certa forma de sensibilidade que se poderia chamar de uma sensibilidade cognitiva quenos torne aptos a experimentar afeces teis ao conhecimento?

    em seguida, interrogar-nos-emos sobre o conhecimento que estimplicado nos afetos: a afetividade, mesmo a mais oposta ao des-dobramento do conhecimento racional, no guarda, em seufundo, uma relao cognitiva com seus objetos? A afetividade,mesmo a mais imaginria, cega aos objetos a que ela se vincula?Pode-se, alis, experimentar um afeto que esteja separado de todoconhecimento de objeto?

    enfim, uma vez que a ausncia de racionalidade de certos afetosno significa, segundo Spinoza, ausncia de lgica, considerare-mos como possvel conhecer adequadamente nossa afetividade:que conhecimento se pode ter de nossa afetividade,mesmo a maispassional? O que pode o conhecimento racional contra a afetivi-dade nascida da imaginao?

    Trs problemas, portanto, dirigiro nosso estudo, que no tem pre-tenso de ser exaustivo em cada um deles, mas que balizar as pistas aexplorar:

    1 o problema do conhecimento pela afetividade: h uma afetivi-dade para o conhecimento?

    2 o problema do conhecimento na afetividade: que saber est en-volvido na afetividade?

    19

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 19

  • 3 o problema do conhecimento da afetividade: em que sentido acompreenso de nossos afetos liberadora?

    1. O conhecimento pela afetividade

    Pode-se dizer que para Spinoza existe um desejo de saber? A ticanunca faz meno de um desejo desses, que poderia ser o prprio dohomem. Existe, sim, um desejo de ser feliz, que se identifica com a na-tureza do homem: o desejo [] de viver feliz ou de viver e agir bem,etc., a prpria essncia do homem, isto [], o esforo pelo qual cadaum se esfora por conservar o seu ser, afirma a demonstrao de tica,Parte IV, proposio 21. Mas ao contrrio de Pascal, para quem a se-gunda natureza do homem, nascida do pecado, marcada especial-mente pela libido sciendi6, ou, ainda, de Hobbes, que define a curiosi-dade como um amor do conhecimento natural no homem7, Spinoza o filsofo que se apresenta todavia como o representante de um racio-nalismo absoluto no faz alarde nunca, na tica8, de certa forma deafetividade que disporia o homem naturalmente, e favoravelmente, parao conhecimento. Nem curiosidade fundamental do homem, que expli-caria seus progressos cientficos; nem virtude primeira do espanto, queexcitaria essa curiosidade aplicando-se ao que ainda desconhecido.Ao contrrio de Descartes, Spinoza no distingue uma boa admirao,experimentada diante do que novo e extraordinrio, e uma admira-o excessiva (o espanto) que paralisa o corpo e anestesia o pensa-mento. A admirao para ele s essa imobilizao da mente9, que,longe de ser impelida compreenso, parada pelo que a ultrapassa. Ocurioso, para Spinoza, no tanto aquele que busca compreender, seno

    O mais potente dos afetos

    20

    6. Ver Pensamento 458 (ed. Brunschvicg).

    7. Ver Leviat, cap. VI, ed. Sirey, 1971, trad. F. Tricaud, pp. 52-3.

    8. Precisemos: na tica. Pois no Breve tratado, em que a herana cartesiana ainda muito marcada, umlugar dado ao espanto, como primeira das paixes (ver Breve tratado, II, 3,[2]).

    9. tica, Parte III, definies dos afetos, 4: A admirao a imaginao de alguma coisa qual a mentese mantm fixada, porque essa imaginao singular no tem nenhuma conexo com as demais.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 20

  • aquele que busca ficar espantado; no tanto aquele que est empe-nhado na via difcil do conhecimento racional das relaes entre as coi-sas, seno aquele que busca distrair-se (Pascal diria, sem dvida, diver-tir-se) pela contemplao de coisas novas, inditas, inauditas10. Ora, essadistrao da mente admirativa, segundo a explicao que segue a defi-nio de admirao, no se deve a uma causa real, ou seja, a algumapropriedade inerente coisa admirada. A desconexo mental no temcausa na prpria coisa,mas s em ns: deve-se a uma ausncia, a um elode ideias imaginativas, constitutivas de nossa memria, na qual ordi-nariamente vem se inscrever toda percepo de coisa. Com efeito, ha-bitualmente, quando percebemos uma coisa, ela nos faz pensar emoutra coisa, faz-nos passar a outra coisa: o ordinrio de nosso imagi-nrio cairmos do pensamento de uma coisa no pensamento de outra,conforme o encadeamento regrado das afeces de nosso corpo11. Masquando a coisa para ns nova, no camos mantemo-nos fixados. Aadmirao , pois, uma figura de enorme passividade: ela provm deuma imaginao fixa, obsessiva, que est em ruptura com a imaginaomvel,movente, prpria a nossa memria. Logo, a admirao no podeser, em Spinoza, o afeto que impele aquisio dos conhecimentos; pelocontrrio, ela equivale a uma ruptura no encadeamento ideal e im-possibilidade de pensar as relaes entre coisas. E, contrariamente aoque ela em Descartes, tampouco poderia ser o afeto pelo qual nos tor-namos sensveis ao infinito, pois para Spinoza nada em si admirvel,nada em si fora do comum, nem a infinitude divina, imanente a seusmodos, nem a infinitude do livre-arbtrio, iluso nascida de nossa ig-norncia das causas. Deus a comunidade universal que todas as coi-

    21

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    10. Raramente encontramos o termo curiosidade sob a pena de Spinoza: de nosso conhecimento, duasvezes apenas, e de forma mais pejorativa, em oposio utilidade. No Tratado teolgico-poltico, cap.VII, 17, no qual Spinoza afirma que o que podemos compreender do sentido das Escrituras basta para nossautilidade, ou seja, para nos conduzir beatitude, o resto mais uma questo de curiosidade que de uti-lidade (uvres III, PUF, 1999, trad. P.-F. Moreau e J. Lagre, p. 311); na tica, Parte III, proposio 59,esclio, em que Spinoza afirma que os afetos que se podem compor a partir dos trs primitivos so inu-merveis, e que nos bastar reter apenas os principais, o resto, que omiti, mais uma questo de curio-sidade que de utilidade.

    11. Ver tica, Parte II, proposio 18 e seu esclio.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 21

  • sas envolvem, enquanto modificaes de sua infinita potncia. E essapotncia infinita no excede toda compreenso; ela , ao contrrio, umobjeto de conhecimento intelectual progressivo: quanto mais com-preendemos as coisas singulares, tanto mais compreendemos Deus12.

    Em suma, no h, para Spinoza, paixo do conhecimento que nosimpeliria a buscar automaticamente a verdade e permitiria reconhecero que tem um valor inestimvel. H antes um esforo para conservar-se,que se realiza tanto atravs das ideias inadequadas da imaginaoquanto atravs das ideias adequadas da razo13. Noutras palavras, umcerto desejo de conhecimento e at, mais precisamente, de conheci-mento racional no est ausente, em filigrana, da antropologia spi-nozista dos afetos. Esse desejo, porm, no mais fundamental que odesejo de crer ou de imaginar. Muito pelo contrrio, mais raro, umavez que a mente est mais acomodada no pensamento imaginativo queno racional. Quanto mais a mente est no conhecimento inadequado,mais persevera nele, consciente de seu esforo e, portanto, deseja afir-mar sua potncia nesse conhecimento inadequado (de que o prprio ignorar-se como inadequado). Inversamente, quanto mais a mente estno conhecimento adequado, tanto mais deseja perseverar nele.Assim secompreende a proposio 26 das Partes IV e V da tica:

    Tudo aquilo pelo qual, em virtude da razo, ns nos esforamos, no seno compreender; e a mente, enquanto utiliza a razo, no julga ser-lhetil seno aquilo que a conduz ao compreender.Quanto mais a mente capaz de compreender as coisas pelo terceiro g-nero de conhecimento, tanto mais deseja compreend-las por esse mesmognero.

    O desejo de conhecimento adequado um desejo que compreendea suma utilidade do conhecimento: por meio dele, a mente se fortifica,

    O mais potente dos afetos

    22

    12. tica, Parte V, proposio 24.

    13.Ver tica, Parte III, proposio 9: a mente, quer enquanto tem ideias claras e distintas, quer enquantotem ideias confusas, esfora-se por perseverar em seu ser por uma durao indefinida, e est conscientedesse seu esforo.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 22

  • torna-se mais perfeita e convm com as outras mentes, tambm elasativas. Um desejo tal, que no espontneo mas se desenvolve pouco apouco, est portanto muitssimo distante de uma paixo amorosa quese fixaria sobre o conhecimento como objeto a possuir, ou at colecio-nar: no possumos o conhecimento racional seno partilhando-o, eno o partilhamos seno aumentando-o. O desejo ativo de conheci-mento adequado em Spinoza s pode ser um desejo que compreende afinalidade tica. Todo o prlogo do Tratado da reforma do intelecto jorientava o desenvolvimento dos conhecimentos cientficos para a in-vestigao de uma natureza mais perfeita, que fosse partilhada com osoutros14; o que a tica confirmar, como j assinalamos, indicando noincio da Parte II que no se deduzir da natureza divina tudo que deladeve ter se seguido (o que seria de qualquer forma impossvel, j quese segue uma infinidade de coisas), mas apenas aquelas que possamnos conduzir, como que pela mo, ao conhecimento da mente humanae de sua suma beatitude.

    Se no h afeto essencial que volte o esforo humano para o co-nhecimento verdadeiro, se a investigao da verdade s tem valor porsua finalidade tica (a busca da beatitude), h no obstante uma impli-cao de toda a sensibilidade humana no desenvolvimento do conhe-cimento adequado.A essncia do corpo humano define-se, em Spinoza,por sua aptido a ser afetado e afetar. Ora, quanto maior essa aptidoafetiva, maior a capacidade da mente de pensar vrias coisas simulta-neamente, e, por conseguinte, de compreender-lhes as relaes de con-venincia, diferena e oposio15. Um corpo ativo no , pois, um corpoque consegue tornar-se insensvel ao mundo, que chegaria a furtar-se aodeterminismo das causas exteriores. A atividade no nasce de um pro-

    23

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    14. Tratado da reforma do intelecto, 14: Eis, pois, o fim a que tendo: adquirir essa natureza e esforar--me para que, comigo, muitos outros a adquiram; isto , faz parte de minha felicidade o esforar-mepara que muitos outros pensem como eu e que seu intelecto e seu desejo convenham com o meu inte-lecto e o meu desejo; 16: J se pode ver que desejo dirigir todas as cincias a um s fim, um s escopo,a saber, o de alcanar aquela suma perfeio humana de que falamos (e a nota [e] precisa: As cinciastm um nico fim para o qual devem ser todas dirigidas).

    15. Segundo uma expresso do esclio da proposio 29 da Parte II da tica.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 23

  • cesso dedesafecoouinsensibilizao. Decerto, trata-se sim de nomais sofrer passivamente as coisas que encontramos; mas tornar-seativo, para o corpo, tornar-se pouco a pouco capaz de no mais viversegundo um nmero reduzido de normas afetivas, que polarizam ocorpo em alegrias ou tristezas obsessivas. Um corpo ativo um corpocuja sensibilidade afetiva forte, flexvel, lbil. Com efeito, ser afetadono significa, em si, padecer. Muito pelo contrrio, quanto mais a apti-do do corpo a ser afetado reduzida, mais o corpo vive num meio res-trito, insensvel a um grande nmero de coisas, s mltiplas distinesdelas: esse corpo no sabe responder, se no for de maneira unilateral, ssolicitaes de seu meio exterior, aos problemas que o mundo lhe pe.

    A atividade do corpo e da mente no se d, portanto, contra o de-terminismo, ou seja, contra a determinao pelos corpos e mentes ex-teriores; pelo contrrio, tornar-se cada vez mais apto a ser afetado no padecer cada vez mais, mas ser cada vez mais capaz de formar ima-gens, e ideias dessas imagens, de tal sorte que fiquemos aptos a ser causaadequada dos encadeamentos de afeces corporais e das ideias queformamos. na convenincia com os corpos e mentes exteriores que sed o tornar-se ativo; isto equivale, portanto, a uma abertura da sensibi-lidade humana, a um aumento de sua aptido a ser afetado e afetar.

    Aumento da sensibilidade afetiva do corpo e aumento da potnciade pensar da mente, portanto, vo de par: o que uma mente pode co-nhecer correlato ao que um corpo pode experimentar. Para aprofun-dar essa ideia, ser-nos- preciso doravante passar a nosso segundoponto, consagrado ao conhecimento envolvido na afetividade, e distin-guir, melhor do que o fizemos, entre, por um lado, as afeces corpo-rais e mentais (as imagens e as ideias), e, por outro, os afetos (tantocorporais quanto mentais) que elas so suscetveis de engendrar.

    2. O conhecimento na afetividade

    A presena de afetos parece implicar a presena de um conheci-mento, mesmo que parcial, de alguma coisa, ao passo que a presena da

    O mais potente dos afetos

    24

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 24

  • ideia de uma coisa no parece implicar necessariamente a presena deum afeto. Tal implicao, simples e no recproca, tirada do terceiroaxioma da Parte II da tica:

    Os modos de pensar tais como o amor, o desejo, ou qualquer outro que sedesigna pelo nome de afeto do nimo, no podem existir se no existir, nomesmo indivduo, a ideia da coisa amada, desejada, etc. Uma ideia, emtroca, pode existir ainda que no exista outro modo de pensar.

    Poderamos, ento, pensar em uma coisa sem am-la ou desej-la;no poderamos, porm, amar ou desejar sem pensar em uma coisa.Que seja.Mas e quanto aos afetos, ditos primrios por Spinoza, que soa alegria e a tristeza? So necessariamente, como o desejo, o amor ou odio, vinculados ideia de uma coisa? O que nos do a conhecer taisafetos, se possvel experimentar alegrias puras ou tristezas puras, queno sejam referidas a nenhuma coisa exterior?

    A definio do afeto, dada no incio da terceira parte da tica, mos-tra que este indissoluvelmente afeco corporal (se considerado noatributo extenso) e ideia dessa afeco (se considerado no atributopensamento)16. Mesmo uma simples alegria, que se caracteriza como apassagem de uma menor a uma maior perfeio, afeco corporal eideia dessa afeco. Ela no corpo uma afeco que aumenta ou esti-mula sua potncia de agir, e namente uma ideia que aumenta ou estimulasua potncia de pensar. Mas qual o objeto dessa ideia ou desse mododo pensar? Tal ideia, que favorece a potncia mental, ela prpria umconhecimento de alguma coisa?

    A experincia parece nos mostrar que possvel nos sentirmos ale-gres, ou tristes, sem saber por que (quer esse saber seja racional, isto ,provenha de uma ideia adequada, quer seja, como mais frequente, pu-ramente imaginativo, isto , inadequado). Noutras palavras, possvelestar alegre, sentir-se bem, sem estar amoroso, isto , sem que essa ale-

    25

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    16. tica, Parte III, definio 3: Por afeto compreendo as afeces do corpo, pelas quais sua potncia deagir aumentada ou diminuda, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afeces.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 25

  • gria seja acompanhada da ideia de uma causa exterior. Como explic--lo, em termos spinozistas?

    Spinoza define, assim, a imaginao:

    Chamaremos de imagens de coisas as afeces do corpo humano, cujasideias representam os corpos exteriores como nos estando presentes, em-bora elas no reproduzam as figuras das coisas. E quando a mente con-templa os corpos sob essa relao, diremos que ela os imagina.17

    Pode-se entender, por essa definio, que s as afeces corporaiscujas ideias nos representem algum corpo exterior como presente soimagens. Noutras palavras, nem todas as afeces corporais so repre-sentativas, ou antes: nem todas so imagens, e, portanto, no so men-talmente correlatas a ideias representativas, pelas quais a mente imaginaas coisas. Por conseguinte, seria possvel experimentar o que chama-mos deuma alegria pura, que no seria acompanhada de nenhum co-nhecimento de algum objeto exterior.

    S uma afeco corporal que d a imaginar alguma coisa estariaem condies de nos fazer experimentar amor (ou dio). Com efeito, seuma tal afeco aumenta ou estimula a potncia de agir de nosso corpo,produz um afeto, no caso uma alegria; e se, ao mesmo tempo, essa afec-o a imagem de uma coisa, representar-nos-emos essa coisa comonos estando presente, ao mesmo tempo que estaremos alegres.Mas serque se pode assimilar, assim, a ideia da coisa que imaginamos estandoalegres ideia da causa exterior que atribumos a nossa alegria? Vrioscasos podem aqui se apresentar:

    suponhamos que experimentssemos uma alegria e contempls-semos ao mesmo tempo nosso corpo, ou uma de suas partes,como sendo isso a que referida essa alegria: por exemplo, esta-mos aliviados por no ter mais dor de dente. Nesse caso, umaideia que nos representa uma parte de nosso corpo (aqui, o dente)

    O mais potente dos afetos

    26

    17. tica, Parte II, proposio 17, esclio.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 26

  • acompanha sim nossa alegria, mas essa ideia no propriamentefalando a ideia da causa pela qual experimentamos essa alegria; ela a ideia da parte de nosso corpo qual referimos nossa alegria.Somos alegres por ns mesmos (talvez mesmo por nosso dente),mas no amamos a ns mesmos (no experimentamos amor pornosso dente);

    suponhamos agora que ao mesmo tempo que estamos alegres pornosso dente no nos fazer mais sofrer, contemplamos um medi-camento como a causa exterior de nosso alvio.Ao mesmo tempoque nos regozijamos, e que representamos eventualmente nossodente como aliviado, nossa alegria acompanhada da ideia deuma causa exterior: experimentamos uma forma de amor poresse medicamento que imaginamos ser a causa de nosso alvio18.

    H, portanto, trs tipos de ideias a eventualmente distinguir:

    primeiro, h a ideia que constitui mentalmente a forma do afetode alegria ou de tristeza; essa ideia aquela que, na mente, cor-responde passagem a uma potncia superior ou inferior docorpo;

    em seguida, h a ideia representativa do corpo prprio (ou deuma de suas partes) qual referimos eventualmente o afeto dealegria ou de tristeza experimentado. Imaginamos ento nossocorpo (mediante a ideia representativa) ao mesmo tempo que osentimos (mediante a ideia da alegria corporal);

    enfim, h a ideia de um corpo exterior que representamos comosendo a causa do afeto de alegria ou de tristeza que experimenta-mos; imagina-se ento uma causa exterior ao afeto alegre ou tristeque sentimos, e experimentamos amor ou dio relativamente aessa causa.

    27

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    18. O que no significa, muito evidentemente, que esse corpo exterior que nomeamos medicamentoseja a causa real da alegria que experimentamos; pode sempre haver, com efeito, uma diferena entre acausa e o objeto de nosso amor; o que explica, alis, que no amor frequentemente nos desprezemos e quenossos amores possam tornar-se excessivos e infelizes.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 27

  • Quando h amor ou dio, h, por conseguinte, ligao de duasideias ao menos diferentes: uma ideia, ao que parece, no cognitiva (ummodo do pensar que seria alegria ou tristeza mental) e uma ideia cog-nitiva (um modo do pensar que seria representao de uma causa ex-terior). Assim, o amor, que uma alegria acompanhada da ideia de umacausa exterior, seria constitudomentalmente de duas ideias: por um lado,uma ideia que alegria mental, na medida em que ideia de uma afec-o que aumenta a potncia de agir do corpo, e por outro uma ideiaque imaginao de uma causa exterior, na medida em que ideia deuma afeco corporal pela qual representamos um corpo exterior comopresente.

    tanto mais fcil distinguir a ideia que mentalmente alegria e aideia da causa exterior que associamos a essa alegria, quanto mais a afec-o que aumenta a potncia de agir de nosso corpo ao mesmo tempouma imagem desse corpo qual referimos nossa alegria. Se referirmosessa alegria a nosso corpo, ela se distinguir mentalmente da represen-tao (no mais das vezes imaginativa) de sua causa.

    Mas igualmente possvel e , parece-nos, o caso mais frequenteno amor que nossa alegria no se distinga para ns verdadeira-mente da ideia da causa exterior que lhe atribumos. Amar um pratoou uma pessoa experimentar uma alegria ao pensar nesse prato ounessa pessoa: nossa boca saliva, nosso corao bate (de alegria) aomesmo tempo que formamos a ideia de uma causa exterior (com re-lao qual, a partir da, experimentamos amor). Precisamos distin-guir aqui, entretanto, duas dimenses dessa ideia alegre que tem porobjeto uma causa exterior.

    A definio geral dos afetos, que fecha a Parte III da tica, de fatoafirma:

    O afeto, que se diz paixo da alma [animi pathema], uma ideia confusa,pela qual a mente afirma uma fora de existir, maior ou menor do queantes, de seu corpo ou de uma parte dele []

    E a explicao precisa:

    O mais potente dos afetos

    28

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 28

  • Com efeito, todas as ideias que temos dos corpos indicam antes a consti-tuio atual de nosso corpo (pelo corolrio 2 da proposio 16 da Parte II)que a natureza dos corpos exteriores. Ora, a ideia que constitui a forma doafeto deve indicar ou exprimir a constituio do corpo ou de uma de suaspartes, constituio que o prprio corpo ou alguma de suas partes tem por-que sua potncia de agir ou sua fora de existir aumentada ou diminuda,estimulada ou refreada.

    Quando uma ideia representativa de um corpo exterior, ela aomesmo tempo indicativa da constituio do corpo prprio: tal a dupladimenso representativa e indicativa da ideia de uma coisa amada,odiada ou desejada. Noutras palavras, se imaginamos um corpo exte-rior no momento em que estamos alegres, no temos somente conhe-cimento da existncia de um objeto exterior (representado como es-tando em nossa presena); temos conhecimento igualmente de umavariao de potncia de nosso prprio corpo: a ideia que constitui aforma do afeto, aqui de alegria, deve indicar ou exprimir a constitui-o do corpo, aqui uma constituio alegre, ou seja, um aumento dafora de existir de nosso corpo.

    Por conseguinte, se se considera apenas a forma do afeto de alegriaou de tristeza, esta , do ponto de vista mental, uma ideia indicativa doestado do corpo; todo afeto envolve, pois, ao menos um conhecimentoindicativo do corpo prprio e eventualmente um conhecimento re-presentativo de um corpo exterior. Como afirma o axioma 3 da Parte II,que citamos, nos afetos de amor ou de desejo h necessariamente a ideiaou o conhecimento representativo de um corpo exterior, amado ou de-sejado. Pode-se doravante acrescentar: nos afetos de alegria ou de tris-teza, se no h necessariamente conhecimento representativo de umcorpo exterior (pois nossas alegrias e nossas tristezas no so sempreamores e dios), h, como em todo afeto, ao menos um conhecimentoindicativo da disposio em que se encontra nosso prprio corpo essecorpo que, como afirma o corolrio de tica, Parte II, proposio 13,existe tal como o sentimos.

    Esse conhecimento indicativo, que exprime algo do corpo, que osigno de que se passa algo nele ou numa de suas partes, pode no ser

    29

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 29

  • representativo em si mesmo de uma coisa. possvel vimos estaralegre ou triste,se sentir bem ou mal, no pensando nem em seu pr-prio corpo (como sendo isso a que referido esse sentimento), nem emum corpo exterior (como sendo isso que a causa desse sentimento).Entretanto, a crer no fim da definio geral dos afetos, que no men-cionramos, tal alegria ou tal tristeza, que em si mesma no necessa-riamente representativa do corpo prprio ou de um corpo exterior, noobstante nos determina a pensar em alguma coisa19. Ora, essa determi-nao, precisa Spinoza na explicao da definio, esclarece a naturezado desejo: quando estamos alegres ou tristes (e eventualmente quandoamamos ou odiamos), somos determinados a pensar em uma coisa e,portanto, a desej-la. Por qu? Sem dvida isso se deve prpria es-sncia de nossa mente, que se esfora por conservar-se: afetados porum afeto de alegria ou de tristeza, desejamos conhecer os meios paraconservar essa alegria ou destruir essa tristeza (desejamos simplesmenteconhecer a sua causa, se a ignoramos, ou desejamos conhecer os meiosde reproduzir ou impedir sua ao, se a conhecemos).

    Pode ocorrer, entretanto, em certas situaes, que no cheguemosa pensar em alguma coisa: justamente o caso nessa figura de passivi-dade que j encontramos, a saber, a admirao, que no em si mesmaum afeto,mas que equivale ausncia de conexo de um conhecimentoimaginativo com outros conhecimentos Por exemplo, no afeto de cons-ternao, como tristeza paralisada pela admirao:

    A admirao de um mal mantm o homem de tal maneira suspenso na scontemplao desse mal que no capaz de pensar em outras coisas, pelasquais poderia evitar esse mal.

    A admirao corresponde aqui a uma suspenso do desejo, ou antes: impossibilidade de satisfaz-lo. Entristecida pelo conhecimento repre-sentativo de uma coisa m, minha mente determinada a pensar nos

    O mais potente dos afetos

    30

    19. tica, Parte III, definio geral dos afetos: O afeto, que se diz paixo do nimo, uma ideia confusa[] cuja presena determina a prpria mente a pensar nisto mais que naquilo.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 30

  • meios que lhe permitem enfrent-lo; mas inibida pela admirao do mal,no pode pensar mediante especialmente as ligaes ideais constitutivasde sua memria nas coisas que satisfariam seu desejo de salvao. Meudesejo ento esvaziado de suas foras pela admirao, que conheci-mento de alguma coisa, decerto,mas umconhecimento desligado de tudo.

    Talvez a melancolia, contra a qual to importante lutar (melancho-liam expellere)20, seja ela prpria uma consternao referida a si: Spinozaa define como uma tristeza total21; e ela parece deveras se identificar, namente, impossibilidade de pensar osmeios que nos poderiam livrar dela.O conhecimento imaginativo, na medida em que convoca a memria, namedida em que dinamiza o pensamento representativo, portanto ne-cessrio, na maior parte do tempo, para conquistar sua salvao22.

    Na tica, entretanto, Spinoza confia ao conhecimento intelectual apotncia de nossa liberdade, que antes de tudo uma liberao relati-vamente aos afetos passionais nocivos. Como se opera, ento, essa in-teligncia de nossa afetividade? Que potncia o conhecimento nos dpara lutarmos contra os maus afetos? Esse conhecimento intelectual daafetividade pode suplantar, pura e simplesmente, o conhecimento ima-ginativo implicado na afetividade passional?

    3. O conhecimento da afetividade

    No possvel, em algumas pginas, querer dar conta de umaquesto to crucial na filosofia spinozista. No obstante, desejamos in-dicar aqui algumas pistas de reflexo, que se organizaro em torno daseguinte ideia: h, em Spinoza, uma firme insistncia sobre a impotn-cia do puro conhecimento racional perante a fora de certos afetos pas-sionais; entretanto e o paradoxo , esse mesmo conhecimento

    31

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    20. tica, Parte IV, proposio 45, esclio: Por que, com efeito, seria melhor matar a fome e a sede doque expulsar a melancolia? Este o meu princpio e assim me orientei.

    21. Ver tica, Parte III, proposio 11, esclio.

    22. um tema desenvolvido especialmente no Tratado teolgico-poltico.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 31

  • racional pode produzir uma afetividade (no mais passional, mas elaprpria racional) suscetvel no somente de resistir aos piores afetos,mas mesmo de destru-los.

    Spinoza no gosta de demorar-se sobre a impotncia dos homens:ele deixa aos supersticiosos e aos melanclicos a preocupao de escar-nec-la, maldiz-la, critic-la. Porm, como preciso conhecer tanto apotncia de nossa natureza como a sua impotncia, para que possamosdeterminar, quanto moderao dos afetos, o que pode a razo e o queno pode23, no se pode fazer pouco caso da fraqueza de certos afetosracionais relativamente, em especial, aos desejos passionais pelas coisasprazerosas que representamos como presentes.Assim, do conhecimentoverdadeiro do bem e do mal nascem desejos que so racionais: desejosde gozar do bem e de evitar o que dele nos afasta, o mal. Mas, em rela-o aos desejos pelas coisas que so agradveis no presente24, esses de-sejos racionais so impotentes. Pode-se falar de um defeito da razo, deuma falta de conhecimento de nossas ideias verdadeiras, incapazes derealmente nos fazer desejar o que bom para ns? A razo em si mesma potncia de conhecer e no envolve nenhuma privao de conheci-mento, prpria s s ideias que so ditas falsas25. Mas frequente quevejamos claramente o melhor, que o aprovemos, e sigamos contudo opior26. Por qu? Muito simplesmente porque a razo, apesar de ser umconhecimento pelas causas, apesar de fazer-nos ver certos fenmenoscomo necessrios, no obstante sempre de incio abstrata, e se referea coisas que imaginamos como futuras ou mesmo contingentes27. Sa-bemos, assim, que fumar mata, que excesso de comida, de lcool, develocidade nos pe em perigo: deparamos a com conhecimentos ver-dadeiros, que nos mostram o que verdadeiramente bem e mal, isto ,

    O mais potente dos afetos

    32

    23. tica, Parte IV, proposio 17, esclio.

    24. tica, Parte IV, proposio 16.

    25. Ver tica, Parte II, proposio 35.

    26. Segundo a clebre expresso das Metamorfoses, de Ovdio, retomada por Spinoza no esclio de tica,Parte IV, proposio17.

    27. Ver tica, Parte IV, proposio 15.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 32

  • bom e mau para nosso esforo de perseverao no ser.Necessariamente,um indivduo fumante tem uma esperana de vida inferior a um indi-vduo no fumante (sendo tudo o mais igual); necessariamente, um in-divduo habituado aos excessos de velocidade ou de consumo de lcoolao volante corre mais perigo que um indivduo dito prudente. Porm,embora todos o saibamos, esse conhecimento racional do necessrio referido concretamente a um conhecimento muito aproximado denossa durao de vida e da data de nossa morte:

    No podemos ter da durao das coisas [] seno um conhecimento ex-tremamente inadequado, e [] determinamos os tempos de existncia dascoisas s pela imaginao, a qual no afetada pela imagem de uma coisafutura da mesma maneira que pela imagem de uma coisa presente. Da queo conhecimento verdadeiro que temos do bem e do mal s pode ser abs-trato ou universal, e que o juzo que fazemos sobre a ordem das coisas e aconexo das causas, para podermos determinar o que , no presente, bomou mau para ns, mais imaginrio que real.28

    Nosso conhecimento concreto do que verdadeiramente bom oumau um conhecimento racional mesclado de imaginrio: os desejosque da nascem so menos potentes que os desejos que dependem s daimaginao dos prazeres presentes. Uma grande parte da empresa spi-nozista consistir, dado isso, em reformar o imaginrio passional, em si-multneo racionalizando esse imaginrio e imaginando o racional.Expliquemo-nos.

    Em vez de opor frontalmente imaginao e razo, afetos passionaise desejos racionais, Spinoza prope outro uso do conhecimento imagi-nativo, pelo qual os conhecimentos racionais so vivificados, inscritosna memria, a fim de, ou bem destruir as paixes mais nocivas, ou bemviver de outra maneira, mais ativamente, as paixes que convm com arazo. De certa maneira, quando um prazer contrrio regra de nossautilidade se apresenta a ns, quando contemplado como presente, tarde demais: o simples conhecimento racional impotente para nos

    33

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    28. tica, Parte IV, proposio 62, esclio.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 33

  • fazer desejar outra coisa que no aquilo que um conhecimento imagi-nativo nos apresenta como prazeroso. Em compensao, possvel tra-balhar para o futuro, exercitando-nos em imaginar os meios de lutar, denoceder tentao, que ser sempre grande.A proposio 7 da ParteV da tica afirma assim:

    Os afetos que nascem da razo ou que ela suscita so mais potentes queaqueles que esto referidos s coisas singulares que contemplamos comoausentes.

    O que est em jogo, portanto, habituar-se a combater as tenta-es futuras, aquelas concernentes a objetos imaginados no comopresentes, mas como ausentes. E fazemos isso imaginando o racional,ou seja, os princpios de uma vida reta, ou as propriedades de uma exis-tncia verdadeiramente til. Noutras palavras, trata-se de imaginar, deforma cada vez mais precisa, o modelo da natureza humana que estem questo desde o prefcio da Parte IV da tica, ao mesmo tempo queas situaes concretas nas quais esse modelo pode nos servir.

    Por exemplo, estabelecemos, entre as regras de vida (ver a proposio 46 daParte IV com o seu esclio), que o dio deve ser combatido com o amor oucom a generosidade, em vez de ser retribudo com um dio recproco. En-tretanto, para que esse preceito da razo esteja sempre nossa disposioquando dele precisarmos, deve-se pensar e meditar sobre as ofensas costu-meiras dos homens, bem como sobre a maneira e a via pelas quais elaspodem ser mais efetivamente rebatidas por meio da generosidade. Ligare-mos, assim, a imagem da ofensa imaginao dessa regra, e ela estar sem-pre nossa disposio (pela proposio 18 da Parte IV) quando nosinfligirem uma tal ofensa.29

    Os desejos que se vinculam ao conhecimento racional de nossa uti-lidade so menos potentes que aqueles que dependem do conhecimentoimaginativo de objetos presentes. Mas eles so, com o tempo, mais po-tentes que aqueles que provm da imaginao antecipadora de objetos

    O mais potente dos afetos

    34

    29. tica, Parte V, proposio 10, esclio.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 34

  • ainda ausentes. Assim, o desejo de vingar-se de uma ofensa presente,ou, ainda, o prazer de defender presentemente sua honra ferida, somais fortes que qualquer outro afeto racional.Mas quando o afeto pas-sional se vincula a uma causa imaginada como ausente, ou seja, quandoso imaginadas coisas que excluem a existncia presente da causa, entoa potncia afetiva da razo relativamente mais potente, e isso tantomais quanto os princpios racionais so necessariamente imaginadoscomo presentes e constantes.

    Um afeto que nasce da razo est necessariamente referido s propriedadescomuns das coisas (ver a definio da razo no esclio 2 da proposio 40da Parte II), as quais contemplamos sempre como presentes (pois nadapode haver que exclua sua existncia presente) e que imaginamos sempreda mesma maneira (pela proposio 38 da Parte II).30

    Quando a ofensa se apresenta, tarde demais, se nenhum exerc-cio da imaginao do racional houver sido anteriormente empreen-dido. No possvel combat-la da melhor forma (da maneira maistil) a no ser que estejamos j habituados a no cair no dio (isto , ano ligar a tristeza experimentada imaginao dessa ou daquela causaexterior). Esse hbito se adquire vinculando essa eventual tristeza aideias adequadas (as ideias das propriedades comuns que explicam oscomportamentos humanos) o que, pouco a pouco, atenuar e mesmodestruir nossa tristeza. E no caso de afetos como o desejo de glria, dedinheiro, de prazeres sexuais, esse trabalho de antecipao da imagina-o levar no a se desfazer de tais desejos, como se d no caso do dio(renunciar a toda ambio, cupidez ou libido seria antes nocivo). Essetrabalho levar antes a viv-los diferentemente, numa prtica do corpoe da mente que lhes aumentem a respectiva potncia. Tais desejos deglria, dinheiro, prazeres sero ento no mais passivamente vividos,mas se tornaro os meios de uma vida ativa, consagrada convenin-cia com os outros, assim como inteligncia dessa convenincia.

    35

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    30. tica, Parte V, proposio 7.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 35

  • O conhecimento racional serve-se, portanto, do conhecimento ima-ginativo para moderar, destruir ou at transformar do interior os afetospassionais. nesse sentido que h um ardil do conhecimento para coma afetividade em Spinoza. A esse trabalho do conhecimento, simulta-neamente racional e imaginativo, sobre a afetividade passional ajunta-seum desdobramento da afetividade prpria razo mesma. Uma satisfa-o nasce do desenvolvimento das foras do conhecimento adequado satisfao que culmina no afeto intelectual que est no princpio de nossasalvao: amor de Deus.Deixamos de lado a anlise detalhada da quintaparte da tica, nica via pela qual pode ser compreendido esse afeto par-ticular de Beatitude (ser que se trata ainda de um afeto?). Retenhamossimplesmente e j muito que possvel fazer um uso inteiramenteprtico do pensamento spinozista, compreendendo pouco a pouco nossaprpria afetividade, ou seja, apreendendo, fundamentalmente, quais soas relaes entre conhecimento e afetividade.

    NIETZSCHE

    Fazer do conhecimento o mais potente dos afetos*Olivier Ponton**

    Em 30 de julho de 1881, Nietzsche envia uma carta entusiasmada aseu amigo Overbeck, na qual admite que mal conhecia Spinoza,mas queacabava de descobrir nele um maravilhoso precursor e afirma que aten-dncia geral de Spinoza idntica sua essa tendncia pode ser for-mulada assim: fazer do conhecimento o mais potente dos afetos31. Estafrmula tem um estatuto particular, uma vez que Nietzsche se expressa

    O mais potente dos afetos

    36

    * Traduo de Brbara Lucchesi Ramacciotti, professora adjunta da UMC-SP (Universidade de Mogidas Cruzes). Revisado por Andr Rocha, doutorando da USP (Universidade de So Paulo).

    ** Pesquisador do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique).

    31. Ver KSB 6, carta 135.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 36

  • com palavras de Spinoza (ou melhor, com as palavras de um livro deKuno Fischer sobre Spinoza). Nos textos desse perodo, Nietzsche rara-mente relaciona o conhecimento a um afeto, pois o relaciona de prefe-rncia a umimpulsoou a umapaixo32. Nosso propsito no aqui,no entanto, compreender o sentido que essa frmula pode tomar na fi-losofia de Spinoza, mas reconstituir o sentido que tem na filosofia deNietzsche. Fixamos, portanto, dois objetivos: 1) compreender essa fr-mula nietzschiana no seu contexto original, isto , na filosofia de Aurorae de A gaia cincia; 2) examinar em que esta tendncia parafazer do co-nhecimento o afeto mais potentepode corresponder tendncia geraldo pensamento de Nietzsche, nesse perodo.

    1. Gnese da frmula

    No final de julho de 1881, Nietzsche acaba de publicar Aurora eest em Sils-Maria. No a leitura de Spinoza,mas o livro de Kuno Fis-cher sobre Spinoza que est na origem da carta de 30 de julho: trata-sedo segundo volume do primeiro tomo da Geschichte der neuern Philo-sophie, dedicado escola cartesiana33. Nietzsche havia solicitado a Over-beck, que o retira na biblioteca da Universidade de Basileia34.

    37

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    32. No trataremos aqui da assustadora questo da terminologia nietzschiana: qual a diferena precisaentre instinto (Instinkt), impulso (Trieb) e afeto (Affekt)? Sobre esse ponto, ver Patrick Wotling, es-pecialmente: Nietzsche et Le Probleme de la civilization, Paris, PUF, 1995, p. 91. A multiplicidade de ter-mos parece se explicar principalmente pela diversidade de perspectivas de anlise: um afeto um impulso,mas considerado do ponto de vista da sua capacidade de ser afetado um impulso-pathos, um im-pulso-sentimento. Evidentemente, se Nietzsche fala sobre afetos na carta de 30 de julho de 1881, pararetomar o termo utilizado por Spinoza. Mas podemos dar a esse uso do termo afeto um sentido pro-priamente nietzschiano: dizer que o conhecimento o afeto mais potente, ou seja, que o impulso doconhecimento mais forte do que outros e que o pathos do conhecimento o mais forte de todos o conhecimento isto que me afeta mais intensamente, o que suscita em mim os sentimentos mais for-tes: o conhecimento tornou-se para mim uma paixo.

    33. Kuno Fischer, Geschichte der neuern Philosophie, I/2, Munique,Verlagsbuchhandlung von Fr.Vasser-mann, 1880.

    34. Ver a carta de 8 de julho de 1881. necessrio notar que Nietzsche, tendo recorrido vrias vezes aoGeschichte der neuern Philosophie, no pede a Overbeck para enviar-lhe os dois volumes dedicados es-cola cartesiana, mas apenas o dedicado a Geulinx, Malebranche e Spinoza, no qual somente Spinoza ointeressa (pede a Overbeck o volume de Kuno Fischer sobre Spinoza).

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 37

  • A carta de 30 de julho no o nico documento que testemunha aleitura que Nietzsche fez do livro de Fischer: essa leitura tambm afonte de notas, citaes e comentrios que Nietzsche escreveu em um deseus cadernos, e que constituem agora os fragmentos 11[193] e 11[194]da edio Colli e Montinari. Estes fragmentos tm um lugar especial nosNachla [textos inditos] nietzschianos, uma vez que eles esto entre osfragmentos consagrados ao pensamento do eterno retorno, e porque elesprecedem imediatamente o aparecimento da figura de Zaratustra35.

    Nesses fragmentos, Nietzsche reproduz algumas passagens do livrode Fischer, mas sublinhando as diferenas entre sua prpria filosofia(essas diferenas sendo marcadas por frmulas como Eu digo:,Ego:, Eu, em contrapartida,). O primeiro ponto do fragmento11[193] interessa-nos particularmente, uma vez que diz respeito direta-mente tendncia geraldefinida na carta de 30 de julho:Spinoza: emnossas aes estamos determinados somente pelos desejos e afetos. ne-cessrio que o conhecimento seja afeto para ser motivo. Eu digo: pre-ciso que ele seja paixo para ser motivo. Nietzsche retoma aqui quaseliteralmente uma passagem do captulo que Fischer dedica aovalor dosafetosna filosofia de Spinoza: Em nossas aes somos determinados aagir somente pelos desejos e afetos.O conhecimento verdadeiro do beme do mal pode, portanto, ser o motivo do nosso agir, apenas se for afeto, somente enquanto tal que ele determina o nosso agir.36

    Fischer explica tambm que, se somos determinados apenas porafetos, sempre o mais potente dos afetos que nos determina: Os afetospodem ser vencidos apenas por outros afetos: por isso que o conhe-cimento verdadeiro do bem e o mal deve necessariamente ser afeto, parapoder ser motivo.37 Fischer acrescenta que o conhecimento determi-

    O mais potente dos afetos

    38

    35. Os fragmentos 11[193] e 11[194] so posteriores ao fragmento 11[141], datado do incio de agostode 1881, no qual Nietzsche formula pela primeira vez o pensamento do eterno retorno. Os fragmentosanteriores a essa primeira formulao, como os fragmentos 11[132] e 11[137], comportam, no entanto,reflexes sobre Spinoza: , por conseguinte, bem no meio da sua descoberta de Spinoza que Nietzschedescobre o pensamento do eterno retorno.

    36. Kuno Fischer, op. cit., p. 494.

    37. Ibidem, p. 495. Fischer reenvia aqui proposio 14 da Parte IV da tica.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 38

  • nar, portanto, nosso agir, apenas se for afeto, e o mais forte de todos osafetos humanos. Dessa fora depende, com efeito, a nossa liberdade,ou seja, a nossa liberdade em relao s paixes. Fischer explica que Spi-noza distingue entre afetos passivos (as paixes) e ativos: Se existeem geral uma liberdade, essa pode consistir apenas em uma potnciaque faz calar o poder das paixes, e essa potncia pode encontrar-seapenas nos afetos ativos quer dizer, no conhecimento: s o conheci-mento pura atividade, potncia exercida sobre as paixes ou liber-dade38. Acedemos, assim, liberdade apenas se o conhecimento for emns o mais potente dos afetos (der mchtigste Affect). A frmula re-torna frequentemente sob a pluma de Fischer, especialmente no cap-tulo consagrado doutrina da liberdade humana39.

    Antes de Nietzsche , portanto, Kuno Fischer que v na filosofia deSpinoza o projeto defazer do conhecimento o mais potente dos afetos.Essa frmula no deveria, no entanto, ser aplicada tal qual, ou seja, como sentido que tem no livro de Fischer, filosofia de Nietzsche. A preci-so do fragmento 11[193] aqui essencial: para Nietzsche, o conheci-mento mais uma paixo do que um afeto o que significa que a ten-dncia geral da sua filosofia apenas aparentemente idntica deSpinoza: a potncia do conhecimento no para eleuma potncia exer-cida sobre as paixes (Macht ber die Leidenschaften),mas a potncia deuma paixo. Em outras palavras, e para utilizar os termos de A gaia cin-cia, o conhecimento no seria para Nietzsche o meio da felicidade, davirtude ou da liberdade: afirmar que o conhecimento tornou-se paixo precisamente dizer queo conhecimento quer ser mais que um meio40.

    39

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    38. Ibidem, pp. 457 e 459.

    39. O afeto mais potente anda de mos dadas com o conhecimento mais claro (ibidem, p. 512); os afe-tos ou desejos que provm da razo so necessariamente mais potentes (p. 513); o amor de Deus detodos os afetos o mais potente (p. 515); o conhecimento claro nada mais que o afeto mais potente oumais elevado (p. 524); o conhecimento claro necessariamente o amor de Deus, o amor Dei intellec-tualis: de todas as alegrias a nica que eterna, de todos os afetos o mais potente e o mais elevado (p.528).O mais potente dos afetos inclusive o ttulo de um pargrafo do captulo consagrado liberdadeem relao s paixes (pp. 512-3). Cf. a frmulaNossa razo nossa maior potncia (p. 492) que Nietzs-che copia no fragmento 11[193].

    40. A gaia cincia, 123.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 39

  • 2. O conhecimento tornou-se uma paixo

    Num fragmento do perodo de Aurora, Nietzsche j assimilava apaixo (mais precisamente a plenitude da paixo) vitria total des um afeto sobre os outros, de modo que lhe consagrssemos a vida, ahonra, etc.41. A paixo o triunfo do mais potente dos afetos. Mascomo o conhecimento, que geralmente se ope aos sentimentos (a cin-cia seca, clara, fria, ela sabe fazer calar o tumulto dos afetos), pde tor-nar-se paixo?

    2.1. A unio da cabea e do corao

    Nietzsche, com efeito, sempre procurou pensar (e criar) as condi-es de uma aproximao da cabea e do corao, do intelecto e davontade do conhecimento e das paixes.Mesmo nos primeiros livrosda sua filosofia para espritos livres (Humano, demasiado humano;Miscelnea de opinies e sentenas, O andarilho e sua sombra), ou seja,nos livros onde se esperaria que preconizasse um divrcio entre cabeae corao, uma liberao do esprito em relao s emoes e ao senti-mento, Nietzsche recorda a necessidade das paixes e a inconsequnciade um esprito que procuraria extirp-las: o terreno mais frtil o solodas paixes vencidas mas tal solo existe apenas se h paixes a ven-cer42. Nietzsche evoca, assim, o dia em que o corao e a cabea teroaprendido a viver tanto perto um do outro quanto agora permanecemdistantes43. Esse dia ser o de uma cultura superior, que saiba dar aohomemum crebro duplo, de acordo com a imagem do aforismo 251de Humano, demasiado humano: A fonte de energia encontra-se emuma esfera, na outra, o regulador: as iluses, as ideias parciais, as pai-xes devem ser usadas para aquecer, e, mediante o conhecimento cien-tfico, devem-se evitar as consequncias malignas e perigosas de um

    O mais potente dos afetos

    40

    41. Fragmento 8[94], inverno de 1880-1881.

    42. O andarilho e sua sombra, 53.

    43. Ibidem, 183.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 40

  • superaquecimento.O futuro est, portanto, na coexistncia feliz da ca-bea e do corao. Num fragmento de 1875, Nietzsche desejava a pro-duo de um homem em quem estariam reunidos a mais elevadainteligncia e o mais ardente corao44.

    No incio dos anos 1880, esse projeto evolui e se radicalizou: no setrata mais apenas de aproximar a cabea e o corao, mas de fazer en-trar o corao na cabea; no se trata mais de permitir aquecero co-nhecimento com as paixes, de encontrar nelas o seu alimento e a suaenergia, mas fazer do prprio conhecimento uma paixo.

    Qualquer grande paixo , no entanto, irracional: a razo faz umapausa, diz Nietzsche em A gaia cincia, e o intelecto reduzido ao si-lncio45. H, assim, homens em quemo corao entra na cabea e falaapenas enquanto paixo.Nietzsche toma precisamente como exemploa desrazo (Unvernunft) da paixo do conhecimento. Essa constitui,portanto, um curioso paradoxo: compreende-se que o corao entra nacabea de um homem que sucumbe paixo do ventre, mas bas-tante singular que o corao entre na cabea daquele que consagra asua vida cincia e ao conhecimento. Como esse estranho divrcio dosaber e da razo possvel?

    2.2. A transformao do conhecimento em paixo

    O saber , com efeito, usualmente associado calma das paixes, auma viso distante e desinteressada, a uma espcie de indiferena oprprio Nietzsche anota em um fragmento de 1880: o nosso saber forma mais enfraquecida da nossa vida instintiva; quando a sensaotorna-se saber, as coisas parecem-nos mais distantes e mais externas46.H, no entanto, excees, afirma Nietzsche, justamente os homens queso passionais pelas coisas do saber (Dinge des Wissens), os homens,

    41

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    44. Fragmento 5[188], de 1875. Sobre essas perguntas, permitimo-nos reenviar nossa obra, Nietzsche.Philosophie de la lgret, Berlim/Nova York, Walter de Gruyter, 2007, pp. 254-316.

    45. A gaia cincia, 3.

    46. Fragmento 6[64], outono de 1880.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 41

  • que se comportam para com as coisas distantes como se comportampara com as mais prximas, provam isso que Nietzsche chama a pai-xo para os abstracta (Passion fr Abstrakta): a incapacidade de guar-dar em face de uma abstrao a sua distncia e a sua indiferena, eis oque constitui o pensador47.

    Nietzsche no fala mais, em seguida, de paixo do abstrato,mas depaixo da retido (Leidenschaft der Redlichkeit), de paixo nova(neue Leidenschaft, passio nova) e, sobretudo, de paixo do conheci-mento (Leidenschaft der Erkenntnis)48. Nos fragmentos de 1880, ele seesfora para explicar o aparecimento de tal paixo e reconstitui um fe-nmeno complexo, no qual se distinguem pelo menos trs processos:

    1 um processo de sublimao: para fazer do conhecimento umapaixo, necessrio primeirosublimar todos os impulsos de modo quea percepo do que estranho v muito alm e se acompanhe, no en-tanto, de prazer49.H uma espcie de cristalizao, no sentido stendha-liano do termo cristalizao, que se opera no sobre o ser amado ousobre um ramo de rvore desfolhado pelo inverno, mas sobre as abs-traes, pensamentos, coisas distantes, que finalmente so percebidascom mais acuidade e prazer50;

    2 um processo de repetio: a repetio frequente do conheci-mento faz que o conhecimento seja cada vez menos penoso e cada vezmais instintivo: quanto mais se conhece, mais se tem prazer em conhe-cer e conhecer corretamente51;

    3 um processo de incorporao: os pensamentos no so maissensaes enfraquecidas, mas sensaes fundidas aos instintos maisfortes (mit den strksten Trieben verschmolzen)52. A essa metfora da

    O mais potente dos afetos

    42

    47. Fragmento 6[65], outono de 1880.

    48. Sobre a paixo do conhecimento, ver, principalmente, o livro de Marco Brusotti, Die Leidenschaftder Erkenntnis, Berlim/Nova York, Walter de Gruyter, 1997.

    49. Fragmento 6[67], outono de 1880.

    50. Ver STENDHAL, De lamour, cap. II. [Trad. bras. Do amor, So Paulo, Martins Fontes, 1999.]

    51. Ver, por exemplo, o fragmento 6[265], outono de 1880.

    52. Fragmento 6[65], outono de 1880.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 42

  • fuso acrescenta-se a do estmulo (no sentido de uma msica ou deuma dana estimulante: alguns leem a filosofia como os italianos quea assimilam (aneignen) a uma msica, estimulados em sua paixo (inihre Leidenschaft hineinziehen)53. Nos fragmentos de 1881, Nietzschemenciona, sobretudo, a incorporao (Einverleibung), ou seja, um pro-cesso de assimilao e de dissimulao na vida instintiva54.

    Ao ler os fragmentos de 1880, no se sabe efetivamente se esse pro-cesso tem xito ou no: Nietzsche parece considerar, s vezes, que a novapaixo j se imps, outras vezes que est no ponto de aparecer. Em Au-rora, essa ambiguidade levantada: claro que a nova paixo est l ( umfato, o objeto de uma constatao:O conhecimento transformou-se, emns, em paixo55), e tambm claro que seu aparecimento ratifica umcrescimento de potncia: se o conhecimento torna-se paixo, porque onosso impulso ao conhecimento demasiado forte para que ainda possa-mos estimar a felicidade sem conhecimento. Para utilizar os termos dacarta de 30 de julho de 1881, o conhecimento transformou-se em paixoporque se tornou um afeto mais potente porque se tornou o afeto maispotente.Mede-se aqui a distncia entre Nietzsche e a doutrina de Spinoza,tal como Kuno Fischer a apresenta no seu livro: isso que Nietzsche chamapaixo basicamente o contrrio de um afeto passivo, um afeto maispotente (por conseguinte mais ativo) que os outros56.

    Ora, se encontrando sua maior potncia que o conhecimentotorna-se paixo, porque, para Nietzsche, o conhecimento se completana paixo. Se examinarmos as caractersticas da paixo, pelo menos as

    43

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    53. Fragmento 7[18], final de 1880.

    54.Ver, por exemplo, os fragmentos 11[141], 11[162], 11[197], 11[261], 11[268] e 12[40], de 1881, 21[3],de 1882. Cf. A gaia cincia, 110.

    55. Aurora, 429.

    56. No trataremos aqui da questo dos afetos como vontade de potncia: essa pergunta far-nos-ia sairdos limites que fixamos (o perodo de Aurora e de A gaia cincia) sobre esse ponto, ver, sobretudo,Wolfgang Mller-Lauter,Nietzsche. Physiologie de la volont de puissance, Paris, Allia, 1998. evidente, noentanto, que a ideia de um combate entre os afetos, que procuram cada um se impor sobre os outros eser reconhecido como o mais potente dos afetos, somente ganha seu significado pleno no mbito dahiptese da vontade de potncia.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 43

  • que Nietzsche distingue nos textos do incio dos anos 1880, com-preende-se que, para ele, o conhecimento era de certa maneira desti-nado a tornar-se paixo. Concentrar-nos-emos, aqui, em duas dessascaractersticas: o herosmo e o desinteresse.

    2.3. A filosofia heroica

    a) A paixo se torna heroicaUma das caractersticas mais gerais da paixo o esprito de sacri-

    fcio. Isso que define o sacrifcio define, com efeito, tambm a paixo:Um instinto mais forte que o outro e sacrifica-o um afeto maispotente57. Nietzsche diz repetidamente: o sentido do sacrifcio no dis-tingue a grandeza ou a nobreza, mas apenas a categoria das passiona-lidades (Kategorie des Leidenschaftlichen)58. Qualquer homem apaixo-nado sacrifica-se: aquele que tem paixo por jogo, pelas mulheres oupelo vinho, a volpia desenfreada se sacrifica muito mais do queaquele que tem paixo pela justia ou pelo conhecimento. O prprioda paixo que ela no teme nenhum sacrifcio, e nesse sentido desacrifcio que se atinge a plenitude da paixo59.

    Esse sacrifcio pode ser pessoal ou universal: em Aurora, Nietzscheevoca s vezes o pensamento (pensamento-limite,pensamento mons-truoso) de uma humanidade que se sacrificaria pelo conhecimento.Ele formula, assim, a hiptese de um sacrifcio final e um fim trgicoao qual se trataria resolutamente de aquiescer: Sim, essa paixo nosaniquila! Mas no um argumento contra ela.60 No se pode ir maislonge, no se pode sacrificar nada mais ao conhecimento. Essa ideia de

    O mais potente dos afetos

    44

    57. Fragmento 6[137], outono de 1880: Sacrifica-se, por exemplo, a sua prpria criana sua vingana.Ou sacrifica-se a sua vingana sua criana tudo depende do sentimento que mais forte.

    58. Fragmento 6[178], outono de 1880. O que faz a nobreza da paixo no o sacrifcio, a escassez, asingularidade do sacrifcio: Compete ao objeto da paixo enobrec-la e deixar a marca de uma naturezasuperior. [] Qualquer coisa, portanto, que deixa geralmente frio objeto de paixo o que constituia natureza superior: seu gosto orientado para excees (fragmento 6[175]).

    59. Aurora, aforismo 429, e fragmento 8[94], inverno de 1880-1881.

    60. Ibidem, 45 e 429; fragmento 7[171], final de 1880.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 44

  • uma sada trgica do conhecimentodesaparece, no entanto, em A gaiacincia: ela testemunha, sobretudo, o desejo de pensar o conhecimentocomo uma paixo extrema, e o desejo de ir at o limite desse pensa-mento. preciso que o conhecimento se torne o mais potente dos afe-tos para que se possa ter a ideia de um sacrifcio to monstruoso.

    Mas o que conta no somente a radicalidade do compromisso, tambm a prpria estrutura do sacrifcio: se a paixo sempre sacrif-cio, o sacrifcio no sempre paixo. O que distingue o sacrifcio apai-xonado das outras formas de sacrifcio ser um sacrifcio de si(Selbst-Opferung), ou seja, um sacrifcio de si por si mesmo. O homemque se sacrifica em nome de uma paixo sacrifica a si mesmo (no oEstado ou a Igreja, por exemplo, que o sacrifica): Nietzsche ope, assim,o sacrifcio de si ao sacrifcio dos indivduos pelos Estados e pelosprncipes, a moral da maestria de si moral dos animais sacrificados,isto , a uma moral na qual os indivduos sacrificam-se (so sacrifica-dos) com entusiasmo ao seu prncipe ou ao seu Deus (provando, assim,um sentimento embriagante, mas de ilusria potncia)61. Esse ponto essencial, pois permite compreender por que a paixo do conhecimentoope-se ao que Nietzsche chama civilizao. Essa definida como umatentativa de nivelamento, normalizao e indiferenciao (cessao dadiferenciao) da humanidade: a nossa sociedade de mercado est,segundo Nietzsche, para transformar a humanidade em areia. Resta apergunta: desejamos que a humanidade termine no fogo e na luz (sa-crifique-se em nome do conhecimento) ou se perca na areia?62 No asociedade que deve sacrificar os seus indivduos, so os indivduos quedevem sacrificar a si mesmos: a paixo ope-se civilizao.

    Esse sentido do sacrifcio e do sacrifcio de si por si mesmo exigeuma virtude, ou, antes, uma qualidade sobre a qual Nietzsche quer fun-dar isso que s vezes chama de sua nova religio: a Tapferkeit (va-lentia, bravura, coragem, audcia)63. Num fragmento de 1880,

    45

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    61. Ibidem, 374 e 215.

    62. Ibidem, 174 e 229.

    63. Fragmento 8[94], inverno de 1880-1881. Cf. o fragmento 8[1].

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 45

  • Nietzsche anota que a Tapferkeit no uma virtude, mas uma questode temperamento64; tambm afirma, s vezes, que a Tapferkeit umsentimento e, ainda, o sentimento mais elevado (der erhebendste Ge-fhl) a mesma frmula que utiliza para qualificar o sentimento de po-tncia65. H, de fato, um parentesco psicolgico e afetivo evidente entrea Tapferkeit e o sentimento de potncia, dado que toda vitria supe aTapferkeit e dado que a Tapferkeit o contrrio do sentimento de fra-queza e de medo.A Tapferkeit consiste primeiro em no temer nenhumsacrifcio, em enfrentar todos os perigos em nome de uma paixo, ousarser um indivduo e se opor civilizao (essa se apoia, com efeito, sobreo sentimento da tradio, ou seja, sobre o medo)66. a prpria forade um afeto, de um impulso que se tornou mais potente que os outros, a prpria potncia de uma paixo que gera a Tapferkeit.

    A paixo torna-se, por conseguinte, corajosa, brava, audaciosa; hem toda paixo algo de heroico, algo como uma necessidade ou umavontade de perigo: Nietzsche escreve num fragmento de 1880 que aprpria Tapferkeit quereclama sua poro de perigo67. Trata-se mais deuma exigncia dos impulsos do que de um ideal ou de um projeto cons-ciente, trata-se de uma verdadeira necessidade fisiolgica: o corao devebater, os msculos, vibrar de atividade tensa68. Tornou-se para Nietzs-che uma questo de gosto: assim, anota num fragmento de 1880 que eleglorifica a aflio do conhecimento, pois prefere estar sempre preo-cupado, com o corao batendo por causa de uma espera ou de uma de-cepo, a aspirar a uma coisa comouma serena felicidade do conheci-mento no quero mais conhecimento sem perigo, afirma ainda69.

    Esse herosmo se exprime em um lema que retorna frequentementeem Aurora e nos fragmentos de 1880-1881: Que importa eu! (Was

    O mais potente dos afetos

    46

    64. Fragmento 4[85], vero de 1880.

    65. Fragmentos 8[95], inverno de 1880-1881, e 4[197], vero de 1880.

    66. Aurora, 9.

    67. Fragmento 3[26], primavera de 1880.

    68. Fragmento 7[74], fim de 1880.

    69. Fragmento 7[165], fim de 1880.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 46

  • liegt an mir!) lema que Nietzsche considera ao mesmo tempo a ex-presso da verdadeira paixo e o ltimo argumento da Tapferkeit: necessrio um eu heroico, umeu de granito (granitenes Ich) para dizerque importa eu!70. Nietzsche pensa ter tomado esse lema de emprs-timo dos estoicos, e cita s vezes os versos do Hino a Zeus, de Cleante,que ele associa sua paixo heroica ao conhecimento71. Oque importaeu!nietzschiano no conduziria, no entanto, ataraxia estoica (muitomenos conduziria beatitude spinoziana): no vitria sobre as pai-xes, mas vitria da paixo.

    b) O conhecimento deve tornar-se heroicoA paixo define-se, portanto, pelo sacrifcio. A Tapferkeit, o gosto

    para o perigo e o desprezo heroico de si: ora, tudo isto tambm exi-gido pelo conhecimento. Para o conhecimento tornar-se paixo, deve pri-meiro tornar-se heroico. Nietzsche repete isso nos fragmentos de 1880:Eu quero trazer para mim o estmulo heroico, que necessrio paraentregar-se cincia!; o conhecimento exige a fora do herosmo,deve envolver-se de um encanto heroico72 se h uma inscrio a gra-var acima da porta do pensador do futuro, no Conhea-te a timesmo mas que importa o eu!73.

    Essa viso heroica do conhecimento no nova em Nietzsche: en-contra-se j em O nascimento da tragdia (imagem evocada principal-mente com a gravura de Albrecht Drer,O cavaleiro, A morte e o diabo)ou na III Considerao extempornea (com o elogio da veracidade he-roica, que define o homem em Schopenhauer).Na poca de Aurora e deA gaia cincia, este herosmo toma, no entanto, uma dimenso nova: sea paixo e, por conseguinte, o sacrifcio, a bravura e o herosmo so ne-cessrios, trata-se de pr isto que Nietzsche chama a grande questoprticaoua grande questo: deve-se cultivar sempre mais igualdade?

    47

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    70. Fragmento 7[45], fim de 1880, 494 de Aurora, e fragmento 7[102], fim de 1880.

    71. Fragmento 15[59], outono de 1881. Cf. Aurora, 195.

    72. Fragmentos 7[159] e 7[157], fim de 1880, e 6[228], outono de 1880.

    73. Aurora, 547.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 47

  • Deve-se deixar a humanidade enterrar-se na areia frouxa da civiliza-o? Para fazer essa pergunta, necessrio ousar opor-se tradio, ar-riscar-se ao flanco do Vesvio necessrio viver perigosamente(gefhrlich leben)74.

    Ora, instalando-se ao p do Vesvio, a filosofia no mais apenaspensamento, mas experincia e experimentao: sacrificar-se ao conhe-cimento pr sua vida em jogo pelo conhecimento, e um pensador pea sua vida em jogo fazendo experincias. Nietzsche declara enfaticamenteem Aurora: Podemos fazer experincias [experimentiren] sobre nsmesmos! Sim, a humanidade pode fazer isso consigo mesma! Os maio-res sacrifcios ainda no foram oferecidos ao conhecimento.75 Essa con-cepo da filosofia como experimentao heroica assume seu sentidopleno em A gaia cincia, com o pensamento que a vida pode ser enca-rada como um meio de conhecimento, ou seja, como uma experi-mentao (Experiment)76. Esse pensamento efetivamente de um sa-crifcio de si, e s o compreendemos bem na perspectiva da paixo doconhecimento: dizer que o amor do conhecimento uma paixo, querdizer que o impulso do conhecimento tornou-se o mais potente detodos por conseguinte, significa dizer que o conhecimento no maiso meio para a felicidade, para a virtude e para a vida, mas que a pr-pria vida que se tornou o meio de conhecimento.

    De modo geral, A gaia cincia corresponde realizao dessa filoso-fia heroica, a afirmao desteeu de granitoqueNietzsche esfora-se paraconstruir nos fragmentos de 1880 os ltimos aforismos do livro III, queformam um pequeno catecismo nietzschiano, podem ser lidos como asfrases de granito (granitnen Stze) dessa nova filosofia: oito frmulas la-pidares que so desenvolvidas no aforismo 283, no qual Nietzsche clamaaos seus desejos uma poca que levar herosmo no domnio do conhe-

    O mais potente dos afetos

    48

    74. Fragmentos 8[1], 8[7] e 8[8], inverno de 1880-1881; fragmentos 6[163], outono de 1880; fragmento8[34], inverno de 1880-1881, e 283, de A gaia cincia.

    75. Aurora, 501. Cf. 198, no qual Nietzsche explica que preciso ter muitas experincias interioresgrandes [Erfahrungen], ou o fragmento 6[448], outono de 1880, no qual ele afirma que os seus pensa-mentos so tambm as suas experincias (Erlebnisse).

    76. A gaia cincia, aforismo 324.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 48

  • cimento, uma poca mais viril e mais blica que saber, sobretudo, re-meter a coragem honra [Tapferkeit]77. Essa poca ser efetivamente ade uma humanidade para a qual o conhecimento tornar-se- o afetomaispotente, um afeto to potente que tudo poder ser-lhe sacrificado.

    2.4. O desprendimento

    Se a paixo definida pelo herosmo, define-se tambm pela re-nncia: todo sacrifcio renncia, mas o sacrifcio apaixonado umarenncia dionisaca (no sentido que Nietzsche dar a esta palavra noaforismo 370 de A gaia cincia ou na Tentativa de autocrtica), uma po-breza na superabundncia e na plenitude.

    Nietzsche reconstitui o mecanismo dessa renncia no aforismo 304de A gaia cincia, descrevendo o destino do homem apaixonado, que sesepara pouco a pouco de tudo o que no se incorpora sua paixo detudo o que resiste a esse processo de fuso, de estmulo e de dissimula-o, que descrevemos acima: sem dio nem averso, v hoje se separardisto, amanh daquilo, similar s folhas amareladas que um vento li-geiro arranca da rvore: ou, ainda, no se apercebe mesmo dessa sepa-rao, to rigorosamente o seu olhar se fixa no objetivo, olhando,sobretudo, para a frente de si, e nunca para o lado, nem para trs, nempara baixo. A paixo gera, assim, a indiferena, e um desprendimentoque Nietzsche ope a qualquer espcie de virtudes negativas: no hnela nenhuma abnegao, nenhuma vontade de renncia ou de empo-brecimento. Basicamente, no o homem apaixonado que se separadas coisas, so as coisas que se afastam dele, porque no lhe interessam.

    O que define aqui a paixo , por conseguinte, a ideia fixa, a foca-lizao sobre um nico objetivo, um nico objeto. A ideia fixa tam-bm, para Nietzsche, uma caracterstica geral da paixo: ser apaixonadosignifica pensar unicamente no que se ama. Nietzsche pde encontraressa ideia em Stendhal, mas tambm em Pascal, que v na digresso oprprio do discurso amoroso (retorna-se sempre ao que se ama, no se

    49

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    77. Ver Ecce Homo, Por que escrevo livros to bons: A gaia cincia.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 49

  • chega a falar de outra coisa)78. Um dos sintomas da paixo consiste emperseguir-nos at em nossos sonhos79. A paixo desptica, obsessiva,toma posse da cabea e do corao tudo lhe subordinado e sacrifi-cado: Quando comemos, passeamos, vivemos socialmente ou solita-riamente, devemos determinar at o que h em ns de mais nfimo aoobjetivo superior da nossa paixo, afirma Nietzsche80. A paixo , comefeito, o domnio de um impulso, de um afeto sobre todos os outros: ohomem apaixonado tem apenas um nico objetivo, satisfazer este im-pulso. Ao tornar-se uma paixo (o afeto mais potente), o conhecimentotorna-se, por conseguinte, um objetivo, e torna-se mesmo o nico obje-tivo, ou seja, um objetivo que no saberia ser ao mesmo tempo ummeio. o sentido do aforismo 123 de A gaia cincia: O conhecimentoquer ser mais que um meio isso significa que no quer ser sujeitadoa nenhum outro impulso.

    A paixo, por conseguinte, torna pobre, no sentido de nos impul-sionar a desprender-nos do que , para os outros, o objeto de desejo. Oprprio da paixo que pode renunciar a tudo, exceto a si prpria. precisamente porque no se pode renunciar ao que se ama apaixona-damente que se pode renunciar a todo o resto: a paixo no teme ne-nhum sacrifcio, porque nada teme, no fundo, seno a sua prpriaextino81. Nietzsche apoia-se aqui na definio que Stendhal d aoamor-paixo em De lamour [Do amor]. Amar apaixonadamente sercapaz de sofrer todos os empobrecimentos e todas as renncias, parapoder continuar a amar.

    Essa indiferena da paixo de incio indiferena ao olhar e ao jul-gamento dos outros, indiferena a tudo o que pode adular a vaidade

    O mais potente dos afetos

    50

    78. Cf. PASCAL, Blaise. Penses. Oevres compltes. Estabelecimento do texto por Louis Lafuma. Paris,Seuil, 1963, p. 298.

    79. Ver, sobre esse ponto, certos fragmentos autobiogrficos, como os fragmentos 7[9] ou 7[156], finalde 1880. Cf.Aurora, aforismo 572:Quando algum, como o pensador, vive habitualmente na grande cor-rente dos pensamentos e dos sentimentos, e mesmo nossos sonhos, na noite, seguem esta corrente: pede-se vida tranquilidade e silncio.

    80. Fragmento 6[202], outono de 1880.

    81. Aurora, 429.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 50

  • dos outros: Os homens apaixonados se importam pouco com o quepensam os outros, o seu estado os eleva acima da vaidade.82 Nietzscheinspira-se aqui na distino schopenhaueriana entre a vaidade e o or-gulho: em Aforismos para a sabedoria de vida, Schopenhauer ope, comefeito, o orgulho, que consiste em ser interior e firmemente convencidodo que se quer, e a vaidade, que consiste em convencer a si mesmo doque se quer resignado pelo olhar e pelo julgamento dos outros83. O apai-xonado no vaidoso, mas orgulhoso isto o que faz sua liberdade: oque pensa no depende do que pensam os outros.

    Ora, essa indiferena e essa liberdade, esse desprendimento da pai-xo, constituem tambm uma exigncia ou uma consequncia do co-nhecimento: Nietzsche explica, assim, que a indiferena o funda-mento do esprito cientfico(uma coisa no nos concerne, ns podemospensar o que quisermos, no h nem vantagem nem desvantagem parans) e que o progresso do conhecimento acompanhou-se de um au-mento das coisas indiferentes (o mundo no cessou de fazer-se cada vezmais indiferente)84.

    Nietzsche retorna frequentemente, nos fragmentos de 1880 e emAu-rora, necessidade para o pensador de viver na independncia e na po-breza, reformulando, assim, o ideal do Andarilho e a sua sombra e da filo-sofia para o esprito livre em geral o ideal do sbio pobre (Ideal desarmenWeisen) e dapobreza voluntria e idlica, comoqualNietzsche fazdoravante seu lema: Pobre, feliz, e independente!85 O pensador deve teruma vidasimples e heroica, deveviver com modstia (wohlfeil leben)86.

    Essa simplicidade heroica depende, no entanto, do prprio pensa-dor. umapobreza apaixonada, por conseguinte, dionisaca, dado que

    51

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    82. Aurora, 394. Nietzsche reivindica s vezes essa indiferena: ver, por exemplo, o fragmento 11[1], de1881, no qual prope buscar receitas para tornar-se indiferente ao elogio e censura, e 289, de A gaiacincia.

    83. Nietzsche retoma essa definio da vaidade especialmente no 385 de Aurora.

    84. Fragmento 11[110], de 1881.

    85. Fragmento 7[111], final de 1880, e 206 de Aurora.

    86. Fragmento 4[208], vero de 1880, e 566 de Aurora. Fragmento 6[341], outono de 1880, e 566 deAurora.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 51

  • o homem que tem esprito , para Nietzsche, o mais rico e o mais po-tente dos homens: deve poderprivar-se sem tomar ares de mrtir so-mente pode privar-se de tudo, porque renunciar ao melhor (ou seja, aoconhecimento) seria para ele uma insuportvel privao87. Mas o co-nhecimento, que torna essa simplicidade suportvel, tem tambm ca-rncia de uma tal simplicidade, para aceder independncia de espritoque lhe necessria. O conhecimento, a pobreza e a liberdade so in-dissociveis: o amigo da verdade tambm o amigo da independncia:Eu sou apaixonado pela independncia, afirma Nietzsche, sacrifico--lhe tudo; a independncia o bero da paixo do infinito.88 Essaindependncia pode tomar a forma do isolamento, ou mesmo do de-senraizamento e do exlio: Somos emigrantes, dispara Nietzsche,emigrantes que aspiram independncia absoluta.89 Reencontra--se, assim, a figura do andarilho que se acha no corao da filosofiado esprito livre.

    No h, portanto, conhecimento sem independncia, e no h in-dependncia sem simplicidade pelo menos sem uma simplicidade he-roica e dionisaca. No se trata de uma simplicidade negativa, que seriaa consequncia de um processo de empobrecimento e de perda de po-tncia, mas de uma simplicidade da superabundncia, simplicidade doque se sente de modo to rico, to forte e to livre que permite viver noexlio e na pobreza. Tambm no h, por conseguinte, conhecimentosem paixo, dado que s a paixo pode engendrar tal simplicidade: umafeto tornou-se mais potente, porque um impulso reduziu todos os ou-tros ao silncio, por isso a vida pode ser simples e heroica: h apenas umimpulso a satisfazer e tudo lhe sacrificado.

    O mais potente dos afetos

    52

    87. Fragmento 6[341], outono de 1880, e 566 de Aurora.

    88. Fragmentos 3[124], primavera de 1880, e 7[91] e 7[13], final de 1880.

    89. Fragmento 6[31], outono de 1880. Cf.antes emigrar, 206 de Aurora. Cf., igualmente, o fragmento7[9], do fim de 1880, no qual Nietzsche explica que a paixo do conhecimento despedaa as relaes desimpatia: aluso evidente a Wagner, cuja figura central em todos os textos sobre a independncia e arenncia.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 52

  • 2.5. Um amor impossvel

    O conhecimento, portanto, tornou-se paixo.Mostramos que essatransformao era uma realizao90: o conhecimento encontra sua ver-dade e sua plenitude na paixo do conhecimento, porque o conheci-mento encontra na paixo a simplicidade heroica da qual tem necessi-dade. Mas a paixo apenas uma realizao? No h na paixo algo deimpossvel, de destruidor, de infeliz, uma dimenso necessariamentetrgica da qual seria prefervel desviar-se? Ao transformar-se em amor--paixo, o amor do conhecimento pode continuar a ser um amor feliz?O impulso mais potente pode ser satisfeito?

    a) Amor do conhecimento e amor das coisasPara responder a essas perguntas, necessrio primeiro interro-

    gar-se o que se amaquando se diz que se ama o conhecimento.A pai-xo do conhecimento , com efeito, tambm amor s coisas, aberturaao que no est em mim, ao que me estrangeiro, remoto, exterior. Olema Que importa eu! a expresso da verdadeira paixo, porque averdadeira paixo me faz sair de mim mesmo, empurra-me para fora demim, para as coisas: a maneira extrema de ver algo fora de si91. Emfragmento de 1880, Nietzsche observa que Pascal nunca poderia dizerQue importa eu!, pois considerava a salvao da alma a nica coisaimportante a posio de Pascal corresponde ao mais profundoegosmo, fundamentalmente anti-heroico: o eu detestvel, masnunca se deve desviar o olhar de si92. A paixo desvia-nos de ns, porisso arranca-nos essa constante preocupao conosco, tpica do cristia-nismo93. Ora, Nietzsche mostra que a preocupao consigo mesmo ti-picamente crist e pascaliana acompanha-se paradoxalmente de uma

    53

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    90. Aqui, o termo do original, accomplissement, tem o sentido de realizao, mas uma realizao que quase uma destinao, pois o autor trabalha com a ideia de que para Nietzsche um destino do conhe-cimento tornar-se paixo. (N. do T.)

    91. Fragmento 7[45], final de 1880.

    92. Fragmentos 7[158] e 7[106], final de 1880.

    93. Nietzsche evoca tambm Byron, que, como escrevia Stendhal, constantemente era ocupado de si edo efeito que produzia sobre os outros (fragmento 7[151], final de 1880).

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 53

  • fuga de si (Selbstflucht): o amor ao prximo consiste, segundo ele, empensar nos outros por sentir pouco prazer em pensar em si. Desdeento, mais agradvel desviar o olhar para o exterior: o amor a Deusconsiste em dissolver-se em Deus como em um fora de si (assimcomo Byron tinha sede por aes porque estas desviam-nos mais aindade ns mesmos do que os pensamentos, os sentimentos e as obras)94.Nietzsche retoma aqui contra o cristianismo a anlise pascaliana do di-vertimento: por preocupar-se constantemente com a salvao de suaalma, o cristo dissolve-se, no entanto, em Deus. No caso da paixo, oparadoxo inverso: tendo o olhar desviado de si mesmo, entretanto, ohomem apaixonado encontra e afirma a si mesmo. A paixo aomesmo tempo desprezo de si (que importa eu!) e afirmao de si.

    b) A fbula de Don Juan do conhecimentoEssa aptido que define a paixo, aptido para desviar o olhar de si

    para ver algo fora de si, evidentemente uma aptido essencial ao co-nhecimento aqui o conhecimento ainda exigia a paixo. Como dizNietzsche em Aurora, o pensador tem necessidade de justia e de amorem relao a tudo o que existe95. necessrio voltar-se para as coisas e necessrio am-las, necessrio calor e entusiasmopara conhecer epara ver (somente quando uma coisa nos interessa muito que a vemosrealmente)96.

    No h conhecimento sem amor: o que mostra ao contrrio a f-bula de Don Juan do conhecimento97. Essa fbula narra o destino tr-gico daquele que conhece sem amar (falta-lhe amor s coisas queconhece). A chave desse aforismo o captulo LXIX, de Do amor, deStendhal, no qual Don Juan contraposto ao Werther de Goethe:Werther a figura do homem apaixonado, enquanto Don Juan umcaador (o amor de Don Juan um sentimento no gnero do gosto

    O mais potente dos afetos

    54

    94. Aurora, 549. Cf. o fragmento 7[96], final de 1880, e os 131 e 516 de Aurora.

    95. Ibidem, 43.

    96. Ibidem, 339.

    97. Ibidem, 327.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 54

  • pela caa, diz Stendhal) e um caador que, tanto para Stendhalcomo para Nietzsche, se refugia finalmente no desgosto e no aborreci-mento (, enfim, pregado sua decepo e, no encontrando maisnada que comer, ele que se transforma em umconvidado de pedra).Para o Don Juan do conhecimento, o conhecimento apenas um di-vertimento, no sentido pascaliano do termo.

    Ora, o que caracteriza o Don Juan do conhecimento o mesmoque caracteriza todo caador, sente mais prazer em caar do que na presa.O mesmo se d com a paixo do conhecimento: o que importa a in-quietao da descoberta98. Alis, Nietzsche afirma explicitamente emum aforismo de Aurora: Um vai caa para apanhar verdades agrad-veis, o outro, verdades desagradveis.Mas o primeiro tambm tem maisprazer na caa do que na presa.99 Na paixo do conhecimento, a caano tem, porm, nada de divertimento ou de fuga de si: amor verda-deiro, amor-paixo no sentido stendhaliano do termo.No distrao,mas inquietao.

    c) Um amor infelizA diferena fundamental entre a paixo do conhecimento e a caa

    do Don Juan do conhecimento , portanto, esta: paixo amor. A pai-xo parece ser mesmo, acrescenta Nietzsche, um amor infeliz: Talvezsejamos ns mesmos, nossa maneira, os amantes infelizes!100 Nietzs-che inscreve-se ainda na esteira de Do amor, de Stendhal, mas tambmna esteira do Tristo, deWagner, e de uma concepo romntica e crist,uma viso crstica do amor.Alis, ele assume essa herana complexa noaforismo 429 de Aurora, no qual no hesita em declarar: O cristianismose atemorizou alguma vez com um semelhante pensamento? O amor ea morte no so irmo e irm? Em uma primeira verso, Nietzschehavia escrito assim: Todo homem que ama quer morrer.

    55

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    98. Aurora, 429.

    99. Ibidem, 396. Cf. o fragmento 7[129], do final de 1880, no qual Nietzsche volta mais uma vez anlise de Pascal contra o cristianismo, evocando o cristo que se distrai partindo para a caa de seuspecados.

    100. Aurora, 429.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 55

  • Se h prazer pela caa, esse prazer , por isso, uma sombra da bea-titude101. H na paixo do conhecimento uma obscuridade (Dsterkeit)que define de fato, para Nietzsche, a paixo em geral: toda grande paixoum braseiro silencioso e sombrio102.Nietzsche s vezes afirma mesmoa beatitude da desgraa do conhecimento103. Esse oxmoro resume umdos paradoxos centrais do cdigo do amor-paixo, tal como descreveStendhal em Do amor: o amante infeliz no trocaria por nenhum preoo seu amor (a sua desgraa) contra um estado de indiferena.

    Mas por que a paixo do conhecimento seria, por conseguinte, umamor infeliz? Por que a sua beatitude deveria ser sombria e obscure-cida pela melancolia? Simplesmente porque o amor do conhecimento sem dvida um amor impossvel: o drama da paixo do conheci-mento consiste em desviar o olhar de si para ver algo fora de si mas oque v fora de si nada mais do que si mesmo. Isso que Nietzschechamaa aterrorizante comdiado conhecimento: na caverna do saber,o homem reencontra apenas o seu prprio fantasma e os seus prpriosrgos104. Essa comdia, que significa talvez a impossibilidade do co-nhecimento, d a chave do enigmtico aforismo 423 de Aurora: a be-leza da natureza muda (o mar que se estende cintilante, o cu emespetacular crepsculo), no pode falar; e ao contempl-la somos ten-tados a abandonar-nos ao seu grande silncio (monstruoso mutismo)e, assim, cessar de ser um homem (ou seja, parar de falar, de pensar,de conhecer). O que fala na natureza sempre o homem, e o prazer deconhecer no seno um prazer humano105.

    A paixo do conhecimento um amor infeliz, porque o amor dohomem para conhecer as coisas, no entanto, o homem conhece apenasele mesmo quando procura conhecer as coisas: O amante do conheci-mento deseja unir-se s coisas e v-se separado delas esta a sua pai-

    O mais potente dos afetos

    56

    101. Fragmento 7[19], final de 1880.

    102. Aurora, 471.

    103. Fragmento 7[65], final de 1880.

    104. Aurora, 539 e 483.

    105. Ibidem, 483.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 56

  • xo.106 Qualquer conhecimento uma humanizao da natureza.A cin-cia no apresentada, em A gaia cincia, seno como uma humaniza-o a mais fiel possvel das coisas humanizao que Nietzsche associaa uma verdadeira tragdia: a tragdia prometeica de todos os buscado-res do conhecimento107. A liberao de Prometeu simboliza aqui a de-sumanizao da natureza, e parece que Nietzsche renuncia veemente-mente esperana de tal desumanizao. Na verso definitiva de A gaiacincia, essa esperana substituda por uma desdivinizao da natu-reza e uma renaturalizao do homem: Quando todas as sombras deDeus cessaro de obscurecer nossa vista? Quando teremos desdivinizadototalmente a natureza? Quando nos ser permitido naturalizar os sereshumanos com a natureza pura, novamente descoberta e liberada?108

    Talvez poderemos liberar a natureza de Deus, mas liber-la do homemparece impossvel: mesmo as matemticas, segundo Nietzsche, so ape-naso meio para o universal e derradeiro conhecimento do humano109.

    Em outras palavras, Nietzsche duvida da possibilidade de uma in-corporao total da verdade. Reflete especialmente no que chama averdade ltima do fluxo contnuo de todas as coisas: o tudo flui he-raclitiano no suporta a incorporao; o nosso corpo, os nossos im-pulsos e os nossos rgos rejeitam-no110. A crena no persistente necessria vida. Ora, Nietzsche afirma e repete: o fato de o conheci-mento ser, em ltima anlise, impossvel (no sentido do ceticismo l-timo formulado no aforismo 265 de A gaia cincia: as verdades dohomem so apenas os erros irrefutveis do homem) no suprime apaixo do conhecimento muito pelo contrrio: de acordo com a l-gica do amor-paixo que um amor infeliz, a bela impossibilidade ,sem dvida,o ltimo encanto da paixo111.A paixo do conhecimento

    57

    O conhecimento como o mais potente dos afetos

    106. Fragmento 11[69], de 1881.

    107. A gaia cincia, aforismos 112 e 300.

    108. Ibidem, 109. Nietzsche primeiro tinha escrito: Prometeu nem sempre liberado de seu abutre.

    109. Ibidem, 246.

    110. Fragmento 11[162], de 1881.

    111. Fragmento 15[26], outono de 1881.

    O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 57

  • consiste, por conseguinte, no fundo, em desejar o impossvel, justamentepor ser um desejo apaixonado