“em algum lugar, um riacho rumorejava” – vidas em tempos … · 2018. 9. 10. · 297 1...

12
296 “Em algum lugar, um riacho rumorejava” – Vidas em tempos líquidos: uma análise dos personagens de Fama, de Daniel Kehlmann e Mãos de Cavalo, de Daniel Galera “Somewhere, a stream rumored” Lives in Liquid Times: an analysis of the characters of Fama, by Daniel Kehlmann and Mãos de Cavalo, by Daniel Galera Carla Luciane Klos Schöninger 1 Abstract: The text consists on an analysis of the context in which the characters of the literary works: Fama, by the German writer Daniel Kehlmann (2011) and Mãos de Cavalo, by the Brazilian writer Daniel Galera (2006), as well as an investigation about their individualisms. Both of them are contemporary works that have peculiar structures, their chapters seem like fragmented parts, but they link themselves, composing the novels. The first is a novel with a strong metaficctional component, formed by nine narratives in which the different characters cross the linear boundaries and interfere in each another's actions. The second has a protagonist, but the textual composition is presented in chapters interspersed between facts of his past- childhood, adolescence and adulthood, the current times. The textual structures show the fluidity of the narratives and the agility with which the actions take place. The texts deal with the current context, in which the behavior of the characters reflects on the condition they live; who in the fluidity of their lives are carried by the stream. This scenario is treated by sociologist Bauman (2001) and (2007) as a liquid context. The context in which the individual's actions flow dynamically. The example of the one in the liquid state can be giving in the following way: the same fluid adapts to the different flasks and containers, taking on new shapes, and this is how the individual in today's society molds and demolds in a short space of time. Fluency requires these adaptations and changes. Other theorists such as Giddens (2002) and Hall (2006) offer different readings regarding to this contemporary context, but both emphasize the idea of need for adaptation, also Haesbaert (2014) and Simmel (2009) approach the city as a space of multi-territorialization and insecurity. Therefore, through the characters: Ebling, Leo Richter, Ralf, Mollwitz and Maria from the novel Fama and Hermano, from Mãos de Cavalo, exemplified the precision in assuming different identities, the ephemerality of success, the benefits and harms of technologies and the fragility of human relations. Keyboards: Fama, Mãos de Cavalo, liquid lives. Resumo: O texto consiste em uma análise do contexto em que vivem os personagens das obras literárias: Fama, do escritor alemão Daniel Kehlmann (2011), e Mãos de Cavalo, do escritor brasileiro Daniel Galera (2006), bem como uma investigação acerca das suas individualidades. Ambas são obras contemporâneas que apresentam estruturas peculiares, com capítulos que parecem partes fragmentadas, mas que se interligam, compondo os romances. A primeira obra é um romance com forte componente metaficcional, configurado por nove narrativas em que os diferentes personagens perpassam as fronteiras lineares e interferem nas ações uns dos outros. A segunda possui um protagonista, mas a composição textual é apresentada em capítulos intercalados entre fatos do passado: infância, adolescência e vida adulta, momento presente da narrativa. As estruturas textuais evidenciam a fluidez das narrativas e a agilidade com que as ações ocorrem. Os textos abordam o contexto contemporâneo, em que as condutas dos personagens refletem a condição em que vivem; os quais, na fluidez de suas vidas são levados pelas correntes. Esse cenário é tratado pelo sociólogo Bauman (2001) e (2007) como contexto líquido. Contexto este, em que as ações do indivíduo fluem com dinamicidade. A exemplo do que está em estado líquido, um mesmo fluido se adapta aos diferentes frascos e recipientes, assumindo novas formas, e é desse modo que o indivíduo, na sociedade atual, molda-se e se desmolda em um curto espaço temporal. A fluidez exige essas adaptações e mudanças. Outros teóricos, como Giddens (2002) e Hall (2006), oferecem diferentes leituras no que se refere ao contexto contemporâneo, mas ambos marcam a ideia de necessidade de adaptação. Haesbaert (2014) e Simmel (2009) também abordam a cidade como espaço de multiterritorialização e de insegurança. Portanto, através dos personagens: Ebling, Leo RichteRalf, Mollwitz e Maria do romance Fama e Hermano, de Mãos de Cavalo, exemplificou-se a precisão em assumir diferentes identidades, a efemeridade do sucesso, os benefícios e malefícios das tecnologias e a fragilidade das relações humanas. Palavras-chave: Fama, Mãos de Cavalo, vidas líquidas. 1 Doutoranda em Letras: Estudos da Literatura-UFRGS, Mestre em Letras: Literatura pela URI.

Upload: others

Post on 01-Dec-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: “Em algum lugar, um riacho rumorejava” – Vidas em tempos … · 2018. 9. 10. · 297 1 Introdução Esta investigação parte da análise dos textos literários: Fama, de Daniel

296

“Em algum lugar, um riacho rumorejava” – Vidas em tempos líquidos: uma análise dos

personagens de Fama, de Daniel Kehlmann e Mãos de Cavalo, de Daniel Galera

“Somewhere, a stream rumored” – Lives in Liquid Times: an analysis of the characters of

Fama, by Daniel Kehlmann and Mãos de Cavalo, by Daniel Galera

Carla Luciane Klos Schöninger1

Abstract: The text consists on an analysis of the context in which the characters of the literary works: Fama, by

the German writer Daniel Kehlmann (2011) and Mãos de Cavalo, by the Brazilian writer Daniel Galera (2006),

as well as an investigation about their individualisms. Both of them are contemporary works that have peculiar

structures, their chapters seem like fragmented parts, but they link themselves, composing the novels. The first is

a novel with a strong metaficctional component, formed by nine narratives in which the different characters

cross the linear boundaries and interfere in each another's actions. The second has a protagonist, but the textual

composition is presented in chapters interspersed between facts of his past- childhood, adolescence and

adulthood, the current times. The textual structures show the fluidity of the narratives and the agility with which

the actions take place. The texts deal with the current context, in which the behavior of the characters reflects on

the condition they live; who in the fluidity of their lives are carried by the stream. This scenario is treated by

sociologist Bauman (2001) and (2007) as a liquid context. The context in which the individual's actions flow

dynamically. The example of the one in the liquid state can be giving in the following way: the same fluid adapts

to the different flasks and containers, taking on new shapes, and this is how the individual in today's society

molds and demolds in a short space of time. Fluency requires these adaptations and changes. Other theorists

such as Giddens (2002) and Hall (2006) offer different readings regarding to this contemporary context, but both

emphasize the idea of need for adaptation, also Haesbaert (2014) and Simmel (2009) approach the city as a

space of multi-territorialization and insecurity. Therefore, through the characters: Ebling, Leo Richter, Ralf,

Mollwitz and Maria from the novel Fama and Hermano, from Mãos de Cavalo, exemplified the precision in

assuming different identities, the ephemerality of success, the benefits and harms of technologies and the fragility

of human relations.

Keyboards: Fama, Mãos de Cavalo, liquid lives.

Resumo: O texto consiste em uma análise do contexto em que vivem os personagens das obras literárias: Fama,

do escritor alemão Daniel Kehlmann (2011), e Mãos de Cavalo, do escritor brasileiro Daniel Galera (2006), bem

como uma investigação acerca das suas individualidades. Ambas são obras contemporâneas que apresentam

estruturas peculiares, com capítulos que parecem partes fragmentadas, mas que se interligam, compondo os

romances. A primeira obra é um romance com forte componente metaficcional, configurado por nove narrativas

em que os diferentes personagens perpassam as fronteiras lineares e interferem nas ações uns dos outros. A

segunda possui um protagonista, mas a composição textual é apresentada em capítulos intercalados entre fatos

do passado: infância, adolescência e vida adulta, momento presente da narrativa. As estruturas textuais

evidenciam a fluidez das narrativas e a agilidade com que as ações ocorrem. Os textos abordam o contexto

contemporâneo, em que as condutas dos personagens refletem a condição em que vivem; os quais, na fluidez de

suas vidas são levados pelas correntes. Esse cenário é tratado pelo sociólogo Bauman (2001) e (2007) como

contexto líquido. Contexto este, em que as ações do indivíduo fluem com dinamicidade. A exemplo do que está

em estado líquido, um mesmo fluido se adapta aos diferentes frascos e recipientes, assumindo novas formas, e é

desse modo que o indivíduo, na sociedade atual, molda-se e se desmolda em um curto espaço temporal. A fluidez

exige essas adaptações e mudanças. Outros teóricos, como Giddens (2002) e Hall (2006), oferecem diferentes

leituras no que se refere ao contexto contemporâneo, mas ambos marcam a ideia de necessidade de adaptação.

Haesbaert (2014) e Simmel (2009) também abordam a cidade como espaço de multiterritorialização e de

insegurança. Portanto, através dos personagens: Ebling, Leo RichteRalf, Mollwitz e Maria do romance Fama e

Hermano, de Mãos de Cavalo, exemplificou-se a precisão em assumir diferentes identidades, a efemeridade do

sucesso, os benefícios e malefícios das tecnologias e a fragilidade das relações humanas. Palavras-chave: Fama, Mãos de Cavalo, vidas líquidas.

1 Doutoranda em Letras: Estudos da Literatura-UFRGS, Mestre em Letras: Literatura pela URI.

Page 2: “Em algum lugar, um riacho rumorejava” – Vidas em tempos … · 2018. 9. 10. · 297 1 Introdução Esta investigação parte da análise dos textos literários: Fama, de Daniel

297

1 Introdução

Esta investigação parte da análise dos textos literários: Fama, de Daniel Kehlmann

(2011), e Mãos de Cavalo, de Daniel Galera (2006). O título deste: “Em algum lugar, um

riacho rumorejava” é extraído do romance Fama e remete metaforicamente à fluidez das vidas

dos personagens, que no dia a dia são levadas pelas correntes. O estudo abrange um conceito

condizente com o cenário contemporâneo, tratado por Bauman como contexto líquido.

Contexto este, em que as ações do indivíduo fluem com dinamicidade, percorrem, escoam,

drenam, filtram, respingam, formam ondas. A fluidez exige adaptações e mudanças em um

curto espaço temporal.

Isso aparece tanto por meio dos personagens Ebling, Leo Richter, Ralf, Maria e

Mollwitz – de Fama, de Daniel Kehlmann, quanto no protagonista Hermano – da obra Mãos

de Cavalo, de Daniel Galera. Na primeira obra, os diferentes personagens se deparam com

situações inusitadas, na correria do dia a dia sofrem as consequências de mal-entendidos,

erros de comunicação e problemas tecnológicos, mostrando a efemeridade da fama e do

sucesso. Já na segunda, na fronteira temporal de poucas horas, Hermano revive o passado em

sua memória e, dirigindo pela cidade de Porto Alegre, reflete sobre seu presente, sua vida

pessoal e profissional, percebendo que está se deixando levar pela correnteza, sem poder parar.

Ao deter uma “vida líquida”, aos personagens, há a impossibilidade de que os hábitos e as

rotinas sejam consolidados, o que influencia as questões ligadas à identidade, pois inúmeras

adaptações são impostas.

2 Fama e Mãos de Cavalo Fama (2011), de Daniel Kehlmann, é um livro que está estruturado de forma peculiar,

sendo composto por nove histórias que configuram o romance. Todas as narrativas correm por

seus canais, mas no fluir das águas, essas se bifurcam e se misturam. Apesar de não haver

marcas temporais na obra, há evidências de que os personagens vivem em uma época pós-

moderna, por mencionar instrumentos e ferramentas tecnológicas como: celulares, blogs,

computadores, internet, entre outros. Os espaços são dispersos, entre países da Europa, da

Ásia Central, da África e da América do Sul. Os títulos são: Vozes, Em perigo, Rosalie viaja

para morrer, A saída, Oriente, Resposta à abadessa, Uma contribuição ao debate, De como

menti e morri e Em perigo.

No segundo capítulo do texto literário, o personagem escritor Leo Richter trata de

uma composição romanesca, dizendo: “Um romance sem personagem principal! Entende? A

composição, as conexões, o arco narrativo, mas sem protagonista, sem um herói que apareça

em todas as situações” (KEHLMANN, 2011, p. 20). Evidencia-se, então, que há um

tratamento do personagem sobre a constituição da própria obra em estudo: Fama, momento

em que o escritor supostamente demonstra suas angústias, anseios, expectativas e ideias

diante da produção de um romance. O que demonstra um forte componente metaficcional.

Esse desabafo ocorre durante o voo do escritor para Berlim, lugar em que fará uma

palestra. Leo Richter era conhecido como

[...] o autor de narrativas intrincadas, cheias de reviravoltas e jogos espetaculares. De

um virtuosismo ligeiramente estéril. Não fazia muito tempo, ela (Elisabeth) lera suas

novelas sobre a médica Lara Gaspard, e naturalmente ela conhecia seu conto mais

famoso, sobre uma velha senhora em sua viagem até o centro de suicídio assistido

na Suíça. (KEHLMANN, 2011, p. 23)

Por outro lado, Mãos de cavalo, de Daniel Galera, retrata, em breves capítulos, fatos e

eventos vividos pelo protagonista Hermano em diferentes etapas de sua vida. Os capítulos

referentes à infância e à juventude são memórias e carregam nomes de lugares e

Page 3: “Em algum lugar, um riacho rumorejava” – Vidas em tempos … · 2018. 9. 10. · 297 1 Introdução Esta investigação parte da análise dos textos literários: Fama, de Daniel

298

acontecimentos daquele tempo. Já aqueles condizentes com a fase adulta são divididos por

horas do dia, transmitindo a ideia de dinamicidade.

A divisão dos capítulos se dá da seguinte forma e sequência: O ciclista urbano; 6h08;

O Bonobo; 6h13; O morro; 6h17; Downhill; 6h23; A festa de quinze de Isabela; 6h31; Naiara;

6h43; A clareira; 8h04 e O enterro. O espaço abordado em todos os episódios é a cidade de

Porto Alegre, entre os anos de 1990 e 2010, desde os seus dez anos até seus trinta anos.

3 “Em algum lugar, um riacho rumorejava”: Vidas líquidas em Fama e Mãos de Cavalo As narrativas analisadas neste estudo, Fama e Mãos de Cavalo, apesar de estarem

situadas em espaços distintos: países da Europa, da Ásia Central, da África e da América do

Sul, possuem enredos que se passam em uma mesma época, estando situadas em “tempos

líquidos”, ou seja, em tempos em que as formas se dissolvem, tornam-se instáveis, escorrem e

passam a ser moldadas e adaptadas. Pensa-se nos diferentes frascos e recipientes nos quais um

líquido pode se abrigar, seja raso, fundo, oval, quadrado, redondo, em jarro, em taça, em

copo... o líquido molda-se rapidamente, adaptando-se à forma que lhe é imposta. Assim, em

tempos líquidos, também as vidas inseridas nesses, tornam-se líquidas.

O título do artigo “Em algum lugar, um riacho rumorejava” é extraído do capítulo “Em

perigo”, do livro Fama. Refere-se ao momento em que Leo Richter e Elisabeth viajam para a

Alemanha e posteriormente para a África em busca dos amigos de Elisabeth que foram

sequestrados.

A chuva parou, minutos depois o sol abriu um rombo nas nuvens. A névoa foi se

tornando diáfana e de repente apareceram os degraus da gigantesca construção. O

vale sob eles parecia mergulhar nas profundezas, e ela teve a impressão de que a

crista sobre a qual estavam se elevava lentamente. Em algum lugar, um riacho

rumorejava. Ela se perguntou por que estava com vontade de chorar. (KEHLMANN,

2011, p. 39)

Os personagens dos dois romances vivem num contexto contemporâneo, para Giddens

(2002), modernidade tardia ou alta modernidade; para Bauman (2001), modernidade líquida.

Este estudo tem como enfoque a perspectiva de Bauman, optando pela utilização do termo

modernidade líquida.

É nesse sentido que o sociólogo Zygmunt Bauman trata da pós-modernidade,

caracterizando-a como um contexto “líquido”. Nesse conceito, apresenta que a adaptação

passa a ser fundamental para a sobrevivência do indivíduo. Bauman (2001), em Modernidade

Líquida, articula a seguinte ideia:

Os fluidos se movem facilmente. Eles “fluem”, escorrem”, “esvaem-se, “respingam”,

“transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”, “pingam”; são “filtrados”,

“destilados”; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos- contornam

certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam o caminho. (BAUMAN,

2001, p. 8)

Ao se referir a vida líquida, Bauman trata do tipo de vida que se tende a levar nessa

sociedade “líquido-moderna”, tanto a vida quanto a sociedade não mantêm a forma e nem permanecem do mesmo modo por muito tempo. Para ele, a vida líquida

é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante. As preocupações

mais intensas e obstinadas que assombram esse tipo de vida são os temores de ser

pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar

para trás, deixar passar datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora

indesejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de rumo antes de tomar

um caminho de volta. A vida líquida é uma sucessão de reinícios”. (BAUMAN,

Page 4: “Em algum lugar, um riacho rumorejava” – Vidas em tempos … · 2018. 9. 10. · 297 1 Introdução Esta investigação parte da análise dos textos literários: Fama, de Daniel

299

2009, p. 8)

É perceptível, no transcorrer do enredo de ambos os romances, o quanto as exigências

do dia a dia resultam em adaptações do indivíduo para que ele possa desenvolver ações no

meio pessoal e profissional. É difícil apegar-se a uma “única identidade e manter juntos os

seus pedaços e partes enquanto se enfrentam forças erosivas e as pressões dilaceradoras”

(BAUMAN, 2009, p. 13). Ebling, do romance Fama, divide o tempo entre o espaço da casa e

de uma empresa de ferramentas tecnológicas, Leo Richter vive no ambiente acadêmico, entre

produções escritas, palestras, conferências, viagens.

Ralf Tanner dividia o tempo entre atuação em filmes, teatros, participação em festas,

encontros românticos, fotografias, encontros com celebridades. Maria Rubinstein escreve

romances policiais, é casada e viaja a fim de divulgar as obras e tornar-se mais conhecida, o

blogueiro Mollwitz trabalha em uma empresa de eletrônicos, faz postagens em blogs,

participa de uma conferência e faz palestras. Em Mãos de Cavalo, Hermano tem sua vida

privada, com esposa e filha, o amigo, as viagens, os fantasmas do passado que lhe atormentam,

a vida acadêmica e a atividade profissional de cirurgião plástico.

A análise em questão enfatiza a individualidade, que está centrada nos personagens:

Ebling, Leo Richter, Ralf, Mollwitz e Maria, do romance Fama, e Hermano, de Mãos de

Cavalo. O padrão de vida, as escolhas, as ações e o fluxo na descrição de pensamentos e

sentimentos exemplificam a condição dos personagens, indivíduos que, metaforicamente, em

sua forma líquida, adaptam-se às diferentes formas, enquanto sua vida flui. O indivíduo é

então responsável por seus méritos e fracassos, devendo enfrentar os riscos e as contradições.

De modo semelhante ao “derretimento de sólidos”, a que Bauman se refere (contexto

em que estruturas concretas e duradouras não mais existem), Giddens (2002) usa o termo

“desencaixe”, pois considera que no contexto atual há uma reorganização do espaço e do

tempo, esse dinamismo da modernidade desencadeia um desencaixe das instituições sociais.

Considera assim, que as relações sociais se descolam de lugares específicos e se recombinam,

globalizando traços institucionais preestabelecidos, o que transforma o conteúdo e a natureza

da vida social cotidiana.

O sociólogo pondera que a modernidade pode ser entendida como equivalente ao

“mundo industrializado”, desde que se reconheça que o industrialismo não é a única dimensão

institucional, pois outra dimensão é o capitalismo, o qual envolve mercados competitivos de

produtos e mercantilização da força de trabalho, há ainda, o uso da informação, que passa a

coordenar atividades sociais. O industrialismo, o capitalismo e o uso da informação têm

influenciado muito na reorganização das instituições sociais.

Giddens resume o aceleramento do mundo moderno, da vida social e individual nas

seguintes palavras: “‘o mundo moderno’ é um ‘mundo em disparada’: não só o ritmo da

mudança social é muito mais rápido que em qualquer sistema anterior; mas também a

amplitude e profundidade com que ela afeta práticas sociais e modos de comportamento

(GIDDENS, 2002, p. 22).

Ele destaca ainda, que a modernidade fragmenta e dissocia, sendo considerada marca

de emergência de uma nova fase social que iria além da própria modernidade – uma era pós-

moderna.

A alta modernidade é caracterizada pelo ceticismo generalizado juntamente à razão

providencial, em conjunto com o reconhecimento de que a ciência e a tecnologia

têm dois gumes, novos parâmetros de risco e perigo ao mesmo tempo em que

oferecem possibilidades benéficas para a humanidade. (GIDDENS, 2002, p. 32)

Os personagens passam pelo processo de derretimento, ou seja, passam a viver na

condição líquida. Os fluidos não se fixam nem se prendem ao tempo e espaço, bem como não

Page 5: “Em algum lugar, um riacho rumorejava” – Vidas em tempos … · 2018. 9. 10. · 297 1 Introdução Esta investigação parte da análise dos textos literários: Fama, de Daniel

300

se atêm a qualquer forma e estão constantemente prontos. Observa-se isso, ao analisar os

diferentes papéis que os personagens assumem na sociedade, as diferentes instituições sociais

das quais participam e as mudanças que ocorrem em sua condição e busca identitária.

Nas produções, percebe-se que os personagens rejeitam qualquer confinamento

territorial. Há deslocamento dos personagens por entre cidades, países, continentes e, mesmo,

em pequenos grupos sociais que vivem. Há uma constante mudança de espaços e de papéis

que assumem na sociedade. Isso não significa que queiram conquistar novos territórios, mas

que buscam destruir as muralhas que os prendem às necessidades materiais e culturais.

Em Mãos de cavalo, o protagonista Hermano formou-se em Medicina na Universidade

Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é casado com Adriana e tem uma filha de dois anos.

É um médico bem-sucedido. No entanto, percebe que sua vida pessoal e profissional tem se

tornado pacata. Todos os anos ele está em busca de aventura para dar mais emoção a sua vida.

Sua vida juntos parecia ter passado de maneira rápida e automática. Conviveram

muito pouco nos primeiros anos, ele absorvido por residências médicas e

especializações, uma delas em São Paulo, além de leituras científicas de um rigor

excruciante e longas corridas noturnas que eram uma forma de recarregar seu ânimo

e preservar a disciplina e uma visão límpida dos seus objetivos, ela se envolvendo

cada vez mais com artistas e “pessoas criativas”, como ela mesma tachava com

franco escárnio, participando da montagem de exposições de amigos pintores e

criando, aos poucos, suas próprias obras. (GALERA, 2006, p. 52-53)

As formas dos indivíduos nessa condição líquida estão na configuração entre as

identidades autoconstruídas, as quais são suficientemente sólidas para serem reconhecidas

como tais, mas também são flexíveis o suficiente para “não impedir a liberdade de

movimentos futuros em circunstâncias constantemente cambiantes e voláteis” (BAUMAN,

2001, p. 60).

Hermano sente o distanciamento da esposa e percebe como ela é levada pelas ações do

dia a dia e a compara à velocidade e à condução de um carro:

[...] tinha a impressão de que tudo que a esposa sentia e fazia nos últimos tempos era

resultado dos comandos de um sofisticadíssimo software de piloto automático. A

Adri estava vivendo como ele dirigia agora, em terceira e baixa rotação, a cerca de

quarenta quilômetros por hora, em quase inconsciência do que se passava ao seu

redor, como se os olhos e os membros que dirigiam o carro fossem comandados por

um centro de operações independente daquele responsável por seu fluxo incessante

de pensamentos. (GALERA, 2006, p. 72)

As cenas de Mãos de cavalo ocorrem nas ruas de Porto Alegre e descrevem os

passeios de bicicleta, brincadeiras infantis, amizades, desilusões amorosas, festas, dentre

outros fatos que retornam em lembranças. Na fase adulta, surgem os compromissos e as

atividades profissionais, neste momento o protagonista declara estar no piloto automático.

Seus planos para uma viagem à Bolívia em uma aventura rumo ao desconhecido e busca do

isolamento, fazem emergir sentimentos, emoções e memórias de um passado marcante. Assim,

fatos isolados e intercalados entre a infância, a adolescência e a fase adulta se completam e se

conectam com o passar do tempo, fazendo Hermano refletir sobre sua verdadeira identidade. Na batalha do dia a dia, em relação às identidades assumidas no curso da vida, é perceptível

uma “luta interminável entre o desejo de liberdade e a necessidade de segurança, assombrada

pelo medo da solidão e o pavor da incapacidade” (BAUMAN, 2009, p. 44).

O capítulo “O ciclista urbano” narra a infância de Hermano que anda com sua bicicleta

Caloi aro 20, de freio de pé (modelo típico dos anos 80 e 90). Aos dez anos, anda pelas ruas

de Porto Alegre, desce ladeiras, faz manobras, observa o Guaíba de longe, os passeios são

marcados por esfolões, suor e sangue. O lago Guaíba é mencionado por diversas vezes no

Page 6: “Em algum lugar, um riacho rumorejava” – Vidas em tempos … · 2018. 9. 10. · 297 1 Introdução Esta investigação parte da análise dos textos literários: Fama, de Daniel

301

decorrer do romance, como se as águas deste acompanhassem as diferentes etapas da vida de

Hermano, as transformações entre infância, adolescência e vida adulta.

Os diferentes capítulos mencionam episódios da infância e da adolescência de

Hermano, seus títulos referem-se a lugares, eventos e pessoas que fizeram parte desses

momentos. Em “O Bonobo”, há o episódio na Esplanada, a explicação sobre o apelido de

Hermano, de Mãos de Cavalo, devido ao cumprimento exagerado dos braços e às mãos

enormes. Hermano aos onze anos joga bola com os amigos e com Bonobo, um menino que

sempre se metia em confusão; “O morro” – Morro da Canastra, onde Hermano, adolescente,

acampa com o grupo de amigos; “Downhill” narra o período de férias de 1990 e 1991, quando

Hermano, aos 15 anos, desce a escadaria de bicicleta, machuca-se muito com a queda e ganha

o respeito de Bonobo.

Em “A festa de quinze de Isabela”, Bonobo e Hermano vão juntos à festa no

Restaurante Recanto Espanhol, no bairro vizinho da Esplanada. Uruguaio agarra Isabel, que

tenta livrar-se, mas não consegue, uma briga inicia e Bonobo dá muitos socos em Uruguaio, a

amizade entre Hermano e Bonobo se fortalecia.

“Naiara” está sozinha em casa, Hermano procura por Bonobo, irmão de Naiara,

mesmo o amigo não estando, Hermano entra. Há aproximação entre Naiara e Hermano, que se

beijam, tocam-se, acariciam-se e ela lhe dá uma mordida forte no peito. “A clareira” marca

um momento em que Hermano e os amigos se reúnem à noite, bebem vinho, fazem uma

fogueira e conversam sobre assuntos diversos. O vinho acabou e Bonobo e Hermano foram

comprar mais. Repentinamente, Uruguaio e outros meninos perseguem os dois que saem

correndo, viram então os buracos deixados pela Prefeitura na calçada, sinalizando que

estavam próximos da trilha que conduzia à clareira. Bonobo caiu em um dos buracos,

Hermano nada fez a não ser se esconder e ver Uruguaio e seu grupo bater e chutar a cabeça de

Bonobo.

Hermano entrou no mato, caiu numa vala do terreno e se escondeu atrás de folhas e

galhos. Podia enxergar pouco do que acontecia na rua, mas estava ouvindo

perfeitamente bem. Ninguém gritava, ninguém falava. Houve apenas o ruído dos

tênis golpeando continuamente o que só podia ser o Bonobo durante um período que

pareceu duas horas. Mas uma hora acabou e a frequência cardíaca de Hermano

continuava alucinada. Eles pararam de chutar e começaram a falar [...] Tinham

deixado ele de lado. Ouviu o som dos passos, que foram diminuindo até desaparecer.

Permaneceu agachado atrás dos galhos por alguns minutos, esperando que Bonobo

emitisse algum som. Nada. (GALERA, 2006, p. 171)

Hermano se sente cúmplice e covarde, preferindo manter isso em segredo. Bateu-se,

deu em si mesmo socos e jogou-se no chão sujando a roupa, usou a imaginação para que as

outras pessoas pensassem que ele também tinha sido machucado na briga.

“O enterro” é o capítulo final, que narra o enterro de Bonobo, causa da morte:

traumatismo craniano, essa teria sido a primeira morte trágica na Esplanada. “Hermano estava

consciente desse processo enquanto soluços espocavam à visão do caixão, que vinha sendo

carregado para a pequena sala onde teria início o velório. Estavam todos ali, naquela manhã

gelada de domingo” (GALERA, 2006, p. 181). Naquele dia, queria apenas ficar sozinho com

seus pensamentos, queria voltar sozinho. “Durante o trajeto, foi retocando e simplificando seus planos. Agora sabia exatamente o que fazer. Não seria necessário fingir nunca mais”

(GALERA, 2006, p. 188).

Como mencionado anteriormente, os capítulos correspondentes à fase adulta de

Hermano intitulam-se com horas do dia, iniciando às 6h 8 min e terminando às 8h 4 min. Em

intervalos entre 5 minutos a 1 h e 20 minutos. Totalizando um espaço temporal de 2h 4 min.

“6h08” evidencia um salto na fronteira temporal, momento em que Hermano, já

adulto, está dirigindo pelas avenidas de Porto Alegre, enquanto se desloca pela cidade com

Page 7: “Em algum lugar, um riacho rumorejava” – Vidas em tempos … · 2018. 9. 10. · 297 1 Introdução Esta investigação parte da análise dos textos literários: Fama, de Daniel

302

seu carro, reflete sobre sua vida, sobre a relação com a esposa e a filha, com o amigo Renan,

lembra-se dos lugares que exploraram, planeja a viagem ao Cerro Bonete, no Nordeste da

Argentina.

“6h13”, Hermano ainda dirigindo por Porto Alegre, pensa em Adri, na filha Nara, no

casamento e o desgaste na relação; Em “6h17” dirige e deixa os pensamentos fluírem, lembra

então que Adri quase morrera há dois anos e meio quando deu à luz Nara, das emoções de

ouvir o coração do bebê bater e do amor que sentia pela filha; Às “6h23”, em sua Mitsubishi

Pajero pensa na escolha do nome da filha, no Cerro Bonete como lugar exatamente oposto de

onde está agora. Às “6h31” retorna aos bairros em que vivera e brincara durante a infância e a

adolescência, agora morava em um apartamento com Adri em Petrópolis. Depara-se com a

casa em que vivera com os pais até os 25 anos, agora era um cirurgião plástico com

especialização em estética. Em “6h43” vê um garoto de cerca de quinze anos sendo espancado

por outros, seu rosto está coberto de sangue, Hermano desce da Pajero com um piolet-

escopeta de cano cerrado e espanta os meninos, salvando o garoto e levando-o ao hospital.

“Não esquenta, eu sou médico”. Nunca em sua vida aquelas palavras tinham soado

tão artificiais saindo de sua boca. Eu sou médico. É um médico, é claro, lembra de

cada etapa de seu interminável processo de formação e especialização, mas é como

se cada doa daquele esforço tivesse sido registrado com um risco de giz na parede de

uma cela. É médico, mas desde que despertou hoje de manhã não se sente mais

médico. (GALERA, 2006, p. 153)

Há a adaptação a diferentes situações: Hermano como médico, como especialista,

como amigo, como herói. Às “8h04” sua Pajero

flutua pelo asfalto, como se conduzido por um leito de rio calmo e veloz [...] A velha

escadaria que desciam de bicicleta continua ali [...] À esquerda está o Morro da

Polícia, preservado e inabitado graças a seu acesso restrito. À direita vê o Guaíba e a

praia de Ipanema ainda imersa em serenidade, em estado de meditação [...] Às oito

horas da manhã, contudo, ainda impera um relativo silêncio que espelha o silêncio

da madrugada longínqua em que ele e o Bonobo sentaram para conversar naquele

exato local, voltando a pé de uma festa. Tanto tempo depois, ainda era possível

recordar do sentimento de querer ser como Bonobo, impotente, duro, espontâneo e

respeitado não obstante sua feiura, desajuste, tosquice e brutalidade. Conviver com

ele era flertar com um mundo radicalmente oposto àquele que era seu mundo interior

quando adolescente, e por um breve período, marcado pela conversa noturna no alto

da escadaria, tinha parecido ser possível conciliar esses dois mundos, pertencer a um

deles mas participar do outro com tal frequência e confiança que a vida transcorria

além se sua individualidade, trapaceando os limites numa promiscuidade de

personalidades, temperamentos e visões de mundo. (GALERA, 2006, p. 75-176)

Hermano vai então até a casa de Naiara, a mesma casa de tantos anos atrás. Nela

Naiara e uma prima vivem juntas e dirigem ali mesmo uma creche. Uma série de momentos

compartilhados vêm em suas memórias. Ficam um tempo em silêncio sem saber o que dizer

um ao outro. “A janela está aberta e o sol já está rachando do lado de fora. Ela pergunta se ele

toma chimarrão mas ele não responde. Apenas levanta da cadeira. Está na hora de ir”

(GALERA, 2006, p. 179). Os capítulos da fase adulta ilustram reflexões de Hermano sobre a vida que leva,

lembra-se da trajetória acadêmica, graduação, especialização, até finalmente poder chegar

onde está e dizer que é um médico e que pode ajudar as pessoas. Mesmo formado, precisa

continuar dedicando-se às pesquisas e estudos a fim de aperfeiçoar sua prática na área de

estética. Ele está sempre em movimento, a exemplo de sua Caloi aro 20, na infância, e agora,

de sua Pajero.

Page 8: “Em algum lugar, um riacho rumorejava” – Vidas em tempos … · 2018. 9. 10. · 297 1 Introdução Esta investigação parte da análise dos textos literários: Fama, de Daniel

303

“Flutuar pelo asfalto, como se conduzido por um rio calmo e veloz”, mostra o

deslocamento e movimento do personagem sempre acompanhado pelas águas do Guaíba, que

costeiam a cidade, apesar de ser erroneamente tratando por rio, o lago Guaíba, de grande

extensão, flui, desembocando na Lagoa dos Patos e posteriormente no Oceano Atlântico. Num

movimento constante, apesar de quase imperceptível, assim como Hermano, ao refletir sobre

sua vida e a de Adriana, que parecendo estar em piloto automático são levados, sem se darem

por conta. Quando menos esperava, o protagonista já estava com seus trinta anos, tinha

emprego e tinha constituído uma família. O médico, amigo, pai, marido, especialista,

pesquisador e de espírito aventureiro, apesar de tantas conquistas, não se sentia feliz, tinha a

sensação de incompletude.

O romance Fama inicia com o personagem Ebling, que demonstra no dia a dia, certa

resistência em fazer uso de novas tecnologias, mas, por tornar-se algo necessário na atividade

profissional, ele acaba adquirindo um celular. “Antes de Ebling chegar em casa, seu celular

tocou. Durante anos, ele se recusara a comprar um, afinal ele era um técnico e não confiava

naquela geringonça” (KEHLMANN, 2011, p. 7).

Mas de seu trabalho ele gostava. Ele e dezenas de colegas ficavam sentados debaixo

de lâmpadas muito claras e examinavam computadores defeituosos que eram

enviados para lá por comerciantes de todo o país. Ele sabia o quão frágeis eram

aquelas pequenas placas pensantes, quão complicadas e enigmáticas. Ninguém as

entendia por inteiro; ninguém poderia realmente dizer por que de repente paravam

de funcionar ou começavam a fazer coisas estranhas. (KEHLMANN, 2011, p. 9)

Ao pensar nos avanços tecnológicos, até mesmo perdia o sono: “À noite, semi-

adormecido em sua cama, essa ideia o inquietava – todos os aviões, as armas guiadas

eletronicamente, os computadores nos bancos –, às vezes tanto que chegava a sentir

palpitações” (KEHLMANN, 2011, p. 9). Há então a demonstração da evolução das

tecnologias, que vêm influenciando tanto os meios de comunicação quanto as relações

pessoais e de trabalho. Ainda, é possível perceber que os objetos produzidos na atualidade não

possuem durabilidade, são produzidos no mercado para, em curto espaço de tempo, serem

substituídos por outros instrumentos mais modernos e sofisticados.

Em “Uma contribuição ao debate”, o blogueiro Mollwitz sente que precisa estar

conectado a todo o momento. Em seu blog o username é molwitt, nele posta críticas a textos,

livros, figuras importantes, expõe o quanto adora Leo Richter e declara estar apaixonado pelo

personagem de Lara Gaspard. Além desse, ele faz uso de outros três usernames. Ele viaja

representando a empresa em que trabalha e encontra Leo Richter, tentando conversar com ele,

mas entristece ao perceber que jamais faria parte de uma de suas narrativas.

Ele disse algo sobre o Congresso das Operadoras Europeias de Telecomunicações, o

start já é depois de amanhã. Ele próprio queria ir, mas não podia o departamento

precisava ser representado, e também havia uma apresentação para fazer: normas de

radiocomunicação nacionais versus europeias. (KEHLMANN, 2011, p. 106)

Muitas palavras indicando aplicativos, sites de busca, venda e, mesmo, palavras e

expressões em inglês são usadas pelo blogueiro, como: Supermovies, Literature4you, boss,

mega smile, power play, infos, IP, thetree.com, screen, desk, guestbook, start, busy, thoughts,

Nicks, usernames, wireless, life reality, movie forum, Amazon. O blogueiro não é identificado,

utiliza-se apenas de um usuário, o que permite que faça postagens livremente sobre seu ponto

de vista. Através das redes sociais, ele participa de debates e faz postagens sobre os escritores

Leo Richter, Miguel Auristos Blancos e sobre o ator Ralf Tanner. O blogueiro faria uma

apresentação aos participantes do congresso e ao preparar os slides no hotel, fica sem internet

e sente-se perdido:

Page 9: “Em algum lugar, um riacho rumorejava” – Vidas em tempos … · 2018. 9. 10. · 297 1 Introdução Esta investigação parte da análise dos textos literários: Fama, de Daniel

304

Admito que estava um tanto zonzo e alterado. Era muita coisa junta: a briga com a

minha mãe e como eu pude ser tão estúpido e informar meu IP. E o medo pelo dia

seguinte: o. k., um profissa como eu sabe muito bem fazer uma apresentação, mas

estava sem internet havia nove horas e meia, e totalmente por fora do que estava

rolando! [...] Mais alguns minutos no laptop. PowerPoint, difícil de mexer. Digitei

um pouco, arrastei janelas para cá e para lá. Simplesmente não consegui. Bem,

amanhã com certeza rodaria. (KEHLMANN, 2011, p. 112)

Apesar de ter domínio sobre o que falaria no dia seguinte, prepara os slides, mas se

preocupa, pois eles não estão rodando. Mesmo as facilidades, a mobilidade e a sofisticação

desses recursos, nem sempre garantem o bom desempenho no momento em que mais se

precisa deles.

Simmel (2009), ao se referir a modernidade, menciona que, por um lado, a vida tem se

tornado mais fácil, pois estímulos, interesses, preenchimento de tempo e de consciência são

oferecidos de todos os lados e isso sustém o indivíduo numa corrente, sem precisar nadar. Por

outro lado, há uma série de ofertas impessoais, há a necessidade de resgate das peculiaridades

e de salvar o que há em si mesmo.

Em “Em perigo”, Leo Richter e Elisabeth são recebidos pela Sra. Rappenzilch em

Berlim, a qual foi buscá-los no aeroporto para que se instalassem em um hotel, para que, no

dia seguinte proferissem palestras na universidade “No caminho para o instituto cultural, ela

contou histórias sobre crimes e assaltos nas ruas. Aquela era uma cidade muito perigosa.

Perturbado, Leo pegou seu bloco de anotações” (KEHLMANN, 2011, p. 28). Depois da

palestra, das saudações, dos aplausos e autógrafos, vê um cartaz de Ralf Tanner. Então ouviu

falar do escândalo do ator ter sido espancado por uma mulher, estando as cenas disponíveis no

YouTube. Richter lembra que deve ir a Ásia Central no mês seguinte. Viaja para Munique e

cancela a viagem para a Ásia Central e sugere a escritora Maria Rubinstein para ir em seu

lugar.

Os comentários acerca dos perigos da cidade deixaram o escritor perturbado. Num

território composto por distintas construções, movimentado por automóveis, desenhado por

ruas, agitado pelo barulho, habitado por muitas pessoas, que na indiferença, sobrevivem

isoladamente em seus mundos, os perigos emergem.

Em “Oriente” Maria Rubinstein, uma escritora em busca de maior sucesso, viaja para

o oriente no lugar de Leo Richter em uma turnê de escritores. “Seus romances policiais

vendiam bem, ela recebia muitas cartas de leitores. Ela amava o marido e o marido a amava.

Sua vida estava em ordem. Ela tinha mesmo que se aventurar numa viagem daquelas”

(KEHLMANN, 2011, p. 74). Uma série de fatos a deixa desolada: esquecem-na num hotel

vazio, não fala a língua do país, acaba a bateria do celular, não consegue comprar comida, por

não ter feito o câmbio, recolhem sua carteira, retiram seu passaporte – pelo visto

estavavencido – e não consegue retornar para casa.

Depois de uma hora de busca, ela se convenceu de que o edifício estava realmente

vazio [...] O calor estava pior do que no dia anterior. Logo suas roupas estavam

grudadas no corpo, o suor escorria pelo seu rosto, e ela estava tão debilitada pela

fome que mal conseguia carregar sua sacola [...] se deu conta de que não tinha

dinheiro do país, apenas euros [...] Os homens lançavam olhares maliciosos, crianças

apontavam para ela, exclamavam alguma coisa e então eram puxadas por suas mães.

(KEHLMANN, 2011, p. 84)

Observa-se aversão, repulsa, indiferença, disputa, imediatismo, rapidez. Os tipos de

individualidades das grandes cidades são elevadas, tendo uma intensificação da vida nervosa,

“que brota da mudança acelerada e ininterrupta das impressões interiores e exteriores. O

homem é um ser da diferença [...]” (SIMMEL, p. 4, 2009). Maria Rubinstein vive a diferença,

Page 10: “Em algum lugar, um riacho rumorejava” – Vidas em tempos … · 2018. 9. 10. · 297 1 Introdução Esta investigação parte da análise dos textos literários: Fama, de Daniel

305

por ser de outro país, lidar com outra cultura, outra língua, outra realidade, ao mesmo tempo,

vive a indiferença, ninguém olha por ela, a não ser uma humilde senhora que lhe dá a chance

de tentar algo novo.

“Todos os dias, aprendemos que o inventário de perigos está longe de terminar: novos

perigos são descobertos e anunciados quase diariamente” (BAUMAN, p. 12, 2008). Nesse

espaço líquido-moderno, o medo é algo constante. A vida do indivíduo “está longe de ser livre

do medo e o ambiente líquido-moderno em que tende a ser conduzida está longe de ser livre

de perigos e ameaças” (BAUMAN, p. 15, 2008). O espaço da cidade envolve convivências

sociais no dia a dia, nesse, normas são estabelecidas, as regras envolvem comportamentos,

limites e interesses. No entanto, essas normas fracassam em relação à segurança prometida.

Segundo Rogério Haesbaert, no seu livro Viver no Limite, vive-se hoje a problemática dos

riscos. Para ele, “In-segurança também está intimamente ligada à questão dos riscos. A

preocupação constante com ‘(não) correr riscos’ tornou- se uma das principais características

das nossas sociedades de in-segurança” (HAESBAERT, 2014, p. 156). Há então um

“enfraquecimento do sistema de proteção social e também o estabelecimento de uma nova

relação dos indivíduos com uma força de Estado responsável pela segurança e geral”

(FOUCAULT apud HAESBAERT, 2014, p. 158-159).

Haesbaert trata ainda do espaço geográfico da cidade e sua dinamicidade:

O espaço geográfico, na verdade, partindo de uma posição relacional, envolve, tanto

o universo dos objetos quanto dos sujeitos e suas ações, tanto a dimensão dos

elementos (aparentemente) fixos quanto móveis, tanto a dimensão material quanto a

dimensão imaterial. (HAESBAERT, 2014, p. 37)

Diante das dimensões dos objetos, dos sujeitos e suas ações, é perceptível no cotidiano

da metrópole, o que Georg Simmel descreve. Ele enfatiza que os nervos dos homens têm “a

possibilidade de se ajustar aos conteúdos e à forma da vida na grande cidade, renunciando a

reagir a ela”. (SIMMEL, 2009, p. 10) Esse fenômeno de adaptação, segundo Simmel,

desencadeia no caráter blasé. A palavra blasé, de origem francesa, é designada como o que

exprime completa indiferença pela novidade, pelo que deve comover e chocar.

Talvez não haja nenhum fenômeno anímico, que esteja reservado de modo tão

incondicional à grande cidade, como o caráter blasé. Ele é, de início, a consequência

daqueles estímulos nervosos, que com rapidez se alteram e se condensam nos seus

antagonismos, dos quais nos parece provir também a intensificação da

intelectualidade na grande cidade; justamente por isso, homens broncos e de

antemão sem vida espiritual não costumam ser blasés. Assim como uma vida

imoderada de prazeres torna blasé, porque excita por muito tempo os nervos nas

suas reações mais fortes, até que eles acabam por já não ter nenhuma reação, assim

também as impressões inofensivas, pela rapidez e pela incompatibilidade da sua

mudança, forçam os nervos a respostas tão violentas, irrompem para cá e para lá de

modo tão brutal, que eles entregam a sua última reserva de forças e, permanecendo

no mesmo meio, já não têm tempo para acumular uma nova. (SIMMEL, 2009, p. 8)

Assim, há certo conformismo, pois o indivíduo é levado pela correnteza da cidade.

Nesse contexto em que há a necessidade de adaptação, ajustes à forma de vida, relações de

convivência dos homens com interesses diferenciados e acumulação de pessoas, o medo e a

insegurança são evidenciados. Diante do inventário de diferenças e estranhezas, as formas de

convivência com o outro resultam no isolamento e na indiferença (blasé).

Na narrativa “A saída”, o fato de Ralf não possuir o seu número de celular resulta em

uma série de desencontros e desentendimentos, sua namorada e seus amigos se afastam e o

personagem passa a se sentir irreal. “No princípio do verão de seu trigésimo nono ano de vida,

o ator Ralf Tanner começou a se sentir irreal” (KEHLMANN, 2011, p. 61). Sua rotina, vida

Page 11: “Em algum lugar, um riacho rumorejava” – Vidas em tempos … · 2018. 9. 10. · 297 1 Introdução Esta investigação parte da análise dos textos literários: Fama, de Daniel

306

pessoal e profissional mudam.

A última história é “Em perigo”, o título se repete ao da segunda narrativa, tratando

novamente de Elisabeth e Leo Richter, desta vez estão no avião indo para a África. Elisabeth

está em uma atividade do “Médico sem Fronteiras”. Na savana veem destruição e perigo, pois

há certo embate, este é um território em guerra, é preciso realizar pagamento a facções para

que seja permitida a passagem de pessoas, armas e mantimentos Durante o voo, Leo

demonstra temor, o suor e o aperto da mão de Elisabeth evidenciam a insegurança e o medo

de que algo possa acontecer durante o voo; qualquer falha no sistema ou erro de operação da

aeronave resultaria na queda. Há também certa ansiedade por estar indo a um lugar

desconhecido, cercado de perigos; não sabe quem encontrará, como é a realidade e como deve

agir ao chegar no local. Ambos vivem uma realidade totalmente distinta daquela que já tinham

vivido. Os personagens de ambas as obras ilustram o apego temporário e a transitoriedade das

identidades assumidas. Ebling, Leo Richter, Mollwitz, Ralf e Maria – de Fama, de Daniel

Kehlmann e Hermano – da obra Mãos de Cavalo, de Daniel Galera, diante da dinamicidade

do contexto em que vivem, forçam-se a adaptar-se e a estar em constante busca e movimento

a fim de lidar com as diferentes situações.

Segundo Hall, “as identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições-de-

sujeito que as práticas discursivas constroem para nós” (HALL, 200, p. 112). Dese modo,

[...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão

em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno,

até aqui visto como sujeito unificado [...] as identidades modernas estão sendo

“descentradas’, isto é, deslocadas ou fragmentadas. (HALL, 1998, p. 7-9)

Nesse sentido, o sujeito pós-moderno não tem identidade fixa, essencial ou

permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: “formada e transformada

continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos

sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 1987 apud HALL, 1998, p. 13).

Portanto, a própria estrutura dos romances Fama e Mãos de Cavalo indica a fluidez

com que as vidas, as relações pessoais e profissionais transcorrem. No primeiro, as conexões

entre situações e personagens, por muitas vezes ocorrem de forma inesperada e suas ações

influenciam diretamente a vida um do outro. As tecnologias e os meios de comunicação

passam a representar tanto a comodidade e as facilidades no modo de vida quanto os

malefícios dos erros de comunicação e das falhas. Já no segundo, a narrativa flui de modo a

resgatar um passado que aos poucos se desvela no tempo presente da narrativa. Entre a

infância, a adolescência e a vida adulta, esta última carregada de tarefas, formações

acadêmicas e responsabilidades.

Das narrativas, o indivíduo teria, pois, uma “vida líquida”, ou seja, obriga-se a mudar

num tempo curto, o que por vezes impossibilita que os hábitos, formas de agir e rotinas sejam

consolidados. A comparação “Flutuando como água,... você vai em frente com rapidez, jamais

enfrentando a corrente nem parando o suficiente para ficar estagnado ou se prender às

margens ou às rochas” (BAUMAN, 2009, p. 11), exemplifica uma situação em que o

indivíduo se deixa levar pela correnteza das ações cotidianas estabelecidas e não consegue se

firmar.

A correnteza carrega o homem que não precisa nadar, pois segue seu curso limitado

pelas margens que lhe são impostas, precisa desviar-se das ásperas e brutas rochas. Na

tentativa de encontrar segurança e paz, refugia-se nas ilhas, prefere ou é forçado ao

isolamento e individualismo.

Considerações finais

Page 12: “Em algum lugar, um riacho rumorejava” – Vidas em tempos … · 2018. 9. 10. · 297 1 Introdução Esta investigação parte da análise dos textos literários: Fama, de Daniel

307

Nesse sentido, Giddens e Bauman oferecem diferentes leituras no que se refere ao

contexto atual, mas ambos marcam a ideia de necessidade de adaptação. Giddens, ao tratar da

alta modernidade, descreve que tais circunstâncias influenciam diretamente a relação entre

auto-identidade e instituições modernas, já Bauman reforça que, diante de um contexto

líquido, o indivíduo deve assumir diferentes formas, adotando uma forma líquida para

adaptar-se e sobreviver, Hall reforça a ideia de “identidades transitórias” e Simmel e

Haesbaert enfatizam a cidade, seu dinamismo, seus riscos, perigos e como resultado, a

indiferença, o caráter blasé.

Os sociólogos compartilham uma ideia comum ligada à modernidade, sua liquidez ou

desencaixe, bem como a influência disso na identidade, tendo o indivíduo “identidades

transitórias” por assumir distintas posições e no estilo de vida do indivíduo que deve adaptar-

se continuamente.

O presente texto demonstrou o quanto os personagens Ebling, Leo Richter, Mollwitz,

Ralf e Maria do romance Fama e Hermano de Mãos de Cavalo precisaram adaptar-se às

diferentes situações, deixando-se levar pelas correntes desse contexto líquido. A cada dia que

passa, percebe-se por meio das ações e do fluir dos pensamentos dos personagens, o quanto o

padrão de vida, as escolhas e as necessidades tornam a condição dos indivíduos fluida. Além

disso, através desses personagens, exemplificou-se a fragilidade das relações humanas, a

efemeridade do sucesso, os benefícios e malefícios das tecnologias e as diferentes identidades

assumidas.

Os personagens, incapazes de reduzir o ritmo da mudança, sem poder controlar seus

destinos e reduzir os riscos e as ameaças desse contexto líquido-moderno, movimentam-se em

direção a uma identidade “indeterminada, indeterminável e inatingível”. Vivem uma vida

líquida, em que se faz necessária “uma sucessão de reinícios”.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

Zahar, 2009.

______. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro, 2001.

______. Tempos Líquidos. Tradução de Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

______. Vida Líquida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

GALERA, Daniel. Mãos de Cavalo. São Paulo: Companhia das Letra, 2006.

HAESBARERT, Rogério. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos

de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da

Silva, Guaracira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

KEHLMANN, Daniel. Fama: um romance em nove histórias. Tradução de Sonali Bertuol.

São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana, Rio de Janeiro, v. 11,

n. 2, p. 577-591, 2005.