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i UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA “Destemido bandeirante à busca da mina de ouro da verdade”: Francisco Adolfo de Varnhagen, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a invenção da idéia de Brasil Colônia no Brasil Império RENILSON ROSA RIBEIRO PROF. DR. PAULO CELSO MICELI (Orientador) Campinas, SP Agosto/2009.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

“Destemido bandeirante à busca da mina de ouro da verdade”: Francisco Adolfo de Varnhagen, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a

invenção da idéia de Brasil Colônia no Brasil Império

RENILSON ROSA RIBEIRO

PROF. DR. PAULO CELSO MICELI (Orientador)

Campinas, SP Agosto/2009.

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

Bibliotecária: Sandra Ferreira Moreira CRB Nº 5124

Título em inglês: “Fearless pioneer in search of gold mine of truth” : Francisco Adolfo de Varnhagen, the Brazilian Historical and Geographical Institute and the invention of the idea of Colonial Brazil in Brazil Empire.

Palavras chaves em inglês (keywords):

Titulação: Doutor em História Banca examinadora: Data da defesa: 25-08-2009 Programa de Pós-Graduação: História

Varnhagen, Francisco Adolfo de, 1816-1878 Brazilian Historical and Geographical Institute Brazil - Historiography Identity Brazil – History – Empire, 1822-1889

Glaydson José da Silva, Oswaldo Machado Filho, Izabel Andrade Marson, Janaina Valéria P. Camilo, Leila Mezan Algranti, Leandro Karnal, Guilherme Amaral Luz

Ribeiro, Renilson Rosa R354d “Destemido bandeirante à busca da mina de ouro da verdade” :

Francisco Adolfo de Varnhagen, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a invenção da idéia de Brasil Colônia no Brasil Império / Renilson Rosa Ribeiro. - - Campinas, SP : [s. n.], 2009.

Orientador: Paulo Celso Miceli. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Varnhagen, Francisco Adolfo de, 1816-1878. 2. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 3. Brasil - Historiografia. 4. Identidade. 5. Brasil – História – Império – 1822-1889. I. Miceli, Paulo Celso. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Área de Concentração: História Cultural

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RENILSON ROSA RIBEIRO

“Destemido bandeirante à busca da mina de ouro da verdade”: Francisco Adolfo de Varnhagen, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a

invenção da idéia de Brasil Colônia no Brasil Império

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, na área de concentração de História Cultural, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Celso Miceli.

Este exemplar corresponde à redação final da Tese de Doutorado defendida e aprovada pela Comissão Julgadora em 25 /08 /2009.

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Paulo Celso Miceli (DH/UNICAMP – orientador)

Prof. Dr. Glaydson José da Silva (DH/UNIFESP)

Prof. Dr. Oswaldo Machado Filho (DH/UFMT)

Profª. Drª. Izabel Andrade Marson (DH/UNICAMP)

Profª. Drª. Janaina Valéria P. Camilo (DH/UNICAMP – Pós-Doutorado)

Profª. Drª. Leila Mezan Algranti (DH/UNICAMP – suplente)

Prof. Dr. Leandro Karnal (DH/UNICAMP – suplente)

Profª. Drª. Guilherme Amaral Luz (IH/UFU – suplente)

AGOSTO/2009.

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RESUMO

Os construtores do Império brasileiro, especialmente no final do período regencial e ao longo do Segundo

Reinado, foram muito hábeis e eloqüentes na invenção de representações discursivas – escritas e

imagéticas – que acabaram por forjar um tipo de memória oficial para a nação.

Nesta perspectiva, a presente tese tem o objetivo de identificar e a analisar as representações temáticas

da História do Brasil Colonial forjadas no Brasil Imperial, por meio da 1ª edição da Historia geral do Brazil

(1854/1857), de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) – o visconde do Porto Seguro, procurando

perceber as suas articulações com o projeto historiográfico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

(IHGB), fundado em 1838, na cidade do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: 1) Varnhagen, Francisco Adolfo de (1816-1878). 2) Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro. 3) Brasil – Historiografia. 4) Identidade. 5) Brasil – História – Império, 1822-1889.

ABSTRACT

The builders of the Brazilian Empire, especially at the end of the regencial period and over the Second

Reign, were very skillful and eloquent in the invention of discursive representations - written and imagery -

that ultimately create a kind of official memory for the nation.

In this perspective, this thesis aims to identify and analyze the thematic representations of History of Brazil

Imperial Colonial forged in Brazil, through the 1st edition of the Historia Geral do Brazil (1854/1857), by

Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) - the viscount of Porto Seguro, looking perceive their relations

with the historiographical project of the Brazilian Historical and Geographical Institute (IHGB), founded in

1838, in Rio de Janeiro.

Key-words: 1) Varnhagen, Francisco Adolfo de (1816-1878). 2) Brazilian Historical and Geographical

Institute. 3) Brazil – Historiography. 4) Identity. 5) Brazil – History – Empire, 1822-1889.

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Aos meus pais Antonio Rubens e Eva, por um amor sempre compartilhado com generosidade

e um dia-a-dia repleto de sonhos e esperanças.

À minha amada Nathália, pela canção poética dos nossos dias:

“Olho para o céu Tantas estrelas dizendo da imensidão

Do universo em nós A força desse amor

Nos invadiu... Com ela veio a paz, toda beleza de sentir Que para sempre uma estrela vai dizer

Simplesmente amo você...”

Ao saudoso professor José Roberto do Amaral Lapa, sempre uma referência como exemplo de mestre.

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Com efeito, a vocação do intelectual é essencialmente aliviar de alguma

forma o sofrimento humano e não celebrar o que, na verdade, não

precisa de comemoração, seja o Estado, a pátria ou qualquer desses

agentes triunfalistas de nossa sociedade.

[Edward Wadie Said, Sobre a provocação e o assumir posições].

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AGRADECIMENTOS

Agradecer é sempre um ato de afeto para com o nosso próximo, seja um familiar ou um amigo.

Significa o nosso reconhecimento pelo apoio, carinho e muita paciência. Nesse gesto dito em palavras,

olhares, sorriso e lágrimas há também uma boa dose de pedido de desculpas pela ausência e displicência

para com aqueles que fazem nossa existência mais digna, alegre e emocionante. Aos aqui lembrados e

também esquecidos pela nossa memória cansada dedico essas palavras de agradecimento.

A pesquisa e a redação desta tese foram feitas em diferentes lugares nestes últimos anos,

constituindo a minha cartografia afetiva e profissional: Votuporanga, São Paulo, Campinas, Paulínia,

Cáceres, Cuiabá, Rio de Janeiro e Rondonópolis. Em cada pouso uma história para contar, pessoas para

sempre lembrar. A viagem foi longa, cansativa e repleta de desafios, mas nos caminhos trilhados este

andante sempre tinha a casa da família e dos amigos para o descanso e uma boa conversa.

Em Votuporanga estão nossas lembranças da infância e da adolescência: casa dos pais,

vizinhança e escola. Para lá sempre retorno para me encontrar com o nosso pequeno paraíso terreal e

aqueles que começaram a escrita desta história: aos meus pais, Antonio Rubens e Eva, agradeço cada dia

de amor, fé e esperança compartilhados. As palavras sábias ensinadas por vocês permitiram que o seu

filho partisse para o mundo com dignidade e dedicação à vida. Para vocês dedico esta tese e o desejo de

tê-los sempre ao meu lado, torcendo para que o relógio do tempo ande um pouco mais devagarzinho.

Aos amigos e conhecidos da Rua dos Bandeirantes, pela companhia e torcida desde a

infância, quando tudo ainda parecia tão longe e impossível. Aos meus professores do ensino fundamental

e médio, pelos aprendizados sempre compartilhados com compromisso e sensibilidade. Se sou professor

hoje é por conta de mestres como Zaida Maria Ferraz Arruda, Carlos José Magalhães (in memoriam),

Maria Lúcia Caproni, Lamar Gillen e Ademar da Costa. Dos tempos escolares não poderia deixar de

lembrar dos amigos de classe Alexandre Mioto da Costa, João Elias Luiz e Danilo Valeta de Lima.

Na “cidade da garoa” e adjacências, está uma parte considerável da família: a casa da tia

Maria e, hoje, também a do mano. Aos meus tios Maria e Bebiano e primos, agradeço a acolhida nas

inesquecíveis férias da infância. Casa cheia de gente é a alegria nossa de cada dia. Ao meu irmão Roni e à

amiga Cinthia, sou grato por brindar esta narrativa com boa nova: a chegada do nosso Vitor, o terceiro

sobrinho-afilhado, que virá fazer a alegria das lindas Marilia e Júlia. Meu irmão, minha existência seria

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incompleta sem a sua presença, por vezes, silenciosa, mas repleta de sentidos que aprendi a decifrar com

o tempo.

Os tempos de formação acadêmica se passaram em Campinas, mais de uma década de

UNICAMP. Na universidade, além das atividades de ensino e pesquisa, fiz amizades para uma vida. Os

amigos e companheiros da Casa M12-A na Moradia Estudantil sempre serão uma recordação alegre e

dignos da minha gratidão pelas lições de solidariedade e amizade.

Na “cidade das andorinhas”, tive o prazer de conhecer um outro votuporanguense e colega de

formação: Mairon Escorsi Valério. Meu amigo, meu irmão da vida, você é sinônimo dos mais nobres

sentimentos que trago comigo: fé, amor e generosidade. Muitos dos capítulos desses tempos foram

escritos também por suas mãos. Sinto saudades de nossas tardes gastronômicas na casa da nossa amiga

Leila Maria Massarão. A ela sou sempre grato por me oferecer uma família simplesmente fantástica: seu

Sebastião, dona Lourdes, Tânia, Marina, Milena, Mariana e Anna Carolina fazem parte desses momentos

memoráveis.

Entre aulas, seminários e leituras a gente arrumava tempo para cultivar mais amizades:

Deborah Schmidt, Cleuton Vieira Jr., Gláucia Fraccaro, Thomaz Barnezi, Ana Helena (e o seu companheiro

Joca), Luís Guilherme Bonafé, André Côrtes, Silvana Santiago, Karina Bellotti, Karen Fernanda, Paula

Nomelini, Daniela Viana, Jair Batista, Álvaro Pereira Nascimento, Robério Santos Souza, Marcelo Mac

Cord, Carlos Eduardo Araújo, Maristela Toma, Mariana Sales, Janaina Camilo e Viviane Wolf são alguns

nomes que se destacam numa imensa lista de afetos.

Os superamigos Karoline Carula, Jonis Freire, Glaydson José da Silva e Adilton Luis Martins

são os nomes sempre lembrados na hora das confidências, angústias, conquistas e alegrias. Ainda sinto

saudades da época da nossa casa na Vila Santa Izabel. Éramos uma família de amigos rodeada de

“agregados”, desfrutando de uma hospitalidade sem propriedade. À Karol e ao Adilton agradeço ainda a

leitura dos esboços dos capítulos desta tese, oferecendo sugestões e leituras. Jonis e Karol ainda

cuidaram da digitalização milagrosa da 1ª edição da Historia geral do Brazil: nas suas margens estão as

marcas de um afeto todo nosso.

Nas aulas tive a honra de ser brindado com a presença de professores apaixonantes, que

muito me ensinaram sobre o oficio de historiador como Pedro Paulo Funari, Margareth Rago, Izabel

Marson, Celia Marinho e o saudoso Amaral Lapa (in memoriam). A contribuição destes mestres levo

comigo e, de alguma forma, procuro compartilhá-la com os meus alunos. Celia Marinho e também Josué

Pereira hoje fazem parte da nossa rede de “cumplicidade planetária”.

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Paulo Miceli, além de orientador, é um grande amigo, professor e incentivador. A esta

fascinante figura só posso agradecer por acompanhar-me nesta estrada de leituras, projetos, sonhos e

conquistas. Desde 1998 você tem sido presença marcante e inventiva na minha formação e na construção

de um carinho incondicional. Meu caro amigo, a viagem valeu a pena e foi mais empolgante porque contei

com a sua companhia. Muito obrigado!

Não poderia deixar de registrar aqui meu reconhecimento aos demais professores e

funcionários do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP pela dedicação e compromisso

com a nossa formação. À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Docente)

agradeço a concessão por curto período de bolsa de estudos, uma vez que logo em seguida fui agraciado

com uma oportunidade de trabalho.

Antes de migrar para Mato Grosso tive a feliz oportunidade de exercer a docência na Escola

Estadual Núcleo Habitacional José Paulino Nogueira, entre 2004 e 2006, na cidade de Paulínia. Fiz parte

considerável do doutorado ministrando aulas nesta escola. Ali aprendi a ser professor e fiz amizades

verdadeiras com outros professores e funcionários. Os meus alunos foram “trutas” fantásticos,

companheiros de muitas travessuras entre textos, leituras e discussões. À Escola Núcleo agradeço as

lições de humanidade e carinho. Saudades sempre...

Na cidade de Cáceres, às margens do imenso e fascinante rio Paraguai, iniciei minha carreira

como professor do ensino superior no Departamento de História da Universidade do Estado de Mato

Grosso (UNEMAT).

Ao longo dos dois anos nesta instituição contei com a parceria imbatível e leal dos amigos

Osvaldo Mariotto Cerezer e Nauk Maria de Jesus, recém-chegados também por aqueles lados. Sou grato a

vocês pela hospitalidade e apoio nas lutas e nos projetos acadêmicos. Formamos um time e tanto. Mato

Grosso permitiu-me também convivência com a Família Jesus, sempre pronta a receber este “pau rodado”,

e a possibilidade de conhecer a adorável Vanda Silva. A todos sou muito grato pelas boas vindas.

No Departamento de História da UNEMAT também contei com a proveitosa convivência com

professores-colegas: Maria do Socorro Araujo, João Ivo Puhl, João Edson Fanaia, Domingos Sávio Garcia,

Luciano Pereira da Silva e, para minha alegria, Luís César C. Mendes. Foi um prazer trabalhar com vocês.

Os alunos do curso de História da UNEMAT são um espetáculo à parte. As nossas aulas eram

sempre regadas com o calor da generosidade mato-grossense. Aprendi muito ao se lado, meus “trutas”

pantaneiros. Desta convivência surgiram novas amizades: Mauro Mendes e Luís César.

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Luís César é um amigo daqueles que fazem a gente rir, se sentir em casa e querer estar

sempre por perto. Com ele compartilho leituras e afinidades de pesquisa: o Brasil Império e o IHGB. Ele foi

também um dos leitores de partes desta tese. A nossa amizade adentrou as portas de casa, permitindo

que eu participasse da convivência com a sua família: a grande incentivadora e amiga Telma Jakeline, os

encantadores Felipe e Amanda, o sábio mestre Natalino, a fascinante Olguinha e a adorável Dona Alice. A

casa de Telma e Luís César é tudo de bom, você chega ali e se sente acolhido e protegido. Ali sempre

retorno para buscar um pouco mais de pequenas alegrias. Obrigado, amigos!

Na UNEMAT também encontrei um novo sentido para a minha vida. Quem diria que andaria

tão longe para encontrar alguém que viveu tão perto de casa, lá em Votuporanga. Em 2007, meu destino

se encontrou com o de uma mulher linda, doce e apaixonada pela história: Nathália da Costa Amedi é a

tradução da palavra amor no meu dicionário. Minha vida ficou mais musical ao seu lado. Ela entrou no

meio das tramas desta tese e tem sido uma aliada nos momentos de insegurança, de dúvidas, de leitura e

de escrita. É a primeira leitora dos meus textos.* A você, amor, agradeço os melhores dias vividos até

agora e os que virão e peço desculpas pelas ausências mesmo estando presente e displicências do

cotidiano. Não consigo imaginar outro desfecho para a história da minha vida sem você ao meu lado. E a

nossa casa ficou mais alegre com os filhos-felinos Athos e Porthos.

Na família da Nathália encontrei pessoas encantadoras e apaixonantes: o papai Jorge, a

mamãe Izabel, os cunhados Renan e Lucas, tio Paulo, Cristiane, Olívia, vó Sebastiana, vô Jamil, vó Linda,

tia Rosana, tia Silvana, os primos Igor e Eric e o pequeno Enzo (a grande surpresa do cunhadão Renan

para nós). Muito obrigado pelo convívio alegre e pela torcida.

No ano passado, mudamos para Rondonópolis: uma nova cidade, uma nova instituição de

trabalho e muitas expectativas. No Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso

(UFMT) deparei-me com uma realidade marcada por muitas possibilidades de pesquisa e ensino. Graças

ao Colegiado deste Departamento pude contar no semestre final da conclusão da tese com o necessário e

fundamental afastamento das atividades acadêmicas. Sou profundamente grato aos colegas que

redistribuíram encargos para que eu – um recém-chegado – pudesse me dedicar única e exclusivamente à

redação da tese. Aqui vale um agradecimento especial ao professor Adilson José Francisco pela defesa da

idéia e palavra sempre incentivadora. Aos professores Maria Elsa Markus e Ivanildo José Ferreira, pelo

apoio sempre entusiasmado e por assumirem minha turma de Estágio neste semestre. Maria Elsa revelou-

se uma grande amiga e conselheira. No grupo de pesquisa HISOCULT – História Regional: Sociedade e

* Agradeço a Nathália também a digitação e organização dos fichamentos e das anotações feitas dos números da Revista do IHGB publicadas entre 1839 e 1860, tarefa que ocupou considerável tempo e paciência, mas que foi fundamental para a o nosso trabalho de redação.

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Cultura tenho encontrando um espaço profícuo de reflexão e amadurecimento intelectual, permitindo a

continuidade das pesquisas iniciadas no doutorado.

Afastado das funções docentes pude elaborar o texto do exame de qualificação e fazer as

pesquisas no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), no Rio de Janeiro, onde contei com a

dedicação e ajuda de funcionários como os senhores José e Pedro Tórtima. Na “cidade maravilhosa”

contei com a recepção calorosa e agradável dos amigos Carlos Eduardo e Edílson. Não tenho palavras

para descrever a tamanha grandiosidade do gesto de vocês. Obrigado!

Cabe aqui agradecer a alguns pesquisadores da área de História do Brasil Império e de

historiografia brasileira pelo gentil oferecimento de cópias impressas ou digitais de suas teses ou

dissertações não disponíveis nas bibliotecas digitais à época: Taíse Tatiana Quadros da Silva, Laura

Nogueira Oliveira, Heloisa Maria Bertol Domingues, Janaina Zito Losada, Neuma Brilhante Rodrigues,

Renata William Santos do Vale e Maria da Glória de Oliveira.

Antes de encerrar, gostaria ainda de agradecer aos professores Margareth Rago e Glaydson

pelas contribuições enriquecedoras no exame de qualificação. Aos professores Glaydson (mais uma vez),

Oswaldo Machado Filho, Janaina Valéria Camilo e Izabel Marson manifesto minha satisfação em tê-los

como convidados da minha banca de defesa.

Enfim, a tantos outros nomes cuja memória esconde, mas o coração lembrará quando a

impressão já estiver a caminho da gráfica, deixo meu agradecimento e antecipado pedido de desculpas.

Vô Francisco, tia Maria José e pequena irmã Regiane, ainda sinto muita saudades de vocês.

Ao lado do Senhor sempre estão os anjos e os nobres de coração:

por isso vocês foram convidados a partir tão de repente.

Rondonópolis, junho de 2009.

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SUMÁRIO

Agradecimentos ...........................................................................................................................................IX Introdução – “Colligir, Methodizar, Publicar ou Archivar”: Varnhagen, o IHGB e a escrita da História do Brasil no século XIX ......................................................01 Primeiro Capítulo – Invenções dos Outros: As biografias de Varnhagen e a escrita da História do Brasil (1878-1978) ............................................13

1.1. A(s) biografia(s) de Varnhagen e o pêndulo oscilante ...............................................................................14 1.2. “A pátria traja de luto pela morte de seu historiador” .................................................................................21 1.3. A invenção biográfica de Varnhagen .........................................................................................................33 1.4. O ethos germânico do historiador-bandeirante ..........................................................................................60 1.5. O homem-arquivo da História do Brasil .....................................................................................................74 1.6. Os juízos sobre a escrita da Historia geral do Brazil .................................................................................87 1.7. O historiador-obra-monumento da nação (e do IHGB) ..............................................................................99

Segundo Capítulo – Invenções de Si: As cartas de Varnhagen e a escrita da História do Brasil (1839-1860) ................................................105

2.1. Varnhagen e as escritas de si ..................................................................................................................106 2.2. Entre o arquivo e o livro: os (des)caminhos das cartas de Varnhagen ...................................................114 2.3. Cartas de Varnhagen para...: história, política e redes de sociabilidade .................................................119 2.4. O IHGB como lugar de autoridade: em busca do reconhecimento na cidade letrada .............................128 2.5. “Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil” ou o oficio de historiador .....................142

2.5.1. As faces do historiador varnhageniano: erudito, filósofo, literato e, às vezes, poeta ....................142 2.5.2. O historiador-erudito .....................................................................................................................153 2.5.3. O historiador-filósofo .....................................................................................................................160 2.5.4. O historiador-literato e, às vezes, poeta .......................................................................................167

2.6. Os bastidores da escrita da primeira edição da Historia geral do Brazil .................................................179 2.7. O crime e o castigo de Varnhagen: memória e ressentimento ................................................................209

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Terceiro Capítulo – Inventando a Colônia “Coroada”: Os enredos temáticos da Historia geral do Brazil (1854/1857) e o tempo saquarema .......................219

3.1. A história geral da nação: cultura, história e identidade ..........................................................................220 3.2. Os enredos temáticos da Historia geral do Brazil: a narrativa da nação .................................................228 3.3. Origens: O Descobrimento do Brasil .......................................................................................................241 3.4. Povo: Índios, Negros e Portugueses .......................................................................................................256

3.4.1. Varnhagen e a difícil lição de von Martius: os elementos formadores da nacionalidade ..............256 3.4.2. Índios .............................................................................................................................................262 3.4.3. Negros ...........................................................................................................................................273 3.4.4. Portugueses ...................................................................................................................................282

3.5. Mito fundacional: Invasões Holandesas ..................................................................................................296 3.6. Continuidades: A Independência do Brasil ..............................................................................................321 3.7. A invenção da tradição: o fardo do legado da Historia geral do Brazil ....................................................340

Considerações Finais – O Brasil Inventado pelo Visconde de Porto Seguro: História, historiografia e ensino de História ...........................................................................................345 Acervos, Fontes & Bibliografia ................................................................................................................353

I. Acervos ........................................................................................................................................................354 II. Fontes .........................................................................................................................................................355 III. Bibliografia .................................................................................................................................................360

Anexos .......................................................................................................................................................375

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Deixe-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos

confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem

nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que

desprezar.

[Fiódor Dostoievski, Memórias do subsolo].

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_____________________________________________INTRODUÇÃO

“COLLIGIR, METHODIZAR, PUBLICAR OU ARCHIVAR”: VARNHAGEN, O IHGB E A ESCRITA DA HISTÓRIA DO BRASIL

NO SÉCULO XIX

O que fabrica o historiador quando ‘faz história’? Para quem trabalha? Que

produz? Interrompendo sua deambulação erudita pelas salas dos arquivos, por

um instante ele se desprende do estudo monumental que o classificará entre

seus pares, e, saindo para a rua, ele se pergunta: O que é esta profissão?

[Michel de Certeau, A escrita da história].

Art. 1o O Instituto Historico e Geographico Brazileiro tem por fim colligir,

methodisar, publicar ou archivar os documentos necessarios para a historia e

geographia do Imperio do Brazil; e assim tambem promover os conhecimentos

destes dous ramos philologicos por meio do ensino publico, logo que o seu cofre

proporcione esta despeza.

[“Extracto dos Estatutos”, Revista do IHGB ].

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Os artífices do Império brasileiro, especialmente no final do período regencial e ao longo

do Segundo Reinado, foram muito hábeis e eloqüentes na construção de representações discursivas –

escritas e imagéticas – que acabaram por forjar um tipo de memória oficial para a nação. Nessa tarefa de

bem elaborar esta memória, por meio de uma costura de retalhos documentais, para dentro e para fora das

divisas do país, destacou-se a atuação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que, em

associação com a Academia Imperial de Belas Artes, o Museu Nacional, o Arquivo Público do Império, as

faculdades de direito e medicina e o Colégio Imperial Pedro II, daria à monarquia uma nova história,

retratada em literatura épica, iconografia grandiosa, artefatos e monumentos, saberes institucionalizados

que ministrariam uma pedagogia da nação, um corpo de leis e uma nacionalidade sadia desde os bancos

escolares até as faculdades – locus de formação das elites.

No período, nesses locais, em especial no IHGB, enquanto a realeza era glorificada – a

escravidão negra e a memória dos recentes conflitos regenciais ficariam relegados a uma espécie de limbo

– de maneira paralela e simétrica o passado era construído e celebrado, a partir da escolha de imagens e

temas que destacavam a existência nos trópicos de uma pátria coroada de belezas, encantos e uma

trajetória épica de feitos e conquistas. Forjava-se a representação de uma colônia que gradativamente

aprendia a ser nação, ou seja, uma criança (Brasil) que, aos poucos, ia aprendendo a ser independente de

sua mãe (Portugal) para seguir rumo a um futuro promissor nas mãos de uma monarquia.

Esta fidelidade ao monarca seria uma característica muito forte dentro do IHGB, mesmo após a

proclamação da República em 1889.1

Fundado por um grupo de intelectuais e políticos, às 11 horas da manhã do dia 21 de

outubro de 1838, na capital imperial, sob o patrocínio da Sociedade da Indústria Nacional (SAIN), o IHGB,

conhecido como a casa da memória nacional, tinha a missão de colligir e methodisar, publicar ou archivar

os documentos necessários para a escrita da história do Brasil-nação. Dentro dos seus Estatutos havia a

1 Lilia Moritz Schwarcz, A natureza como paisagem: imagem e representação no Segundo Reinado, Revista USP, São Paulo, n. 58, jun./ago. 2003, p. 06-29.

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previsão também de cuidar das questões relacionadas ao ensino da história, da ramificação do grêmio por

todas as provinciais do Império e da correspondência com sociedades estrangeiras do gênero.2

A criação do IHGB constituiu-se como uma iniciativa do cônego Januário da Cunha

Barboza (1780-1846) e do marechal Raimundo José da Cunha Mattos (1776-1839), que assumiram para si

a tarefa de patriótica de serem os construtores da memória nacional, inspirados no modelo do Institut

Historique de Paris.3 Intelectuais e políticos de renome na Corte – cujas biografias se confundiam com os

fatos da história recente do Estado imperial – aderiram ao projeto. Dentre os fundadores do grêmio,

estavam figuras como José Feliciano Fernandes Pinheiro, o visconde de São Leopoldo (1877-1847), José

Clemente Pereira (1787-1854), Candido José Araújo Viana, o marques de Sapucaí (1793-1875), Francisco

Ge de Acaiaba de Montezuma, o visconde de Jequitinhonha (1794-1870), Aureliano de Souza e Oliveira

Coutinho, o visconde de Sepetiba (1800-1855) entre outros.4

Todos esses nomes, em sua maioria vinculados ao serviço público imperial, teriam papel

determinante nos destinos do IHGB, esboçando as diretrizes que seriam o norte da bússola das atividades

desenvolvidas pelo grêmio durante o século XIX.5 Eles iniciaram uma intensa busca e coleta de

documentos sobre o passado brasileiro em arquivos, bibliotecas e cartórios nas províncias e nos países

estrangeiros – Portugal, Espanha e Holanda. Além disso, assumiram como compromisso a proposta de

elaborar para o Brasil um passado único e coerente ao gosto das necessidades e projetos políticos do seu

tempo. Logo, os fundadores, construtores do Brasil-Império e herdeiros do Brasil-Colônia, estabeleceram

como meta uma memória nacional pautada pela idéia de continuidade.6

Na compreensão destes letrados, o Brasil, nascido em 1822 com a proclamação da

Independência pelo príncipe regente D. Pedro, seria uma jovem nação filha da pátria portuguesa, de quem

havia herdado a língua, a cultura, o regime de governo e um representante da dinastia dos Bragança. A

2 Extractos dos Estatutos do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 01, 1939, p. 18. 3 Manoel Luiz Salgado Guimarães, Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 01, 1988., p. 13. Para uma análise do Institut Historique de Paris, conferir: Elaine Cristina Carraro, O Instituto Histórico de Paris e a regeneração moral da sociedade, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em Sociologia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002. 4 Conferir: Renata William Santos do Vale, Lições de História: as concepções de história dos fundadores do IHGB, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002; Manoel Luiz Salgado Guimarães, A disputa pelo passado na cultura oitocentista no Brasil, in: José Murilo de Carvalho (org.), Nação e cidadania no Império: novos horizontes, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 93-122. 5 Lucia Maria Paschoal Guimarães, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, in: Ronaldo Vainfas (org.), Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889), Rio de Janeiro, Objetiva, 2002, p. 380. Para saber sobre o perfil dos 27 membros fundadores e a sua articulação com o Estado imperial, conferir: Paula Porta S. Fernandes, Elites dirigentes e projeto nacional: a formação de um corpo de funcionários do Estado no Brasil, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. 6 Conferir: Ilmar Rohloff de Mattos, Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da união política, Almanack Braziliense, São Paulo, n. 01, maio 2005, p. 08-26; Neuma Brilhante Rodrigues, “O amor da pátria, o amor das letras”: as origens da nação na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839-1889), dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade de Brasília, Brasília, 2001, capítulo II.

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independência, por esta lógica, não se constituiria em uma ruptura, mas num processo de emancipação

natural, feita de pai (D. João VI) para filho (D. Pedro I). Não havia no 7 de setembro indícios dos traumas e

rompantes democráticos que haviam fragmentado a América Espanhola em várias repúblicas.7

Em nome da construção e consolidação do Império, os membros do IHGB dedicariam

suas atividades de pesquisa documental e de produção de memórias, juízos, biografias e compilações,

publicadas nas páginas da sua Revista. Ela seria a vitrine das idéias, projetos e discussões da

agremiação.8

Escrever história, para esses homens da boa sociedade, constituía uma atividade de

garimpagem, de quem recolhia documentos assim com se achavam preciosidades. Para Lilia Moritz

Schwarcz, o ato de selecionar fatos supunha a mesma isenção encontrada naquele especialista que,

ciente do seu ofício, separa as boas pedras das más, ou mesmo daquelas que ofereciam pouco brilho ao

olhar.9 Nas mãos dos senhores da memória, no IHGB começou a se conformar uma história que se

pretendia única, apesar de marcadamente regional – uma história com as marcas do tempo saquarema

(elite fluminense);10 pautada pela utilização parcial e seletiva de fatos e documentos a despeito de sua

ilusória neutralidade na seleção.

Em meio a esta operação historiográfica apareceria a figura do historiador paulista

Francisco Adolfo de Varnhagen, conhecido como o visconde de Porto Seguro (1816-1878), posteriormente

denominado por uma certa tradição historiográfica como o pai da história do Brasil. A partir de profunda e

exaustiva pesquisa documental em arquivos no Brasil e na Europa, ele iria escrever a sua Historia geral do

Brazil, publicada em dois tomos respectivamente nos anos de 1854 e 1857. Eis aqui a personagem que iria

ocupar lugar de destaque no percurso desta pesquisa, que também tem a sua história.

O visconde de Porto Seguro, o projeto historiográfico do IHGB e invenção de uma

narrativa do Brasil Colonial no Brasil Império é o tema desta tese. A sua Historia geral do Brazil e a sua

correspondência ativa, articuladas com a produção do grêmio presente na Revista, constituem as fontes

privilegiadas para se compreender a escrita varnhageniana no período entre 1839 e 1860. A questão-

problema é identificar e analisar os enredos temáticos eleitos por Varnhagen para produzir a sua

7 Conferir: Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, Rio de Janeiro, ano 156, n. 388, jul./set. 1995. 8 Conferir: Edney Christian T. Sanchez, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: um periódico na cidade letrada brasileira do século XIX, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em Teoria e História Literária, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. 9 Lilia Moritz Schwarcz, O espetáculo das raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil (1870-1930), São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 114. 10 Conferir: José Murilo de Carvalho, D. João e as histórias dos Brasis, Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 28, n. 56, 2008, p. 551-572.

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interpretação da experiência do passado colonial como a biografia ou semente da nação brasileira,

superando a imagem consagrada pela historiografia de que sua narrativa seria resultado de uma mera

compilação e arranjo documental.

Definir dessa maneira a personagem, o objeto e os objetivos desta tese não foi tarefa fácil

e tão evidente logo no começo desta pesquisa, em meados de 2004. Antes de conhecer as tramas e as

questões teórico-metodológicas que norteiam a elaboração desta tese, cabe aqui uma pequena reflexão

sobre alguns dos caminhos trilhados desde o processo de formulação do projeto, passando pelas

discussões historiográficas e seleção e análise das fontes, até a redação do texto.

As dúvidas, os dilemas, as descobertas e os recortes presentes nesta empreitada

historiográfica não necessariamente seguiram a ordem dos dias do calendário. O que se faz aqui é apenas

uma visão possível, sujeita a outras (re)leituras, do que aconteceu nos últimos quatro anos e meio

dedicados ao tema. Seria, seguindo um conselho de Marc Bloch, a história da oficina e das escolhas do

historiador:

Apreciaria que, entre os historiadores de profissão, os jovens em particular se

habituassem a refletir sobre essas hesitações, esses perpétuos

“arrependimentos” de nosso ofício. Será para eles a maneira mais segura de se

preparar, por uma escolha deliberada, para orientar racionalmente seus

esforços.11

Esta pesquisa faz parte de uma idéia nascida ainda durante o mestrado, quando se

realizou um estudo dos discursos sobre a raça nos manuais escolares de História do Brasil.12 No momento

de redação da dissertação, percebeu-se como, no processo de fabricação de uma história didática para o

Brasil, os autores, dialogando com a historiografia, contemplaram um fio narrativo em que o período

colonial era o cenário principal da formação da nacionalidade. Nele estariam as bases sociais, políticas,

econômicas, culturais e, no caso daquela pesquisa, raciais de formação do Brasil-nação. Notou-se que a

referência a determinados eventos e documentos sobre o Brasil Colonial ia se repetindo ao longo do tempo

nos manuais escolares, guardadas as suas particularidades, produzidos no país entre 1860 e 1990.

Embora existissem diferenças de leituras, havia um roteiro temático e de fontes documentais (que

11 Marc Bloch, Apologia da história, ou, O ofício de historiador, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2001, p. 49. 12 Conferir: Renilson Rosa Ribeiro, Colônia(s) de Identidades: Discursos sobre a raça nos manuais escolares de História do Brasil, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.

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justificavam o próprio roteiro) pré-estabelecido para os autores escreverem sua versão da história do

Brasil.

Diante de tal inquietação optou-se, num próximo passo de trabalho, por vasculhar a

historiografia brasileira para entender como se constituiu este roteiro pré-estabelecido de temas e fontes de

leitura desse passado. Em outras palavras, saber quando e como começou o processo de criação daquilo

que hoje se chama, tanto no discurso didático, quanto historiográfico, de Brasil colonial. Identificar quais

lugares institucionais e sujeitos estavam envolvidos na construção desse passado como conhecimento

para ser decifrado, explicado e legitimado. Entender como a costura de documentos, por meio da ação de

linhas e agulhas (teoria e método), foi forjando temáticas que formariam o manto (a história) que cobriria a

idéia de nação, ou seja, como se construiu um enredo temático que seria definido como Brasil Colônia.

A proposta inicial de pesquisa, quando do ingresso no curso de doutorado, era estudar a

construção da idéia de Brasil Colonial no Brasil Imperial, consultando, pela perspectiva da História Cultural,

o acervo documental do IHGB e os números de sua Revista, publicadas entre 1838 e 1857. Dentro desta

proposta, procurar-se-ia compreender como grêmio se tornou lugar de referência na coleta e

sistematização da documentação histórica, em especial sobre o Brasil colonial. Em suma, examinar-se-ia

como esta construção documental da colônia havia confeccionado uma identidade para o projeto de nação

em montagem no século XIX.13

Com base nas sugestões apresentadas nas discussões nos Seminários de Linhas de

Pesquisa e nos colóquios com o orientador acerca da amplitude e necessidade de recorte na proposta

inicial do projeto, bem como no contato mais próximo com a documentação, optou-se pela reformulação do

objeto e objetivos da pesquisa. Ao consultar as páginas da Revista do IHGB, percebeu-se a presença

sempre recorrente e marcante da figura de Varnhagen, seja pela publicação de memórias, juízos ou

biografias, seja pela sua obstinada busca documental – registrada em correspondência enviada aos

consócios na agremiação. A atuação emblemática do historiador sorocabano na história da agremiação

seria registrada em diversos estudos consultados sobre a escrita da História no século XIX brasileiro.14

13 Conferir: Renilson Rosa Ribeiro, “Colligir, methodisar, publicar e archivar”: o IHGB e a construção do Brasil Colonial no Brasil Imperial, projeto de pesquisa, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. 14 Conferir: José Honório Rodrigues, A pesquisa histórica no Brasil. 3 ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1978 [1952]); Manoel Luiz Salgado Guimarães, Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional, Estudos Históricos, op. cit.; Nilo Odália, As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna, São Paulo, Ed. da UNESP, 1997; Lilia Moritz Schwarcz, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930), São Paulo, Companhia das Letras, 1993; Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). RIHGB, op. cit.; Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999; Francisco Iglesias, Historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira; Belo Horizonte, Ed. da UFMG; IPEA, 2000.

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A partir desses questionamentos e contato com a documentação, foi proposto fazer um

estudo sobre a construção da idéia de Brasil Colônia fabricada no Brasil Império, analisando os escritos de

Franscisco Adolfo de Varnhagen – no contexto de sua atuação junto ao IHGB, durante processo de

produção de uma memória nacional durante o Segundo Reinado.

Nesta perspectiva, procurou-se compreender as condições em que Varnhagen pesquisou

e apresentou seus trabalhos históricos, com ênfase para o processo de criação da sua História geral do

Brazil, publicada em dois volumes, respectivamente em 1854 e 1857.

Embora o próprio Varnhagen tenha feito ainda em vida revisões e anotações na sua

História geral do Brazil, publicando segunda edição em 1877, e posteriormente João Capistrano de Abreu e

Rodolfo Garcia tenham anotado e publicadas outras edições,15 optou-se por fazer a análise da primeira

edição publicado em dois tomos respectivamente em 1954 e 1857.

A intenção não foi buscar o texto mais autêntico de Varnhagen, mas estabelecer um

diálogo com o livro à luz das questões da definição do projeto da escrita de história do Brasil presentes nos

debates entre os letrados da geração saquarema16 do IHGB entre 1838, ano da sua fundação, e 1860,

momento de repercussão da crítica à Historia geral do Brazil e do início da sua reescrita pelo autor,

pensando em uma 2ª edição.

Além da Historia geral do Brazil, serviu de fonte privilegiada de pesquisa os números da

Revista do IHGB, a correspondência ativa de Varnhagen, coligida por Clado Ribeiro de Lessa, bem como

as memórias e ensaios bio-bibliográficos produzidos por seus biógrafos após sua morte (1878-1978).

Com o propósito de fugir dos grandes modelos explicativos normativos e

homogeneizadores e entendendo a figura do historiador como um artífice de representação de mundo,

temporalidades, sujeitos e saberes, esta tese dialoga com os pressupostos da história cultural, sem

contudo transformá-los em dogmas. Neste sentido, compor uma história cultural da escrita varnhageniana

da história do Brasil no século XIX não implica a adesão a uma tradicional história do pensamento ou

intelectual, pautada pelo estudo das grandes correntes de idéias e seus nomes mais célebres. Significa,

tomando como referência as palavras de Sandra Jatahy Pesavento,

15 Para compreender as metamorfoses do texto de Varnhagen a partir das edições da História geral do Brasil, conferir: Fernando José Amed, Atravessar o oceano para verificar uma vírgula: Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) lido por João Capistrano de Abreu (1853-1857), tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. 16 Como sugere Manoel Luiz Salgado Guimarães, cada geração reinventa o legado que deseja assumir como seu legado presente, e essa tarefa cria a necessidade de repensar a história, especialmente para aqueles que a tomaram como o exercício de um oficio, de uma profissão e de um magistério. Nesse mesmo movimento, repensam as regras de seu ofício, redefinem as práticas que viabilizam o conhecimento do passado, reinventando a própria operação histórica num cenário de tensões e conflitos, a partir do qual a disputa pelo passado remete às disputas pela significação do presente. Manoel Luiz Salgado Guimarães, Apresentação – Um historiador à margem: Fustel de Coulanges e a escrita da história francesa no século XIX, in: François Hartog, O século XIX e a história: o caso Fustel de Coulanges, Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2003, p. 09.

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pensar a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos

pelos homens para explicar o mundo.

A cultura é ainda uma forma de expressão e tradução da realidade que se faz de

forma simbólica, ou seja, admite-se que os sentidos conferidos às palavras, às

coisas, às ações e aos atores sociais se apresentam de forma cifrada, portando

já um significado e uma apreciação valorativa.17

Quanto ao papel do historiador no processo de fabricação do saber histórico, Michel de

Certeau constitui-se em importante leitura para se refletir sobre a relação entre as práticas e os discursos.

Para ele, a história era uma prática científica, produtora de conhecimento, cujos modelos dependiam das

variações de seus procedimentos técnicos, das restrições que lhe impunham o lugar social e a instituição

de saber onde era exercitada, ou ainda, das regras que necessariamente orientavam sua escritura.18

Em outras palavras, na sua análise, a história era um discurso que colocava em ação

construções, composições, figuras que eram aquelas de toda forma de escrita narrativa, logo, também da

fábula, mas que, ao mesmo tempo, produzia um corpo de enunciados ditos científicos, se isso for

entendido como a possibilidade de estabelecer um conjunto de regras que permitem controlar operações

proporcionais à produção de objetos determinados.19

Na esteira das formulações do autor d’A escrita da história, adota-se a noção de invenção

como ferramenta analítica para a pesquisa. Segundo Durval Muniz de Albuquerque Júnior, autores como

Michel de Certeau

ao dar prioridade à análise das atividades descritivas como culturais ou mais

ligadas ao campo das práticas simbólicas, das mentalidades, do imaginário ou dos

discursos, (...) irão contribuir para que a dimensão inventiva humana e da própria

historiografia fosse ressaltada.20

Por este raciocínio, Varnhagen (sujeito) e a Historia geral do Brazil (objeto) se

desnaturalizam, deixando a condição de essências, verdades, e passam a ser entendidos como fabricação

17 Sandra Jatahy Pesavento, História & História Cultural, 2 ed., Belo Horizonte, Autêntica, 2005, p. 15. 18 Michel de Certeau, A escrita da história, 2 ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2000, p. 32. 19 Ibidem, p. 64. 20 Durval Muniz de Albuquerque Júnior, História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história, Bauru, EDUSC, 2007, p. 21.

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histórica, como fruto das práticas discursivas ou não, que os instituem, recortam-nos, nomeiam-nos,

classificam-nos, dão-nos a ver e a dizer.21 Não se nega a existência da experiência do passado colonial,

mas se defende que o século XIX forjou uma interpretação desse tempo a partir das questões do seu

presente, permeados pela obsessão da nação, identidade e unidade. A colônia era ressignificada pela

perspectiva do Império, ou seja, de uma nação independente, governada pela monarquia constitucional da

casa dos Bragança.

Ao fazer a análise do pensamento do visconde de Porto Seguro, adota-se também

algumas proposições de Dominick LaCapra com relação a uma nova história intelectual: uma história do

texto que se constrói mais como um diálogo ou conversa com o passado, e menos como uma reconstrução

do passado através da pesquisa documental pura. Esta proposta de abordagem dialógica do passado

propõe uma nova leitura sobre a relação texto-contexto (biografia-contexto), a qual valoriza a

intertextualidade e recusa a noção de um contexto externo ao texto, capaz de explicá-lo, ou melhor, de

uma realidade que seja capaz de justificar a história de um individuo.22

Em síntese, com base nestes referencias teóricos, analisa-se as configurações e regras

discursivas que regularam a prática historiadora no século XIX e as articulações possíveis entre Varnhagen

e o IHGB no processo de definição dos contornos do projeto de uma narrativa da nação – tomando como

referência o passado colonial – e do lugar do historiador como seu artífice.

Ao longo da tese, conforme as necessidades teóricas e as especificidades dos temas

abordados, outros autores foram convidados no desenrolar dos argumentos. Por esta razão, a cada inicio

de capítulo, elaborou-se uma espécie de intróito visando apresentar os conceitos-chave e as respectivas

leituras adotadas para apropriá-los na elaboração dos objetivos propostos.

O primeiro capítulo, intitulado Invenções dos Outros: As biografias de Varnhagen e escrita

da História do Brasil (1878-1978), tem como objetivo analisar as representações sobre o historiador-

diplomata, produzidas pelos membros do IHGB ou a ele de alguma forma vinculados, por meio de textos

biográficos (necrológios, memórias, ensaios bibliográficos, prefácios, biografias entre outros) nas páginas

da sua Revista, jornais e livros entre os anos de 1878, data de seu falecimento, e 1978, momento da

comemoração do centenário de sua morte.

21 Ibidem, ibidem. 22 Celia Maria Marinho de Azevedo, A nova história intelectual de Dominick LaCapra e a noção de raça, in: Luzia Margareth Rago e Renato Aluízio de Oliveira Gimenes (orgs.), Narrar o passado, repensar a história, Coleção Idéias 2, Campinas, Gráfica do IFCH-UNICAMP, 2000, p. 131. Conferir: Dominick LaCapra, Rethinking Intellectual History and Reading Texts, in: Dominick LaCapra e Steven L. Kaplan (eds.), Modern European Intellectual History: Reappraisal and New Perspectives, Ithaca, Cornell U. P., 1983.

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Enfim, pretende-se neste capítulo desenvolver um estudo sobre apropriações feitas pelo

IHGB da figura de Varnhagen na construção de uma tradição historiográfica brasileira, tendo o grêmio

como o seu principal protagonista. Biografá-lo era forma de arrogar para si um lugar de produção na

história da História do Brasil, legitimando a importância do IHGB como marco fundador de uma prática.

Já no segundo capítulo, intitulado Invenções de Si: As cartas de Varnhagen e a escrita da

História do Brasil (1839-1860), analisa-se, com base na sua correspondência ativa e na memória Como se

deve entender a nacionalidade na História do Brasil (1852), as representações de si, do IHGB, do ofício de

historiador e da escrita da história produzidas por Varnhagen, destacando as tensões e disputas presentes

no contexto de produção de sua produção historiográfica dentro do grêmio entre 1839 e 1860.

Neste capítulo se procura também vislumbrar os bastidores da escrita da 1ª edição da sua

Historia geral do Brazil, circunscrevendo as suas escolhas documentais, temáticas e cronológicas ao forjar

sua história geral da nação brasileira, bem como as suas agruras diante da recusa silenciosa dos

consócios da casa da memória nacional após a publicação da referida obra.

O terceiro capítulo, intitulado Inventando a Colônia “Coroada”: Os enredos temáticos da

Historia geral do Brazil (1854/1857) e o tempo saquarema, procura identificar e atrelar os enredos

temáticos, forjados por Varnhagen para sua história geral, à lógica da cultura e da identidade

essencializadas e fixas, que buscam delimitar a nação como uma entidade unívoca e hegemônica e, mais

ainda, como uma necessidade para o futuro da humanidade. Entender os mecanismos como os germens e

alicerces da nação foram buscados no passado colonial brasileiro será o norte da bússola da navegação

pelas seções da 1ª edição da Historia geral do Brazil. A decifração deste discurso, da fabricação da nação

como verdade, passa pela procura das relações de poder e saber que a instituiu por meio da pena do

visconde de Porto Seguro.

Em síntese, propõe-se fazer a história da emergência de um objeto de saber, de um tempo

e de um espaço de poder: o passado colonial brasileiro. O passado definiria o campo de atuação de um

saber – a história; o colonial marcaria uma temporalidade; e o adjetivo brasileiro desenharia um território –

o corpo da nação. Na confluência destes elementos o povo e seus feitos entrariam em cena na trajetória

linear rumo à nação independente, aquela do presente do seu artífice, neste caso o visconde de Porto

Seguro.

Ao empreender um exame da percepção de Varnhagen acerca do oficio do historiador,

dos meios necessários para a escrita da história e das escolhas temáticas para a construção da sua

Historia geral do Brazil, esta tese procura romper com a imagem deste historiador, repetidas vezes,

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descrita pelos textos biográficos e pela própria historiografia, como mero compilador de documentos em

arquivos e bibliotecas e da sua escrita como algo menor em termos de estilo e consistência teórica.

Estudos recentes dedicados à produção intelectual do historiador sorocabano têm apontado outras

interpretações da suas práticas – pesquisa e escrita – mostrando um homem comprometido com as

questões de erudição, filosofia e de estilo, ou seja, de um historiador que não afastava do seu fazer a

dimensão do cuidado com as letras.23

Sem menosprezar os seus posicionamentos ideológicos e políticos, aos olhos do tempo

presente, tidos como excludentes, homogeneizadores e preconceituosos, essas pesquisas tem abordado a

operação historiográfica do visconde de Porto Seguro e de seus contemporâneos como um acontecimento

literário, civilizador e de culto à língua. Em larga medida, esta pesquisa dialoga com estas leituras e não se

rende tão prontamente à idéia de que os historiadores do tempo de Varnhagen, vinculados ao IHGB, não

faziam história, pois estavam presos à memória.24

Este trabalho constitui-se como parte de um processo de escolhas, recortes e estratégias

amparadas na pesquisa documental e no diálogo com a produção historiográfica na área de teoria da

história, historiografia brasileira e História do Brasil.

Antes de passar adiante, cabe destacar que se procurou se preservar a ortografia e o

estilo das fontes consultadas e citadas, com exceção da correspondência ativa de Varnhagen, posto que

se fez uso da compilação organizada em coletânea por Clado Ribeiro de Lessa, em 1961.

Não tendo mais nada a acrescentar no momento, deseja-se uma boa leitura.

23 Conferir: Temístocles Américo Cézar, L’écriture de l’histoire ao Brésil ao XIXe siècle. Essai sur une rhétorique de la nationalité. Le cas Varnhagen, tese de doutorado, EHESS, Paris, 2002; Taíse Tatiana Quadros da Silva, A reescrita da tradição: a invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857), dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006; Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007. 24 Para Temístocles Américo Cezar, a tese do abandono da história por parte dos historiadores do IHGB seria problemática, pois fazer história quase exclusivamente colonial e, inversamente, não fazer a história contemporânea é uma escolha certamente política mas também epistemológica. Esta escolha não visava somente proteger os políticos do IHGB de descobertas desconfortáveis que a pesquisa da atualidade poderia revelar. De modo mais profundo, ela é a expressão de uma tendência teórico-metodológica, segundo a qual não é desejável se fazer história do imediato, pois ela é perigosa para a objetividade do historiador, logo para a melhor maneira de se escrever a história. Consideremos a questão, também, a partir de um outro ângulo: o da memória. A própria hstoriografia do período colonial, tal como ela foi concebida pelo IHGB, foi marcada por um conjunto de esquecimentos, ausências e supressões cujo resultado, paradoxalmente, conferiu um sentido histórico à história brasileira: ao se trata portanto somente de privilegiar a remomoração dos tempos recuados, (...) mas de as construir. Temístocles Américo Cezar, Presentismo, memória e poesia. Noções da escrita da História do Brasil oitocentista, in: Sandra Jatahy Pesavento (org.), Escrita, linguagem, objetos: leituras de história cultural, Bauru, EDUSC, 2004, p. 55-56.

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______________________________________PRIMEIRO CAPÍTULO

INVENÇÕES DOS OUTROS: AS BIOGRAFIAS DE VARNHAGEN E A ESCRITA DA HISTÓRIA DO BRASIL

(1878-1978)

As biografias são apenas as roupas e os botões da pessoa. A vida da própria

pessoa não pode ser escrita.

[Mark Twain, Autobiografia].

A pátria traja de luto pela morte de seu historiador, - morte irreparável, pois que a

constância, o fervor e o desinteresse que o caracterizavam dificilmente se hão-

de ver reunidos no mesmo indivíduo; morte imprevista, porque a energia com

que acabara a reimpressão de sua História, o vigor com que continuava novas

empresas, a confiança com que arquitetava novos planos, embebeciam numa

doce esperança de que só mais tarde nos seria roubado, depois de por algum

tempo gozar do descanso a que lhe dava direito meio século de estudos e

trabalhos nunca interrompidos.

[João Capistrano de Abreu, Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen,

Visconde de Porto Seguro].

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14

1.1. A(s) biografia(s) de Varnhagen e o pêndulo oscilante_____________________________________

A noção de cultura histórica, na acepção de Jacques Le Goff, refere-se a um complexo

trabalho de apreensão da temporalidade. Por intermédio de um exercício pautado por recordações e

esquecimentos, é forjado um conjunto de representações compartilhadas, capazes de aferir diferentes

adjetivações a períodos, personagens, fatos, obras e autores, conformando as tramas das narrativas sobre

o passado, o presente e o futuro. Logo, a história da história não pode se ocupar apenas com a produção

histórica profissional, mas com todo um conjunto de fenômenos que formam a cultura histórica.1

Ao se debruçar sobre o seu estudo, o historiador deve estar atento às diferentes

interpretações em jogo sobre o passado, o presente e o futuro, de maneira a perceber quando, onde, quem

e por meio de quais ferramentas contribuiu para a legitimação de determinadas leituras dos fenômenos

históricos. Para Jacques Le Goff,

Sabemos agora que o passado depende parcialmente do presente. Toda história

é bem contemporânea, na medida em que o passado é apreendido no presente

e responde, portanto, a seus interesses, o que não só é inevitável como legítimo.

Pois que a história é duração, o passado é ao mesmo tempo passado e

presente. Compete ao historiador fazer um estudo “objetivo” do passado sob

dupla forma. Comprometido na história, não atingirá certamente a verdadeira

“objetividade”, mas nenhuma outra história é possível. O historiador fará ainda

progressos na compreensão da história esforçando-se para explicitar, no seu

processo de análise, tal como um observador científico o faz, as modificações

que eventualmente introduz em seu objeto de observação.2

A cultura histórica não depende exclusivamente da relação memória-história, presente-

passado. A história constitui-se como a ciência do tempo, estando estritamente ligada a diferentes

concepções de tempo que existem numa determinada sociedade. E no ofício do historiador o conceito

tempo é um elemento essencial da sua aparelhagem mental.3

1 Jacques Le Goff, História, in: História e memória, 5 ed. Campinas, Ed. da UNICAMP, 2003, p. 48. 2 Ibidem, p. 51. 3 Ibidem, p. 52.

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Um dos aspectos emblemáticos da problemática que permeia a cultura histórica está

relacionado à celebração de determinados sujeitos históricos, oriundos do mundo do político, das letras e

das artes. O(s) sujeito(s) aparece(m) na escrita do historiador como um elemento chave complexo na

construção do seu enredo narrativo, da sua trama. Segundo Rebeca Gontijo, esses sujeitos são vistos, por

exemplo, como símbolo de um grupo ou nacionalidade, uma vez que suas ações e/ou suas obras são lidas

como portadoras de valores e ideais considerados dignos de serem compartilhados e celebrados em dado

momento.4

Lidar com o individuo na construção da narrativa histórica traz, por exemplo, para o

historiador o desafio de enfrentar de forma latente as questões que envolvem a biografia. A problemática

relação história-biografia ganha fortes contornos nos estudos sobre a história intelectual, quando se propõe

desenvolver um trabalho acerca de uma determinada personalidade política, literária ou artística. Há

sempre o pêndulo oscilante entre autor-sociedade, texto-contexto pautando os traçados da escrita.

Para Benito Bisso Schmidt, apesar da intensa produção ou uso de biografias por parte dos

historiadores, esses últimos não têm manifestado grande interesse teórico pela narrativa biográfica, ou

seja, pelas possibilidades e limites desse tipo de escrita.5

As biografias, como destacou Giovanni Levi, estão no centro das preocupações dos

historiadores, porém apresentam ambigüidades nos seus usos na narrativa histórica:

Em certos casos, recorre-se a ela para sublinhar a irredutibilidade dos indivíduos

e de seus comportamentos a sistemas normativos gerais, levando em

consideração a experiência vivida; já em outros, ela é vista como o terreno ideal

para provar a validade de hipóteses científicas concernentes às práticas e ao

funcionamento efetivos das leis e das regras sociais.6

Na leitura de Giovanni Levi, haveria a necessidade de se trazer para dentro do debate das

questões metodológicas da historiografia contemporânea os dilemas da construção e dos usos da

biografia:

4 Rebeca Gontijo, O intelectual como símbolo da brasilidade: o caso Capistrano de Abreu, in: Martha Abreu et al (orgs.), Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 311. 5 Benito Bisso Schmidt, Grafia da vida: reflexões sobre a narrativa biográfica, História Unisinos, São Leopoldo, vol. 08, n. 10, jul./dez. 2004, p. 133. 6 Giovanni Levi, Usos da biografia, in: Marieta de Moraes Ferreira e Janaina Amado (orgs.), Usos e abusos da história oral, 8 ed. Rio de Janeiro, Ed. da FGV, 2006, p. 167.

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A biografia constitui na verdade o canal privilegiado através do qual os

questionamentos e as técnicas peculiares da literatura se transmitem à

historiografia. Muito já se debateu esse tema, que concerne sobretudo às

técnicas argumentativas utilizadas pelos historiadores. Livre de entraves

documentais, a literatura comporta uma infinidade de modelos e esquemas

biográficos que influenciaram amplamente os historiadores. Essa influência, em

geral mais indireta do que direta, suscitou problemas, questões e esquemas

psicológicos e comportamentais que puseram o historiador diante de obstáculos

documentais muitas vezes instransponíveis: a propósito, por exemplo, dos atos e

dos pensamentos da vida cotidiana, das dúvidas e das incertezas, do caráter

fragmentário e dinâmico da identidade e dos momentos contraditórios de sua

constituição.

Além disso, as biografias são uma polêmica fonte de análise para o historiador. Segundo

Mairon Escorsi Valério, as biografias, bem como a história, poderiam ser glorificadoras ou

descontrucionistas, ou ainda ajudariam a consolidar mitologias ou heróis, ou ainda os desconstruiriam

abrindo espaço para o aparecimento de outros em cena.7

As narrativas sempre oscilam entre a exaltação e a execração pública geralmente da vida

privada dos sujeitos submetidos ao olhar de quem procura, vasculha, garimpa. E as biografias não fogem a

esta regra. O desafio para o profissional da História está em superar os binômios e buscar o humano,

fugindo do campo de batalhas em torno da biografia verdadeira. Como instrumento de análise histórica

a narrativa biográfica mais do que qualquer outro gênero, dificilmente se oculta

atrás da ilusória mascára da neutralidade. A celebração ou execração de um

herói/personagem é evidente na narrativa biográfica, o que clarifica ainda mais

os objetivos políticos das disputas campais na história.8

Para além da questão da parcialidade, a biografia precisa ser pensada a partir do

questionamento das noções de totalidade, verdade e contexto. Nesta perspectiva, Pierre Bourdieu trouxe

para o debate de forma acertada a noção de ilusão biográfica, ou seja, a falácia de se considerar que a

7 Mairon Escorsi Valério, Dom Pedro Casaldáliga: biografia e ensino de História, in: Nauk Maria de Jesus et al (orgs.), Ensino de História: trajetórias em movimento, Cáceres, Ed. da UNEMAT, 2007, p. 107. 8 Ibidem, p. 108.

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vida de um indivíduo constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido

como expressão unitária de uma “intenção” subjetiva e objetiva , de um projeto.9

Ao desmistificar a idéia da possibilidade de uma biografia total, capaz de apreender toda

uma existência, Pierre Bourdieu rejeitou a associação da história de uma vida às idéias de trajetória,

caminho, linearidade.

Falar de história de vida é pelo menos pressupor – e isso não é pouco – que

uma vida é inseparavelmente o conjunto dos acontecimentos de uma existência

individual concebida como uma história e o relato dessa história. É exatamente o

que diz o senso comum, isto é, a linguagem simples, que descreve a vida como

um caminho, uma estrada, uma carreira, com suas encruzilhadas (Hércules entre

o vício e a virtude), seus ardis, até mesmo suas emboscadas (Jules Romains

fala das “sucessivas emboscadas dos concursos e dos exames”), ou como um

encaminhamento, isto é, um caminho que percorremos e que deve ser

percorrido, um trajeto, uma corrida, um cursus, uma passagem, uma viagem, um

percurso orientado, um deslocamento linear, unidirecional (a “mobilidade”), que

tem um começo (“uma estréia na vida”), etapas e um fim, no duplo sentido, de

término e de finalidade (“ele fará seu caminho” significa ele terá êxito, fará uma

bela carreira), um fim da história.10

Outro aspecto presente nas reflexões acerca da relação história-biografia é ilusão de

verdade, a obsessão de fazer a narrativa biográfica mais completa e real, captando cada segundo da

existência de um indivíduo.

Em relação à ilusão de verdade, Michel Foucault demonstrou a inexistência de quaisquer

objetos intelectuais naturais, como por exemplo as biografias. Todos os objetos seriam historicamente

dados como objetos discursivos, sempre sujeitos a mudanças, que não poderiam oferecer uma base

transcendental ou universal para o método histórico. Acreditar que as palavras, ao longo do tempo,

designariam ou significariam algo essencialmente idêntico a si mesmo seria fruto da semântica idealista

dos historiadores, por vezes, travestidas de realismo, materialismo e cientificismo.

No clássico ensaio Nietzche, a Genealogia e a História, Michel Foucault distinguiu a

história azul dos historiadores, alicerçada na idéia de continuidade e na lógica da identidade, da história

9 Pierre Bourdieu, A ilusão biográfica, in: Marieta de Moraes Ferreira e Janaina Amado (orgs.), Usos e abusos da história oral, op. cit., p. 184. 10 Ibidem, p. 183.

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cinza genealógica, aberta para captar e debruçar-se sobre as rupturas, o acaso e as diferenças, sem

subsunção ou submissão.

Inspirado por Friedrich Nietzche, Michel Foucault denunciou algumas ilusões que

permeavam o universo dos historiadores, como as noções de verdade objetiva e essência a serem

conquistadas pelo trabalho do conhecimento histórico, à qual se juntavam as de continuidade, necessidade

e totalidade. Para ele, essa miragem, que forjaria na oficina da História um discurso legitimador da figura

do sujeito unitário e racional, deveria ser ela mesma investigada ao se pensar o fazer do historiador. A

busca obstinada do passado – o elo perdido, nessa perspectiva, não almejava reencontrar os fios da

continuidade e a própria imagem de uma determinada época na origem límpida do acontecimento, na

fundação, mas sim perceber a que veio esse mesmo discurso conciliador.

Fazer genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento não

será, portanto, partir em busca de sua ‘origem’, negligenciando como

inacessíveis todos os episódios da história; será, ao contrário, se demorar nas

meticulosidades e nos acasos dos começos; prestar uma atenção escrupulosa à

sua derrisória maldade; esperar-se vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, como

o rosto do outro; não ter pudor de ir procurá-las lá onde estão, escavando os

bastfond; deixar-lhes o tempo de elevar-se do labirinto onde nenhuma verdade

as manteve jamais sob sua guarda. O genealogista necessita da história para

conjurar a quimera da origem, um pouco como o bom filósofo necessita do

médico para conjurar a sombra da alma.11

Estes apontamentos foucaultianos, além de questionarem o totem da verdade no discurso

histórico e biográfico, remetem o debate para a problemática da relação biografia-contexto, propondo que

se desconstrua a percepção que a época, o meio e a ambiência sejam fatores preponderantes para se

caracterizar uma atmosfera que explicaria a singularidade das trajetórias. Não se trata de reduzir as ações

dos sujeitos a comportamentos-tipos, mas de interpretar as vicissitudes biográficas à luz de um contexto

que as torne possíveis e, logo, normais.12

Para Giovanni Levi, essa fórmula de compreensão da biografia assentava-se sobre uma

hipótese implícita que poderia ser formulada da seguinte maneira:

11 Michel Foucault, Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979, p. 19. 12 Giovanni Levi, Usos da biografia, in: Marieta de Moraes Ferreira e Janaina Amado (orgs.), Usos e abusos da história oral, op. cit., p. 176.

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qualquer que seja a sua originalidade aparente, uma vida não pode ser

compreendida unicamente através de seus desvios ou singularidades, mas, ao

contrário, mostrando-se que cada desvio aparente em relação às normas ocorre

em um contexto histórico que o justifica. Essa perspectiva deu ótimos resultados,

tendo-se em geral conseguido manter o equilíbrio entre a especificidade da

trajetória individual e o sistema como um todo.13

Diante dessas ponderações acerca da relação entre cultura histórica e culto ao individuo,

procurando problematizar a relação autor-texto-contexto presente na construção das narrativas de vida,14

este capítulo tem como objetivo analisar as representações forjadas sobre o historiador-diplomata

Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), produzidas pelos membros do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro (IHGB) ou a ele de alguma forma vinculados, por meio de textos biográficos (necrológios,

memórias, ensaios bibliográficos, prefácios, biografias entre outros) nas páginas da sua Revista, jornais e

livros entre os anos de 1878, data de seu falecimento, e 1978, momento da comemoração do centenário

de sua morte. 15

Pretende-se aqui desenvolver um estudo sobre apropriações feitas pelo IHGB da figura de

Varnhagen na construção de uma tradição historiográfica brasileira, tendo o grêmio como o seu principal

protagonista. Biografá-lo era forma de arrogar para si um lugar de produção na história da História do

Brasil, legitimando a importância da associação como marco fundador de uma prática, especialmente num

contexto de perda de hegemonia e espaço com a criação, a partir dos anos 1930, do curso de História da

Universidade de São Paulo e o desenvolvimento de pesquisas acadêmicas.16

Dedica-se à tarefa de entender como esses intelectuais, ao longo do primeiro centenário

de sua morte, construíram seu objeto – o seu mito ou herói intelectual – na medida em que falaram sobre

13 Ibidem. 14 Conferir: Celia Maria Marinho de Azevedo, A nova história intelectual de Dominick LaCapra e noção de raça, in: Margareth Rago e Renato Aloizio de Oliveira Gimenes (orgs.), Narrar o passado, repensar a história, Coleção Idéias 2, Campinas, Gráfica do IFCH-UNICAMP, 2000, p. 131; Dominick LaCapra, Rethinking Intellectual History, in: Dominick LaCapra e Steven L. Kaplan (eds.), Modern European Intellectual History: Reappraisals and New Perspectives, Ithaca, Cornell University Press, 1983. 15 Não se pretende nesta pesquisa rotular todos os trabalhos citados como biografias, mas considerá-los como obras que, de alguma maneira, adotam recursos da biografia na construção de diferentes tipos de texto. Conferir: Rebeca Gontijo, O velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da historiografia ao historiador, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006; Rebeca Gontijo, O “cruzado da inteligência”: Capistrano de Abreu, memória e biografia, Anos 90, Porto Alegre, vol. 14, n. 26, dez. 2007, p. 41-76. 16 Conferir: José Murilo de Carvalho, D. João e as histórias dos Brasis, Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 28, n. 56, 2008, p. 551-572.

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ele, como eles inventaram, no universo da linguagem, a figura do historiador-bandeirante, definido por

Joaquim Manuel de Macedo como o escrupuloso iluminador da história do Brasil.17

Adota-se como fundamentação teórica para o desenvolvimento dos objetivos deste

capítulo, bem como ao longo da tese, o conceito de invenção, apresentado por Durval Muniz de

Albuquerque Júnior,18 inspirado nas proposições de Michel de Certeau. Para o autor, a palavra invenção

pode se referir tanto à busca de um dado momento de fundação ou de origem, como a um momento de

emergência, fabricação ou instituição de algo que surge como novo.19

Acredita-se que esse termo ajude esta pesquisa a fazer um exercício de desnaturalização

dos sujeitos e objetos históricos, que deixam de ser essências e passam a ser pensados como fabricação

histórica, como fruto de práticas discursivas ou não, que os instituem, recortam-nos, nomeiam-nos,

classificam-nos, dão-nos a ver e dizer.20

Não cabe nestas páginas o acolhimento da imagem do herói intelectual Varnhagen, quase

sobre-humano, místico em todas as ações de sua vida. A idéia de um predestinado historiador ou de um

pai fundador – de um sujeito constituinte – precisa ser problematizada, uma vez que essas imagens têm

servido de arma discursiva para a preservação de lugares de poder e de interpretação da história do

Brasil.21

Essas biografias de Varnhagen, especialmente as produzidas dentro das páginas de

Revista do IHGB, servem a uma memória inventada que procura arrogar para si (o IHGB) o papel de locus

fundacional da historiografia brasileira.

17 Neste sentido, são emblemáticas as afirmações de Nara Britto, na sua pesquisa sobre a construção do mito Oswaldo Cruz durante a Primeira República no Brasil: Desvendar no discurso mitológico o quanto de verdade ou de fantasia contém, parece-me uma tentativa vã, posto que qualquer interpretação histórica é constituída de representações. Desse modo, não importa aqui contrapor a história verdadeira à narrativa não verdadeira, Oswaldo Cruz real em oposição ao idealizado. Mas sim a realidade do mito, ou seja, o processo de construção simbólica que atuou positivamente sobre a realidade. Nara Britto, Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência brasileira, Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1995, p. 15. 18 Durval Muniz de Albuquerque Júnior, História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história, Bauru, EDUSC, 2007, Introdução. Conferir também: Durval Muniz de Albuquerque Junior, A invenção do Nordeste e outras artes, 2 ed. Recife, FJN; Ed. Massangana; São Paulo, Cortez, 2001. 19 Ibidem, p. 20. 20 Ibidem, p. 21. 21 Segundo Michel Foucault, é preciso se livrar do sujeito constituinte, livrar-se do próprio sujeito, isto é, chegar a uma análise que possa dar conta da constituição do sujeito na trama histórica. Michel Foucault, Microfísica do Poder, op. cit., p. 07.

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1.2. “A pátria traja de luto pela morte de seu historiador” _____________________________________

Varnhagen faleceu no dia 29 de junho de 1878, em Viena, aos 62 anos, quando ocupava o

posto de Ministro Plenipotenciário e Enviado Extraordinário do Brasil na Áustria-Hungria. Segundo seus

biógrafos, um grande funeral foi armado na Catedral de Santo Estevão com pompas imperiais, contando

com a presença do Núncio Apostólico e todo o corpo diplomático e autoridades. Seus despojos foram

sepultados em Viena e posteriormente removidos para Santiago.22

Nos Extractos da 5ª sessão do IHGB em 5 de julho, honrada com a presença do imperador

D. Pedro II, realizada às seis horas e meia da tarde, consta o comunicado oficial da morte de seu

renomado historiador e sócio:

o Sr. Dr. Macedo, 1º vice-presidente, abriu a sessão, e, com a voz commovida,

disse que, tendo o telegrapho electrico dado a triste noticia do fallecimento do

visconde de Porto Seguro, um dos mais antigos e benemeritos consocios do

Instituto, e crendo elle presidente ser verdadeiro interprete dos sentimentos do

Instituto, por tão lamentavel perda, propunha que se declarasse na acta o voto

de pezar do mesmo Instituto, e que por este mesmo motivo se levantasse a

sessão. Consultado o Instituto, este unanimemente approvou uma proposta do

Sr. conselheiro Lopes Netto para que o Sr. presidente, em nome d’esta

associação, enviasse seus votos de pezames á viúva do nosso saudoso

colega.23

A notícia já havia sido publicada no Jornal do Commercio, do dia 03 de julho. O texto trazia

uma breve biografia do historiador, dando destaque para sua origem, formação, atuação como militar e

diplomata, produção intelectual, prêmios e títulos. Procurava congregar toda a plenitude de uma existência

em algumas linhas, esboçando um retrato do falecido:

Morreu o conselheiro Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Pôrto

Seguro, atualmente enviado extraordinário e ministro plenipotencionário junto ao

22 Renato Sêneca Fleury, Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro (“Natural de Sorocaba”), Rio de Janeiro, Edição do Autor, 1978, p. 59. 23 Extractos da 5ª sessão em 5 de julho de 1878, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 41, Parte Segunda, 1878, p. 396-397.

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império-reino da Áustria-Hungria, cavaleiro da ordem de Nosso Senhor Jesus

Cristo, comendador da Rosa, grão-cruz das imperiais ordens russianas de Santo

Estanislau e austríaca da Coroa de Ferro, comendador de número da americana

real ordem espanhola de Isabel, a Católica, de número extraordinário da real e

distinta ordem espanhola de Carlos III. Nasceu na freguesia de S. João de

Ipanema, província de S. Paulo, a 17 de Fevereiro de 1819 (sic) e era filho do

tenente- coronel Frederico Luís Guilherme de Varnhagen, restaurador da fábrica

de ferro do Ipanema. Seria longo enumerar as obras importantes com que o

preclaro paulista ilustrou a literatura do Brasil, granjeando o nome imorredouro

que o há de perpetuar nos fastos dos que mais trabalharam pelo progresso da

pátria, pela compilação das crônicas brasileiras e pelo adiantamento intelectual

de seus concidadãos. Historiador, corógrafo, geógrafo, poeta, dramaturgo,

biógrafo e matemático, foi sempre o Conselheiro Varnhagen considerado por

seus estudos de superior quilate e pelo seu acrisolado patriotismo. Na Europa,

como diplomata, honrou e representou com dignidade e cortesania a nação

brasileira, tornando-se saliente nas questões diplomáticas, ou nas exposições

universais que ali se deram. O falecimento de um brasileiro de tal ordem merece

condolências da pátria.24

A morte de um indivíduo proeminente, para Rebeca Gontijo, era momento oportuno para a

fabricação de representações capazes de associá-lo a ideais e sentimentos de grupos.25 Nomes como

Varnhagen congregavam imagens e valores considerados importantes e dignos de serem cultuados

durante o Segundo Reinado, um exemplo de letrado a serviço da pátria coroada.

Era um dos brasileiros ilustres dignos de serem lembrados e vistos como exemplo nas

páginas da Revista do IHGB, na seção Biographia dos Brasileiros Distinctos por Lettras, Armas, Virtudes,

Etc.26 A necessidade de constituir o panteão nacional para os heróis da nação se fazia presente desde os

primórdios do IHGB. Segundo o seu primeiro secretário Januário da Cunha Barboza (1780-1846), cônego,

jornalista e sócio-fundador,

24 Publicado no Jornal do Comércio, de 03 de julho de 1878; no número 454, ano VII, de 09 de julho de 1878 – Ipanema; a Província de S. Paulo, da capital, de julho de 1878, citado por Renato Sêneca Fleury, Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, “Paulista de Sorocaba”. Ensaio Bibliográfico (...), São Paulo, Melhoramentos, 1952, p. 111-112. 25 Rebeca Gontijo, O intelectual como símbolo da brasilidade: o caso Capistrano de Abreu, in: Martha Abreu et al (orgs.), Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história, Anos 90, op. cit., p. 312. 26 Para Temístocles Américo Cezar, As biografias fazem parte, por conseguinte, do mesmo regime de historicidade que orienta os demais planos historiográficos do IHGB e de parte considerável da elite intelectual brasileira ao longo do século XIX: a história magistra vitae (a história mestra da vida) promotora de exempla (de modelos) a serem seguidos. Temístocles Américo Cezar, Livros de Plutarco: biografia e escrita da história no Brasil do século XIX, Métis: história e cultura, Caxias do Sul, vol. 02, n. 03, jan./jun. 2003, p. 74.

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Uma biographia dos mais preclaros Brazileiros é tarefa, de certo, mui superior ás

forças de um só homem, attentas as nossas circumstancias; mas a gloria que

deve resultar de uma tal empreza accende o zelo dos que a tem encetado em

comunháo de trabalho, e refletirá também sobre o nosso Instituto, porque são do

seu grêmio os empreendedores da desejada biographia brazileira.27

Além da biografia dos homens ilustres do passado, cumpria ao IHGB a tarefa de recordar

e celebrar os construtores da nação durante o Reinado de D. Pedro II. Para Maria da Glória de Oliveira, o

Estado Imperial brasileiro funcionava como ponto de irradiação e de convergência da produção

historiográfica que era criada nos círculos restritos da cidade letrada. Varnhagen, funcionário do Estado,

fiel súdito da Monarquia Constitucional, era um exemplo de intelectual desta elite acadêmica. O programa

de edificação coletiva da história da nação recém independente, forjado pelos membros do IHGB, nasceu

sob os auspícios do mecenato real.

Elaborar notícias sobre as vidas de brasileiros distintos implicava buscar no

passado e arrancar do esquecimento os nomes daqueles que prestaram serviços

ao Império do Brasil. Entre estes, por que não incluir aqueles que, no presente,

lançavam-se à monumental tarefa da investigação e da escrita da história

nacional? Por sua condição de servidores do Estado, não seriam alguns desses

letrados igualmente dignos de um trabalho de memória e de louvor por sua

ilustração e empenho na civilização do país?

Não foram poucos os consócios, e o primeiro dele seria o já citado Balthazar da

Silva Lisboa, a figurar na galeria dos brasileiros ilustres. De qualquer modo, as

histórias das vidas dos sócios do IHGB conquistariam um espaço próprio e

permanente no periódico. Necrológios e elogios históricos, gêneros que, por

excelência, eram praticados nas instituições acadêmicas ilustradas, passaram a

ser recitados nas reuniões quinzenais do Instituto e posteriormente publicados

em separado ou incluídos em atas das sessões.28

27 Januário da Cunha Barboza. Discurso do Primeiro Secretario Perpetuo do Instituto, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 01, 1839, p. 14. 28 Maria da Glória de Oliveira, Traçando vidas de brasileiros distintos com escrupulosa exatidão: biografia, erudição e escrita da história na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839-1850), História, São Paulo, vol. 26, n. 1, 2007, p. 163. Para um estudo sobre as relações entre o mecenato de D. Pedro II e produção historiográfica do IHGB, conferir: Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, Rio de Janeiro, ano 156, n. 388, jul/set. 1995.

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A celebração da memória dos sócios falecidos era tão vital dentro da estrutura de

funcionamento do IHGB que entre as principais funções do orador, prevista nos Estatutos do grêmio,

estava o de fazer o elogio, bem como o discurso fúnebre na cerimônia de sepultamento e nas sessões

aniversárias.29

Os rituais fúnebres dos sócios, além das pompas e honrarias, tinham a finalidade de

demonstrar a especificidade da vida e das obras do morto por meio das instituições com as quais ele se

relacionara. Esses momentos serviam normalmente como uma espécie de cenário para a atuação pública

das elites, demonstrando poder e influência.

Biografar o falecido tinha uma dupla missão: preservar a memória do ausente e projetar-se

perante a boa sociedade, ou seja, constituir autoridade do discurso. Ao abordar o caso do funeral do

historiador Capistrano de Abreu, falecido em 1927, Rebeca Gontijo afirmou que

Além do impacto simbólico dos velórios, os funerais eram uma ocasião própria

para discursos, responsáveis pela dimensão mais cognitiva da cerimônia

fúnebre. Através de pronunciamentos grandiloqüentes e laudatórios, buscava-se

a individualização e a imortalização do morto em meio a expressões retóricas de

dor.30

Na história política do Brasil, podem-se identificar vários exemplos de como os eventos

fúnebres ou celebrações de aniversário de falecimento serviram de instrumento para a legitimação de

projetos e ideologias nacionais ou de grupos hegemônicos. Geralmente nestas circunstâncias os nomes

dos homenageados eram associados aos sentimentos e ideais de grupos, instituições e nação, o que

autoriza pensar, concordando com Rebeca Gontijo, que esses eventos seriam verdadeiros rituais cívicos,

uma forma de exaltar a pátria. 31

Em relação a essas práticas, Regina Abreu observou que a evocação do mortos tem sido

associada a outras formas de culto para além da visita ao túmulo ou da veneração das relíquias:

29 Art. 35, 2º parágrafo, Estatutos do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro, Rio de Janeiro, Typographia Universal de Laemmert & C., 1890. 30 Rebeca Gontijo, O intelectual como símbolo da brasilidade: o caso Capistrano de Abreu, in: Martha Abreu et al (orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história, op. cit., p. 313. 31 Para Luigi Bonafé, heróis nacionais (...) são frutos de construções históricas. Para que um sujeito histórico se torne herói nacional, e para que se consagre uma memória em torno de seu nome, é necessário que, em algum momento, outros sujeitos históricos (individuais ou coletivos) tenham deliberadamente investido na consagração daquela memória. Luigi Bonafé, Um herói em dois tempos: apontamentos para uma história da memória sobre Joaquim Nabuco, in: Martha Abreu et al (orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história, op. cit., p. 332. Conferir também: Luigi Bonafé, Como se faz um herói republicano: Joaquim Nabuco e a República, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.

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Conferências, pronunciamentos de elogios póstumos, rituais religiosos (...) são

algumas das formas modernas de “lembrar os mortos”. O crescente processo de

individualização no mundo moderno parece ter conferido um papel

especialmente destacado ao ritual de evocação dos mortos. Num mundo de

indivíduos, certas mortes tendem a desempenhar um lugar importante para a

referência dos vivos. (...) Os mortos passaram a viver na sociedade dos vivos. E

num paradoxo notável, é o próprio fato de não mais existirem o que os torna

mais valorizados.32

Os rituais fúnebres de Varnhagen, à semelhança do que aconteceu com o escritor

Machado de Assis (1939-1908), o sertanista Euclides da Cunha (1866-1909), o político e diplomata Rui

Barbosa (1849-1923), entre outros ilustres brasileiros oriundos do mundo da política e das letras, não fugiu

a esta regra: servir de exemplo, de símbolo para a nacionalidade brasileira. Segundo João Felipe

Gonçalves, este tipo de ritual cívico era uma demonstração pública e teatral do mundo das letras e do

poder político, dois dos maiores símbolos da elite de então. 33

A história do Brasil independente foi marcada por um certo interregno simbólico entre os

períodos de supremacia de dois modelos de chefes de Estado como heróis supremos da nação – D. Pedro

II (1825-1891) e Getúlio Vargas (1882-1954):

O Imperador, (...), fora como um “grande pai” para o Brasil, e seu lugar simbólico

só viria a ser plenamente ocupado, com semelhante carisma e premência, pelo

presidente gaúcho. Entrementes, os chefes de Estado não se marcaram sequer

por elevada popularidade, e estiveram longe de se constituir em heróis nacionais

tão ardente e amplamente venerados como o velho ocupante do trono. Assim,

pululavam candidatos à posição simbólica de D. Pedro na República Velha, sem

que nenhum a alcançasse de modo pleno.34

32 Regina Abreu, Entre a nação e a alma: quando os mortos são comemorados, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 07, n. 14, 1994, p. 208. 33 Conferir: João Felipe Gonçalves, Enterrando Rui Barbosa: um estudo de caso da construção fúnebre de heróis nacionais na Primeira República, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 25, 2000, p. 153-154. 34 Ibidem, p. 148.

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No Brasil Império, a morte de um súdito célebre transformava-se numa festa35 para

reforçar o culto à Monarquia e ao seu Monarca. Havia sempre um cunho cívico nestes eventos – uma

pedagogia para o povo e o reforço do poder das elites. Para Lilia Moritz Schwarcz,

Dessa maneira, se as elites e o sistema monárquico tinham outros mecanismos

para divulgar o Império brasileiro, era por meio das festas que se chegava a uma

“realeza mística”. Nesse caso, quando os monarcas não compareciam em

pessoa, carregava-se o seu retrato ou qualquer outra representação; não

importa. Na verdade, estamos falando de uma realeza retraduzida pelo

imaginário popular, às vezes distante e destacada da imagem do “rei”, como

representante máximo de um sistema de governo, ou de sua constante produção

pelas elites cariocas. (...)

Eram muitas as ocasiões em que as realezas se encontravam. Em primeiro

lugar, nas aparições públicas, nos cortejos reais, procissões e festas cívicas –

como a coroação, as comemorações do dia da Independência, ou da

Maioridade, de aniversários ou de falecimentos. Nesses momentos a população

se acercava do monarca, assistindo aos cortejos e trocando acenos.36

Em relação às celebrações em torno da figura do monarca, ao destacar a importância do

IHGB no panorama cultural do Império, Lucia Maria Paschoal Guimarães analisou a instituição por outra

perspectiva, que até bem pouco tempo permaneceu no limbo da historiografia, escondido pelo escudo do

discurso da pretensa imparcialidade do ofício do historiador. Ela tratou da trajetória da instituição, à luz da

conjuntura política da época, articulando-a ao processo de consolidação do Estado monárquico e seus

desdobramentos ao longo do Segundo Reinado.37

O IHGB assumia, nesta leitura, a dupla função de construir uma memória de Estado que

defendesse a continuidade da história nacional – da colônia para o Império – e criar uma memória sobre o

35 Segundo Lilia Moritz Schwarcz, (...) as festas falam mais, retomam e repetem uma lenta ladainha que não se conforma exclusivamente à lógica do poder, já que no espaço da festa trocam-se dons e contra-dons, experiências, bens e símbolos. Se isso tudo é verdade, nada como refletir sobre o contexto aqui selecionado. Naquele grande Império americano, as festas deveriam ser grandiosas e “memoráveis”, no sentido de fazer guardar na memória, misturando tempos diferentes e ritos desiguais em seu passado. Não fosse isso, não entenderíamos esse “ethos da festa”, as festas barrocas, as festas do Império e outras tantas festas que interrompem o dia a dia para imprimir, com seu porte majestoso, uma certa oficialidade. Não fosse isso e não perceberíamos por que a agenda do Império é constantemente marcada por estes dias especiais, que lembram fatos, personagens e santos distantes e que estabeleciam uma quantidade impressionante de motivos para comemorar. Lilia Moritz Schwarcz, O Império em procissão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2000, p. 15-16. 36 Lilia Moritz Schwarcz, As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos, 2 ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 248. 37 Lucia Maria Paschoal Guimarães, O Império de Santa Cruz: a gênese da memória nacional, in: Alda Heizer e Antonio Augusto P. Videira (orgs.), Ciência, Civilização e Império nos Trópicos, Rio de Janeiro, Access Ed., 2001, p. 266.

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Segundo Reinado – exigência do próprio imperador D. Pedro II, na cerimônia de inauguração das novas

instalações do grêmio, no terceiro andar do Paço Imperial, em 15 de dezembro de 1849.38

Nas páginas da Revista ou em outras publicações,39 em eventos comemorativos e

solenidades, passado e presente se conjugavam na figura do único monarca nascido em terras

americanas. Por um lado, recordava-se a sua origem, descendente das mais tradicionais linhagens

européias. Por outro, colocava-se em relevo, em seguida, sua condição de natural da terra de Santa Cruz.

O que significava, ainda, ressaltar outra peculiaridade comum ao país e seu governante: a juventude40.

Fazer a memória do IHGB, celebrar seus heróis era uma forma de homenagear seu monarca, seu

mecenas e soberano. Nos necrológios ou elogios históricos dos seus sócios eram sempre ressaltados os

serviços prestados pelos homenageados ao IHGB, à nação e principalmente ao seu líder.

A tarefa de evocação dos feitos dos mortos ilustres,41 para além de um mero exercício de

oratória, adquiriu uma importância estratégica dentro da própria agremiação. A preocupação com o elogio

dos mortos estava tão entranhada nas práticas do IHGB que esses discursos seriam objeto de reflexão do

primeiro secretário Januário da Cunha Barbosa. Em sessão plenária de maio de 1841, ele propunha:

Como seja mui difficil haverem-se esclarecimentos sobre as vidas dos nossos

sócios quando o orador tem de formar a sua biographia na fórma do costume;

proponho que pela nossa Revista, ou por qualquer outro meio, se avise aos

sócios para que possam mandar em memoria lacrada, e com declaração no

subescripto, ao archivo do Instituto, os esclarecimentos sobre a propria vida de

38 Ibidem, p. 282. Em sua tese sobre o IHGB, a autora defendeu a idéia de que o grêmio teria sido criado como uma maneira de um determinado grupo adquirir espaço político no cenário da Regência. Ao longo da pesquisa, argumentou que os homens do IHGB dedicaram-se mais à coleção e publicação de documentos históricos (o que chama de memória), do que propriamente em sua análise. Conferir: Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de sua Majestade Imperial. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, op. cit. 39 Segundo Temístocles Américo Cezar, a Revista do IHGB não era o único espaço onde se publicavam biografias no Brasil do século XIX. O gênero também se manifestava em produções independentes do grêmio, mesmo que alguns autores tivessem com ele um vinculo institucional, ou simplesmente seguissem os seus princípios e a mesma inspiração. Temístocles Américo Cezar, Livros de Plutarco: biografia e escrita da história no Brasil do século XIX, Métis: história e cultura, op. cit., p. 75. 40 Para construir sua análise, percebe-se que a autora adotou como referência a seguinte obra: Peter Burke, A fabricação do rei. A construção da imagem pública de Luís XIV, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994. 41 De acordo com Jean-Claude Schmitt, os mortos têm apenas a existência que os vivos imaginam para eles. Diferentemente segundo sua cultura, suas crenças, sua época, os homens atribuem aos mortos uma vida no além, descrevem os lugares de sua morada e assim representam o que esperam para si próprios. A esse título, o imaginário da morte e da evolução dos mortos no além constitui universalmente uma parte essencial das crenças religiosas das sociedades. Ele adquire formas diversas mas muito amplamente atestadas, entre as quais as visões e os sonhos ocupam sempre um lugar de primeiro plano. Jean-Claude Schmitt, Os vivos e os mortos na sociedade medieval, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 15.

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cada um, as quaes memorias só se abrirão quando constar a morte do socio a

que pertencem.42

Por esta lógica, o exemplo dos homens ilustres precisava ser envolvente, fazer emergir

novos exemplos, servindo de régua moral ou cívica. As suas histórias deveriam guiar as futuras gerações

de líderes do Império. Segundo Armelle Enders, a biografia permite portanto uma reconstituição viva do

passado, mas esta não é a sua única missão pedagógica. É também sua missão difundir vidas

exemplares.43

Para Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879), membro renomado do IHGB e diretor da

Academia Imperial de Belas Artes no período entre 1854 e 1857, esta tarefa cumpria a função moral e

cívica de difundir entre a juventude modelos de grandes homens:

Quando os nossos legisladores decretarem um pantheão, não digo um edificio

sumptuoso, mas um lugar sagrado e decente, onde se recolham os restos

mortais de nossos benméritos, onde o paisano repouse a par do general, e que

nesse lugar, em dia marcado, va o Imperador derramar flôres sobre essas

sepulturas singelas, o brazileiro verá que o outro não é a única recompensa da

terra, e que acima dele está a pobreza de um José Bonifácio de Andrada, a de

um visconde de Cayrú, de um São Leopoldo, de um Padre Caldas, de um

franciscano, ou de um músico como José Maurício. A mocidade, a generosa e

heroica mocidade seguirá o rumo da estrella do céo da patria, e não confundirá

jamais esse astro com a moeda brilhante qua salta das machinas de cunhar, na

casa da moeda. Quando o ouro é um deus, o homem é uma fera.

O contato da geração viva com a dos mortos faria desapparecer esta secção

criminosa entre os herdeiros e os testadores de tantos bens; faria desapparecer

este desamor que mostramos para com os nossos antepassados, para com

nossos pais intellectuaes, que foram os creadores d’esta ordem social, que

42 Extractos da 63ª Sessão em 19 de maio de 1841, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 03, 1841, p. 234. Para Nanci Leonzo, os necrológios dos membros do IHGB não se constituem em simples elogios históricos de cadáveres descidos às covas de fresco fechadas. Elas são, acima de tudo, “lições de vida”. Com eles se paga a dívida sagrada da gratidão e se mostra vivos o caminho a ser seguido. Nanci Leonzo, O culto aos mortos no século XIX: os necrológios, in: José de Souza Martins (org.), A morte e os mortos na sociedade brasileira, São Paulo, Hucitec, 1983, p. 77. 43 Armelle Enders, “O Plutarco Brasileiro”. A produção dos vultos nacionais no Segundo Reinado, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 25, 2000, p. 48. Segundo Temístocles Américo Cezar, estes estudos biográficos tinham o objetivo de criar o exemplo, integrado à retórica da nacionalidade, discurso historiográfico e político extremamente persuasivo forjado ao longo do século XIX dentro e fora do IHGB, tanto na história como na literatura. Temístocles Américo Cezar, Livros de Plutarco: biografia e escrita da história no Brasil do século XIX, Métis: história e cultura, op. cit., p. 75.

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marchará a maior perfeição, se a auxiliarmos com os incentivos experimentados,

por serem os mais naturaes e os mais proprios do coração humano. (...)

O homem que inscreveu todo o seu ser social no circulo da familia, cumpriu o

dever que lhe impõem a ordem; os seus restos mortaes não pertencem à patria,

como os d’aquelles que se voltou á grande missão civilizadora, ou o que fez a

abnegação de si por amor do proximo. Aos architectos da civlização deve

sómente pertencer esta recompensa.44

A questão do projeto biográfico apareceu também na fala do presidente do IHGB, Candido

José Araújo Vianna (1793-1875), o visconde de Sapucaí, durante a Sessão Magna Aniversária de 15 de

dezembro de 1858, sendo objeto de uma análise positiva quanto ao seu funcionamento dentro da Revista:

Acha-se em dia a publicação da Revista Trimestral; e ahi, além das actas e mais

trabalhos administrativos da sociedade, deparareis com noticias e memorias

interessantes á nossa historia e geographia em todos os seus ramos.

Em tão preciosa colleção se incluem biografias, bem que resumidas, de

brasileiros ilustres, que honrárão a patria por suas letras e por diversos e

brilhantes serviços; seus nomes e feitos forão dest’arte arrancados do

esquecimento em que jazião sepultados. Dar vida a benemeeritos que culpavel

descuido tem deixado mortos, para a gloria da nossa terra e para estima do

mundo, é sem duvida bem merecer a patria. Quem toma sobre seus ombros tão

ardua empresa é digno de louvor, é credor do reconhecimento da nação. (...) O

Brasil abunda de modelos de virtudes, de varões distinctos por seu saber e

brilhantes qualidades. Só faltava quem os apresentasse em bem ordenada

galeria, collocando-os segundo os tempos e os logares, para que fossem melhor

percebidos pelos que anhelão seguir os seus passos nos caminhos da honra e

da gloria nacional. 45

Os mais renomados membros do IHGB ocuparam as páginas da Revista com os elogios,

necrológios e notícias biográficas. Para historiadores oitocentistas como Januário da Cunha Barbosa,

44 Manuel de Araújo Porto Alegre, Iconographia Brazileira, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 19, 1856, p. 351. 45 Candido José Araújo Vianna (presidente), Discurso do presidente Visconde de Sapucahi na Sessão Magna Anniversaria no dia 15 de dezembro de 1858, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 21, 1858, p. 455-456.

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Joaquim Manuel de Macedo e o próprio Varnhagen, o fato de registrar alguns dados sobre um nome

glorioso do passado e salvá-lo do esquecimento era em si um tributo.46 Para Maria da Glória de Oliveira,

Não se tratava apenas de louvar os mortos, mas de garantir a fidedignidade da

sua memória: esta deveria ser a preocupação tanto daqueles que optassem por

depositar previamente nos arquivos o relato autorizado das suas próprias vidas,

quanto dos que se incumbissem da laudatio funebre dos consócios falecidos.

Indissociáveis dos cerimoniais de entronização acadêmica, os elogios e

necrológios, mais do que discursos puramente ornamentais, tornaram-se

também instrumentos de autoconsagração dos vivos e unificação de valores e

aspirações coletivas.47

Esses discursos eram recobertos de pompa, eloqüência e toques literários, carregando um

forte tom dramático, de sentimento de perda, de dor. No IHGB, após as falas do presidente e do primeiro

secretário, o culto aos ausentes ficava a cargo do orador durante a Sessão Aniversária. As marcas da

retórica da dor, à guisa de ilustração, podiam ser observadas na abertura do discurso do orador, o

romancista e professor do Colégio Pedro II Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), na Sessão

Aniversária de 1858,

Senhor. – Nesta importante solemnidade litteraria a voz do orador do Instituto

Histórico e Geographico do Brasil infelizmente é sempre annunciadora de

infortunios e de perdas lemantaveis: é voz amiga sim, mas dolorosa: sôa como

um pungente gemido de saudades; paga um tributo funebre, desempenha um

dever que renova lagrima e luto; e ainda quando a triste missão que temos hoje

de cumprir, houvesse de ser desempenhada, como outr’ora, por uma

intelligencia esclarecida e brilhante, as palavras do discurso que nesse caso

ouvires, serião flôres lúgubres, goivos e perpetuas que cahirião sobre as

sepulturas de ilustres finados.

46 Para Temístocles Américo Cezar, esses historiadores não produziram grandes tratados biográficos, tratavam apenas de pequenas noticias biográficas que não se estendiam para mais de duas ou três páginas. Temístocles Américo Cezar, Livros de Plutarco: biografia e escrita da história no Brasil do século XIX, Métis: história e cultura, op. cit., p. 75. 47 Maria da Glória de Oliveira, Traçando vidas de brasileiros distintos com escrupulosa exatidão: biografia, erudição e escrita da história na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839-1850), História, op. cit., p. 164. Conferir: Maria da Glória de Oliveira, Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema no Brasil oitocentista, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

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Cumpre registrar no nosso obituario os nomes de homens prestimosos e

notaveis, a morte arrancou aos trabalhos da vida, e que deixárão a sua carreira

no mundo assignada pelo esplendor de acções meritorias: cumpre lembrar as

virtudes e os serviços dos beneméritos; porque assim pagaremos a divida

sagrada da gratidão a esses mortos, e mostraremos o caminho que elles

seguirão, aos vivos que os devem imitar.48

Portanto, a Revista do IHGB, num exercício de metalinguagem, cumpria com maestria o

papel de manter viva a sua tradição e legitimidade quando lembrava dos heróis de seu panteão, os

construtores dos discursos que forjaram o Brasil.49

No caso do visconde de Porto Seguro, o seu necrológio e as suas biografias forjadas em

diferentes contextos procuravam vincular sua existência aos projetos do grêmio e de Estado. Não haveria,

nesta lógica, um Varnhagen notável sem estes dois lugares de saber e poder. No caso da história da

história e da historiografia do Brasil, ele seria instituído como seu patrono, seu marco de origem – o

exemplo por excelência do projeto historiográfico do IHGB.50

Esta apropriação da figura de Varnhagen, transfigurado como uma espécie de herói

intelectual, acentuou-se especificamente a partir do momento que o Rio de Janeiro e, conseqüentemente,

o IHGB perderam seu espaço hegemônico como lugar de produção e difusor do conhecimento histórico no

Brasil. Como lembrou José Murilo de Carvalho, até a fundação da Universidade de São Paulo, o Brasil era

inventado e escrito a partir da capital nacional:

O Rio de Janeiro foi assim, durante o Império e Primeira República o ponto de

onde se escreveu a história do Brasil. Criava-se um círculo: escrevia-se do Rio

de Janeiro por ser a capital e essa mesma escrita reforçava a posição central da

cidade.51

48 Joaquim Manuel de Macedo (orador), Discurso na Sessão Magna Anniversaria no dia 15 de dezembro de 1858. RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 21, 1858, p. 480. 49 Conferir: Neuma Brilhante Rodrigues, “O amor da pátria, o amor das letras”: as origens da nação na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839-1889), dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade de Brasília, Brasília, 2001. Em relação à Revista, Manoel Luiz Salgado Guimarães afirmou que ela se constituía em espaço privilegiado para se rastrear o projeto ambicioso do IHGB, pois além de registrar as suas atividades através de seus relatórios, divulgar cerimônias e atos comemorativos diversos, suas páginas se abriram à publicação de fontes primárias como forma de preservar a informação nelas contida – aliás, parte representativa de seu conteúdo nos primeiros tempos –, de artigos, biografias e resenhas de obras. Manoel Luiz Salgado Guimarães, Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 01, 1988, p. 20. 50 A força desta associação Varnhagen-IHGB pode ser identificada em José Honório Rodrigues, A pesquisa histórica no Brasil, 3 ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1978 [1 ed. 1952]. 51 José Murilo de Carvalho, D. João e as histórias dos Brasis, Revista Brasileira de História, op. cit., p. 564.

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A criação da USP, em 1937, protegida pela autonomia estadual e forjada por uma São

Paulo que havia sofrido duas derrotas políticas em 1930 e 1932 na sua oposição ao governo de Getúlio

Vargas, permitiu a fissura da hegemonia intelectual exercida pelo Rio de Janeiro. O questionamento desta

posição, segundo José Murilo de Carvalho, havia começado já em 1922, com a realização da Semana de

Arte Moderna. A entrada da universidade paulista no cenário acadêmico nacional teve

como conseqüência que a história do Brasil passou, pela primeira vez, a ser

escrita também fora do Rio de Janeiro. O Departamento de História da USP teve

inicialmente orientação cosmopolita, graças à influência dos professores

franceses convidados para se encarregarem de seus primeiros cursos. Mas já na

segunda geração voltou-se predominantemente para temas brasileiros, cobrindo

história colonial, imperial e republicana. Tendo inaugurado seu doutoramento nos

termos da moderna pós-graduação em 1971, uns 15 anos antes que o fizessem

outras universidades, a USP não só criou em São Paulo uma rica produção de

história do Brasil, o monopólio de formação de doutores. Com isso, estendeu sua

influência para muito além das fronteiras estaduais.52

Contra o rótulo de instituição amadora, diletante, monarquista e conservadora posto pela

produção acadêmica universitária, o IHGB passou paulatinamente a insistir no seu papel de fundador da

produção historiográfica nacional. A pesquisa histórica no Brasil, segundo seus consócios, não existiria

sem o IHGB. E a celebração dos feitos intelectuais de Varnhagen seria uma forma, dentre outras

estratégias discursivas, de marcar este lugar – este mito fundador.53

Esta tarefa de autopreservação do IHGB ficaria muito difícil também a partir das novas

interpretações do Brasil forjadas pela geração de 30, da qual faziam parte Gilberto Freyre (1900-1987),

Caio Prado Júnior (1907-1990) e Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). Estes intelectuais seriam

responsáveis pela busca de uma nova definição do que era o Brasil e o brasileiro, em muitos aspectos

rompendo e superando os quadros de ferro de Varnhagen.54 Não se pode esquecer também no processo

52 Ibidem, p. 566.Conferir: Francisco Iglesias, Historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira; Belo Horizonte, Ed. da UFMG; IPEA, 2000, p. 181-241. 53 Para Michel Foucault, esta defesa do locus de autoridade do saber histórico estaria vinculada a uma obsessão pela origem: a pesquisa, nesse sentido, se esforça para recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar reencontrar “o que era imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si (...). Michel Foucault, Microfísica do Poder, op. cit., p. 17. 54 Para Fernando Antonio Novais, o que muda em 1930, nesses três autores, é que o Brasil começa a ser visto a partir de dentro – e por dentro. Fernando Antonio Novais, As Raízes e seus frutos, Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 02, n. 13, 2006, p. 20.

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de redefinição da escrita da história do Brasil a figura do responsável pelo necrológio do visconde de Porto

Seguro: João Capistrano de Abreu (1853-1927).55

Logo, o pedestal do IHGB e de Varnhagen era questionado pela multiplicidade de lugares

e intérpretes do Brasil. Neste sentido, era necessário inventar e legitimar uma memória que preservasse o

pioneirismo da casa da memória nacional e de seu ilustre varão historiador.56

1.3. A invenção biográfica de Varnhagen___________________________________________________

Nos textos biográficos produzidos sobre a vida e obra de Varnhagen entre 1878 e 1978

encontramos, por exemplo, adjetivações como O escrupuloso iluminador da historia do Brasil, Destemido

bandeirante à busca da mina de ouro da verdade, Um exemplar precioso (...) da raça, do meio e do

momento, O operoso iniciador da Historiografia brasileira, (...) grande exemplo a seguir e a venerar, (...) um

trabalhador formidável, de operosidade ainda não excedida por nenhum brasileiro, Pai da História do Brasil

entre outros – afirmações que, a partir da ótica do IHGB, construíram e legitimaram o seu lugar na trajetória

da historiografia brasileira como marco fundador.

Ao salientar a força da herança de Varnhagen, os seus sócios também faziam uma defesa

da memória e do pioneirismo da agremiação. Com este intuito, essas narrativas procuraram estabelecer

um sentido, uma lógica, uma consistência e uma constância por meio do estabelecimento de relações,

colhendo fragmentos para o desenho de um retrato do morto Varnhagen, o historiador-monumento. Ele

não mais se configuraria como sujeito, mas sim objeto dos discursos que o fabricaram. Varnhagen passa a

ser uma invenção, o discurso de uma causa, de um projeto, dos poderes instituídos. Segundo Walter

Benjamin, no ensaio O narrador,

é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua

existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem

pela primeira vez uma forma transmissível. Assim como no interior do agonizante

desfilam inúmeras imagens – visões de si mesmo, nas quais ele se havia

55 Conferir: Rebeca Gontijo, O velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da historiografia ao historiador, op. cit. 56 A prática de fabricação de panteões intelectuais para os historiadores brasileiros e o processo de apagamento de seus juízos de valores, suas omissões e preconceitos foram abordados por Margareth Rago, em Sexualidade e identidade na historiografia brasileira, Revista Aulas – Dossiê Identidades Nacionais, Campinas, n. 02, out./nov. 2006, p.01-35.

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encontrado sem se dar conta disso –, assim o inesquecível aflora de repente em

seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade

que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em seu redor.57

Ao longo do primeiro século de seu falecimento, Varnhagen tornou-se objeto de diversos

tipos de textos de teor biográfico nas páginas da Revista do IHGB, de jornais e de livros, publicados em

sua maioria por sócios do grêmio ou a ele próximos. A análise desses textos, produzidos em diferentes

épocas, permite a compreensão da construção de uma memória sobre o visconde de Porto Seguro,

identificando a recorrência de determinadas imagens, temas e curiosidades referentes à sua vida e obra.

A prática de tal exercício memorialistico estabeleceu um arranjo cronológico do fio da sua

existência, consolidou uma série de características de sua personalidade e forjou um perfil, um retrato,

procurando vislumbrar a verdadeira face do biografado – transformado em historiador-símbolo do IHGB e

patrono da história do Brasil. Apresentar Varnhagen como símbolo de historiador para a nação era uma

forma também de marcar as posições políticas e ideológicas do IHGB: como a defesa da história-verdade,

a obsessão pelo documento, a busca obstinada pelas origens e, em determinados discursos, uma visão

conservadora, moralista e etnocêntrica de escrita da história do Brasil.

Não raras vezes os seus biógrafos, com exceção por exemplo de Capistrano de Abreu e

Manuel de Oliveira Lima (1867-1928), suavizavam ou silenciavam diante das concepções e

posicionamentos comprometedores do visconde de Porto Seguro. Nesta perspectivas, as festas biográficas

têm muito a dizer não só sobre o autor da Historia geral do Brazil, mas também do lugar que lhe conferiu

autoridade.58

Os principais textos biográficos encontrados na Revista do IHGB neste período estão

intimamente relacionados com finalidades comemorativas.59 Após a sessão de 5 de julho de 1878, a

primeira realizada depois da morte de Varnhagen, encerrada em sua homenagem, a Revista publicou o

discurso do orador Joaquim Manuel de Macedo, apresentado na Sessão Magna Aniversária de 15 de

dezembro do mesmo ano, no qual se fazia o necrológio do escrupuloso iluminador da historia do Brasil.60

57 Walter Benjamin, Obras Escolhidas, São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 208. 58 Segundo Nanci Leonzo, no afã de imortalizar os seus sócios, tarefa esta que se insere num grande projeto de construção patriótica desde os tempos do Império, o IHGB comparava-se a uma grande família que louvava o ente perdido esquecendo e perdoando os seus erros. Nanci Leonzo, O culto aos mortos no século XIX: os necrológios, in: José de Souza Martins (org.), A morte e os mortos na sociedade brasileira, op. cit., p. 78. 59 Para Rebeca Gontijo, em meio a essa cultura comemorativa, marcada por cerimônias, exposições, publicações, panegíricos, visitações a locais identificados com a vida do homenageado, as biografias ocupavam um lugar singular. Rebeca Gontijo, O “cruzado da inteligência”: Capistrano de Abreu, memória e biografia, Anos 90, op. cit., p. 56. 60 Joaquim Manoel de Macedo (orador). Discurso na Sessão Magna Anniversaria do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro no dia 15 de dezembro de 1878, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 41, 1878, p. 471-472.

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Neste necrológio, o autor de A Moreninha fez uma longa retrospectiva daqueles que se

dedicaram à história do Brasil, remontando aos cronistas do período colonial, passando pelas obras de

Sebastião da Rocha Pitta (1660-1738) e Robert Southey (1774-1843), até o nascimento do IHGB e o

aparecimento de Varnhagen, fruto de seu projeto de construção da memória nacional.

Sem deixar de apontar e observar algumas limitações de estilo e gênio do homenageado,

Joaquim Manuel de Macedo consagrou-lhe páginas memoráveis, constantemente relembradas pelos seus

biógrafos posteriormente:

(...) Varnhagen fizera do santo ocio do maior numero dos diplomatas do Imperio

labor santo dedicado ás investigações históricas da patria. Engolfára-se nas

bibliothecas, empoeirára nos archivos, compulsára centenas de livros, achára

thesouros e fontes de luz em obras raras, descobrira em arcas antigas

manuscriptos e documentos importantíssimos, empregára longos annos em

profundos estudos, e na accumulação de pecúlio immenso de conhecimentos, e

finalmente em 1854 e 1857 deu ao prelo a sua História geral do Brasil diadema

litterario e scientifico que cingiu dignamente sua fronte de historiador.

O Brasil e Portugal, e os mais competentes juizes dois mundos, reconheceram e

applaudiram o verdadeiro e alto merecimento d’essa obra, que em dois

substanciosos volumes narra a vida de trezentos e vinte dois anos do Brasil

descoberto (...)61

Varnhagen não desthronou Rocha Pitta, nem annullou Southey, que ficaram

inabalaveis na grandeza de suas obras, medidas pelas proporções possiveis dos

conhecimentos historicos do Brasil nos tempos em que um e outro escreveram;

mas, não lhes disputando a palma da gloria chronologica, excedeu-os muito em

verificação de factos e de datas, em esclarecimentos documentados, a espancar

dúvidas e escuras nuvens de história, além de avançar não pouco em

informações e juízos sobre cousas de época mais recente.

Varnhagen assumiu por isso o elevado gráo de primeiro historiador do Brasil até

os nossos tempos, e basta isso para a glorificação do seu nome e para a

perpetuidade honorífica de sua memoria.62

61 Ibidem, p. 486. 62 Ibidem, p. 487.

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Cabe destacar que entre os dias 16 e 20 do referido mês, o futuro consócio e historiador

cearense Capistrano de Abreu consagrou ao destemido bandeirante à busca da mina de ouro da verdade

dois artigos necrológicos no Jornal do Commercio.63 Outros três artigos de apreciação critica de sua obra

foram publicados pelo historiador cearense, quando foi erigido o monumento do Ipanema em memória de

Varnhagen64, na Gazeta de Noticias de 21, 22 e 23 de novembro de 1882.65

Para o jovem Capistrano de Abreu, no famoso necrológio, a morte de Varnhagen era um

golpe nas pesquisas históricas no Brasil, uma vez que este era uma referência de peso. Em tom solene

logo no primeiro parágrafo, sentenciava que a nação estava de luto por aquela perda:

A pátria traja de luto pela morte de seu historiador, - morte irreparável, pois que a

constância, o fervor e o desinteresse que o caracterizavam dificilmente se hão-

de ver reunidos no mesmo indivíduo; morte imprevista, porque a energia com

que acabara a reimpressão de sua História, o vigor com que continuava novas

empresas, a confiança com que arquitetava novos planos, embebeciam numa

doce esperança de que só mais tarde nos seria roubado, depois de por algum

tempo gozar do descanso a que lhe dava direito meio século de estudos e

trabalhos nunca interrompidos.66

Os méritos como garimpeiro de documentos em arquivos do historiador-modelo

Varnhagen foram repetidas vezes destacados ao longo do necrológio, bem como sua capacidade de

sistematizar a ordem e os enredos temáticos da história do Brasil. O visconde de Porto Seguro, por meio

desta oblação, emergia como a verdadeira essência do historiador:

63 João Capistrano de Abreu, Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos (Crítica e História), 1ª série, 2 ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, p. 81-91. [Publicado no Jornal do Commercio, de 16 a 20 de dezembro de 1878, e reproduzido em Apenso à História Geral do Brasil, de Varnhagen, tomo I, págs. 502/508, 4 ed.]. 64 Para Clado Ribeiro de Lessa, Varnhagen deixou registrado em seu testamento que a sua esposa não se casasse novamente e, também, que fosse erguido, em São João do Capanema, sua terra natal, um monumento à sua memória. O monumento foi inaugurado em 1882, em terras da fábrica de ferro. Sobre uma coluna quadrangular de alvenaria, ao centro de uma plataforma de dois degraus, uma cruz de ferro estende os braços. Numa das faces do soco um escudo apresenta os seguintes dizeres: “À memória de Varnhagen, Visconde de Pôrto Seguro, nascido na terra fecunda descoberta por Colombo, iniciado por seu pai nas coisas grandes e úteis. Estremeceu sua Pátria e escreveu-lhe a História. Sua alma imortal reúne aqui tôdas as suas recordações”. Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen, RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 223, abr./jun. 1954, p. 292-293. 65 João Capistrano de Abreu, Sobre o Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos (Crítica e História), 1ª série, 2 ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, p. 131-145. [Publicado na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, de 21, 22 e 23 de novembro de 1882, e reproduzido em Apenso à História Geral do Brasil, de Varnhagen, tomo III, págs. 435/444, 3 ed.]. 66 João Capistrano de Abreu, Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos (Crítica e História), op. cit., p. 82.

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(...) é difícil exagerar os serviços prestados pelo Visconde de Porto Seguro à

história nacional assim como os esforços que fez para elevar o tipo. Não se

limitou a dar o rol dos reis, governadores, capitães-móres e generais; a lista das

batalhas, a crônica das questiúnculas e intrigas que referviam no período

colonial. Atendeu sem dúvida a estes aspectos, a uns porque dão meio til e

empírico de grupar os acontecimentos, a outros porque rememoram datas que

são doces ao orgulho nacional, ou melhor esclarecem as molas que atuam sob

diferentes ações. Fez mais. As explorações do território, a cruzada cruenta

contra os Tupis, o aumento da população, os começos da indústria, as

descobertas das minhas, as obras e associações literárias, as comunicações

com outras nações, assume lugar importante em sua obra.67

A obra do filho nobre da Província de São Paulo tornar-se-ia fonte de inspiração, crítica e

superação (até mesmo de obsessão) para Capistrano de Abreu ao longo de sua atividade intelectual,

fazendo leituras, verificações, correções e anotações na Historia geral do Brazil entre outros textos.68 O

desejo de superar os quadros de ferro, forjados por Varnhagen, e criar uma história do Brasil a grandes

traços e largas malhas seria uma marca permanente da sua produção, tomando conta da sua vasta e rica

correspondência com interlocutores amigos da elite intelectual brasileira do final do século XIX e início do

XX. De acordo com Daniel Mesquita Pereira,

O sonho de ver escrita a História do Brasil acompanhou boa parte das

expectativas da vida de Capistrano de Abreu. Não é exagerado imaginar que a

hipótese de ser ele o escritor daquela História alimentou em larga medida seus

anseios existenciais. Que este sonho tenha se transformado num decidido

projeto de vida, dá-nos testemunho o próprio historiador em sua

correspondência. A urgência que se tornou para ele a tarefa de escrevê-la

estava associada às suas convicções sobre os desenvolvimentos da História que

testemunhava. A nação brasileira encontrava-se em pleno processo de

67 Ibidem, p. 88. 68 Conferir: Daniel Mesquita Pereira, Descobrimentos de Capistrano: A História do Brasil “a grande traços e largas malhas”, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002; Fernando José Amed, As Cartas de Capistrano de Abreu: Sociabilidade e vida literária na Belle Époque carioca, São Paulo, Alameda, 2006; Maria da Glória de Oliveira, Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu (1853-1927), dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006; Rebeca Gontijo, O velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da historiografia ao historiador, op. cit.

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formação, processo que se estendia desde o início da colonização até o seu

presente.69

Já em seu artigo Sobre o Visconde de Porto Seguro, o historiador cearense aventava a

possibilidade, ou melhor, a urgência da escrita da História do Brasil, apesar dos esforços e méritos de

Varnhagen. A nova história deveria ser feita com base nos progressos da ciência, trazendo uma nova

ferramenta teórica como a sociologia de August Comte (1798-1857) e Herbert Spencer (1820-1903). Para

Capistrano de Abreu, carecia de estilo e visão de conjunto na sua Historia geral do Brazil:

Varnhagen poderia, entretanto, apresentar obra melhor, (...) não lhe faltassem

aptidões artísticas: isto é, se ele fosse capaz de ter uma intuição de conjunto,

imprimir-lhe o selo da intenção e mostrar a convergência das partes.

Na distribuição das matérias, quase nunca tomou como chefe de classe um

acontecimento importante, mas fatos muitas vezes inferiores, demissões de

governadores, tratados feitos na Europa, mortes de reis, etc. (...)70

Em síntese, Varnhagen não tinha feito ciência, embora tivesse recolhido os elementos

necessários para fazê-la. Para Capistrano de Abreu, somente um historiador que tivesse pleno domínio do

instrumental científico seria capaz de superar os quadros de ferro de Varnhagen, presentes também nas

Lições de História do Brasil, de Joaquim Manuel de Macedo, manual escolar adotado no Colégio Pedro II.71

O pêndulo da crítica à obra do visconde de Porto Seguro oscilava ente o amor e ódio, a admiração e a

superação.

As homenagens e celebrações ao dito destemido bandeirante não ficaram restritas à

época de seu falecimento. Sob a constelação da era republicana, Manoel de Oliveira Lima, diplomata e

sócio do IHGB, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras no ano de 1903, elegeu para

padroeiro da cadeira que ia ocupar, a de número 39, o visconde de Porto Seguro. Nesta peça oratória,

publicada posteriormente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo72, Oliveira Lima

realizou uma avaliação da figura e da obra do exemplar precioso (...) da raça, do meio e do momento,

69 Daniel Mesquita Pereira, Descobrimentos de Capistrano: A História do Brasil “a grande traços e largas malhas”, op. cit., p. 06. 70 João Capistrano de Abreu, Sobre o Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos (Crítica e História), op. cit., p. 140. 71 Para uma análise detida da produção didática de Joaquim Manuel de Macedo, conferir: Selma Rinaldi de Mattos, O Brasil em Lições: A história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de Macedo, Rio de Janeiro, Access Ed., 2000; Ciro Flávio de Castro Bandeira de Mello, Senhores da História e do Esquecimento: a construção do Brasil em dois manuais didático de História na segunda metade do século XIX, Belo Horizonte, Ed. Argumentum, 2008. 72 Manoel de Oliveira Lima, Francisco Adolpho Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, RIHGSP, São Paulo, vol. XIII, 1908, p. 63-64.

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começando pela lembrança do momento de sua descoberta, que teria acontecido num contexto específico

de pesquisa historiográfica na juventude – a vivência de arquivo:

Quando, muito novo ainda, eu estudava paleographia na Torre do Tombo, de

Lisboa, tendo por mestre João Basto, um dos auxiliares de Herculano na obra

grandiosa dos Portugaliae Monumenta Historica, costumava ancioso

esquadrinhar nos maços de papéis bolorentos, de caracteres semi-apagados

debaixo da poeira dos séculos, algum documento que na minha prosapia juvenil

julgava dever ser decisivo para a solução de qualquer dos enigmas da nossa

história, que os tem, comquanto date de hontem. Ora, era com viva sorpresa e

não menos vivo desapontamento que, em quase todos aquelles papeis, se me

deparava a marca discreta do lapis de um pachorrento investigador que me

precedera na faina, e que verifiquei não ser outro senão Francisco Adolpho de

Varnhagen, Attribuindo o seu nome ilustre á cadeira que a vossa benevolencia

aqui me concedeu, escolhendo-o, pois, para meu patrono – mais carecera de um

padroeiro, para usar da linguagem tradicional, que tão bem corresponde ao

personagem e até ao espirito começo de seculo – celebrando agora sua

memória, faço mais do que instinctivamente recorrer a um modelo, traduzo uma

saudosa impressão de primeira mocidade, além de prestar uma das mais

merecidas homenagens que reclamão os fundadores do nosso patrimonio

intelectual.73

No momento de sua consagração como escritor aceito pelos pares, reconhecido pela

imprensa e inserido na burocracia do Estado como diplomata, Oliveira Lima evocou em seu discurso a

memória de Varnhagen como um tributo e uma arma política, uma vez que vinha enfrentando contendas

com o recém-empossado ministro das Relações Exteriores, José Maria da Silva Paranhos Junior (1845-

1912), o Barão de Rio Branco. Para Teresa Malatian,

A leitura solene do Elogio de Francisco Adolfo de Varnhagen constituiu um

momento particularmente significativo para a compreensão desse mecanismo,

pois nele Oliveira Lima revelou grande maestria ao administrar sua própria

consagração. Em primeiro lugar, por que aproveitou o momento para externar

73 Ibidem, p. 63-64.

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seu descontentamento para com Rio Branco e a não desejada designação para

a legação do Peru. Seu discurso continha referências veladas à crise profissional

que enfrentava, de modo a serem entendidas “pelas galerias”. (...)

Em segundo lugar, a estratégia de construção de um discurso de auto

consagração, no elogio de Porto Seguro, resultou na biografia intelectual de um

autor já sobejamente reconhecido, em registro não apenas apologético, nisso

distinguindo-se do esquema usual do gênero. Com ela, Oliveira Lima promoveu

astutamente sua própria consagração por meio do artifício das vidas paralelas,

ou seja, tornou a biografia do homenageado também uma autobiografia.74

O êxito desse paralelismo na formulação do seu discurso era notável pela coerência com

que fatos da vida do biografado davam relevo para os de seu biógrafo, especialmente nos que concerniam

à profissão de historiador e ao exercício da diplomacia.75 O elogio de Varnhagen, além de reflexão sobre a

história, constituiu-se em escrito político com endereços certos, transformando-se em referência para todos

que se aventuraram a fazer a biografia do autor da Historia geral do Brazil.

No dia 17 de fevereiro de 1916, ano do centenário do nascimento de Varnhagen, o IHGB

promoveu sessão solene especial comemorativa, tendo como conferencista o sócio dr. Pedro Lessa (1859-

1921), jurista e membro da Academia Brasileira de Letras, que apresentou uma análise das qualidades do

operoso iniciador da Historiografia brasileira.76 Dentre os méritos lembrados, destacou-se mais uma vez a

sua obstinada busca documental, como se houvesse algum historiador que não fizesse uso de fontes para

a escrita da história nesse período:

Graças aos ensejos e facilidades que lhe proporcionava essa profissão [carreira

diplomatica], nas côrtes em que a exerceu, e em várias outras cidades da

Europa e da América, que visitou demoradamente, pôde consagrar-se desde

moço aos estudos necessarios á realização da sua tarefa de historiador.

Especialmente em Lisboa, Madrid, Haya, Amsterdam, Vienna e Londres, dispôz

de lazeres para frequentar bibliothecas, archivos e museus, consultando livros,

74 Teresa Malatian, Oliveira Lima e a construção da nacionalidade, Bauru, EDUSC; São Paulo, FAPESP, 2001, p. 174-175. 75 Ibidem, p. 175-176. 76 Pedro Lessa, (sem título – elogio a Francisco Adolfo de Varnhagen, pronunciado na Sessão Solenne Especial, em 17 de fevereiro de 1916, commemorativa do centenário do nascimento do Visconde de Porto Seguro), RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 80, 1917, p. 614-666.

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mappas, autographos, inscripções, medalhas, moedas, gravuras, pinturas e

todas especie de documentos.77

Em 1923, foi fundada na cidade do Rio de Janeiro, de duração efêmera, o Instituto

Varnhagen, cuja sessão de instalação contou com o pronunciamento do professor e autor de manuais

escolares José Francisco da Rocha Pombo (1857-1933), presidente-perpétuo da referida sociedade. Nesta

solenidade, foi realizada a conferência intitulada Varnhagen: o homem e a obra, no Gabinete Português de

Leitura, do acadêmico Sr. Celso Vieira (1878-1954), historiador e membro da Academia Brasileira de

Letras.78

Ao analisar a interpretação histórica brasileira no século XIX, o conferencista identificou na

solidez, decoro e clareza da obra de Varnhagen a preocupação com a questão da unidade. Os seus

méritos como historiador de seu tempo estavam na sua crença na fortaleza, na predestinação, na suprema

logica do Brasil unitário, compacto, gigantesco, infinito pelos seus atributos, mas indivisível como a

substância.79 Outra vez era produzida uma monumentalidade discursiva para o patrono da história,

reforçando a interpretação do IHGB.

Na esteira das celebrações em torno de sua figura, em 29 de junho de 1928, o IHGB

promoveu a sessão comemorativa do cinqüentenário de falecimento do visconde de Porto Seguro, tendo o

professor e folclorista Basílio de Magalhães (1874-1957) como o conferencista.80 No mesmo dia, o

consócio Rodolfo Garcia (1873-1949), renomado historiador e profundo conhecedor da obra do

sorocabano, publicou artigo no Jornal do Brasil contendo a mais completa resenha bibliográfica à época. O

referido texto foi publicado como apenso na 3ª edição integral, anotada por Rodolfo Garcia, da Historia

geral do Brazil.81

Esses textos biográficos, fazendo coro à conferência de Pedro Lessa, vieram corroborar as

imagens instituídas pelo IHGB do grande exemplo a seguir e a venerar da história da história do Brasil:

77 Ibidem, p. 614-615. 78 Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (vol. 223), op. cit., p. 295. Conferir: José Francisco da Rocha Pombo, Discurso inaugural, Rio de Janeiro, Álvaro Pinto Editor, 1923. 79 Celso Vieira, Varnhagen: o homem e a obra, Rio de Janeiro, Álvaro Pinto Editor, 1923, p. 93. 80 Basílio de Magalhães. Discurso – Sessão Commemorativa do 50º Anniversario do Falecimento de Francisco Adolpho de Varnhagen (Visconde de Porto Seguro) – realizada em 29 de junho de 1918, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 104, vol. 158, 1928, p. 890-975. Publicado posteriormente em Basílio de Magalhães, Francisco Adolpho de Varnhagen – Visconde de Porto Seguro, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1928. 81 Rodolfo Garcia, Appenso Ensaio Bio-bibliográfico sobre Francisco Adolpho de Varnhagen, Visconde de Porto-Seguro, in: Francisco Adolpho de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, História Geral do Brasil antes de sua separação e independência de Portugal, 3 ed. integral, tomo II, Editora Melhoramentos, 1928, p. 436-452. Rodolfo Garcia e Capistrano de Abreu participaram do processo de revisão e anotação da 3ª edição da História geral do Brasil. Conferir: Rebeca Gontijo, O velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da historiografia ao historiador, op. cit.

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Além das condições personalíssimas que influíram precipuamente nas

manifestações publicas da capacidade intellectual de Francisco Adolpho de

Varnhagen, - teve elle a rara felicidade de educar-se em um meio e em uma

época em que era intensa e brilhante a cultura literaria das tradições historicas.

O sério curso de engenharia militar habilitou-o a esquadrinhar e resolver com

segurança áridas e intricadas questões de geographia e cosmographia antigas.

E as escalas da carreira diplomatica propiciaram-lhe facilidades para melhor

pesquisar archivos europeus e americanos.82

Varnhagen foi um trabalhador formidavel, de operosidade ainda não excedida

por nenhum brasileiro. Não foi um compilador. Servindo-se em geral de

materiaes novos e ineditos, fez sua obra propria e original. Sua História nada tem

de Rocha Pitta, nada tem de Southey, seus predecessores. A História de

Southey será sempre louvavel como fórma, como concepção, como intuição;

mas Varnhagen, vindo depois, melhor apparelhado por suas pesquisas, mais

senhor do terreno no sentido geographico, deu mais amplitude aos seus estudos

e mais segurança ás suas affirmações.83

Além dos discursos celebrativos, uma das salas do IHGB foi batizada com o nome de Sala

Varnhagen, e lá foi posto o seu retrato desenhado a lápis por Rodolpho Amoedo (1857-1941). Segundo os

seus biógrafos,

na sala das sessões públicas ergue-se, encostado à mesa da presidência, o

marco inicial da colonização do país, deixado por Martim Afonso de Sousa em

Cananéia, examinado pelo jovem Varnhagen em 1841, recolhido ao Museu do

Instituto em 1866, e posto no local em que presentemente se acha por sugestão

do Dr. Afonso de Escragnolle Taunay, em sessão de 6-8-1930.84

82 Basílio de Magalhães. Discurso – Sessão Commemorativa do 50º Anniversario do Falecimento de Francisco Adolpho de Varnhagen (Visconde de Porto Seguro) – realizada em 29 de junho de 1918, RIHGB, op. cit., p. 895. 83 Rodolfo Garcia, Appenso Ensaio Bio-bibliográfico sobre Francisco Adolpho de Varnhagen, Visconde de Porto-Seguro, in: Francisco Adolpho de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, História Geral do Brasil antes de sua separação e independência de Portugal, op. cit., 450-451. 84 Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (vol. 223), RIHGB, op. cit., p. 294.

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Em meio aos festejos do centenário de fundação do grêmio, em outubro de 1938 – já sob

a tutela e patrocínio do governo de Getúlio Vargas85 – Varnhagen foi homenageado no Jardim da Glória

com uma herma em bronze, obra de Oswaldo Corrêa Lima, sobre um pedestal de granito, cuja base a

musa Clio lhe prestaria vassalagem.86

Na criação destes lugares de memória87 para o culto à figura de Varnhagen, nota-se a

prática da agremiação em dar materialidade por meio de estátuas, pinturas e espaços ao seu legado. Estes

espaços seriam uma espécie de templo de devoção de uma santidade, de alguém que sobrepunha a sua

própria humanidade. Os monumentos e os rituais, ao lado das biografias, eram como

um local privilegiado de afirmação de um individualismo da singularidade. E a

singularidade, no caso, supunha uma desigualdade tida por natural que separava

os grandes heróis da própria humanidade. Eles eram super-homens,

naturalmente predestinados a cumprir um papel na história.88

A Revista do IHGB, neste mesmo ano, publicou novamente a História da Independência

do Brasil, de autoria de Varnhagen.89 Em 1916, o referido projeto de conferência e coordenação dos

originais, iniciado primeiramente pelo seu presidente Barão do Rio Branco, ficou a cargo de uma comissão

formada pelos consócios Benjamin Franklin Ramiz Galvão (1846-1938), Basílio de Magalhães, Pedro

Lessa, Max Fleiuss (1868-1943) e José Vieira Fazenda (1874-1917).90

85 Segundo Lucia Maria Paschoal Guimarães, O IHGB e Getúlio Vargas estabeleceram uma forte aproximação logo no inicio do Governo Provisório, que estendeu pelos quinze anos de sua presidência. Era uma aliança harmoniosa e fecunda. De um lado, o Silogeu colaborava com o Atelier do Catete, na modelagem de uma política cultural, que seria implantada no Estado Novo (1937-1945), voltada para “(...) o esforço permanente de construção-legitimação de uma nova consciência nacional”. De outro, Vargas concedia favores e conferia à instituição uma posição de destaque no panorama intelectual brasileiro, cuja magnitude só pode ser comparada com a reputação que desfrutara no Segundo Reinado. Lucia Maria Paschoal Guimarães, Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938), Rio de Janeiro, Ed. do Museu da República, 2006, p. 37. 86 Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (vol. 223), RIHGB, op. cit., p. 295. Para Armelle Enders, remonta do período imperial a prática entre os membros do IHGB de elaborar projetos de estátuas, monumentos, bustos dos brasileiros ilustres como forma de cultuar sua memória e reforçar seu lugar como “casa da memória” nacional. Armelle Enders, “O Plutarco Brasileiro”. A produção dos vultos nacionais no Segundo Reinado, Estudos Históricos, op. cit. Conferir: Ata de colocação da primeira pedra do monumento a F. A. Varnhagen (3.ex) e Ata da inauguração do referido monumento nos jardins da Avenida Augusto Severo (2 ex.) – IHGB, lata 344, pasta 21. 87 Pierre Nora, Entre memória e história: a problemática dos lugares, Projeto História, São Paulo, n. 10, dez. 1993, p. 07-28. 88 João Felipe Gonçalves, Enterrando Rui Barbosa: um estudo de caso da construção fúnebre de heróis nacionais na Primeira República, Estudos Históricos, op.cit., p. 152. 89 Esta obra póstuma foi originalmente publicada nas páginas da Revista em 1916, ano da comemoração do centenário de seu nascimento. Conferir: Francisco Adolfo de Varnhagen, História da Independência do Brasil até o reconhecimento pela antiga metrópole: compreendendo, separadamente, a dos sucessos ocorridos em algumas províncias, RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 133, 1916, p. 23-596. 90 Basílio de Magalhães (relator), Relatório da comissão nomeada pelo Presidente do Instituto Histórico e Geográfico, para examinar e coordenar a obra manuscrita e inédita do Visconde de Porto-Seguro, intitulada “História da Independência”, reproduzido em A publicação da “História da Independência” do Visconde de Porto-Seguro, pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 173, 1938, p. 05-21.

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Basílio de Magalhães, no relatório da Comissão, assim definiu os méritos da obra

manuscrita e inédita:

Basta que tenha saído da pena deste, para que não haja ninguem que se atreva

a negar-lhe mérito, e é deveras para ser lida com atenção e proveito.

O eruditíssimo escritor, conforme já havia declarado na sua História Geral do

Brasil, utilizou-se, para a História da Independência, dos periódicos e folhetos

coetâneos, todos raríssimos hoje, das correspondências oficiais dos agentes

diplomáticos e consulares estrangeiros, acreditados aqui no período

compreendido entre 1821 e 1825, especialmente da correspondência do Barão

de Marschal com o Príncipe de Metternich (da qual já foi dada à estampa, no

tomo LXXVII da nossa Revista, a parte relativa ao ano de 1821, graças à

gentileza e esforço do nosso prestimoso compatriota, Sr. Dr. Jeronymo de A.

Figueira de Mello), e ainda de informações orais, que pessoalmente colheu de

vários próceres da nossa desagregação política de 1822.

Só isto daria ao tratado de Varnhagen o direito de sair do jazigo de um arquivo

particular para a grande luz da publicidade, afim de figurar na estante de todos

quantos estudam e veneram o glorioso passado da Pátria.91

Entre 1954 e 1955, vieram à luz nas páginas da Revista do IHGB os originais do estudo de

enorme fôlego sobre Varnhagen, do consócio Clado Ribeiro de Lessa (1906-1960), fruto de ampla

pesquisa documental em arquivos.92 Nessa volumosa bio-bibliografia, distribuída nos cinco volumes

seguintes da Revista, o biógrafo procurou explorar as várias faces do visconde de Porto Seguro –

91 Ibidem, p. 15-16. Em relação à publicação desta obra póstuma, Hélio Vianna fez as seguintes considerações: Morto Rio Branco, resolveu Lauro Muller, seu sucessor naquela pasta, encaminhar os originais, cópia e notas da História da Independência ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Êste, presidido pelo Conde de Afonso Celso, decidiu confiar o preparo de sua edição a uma comissão, de que foi relator Basílio de Magalhães. Pôde, assim, pela primeira vez publicá-la no tomo LXXIX, de 1916, vol. 133, de sua Revista, aparecida em 1917. Reeditou-a no vol. 173, de 1938, saído em 1940. Em ambas as edições transcreveram-se as notas do Barão do Rio Branco, acrescentando-se-lhes outras, da referida Comissão. Hélio Vianna, Singularidade de um historiador [A propósito da 7ª edição integral da História Geral do Brasil e da 5ª edição da História da Independência, de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro], RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 264, jul./set. 1964, p. 366. 92 Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (vol. 223), RIHGB, op. cit., p. 82-297; Vida e obra de Varnhagen (continuação do número anterior), RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 224, jul./set. 1954, p. 109-315; Vida e obra de Varnhagen (continuação do número anterior), RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 225, out./dez. 1954, p. 120-293; Vida e obra de Varnhagen (continuação do número anterior), RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 226, jan./mar. 1955, p. 03-168; Vida e obra de Varnhagen (continuação do número anterior), RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 227, abr./jun. 1955, p. 85-236. Versões anteriores de partes do livro foram publicadas pelo autor anteriormente em outros números da Revista. Conferir: Clado Ribeiro de Lessa, Formação de Varnhagen, RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 186, jan./mar. 1945, p. 55-88; Colaboração de Varnhagen no “O Panorama”. Notas Bibliográficas, RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 193, out./dez. 1946, p. 105-09.

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historiador, etnógrafo, critico literário, diplomata, estadista, polemista. Diante do tamanho da empreitada,

assim justificou Clado Ribeiro de Lessa a idéia do livro:

Vem de longe nossa admiração pelo Pai da História do Brasil, a figura impar de

Francisco Adolpho de Varnhagen, Visconde de Pôrto Seguro, culto que só tem

crescido com o correr do tempo e o mais íntimo conhecimento da sua obra.

Trechos da História Geral, lidos quando menino, na Antologia Nacional de

Fausto Barreto e Carlos de Laet, despertaram-nos o desejo de possuir o livro, há

muitos anos esgotado. Foi isso por volta de 1920 ou 21. Conseguimos a custo

um exemplar da 1ª edição, que poucos dias após nos foi roubado. O desgôsto

ocasionado pelo prejuízo teve o dom de fortalecer-nos mais ainda no empenho

de adquirir os principais trabalhos históricos do ilustre sorocabano. (...)

Começada a coleta há mais de vinte e cinco anos, ainda estamos longe de

possuir as obras completas; a leitura atenta, porém, dos impressos que pudemos

reunir, assim como dos que faltam em nossas estantes, mas existem nas da

Biblioteca Nacional, tarefa a que nos entregamos com verdadeira satisfação,

apesar de Varnhagen não ser um artista da pena, patenteou-nos tantos tesouros

de idéias e conceitos originais, entremeados de valiosas informações auto-

biográficas e acentuados traços psicológicos, que se nos foi fixando

irresistivelmente no espírito o propósito de passarmos para o papel as

impressões colhidas. Nasceu assim a idéia do presente livro.93

Segundo Rebeca Gontijo, a partir do século XX, as chamadas biografias modernas

contribuíram para o despertar do interesse por aquilo que seria humano no biografado,

associada a seus feitos literários, intelectuais, científicos e artísticos. Em função

disso, os biógrafos modernos costumavam utilizar instrumentos capazes de

auxiliar na compreensão da interioridade do indivíduo, recorrendo aos

depoimentos daqueles que com ele conviveram; aos estudos sobre o caráter e

sua relação com o meio e a origem (racial ou social); à fisionomia, à análise da

93 Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (vol. 223), RIHGB, op. cit., p. 82-83.

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obra e do contexto. O objetivo é desenvolver formas eficazes para transmitir

aquilo que se tem como a “verdade íntima”.94

Em busca da verdade íntima de Varnhagen, Clado Ribeiro de Lessa fez uso das suas

correspondências ativas e passivas95, textos de sua autoria publicados na Revista do IHGB, comentários e

resenhas acerca de sua obra feitas pelos seus contemporâneos, além de sua vasta produção bibliográfica.

Ao retratar as várias faces do biografado, o autor procurou dar conta de totalidade de sua existência,

transformando essas partes num todo, o autêntico Varnhagen – Pai da História do Brasil, criando as

conexões entre o começo, o meio e fim da vida, atribuindo coerência, justificando ações, antecipando

visões.96

Em síntese, em muitos momentos, ele advogava incondicionalmente em defesa tanto da

obra quanto das posições ideológicas assumidas pelo seu biografado. Para Laura Nogueira Oliveira, da

mesma forma que Varnhagen, o biógrafo

era um ardoroso defensor da monarquia e das idéias de extermínio dos

indígenas brasileiros. Exatamente por esta admiração incondicional de Lessa por

seu biobliografado, encontramos nele uma rica fonte de informações sobre

Varnhagen. Lessa preocupou-se em dar notícias minuciosas de toda a obra

intelectual de Varnhagen.97

Atitude semelhante pode ser percebida, por exemplo, no ensaio bio-bibliográfico do

conterrâneo de Varnhagen, o historiador sorocabano Renato Sêneca Fleury (1895-1980), do IHGSP,

publicado anteriormente em 1952. Para ele, a biografia seria um importante instrumento para se combater

o esquecimento daqueles que contribuíram para a construção da nação: sempre havidas como leituras

edificantes, graças às lições amenas, que proporcionam através dos exemplos de virtude que devem guiar

94 Rebeca Gontijo, O “cruzado da inteligência”: Capistrano de Abreu, memória e biografia, Anos 90, op. cit., p. 56. 95 Depois de publicar Vida e obra de Varnhagen, Clado Ribeiro de Lessa preparou outro erudito trabalho, contendo grande parte da correspondência ativa do historiador-diplomata. Entretanto, não teve a oportunidade de vê-la editada, em 1961, pelo Instituto Nacional do Livro, por ter falecido no ano anterior. A obra de Clado Ribeiro de Lessa foi a primeira a congregar todas as conhecidas correspondências ativas conhecidas de Varnhagen até aquele momento. Conferir: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência Ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1961. 96 Segundo José Honório Rodrigues, Clado Ribeiro de Lessa, de todos os biógrafos, foi o mais apaixonado e certamente o mais engagé deste historiador. José Honório Rodrigues, Varnhagen, mestre da História Geral do Brasil, RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 275, abr./jun. 1967, p. 171. 97 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007, p. 15.

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as gerações.98 A defesa da memória do grande historiador brasileiro “natural de Sorocaba” tornou-se o seu

cavalo de batalha, exigindo a escrita do pequeno livro:

Como infelizmente se dá com muitos brasileiros que passaram à glória, o que

Varnhagen foi e aquilo que fêz é quase completamente ignorado do público, não

obstante ter-nos êsse historiador legado “obra monumental”, tôda consagrada à

pátria, e ser considerado, sem contestação, “o pai da nossa história”, assaz

merecido e dignificante louvor acorde com a profundeza, extensão e alcance de

seus estudos.

Se não é agir em pura perda, se ingenuidade não é pretender alguém cooperar

em prol da elevação dos costumes, e a bem das novas gerações, em proveito da

pátria e da humanidade, pela divulgação dos exemplos de valor daqueles que

passaram à posteridade aurelados de nobre e justa fama, cremos que nosso

trabalho não será voto em vão.99

Quando da publicação da 7ª edição integral da Historia geral do Brazil, incluindo a 5ª

edição da História da Independência do Brasil, comprimida em três volumes pela Companhia

Melhoramentos de São Paulo, em fins de 1962, o jornalista e historiador mineiro Hélio Vianna (1908-1972)

escreveu para o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, uma série de artigos bibliográficos sobre o

visconde de Porto Seguro. Este conjunto de textos foi revisto e unificado pelo autor e inseridos na Revista

do IHGB, em 1964, com o titulo Singularidade de um historiador.100

Fazendo menção aos trabalhos de Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia e Clado Ribeiro

de Lessa, Hélio Vianna teceu elogios e análises acerca das singularidades de Varnhagen e sua obra

principal, considerada a nossa maior e melhor História relativa a todo o período colonial, ao Brasil-Reino e

ao período da Independência, até seu reconhecimento por Portugal, em 1825.101 Sem adentrar diretamente

para os meandros da biografia, o autor procurou destacar as marcas pessoais curiosas de Varnhagen

presentes na Historia geral do Brazil e História da Independência do Brasil, pela primeira vez reunidas.

98 Renato Sêneca Fleury, Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, “Paulista de Sorocaba”. Ensaio Bibliográfico (...), São Paulo, Edições Melhoramentos, 1952, p. 03. 99 Ibidem, ibidem. 100 Hélio Vianna, Singularidade de um historiador [A propósito da 7ª edição integral da História Geral do Brasil e da 5ª edição da História da Independência, de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro], RIHGB, op. cit., p. 354.-372 101 Ibidem, p. 354.

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Destacar essas singularidades, na sua opinião, em nada diminuiria o seu extraordinário mérito como

perene monumento de nossas letras históricas.102

Algumas das singularidades apontadas por Hélio Vianna refletiam, entre outros temas,

sobre as paixões e posicionamentos ideológicos de Varnhagen, sempre acompanhadas com as citações

extraídas de seus livros:

Escritor notòriamente apaixonado, que não perdia ocasião de tomar partido, em

quaisquer polêmicas, antigas e modernas, à página 111 vemo-lo defender

Fernão de Magalhães, o primeiro a circunavegar, do labéu de traidor a seu rei.103

Apesar de todo o seu realismo, não era o historiador dos que se negam a certo

sentimentalismo bem brasileiro: eis por que não deixou de fazer piegas

considerações sôbre a prematura morte, em naufrágio, de seu predileto Pero

Lopes de Sousa, à pág. 208; chegou ao extremo de aludir à “alma pia” do

desbocado Pero do Campo Tourinho, à pág. 219; e dolorosamente tratou do

trágico fim de outro donatário, Francisco Pereira Coutinho, às págs. 248 e 253,

na última assegurando que os habitantes da Bahia em suas orações ainda se

lembravam dos “primeiros mártires da civilização” em sua terra.104

O historiador preconizava, em suma, o emprêgo da fôrça, da guerra e da

escravidão para converter e civilizar as tribos indígenas em seu tempo ainda

existentes no Brasil. Contra isso se rebelou João Francisco Lisbôa, embora por

outros motivos muito elogiasse a referida obra – o que deu motivo a

movimentada polêmica entre ambos.105

O nome do visconde de Porto Seguro voltou a ocupar as páginas de Revista do IHGB em

1966, ano da comemoração do sesquicentenário de seu nascimento, com a realização das conferências do

Curso Varnhagen, ocorridas em 30 de novembro, 07 e 14 de dezembro.106 Na ocasião foram convidados,

dentre os sócios, nomes renomados, à época, da história e literatura como o professor, historiador e

102 Ibidem, p. 355. 103 Ibidem, ibidem. 104 Ibidem, p. 356. 105 Ibidem, p. 358. 106 Os textos originais das conferências foram publicados na RIHGB no ano seguinte, no volume 275, junto com a transcrição do artigo Sesquicentenário de Varnhagen, de autoria de Hélio Vianna, extraído do Suplemento Literário do Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, a 29 de maio de 1966.

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biógrafo Américo Jacobina Lacombe (1909-1993), futuro presidente da instituição; o escritor e catedrático

de Literatura Portuguesa Thiers Martins Moreira (1904-1970); e o historiador e ensaísta José Honório

Rodrigues (1913-1987), pioneiro nas pesquisas sobre história da historiografia no Brasil.

Em sua conferência, Américo Jacobina Lacombe não deixou de registrar a importância da

contribuição de Clado Ribeiro de Lessa para as pesquisas em torno da vida e obra de Varnhagen. Os

resultados, destacou o convidado, de suas labutas honram as páginas de nossa revista. Identificou-se por

tal modo com o biografado, que transpôs para o seu trabalho tôda a combatividade, e, quem sabe,

bastante do temperamento do terrível e ardoroso polemista.107

O mote dos argumentos apresentados por Américo Jacobina Lacombe ficou concentrado

na contextualização das idéias políticas de Varnhagen, profundamente marcadas pelo entusiasmo

monárquico:

Na época em que a obra principal de Varnhagen foi concebida e começou a ser

elaborada, o Brasil entrava numa fase de ardente entusiasmo monárquico. Dava-

se fenômeno semelhante ao da Inglaterra no final do século XVIII, ou na França

após a Revolução. O país via no regime monárquico a garantia da ordem e da

estabilidade, em risco durante o período agitado que procedera a aclamação do

jovem imperador.108

O escritor Thiers Martins Moreira consagrou sua conferência às contribuições de

Varnhagen para a história de literatura portuguesa e brasileira, sendo este uma referência inconteste para

os estudiosos. Para além da faceta de pai da nossa história, o historiador lançou-se para as veredas do

literário, não restringindo apenas

ao ordenamento de fontes que seriam capítulo do que se chama história literária,

parte da história maior, onde tem lugar tudo o que a torne mais viva e mais

segura. Varnhagen avança para o literário mesmo: são poemas, são cantigas,

são novelas, que seleciona, imprime e anota, indo, por vezes, ao processo

107 Américo Jacobina Lacombe, As idéias políticas de Varnhagen, RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 275, abr./jun. 1967, p. 136-137. Durante o Curso Como vem sendo escrita a História do Brasil, realizado em 1990, o autor – já na condição de presidente do IHGB, traria mais reflexões acerca do papel do grêmio e de Varnhagen na construção da historiografia brasileira. Conferir: Américo Jacobina Lacombe, A construção da historiografia brasileira: o IHGB e a obra de Varnhagen, RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 370, jan./mar. 1991, p. 245-264. 108 Ibidem, p. 137-138.

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métrico, à análise de um ritmo, o fenômeno de linguagem, à interpretação de

uma imagem, à crítica de uma figura literária.109

Ao adentrar pelo mundo do historiador da literatura portuguesa, Thiers Martins Moreira

enfatizou a influência do grupo de letrados que o cercavam na revista O Panorama na formação de

Varnhagen e na sua paixão pelo Brasil:

Ora, Varnhagen é um homem de O Panorama. Tão môço ainda, foi ali que

travou os primeiros diálogos da inteligência. E como era de seu feitio humano,

nunca perdido, dedicou-se com entusiasmo, colaborando, intervindo nos

negócios da revista, como sua correspondência revela. (...) Para ser intimo da

Revista, havia de ser um dos portadores do seu espírito, onde se refletia a

atmosfera intelectual portuguêsa. Mas Varnhagen se, pelo jôgo da lei, era então

um português, sua alma estava prêsa àquela outra realidade. Essa circunstância

ia marcar a oposição diferente de Varnhagen entre os homens de sua geração

em Portugal. Como os outros encanta-se com o medieval, prefere as xácaras e

os romances, as odes e as éclogas dos pastores latinos e gregos. (...) A Tôrre do

Tombo, a Biblioteca Nacional e da Ajuda, são os lugares das suas repetidas

pesquisas. Porém a terra de onde saíra exerce sôbre êle a sua avassaladora

influência. Ali, entre portuguêses, é um americano. Singular poder o dos seus

primeiros anos sôbre a formação de sua sensibilidade. Se procura os papéis que

pertencem à cultura portuguêsa, procura, simultâneamente, com interesse maior,

por fim dominante, os que interessam à história da terra a que pertencia.110

Encerrando o ciclo de conferências do Curso Varnhagen, José Honório Rodrigues

declarou que o autor da Historia geral do Brazil havia sobrepujado, em sua época, todos os seus

109 Thiers Martins Moreira, Varnhagen e a história da literatura portuguesa e brasileira, RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 275, abr./jun. 1967, p. 155-156. 110 Ibidem, p. 159-160. O contato de Varnhagen com a revista O Panorama e com o historiador romântico português Alexandre Herculano (1810-1877) foi profundamente explorada por Clado Ribeiro de Lessa: Empenhando-se em tarefa análoga à de Herculano, fazendo parte do mesmo grupo literário colaborador do O Panorama, tão possuído pela ânsia de renovação e da curiosidade científica características do movimento romântico, e que conseguiram fazer dêsse periódico riquíssimo repositório de narrativas e estudos acerca do antigo Portugal, é muito natural que entre as manifestações literárias de ambos os estudiosos haja pontos de contato, semelhança de redação, e interpretação de idéias. Quem tiver lido as obras de Herculano e as de Varnhagen em seguida, ou vice-versa, será tomado pela impressão de já ter visto coisa muito parecida, conceitos idênticos expressos mais ou menos nas mesmas palavras. Conferir: Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (continuação do número anterior), RIHGB, op. cit., p. 119.

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contemporâneos como historiador. Varnhagen continuava a ser desde 1878, ano de sua morte, o

historiador incomparável do Brasil, poucas mudanças apareciam nos discursos biográficos e bibliográficos:

Incomparável pela vastidão das pesquisas que realizou e dos fatos que revelou;

incomparável pela perseverança com que caminhou pelos caminhos da história

brasileira, até então nunca palmilhados; incomparável pela obra preliminar que

antecede sua História do Brasil; incomparável por esta mesma História Geral,

que desconhecia antecessores nacionais; incomparável, ainda, pela própria obra

complementar que supre lacunas e amplia o horizonte do conhecimento;

incomparável, finalmente, porque obra parcial, como a História dos Holandeses

no Brasil ou a História da Independência, representa, na sua época, um nôvo

avanço historiográfico e uma nova aquisição da consciência nacional.111

Para o autor de A pesquisa histórica no Brasil, Varnhagen conseguiu fazer de forma

pioneira simultaneamente a história geral e parcial. Ao fazer um balanço dos autores anteriores ou

contemporâneos do visconde de Porto Seguro, o conferencista reiterou a força de sua obra, responsável

pela criação no Brasil da consciência da sua História, no mais largo período da sua formação.112

O modelo de equilíbrio da obra de Varnhagen era tão emblemático e marcante na história

da historiografia, pelas lentes dos biógrafos ligados ao IHGB, que permitiu a José Honório Rodrigues

sentenciar que ninguém poderia graduar-se em História do Brasil, sem ter lido Varnhagen.113 Profundo

conhecedor da história da história do Brasil, sabia que o historiador sorocabano exercia sobre os

historiadores brasileiros grande atração, como foi o caso de Capistrano de Abreu. Fazer este tipo de

prescrição era em maneira de trazer para o âmbito das discussões acadêmicas a necessidade de ser ler os

clássicos.114 O contato com esses autores, segundo sua análise, seria o caminho para se entender a

pergunta de onde viemos e para onde vamos?, dando sentido à trajetória intelectual dos historiadores

brasileiros. Para André de Lemos Freixo, tal atitude trouxe um forte tom político para a História, pois

111 José Honório Rodrigues, Varnhagen, mestre da História Geral do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 170. Em 1949, na sua Teoria da História do Brasil. Introdução Metodológica, o referido autor realizou um sumário de autores, obras, gêneros e vertentes, bem como procedimentos metodológicos e iniciativas de pesquisa, José Honório Rodrigues havia indicado uma periodização para a historiografia brasileira na qual Varnhagen era eleito como o fundador da moderna historiografia nacional. Conferir: José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil. Introdução Metodológica, 5 ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1978, p. 132-133. 112 José Honório Rodrigues, Varnhagen, mestre da História Geral do Brasil, RIHGB, op. cit., p. p. 170-171. 113 Ibidem, ibidem. 114 Segundo José Honório Rodrigues, a historiografia, a história do escrito histórico, da história da história, a história do pensamento histórico, das principais tendências dos historiadores é uma disciplina universitária adotada em toda parte. Pôr em contato os jovens estudantes com seus predecessores, revelar as direções principais, é uma forma prática de ensinar a história e de, tanto quanto possível, ensinar a escrever história. José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil. Introdução Metodológica, op. cit., p. 455.

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Para além do passado nacional, o que estava em jogo era a produção de um

sentido para o futuro destes profissionais – que refletiam acerca dos rumos

nacionais –, tentando ler na produção historiográfica passada um certo destino

possível, garantindo a coesão social para o seu ofício no presente. José Honório

Rodrigues lançou mão de um modelo de escrita da história que claramente

remonta às preocupações de seus colegas dos Oitocentos, que intenta, pela via

da Historiografia pensar e organizar não apenas os caminhos da nação, como

também, e principalmente, os rumos desta disciplina, organizando e

periodizando seus grandes expoentes.115

A preocupação com uma pedagogia da História, presente em José Honório Rodrigues,

pode ser percebida na dimensão atribuída ao legado de Varnhagen para as futuras gerações e,

principalmente, na sua própria consciência do que estava fazendo. Há em sua conferência, embora como

exercício crítico, um tom celebrativo, que não poderia ser diferente naquele contexto, em relação aos feitos

do mestre da Historia geral do Brazil, o que explicaria a escrita e reescrita de sua biografia e a obsessão de

Capistrano de Abreu, seu grande anotador e crítico.

O autor de Teoria da História do Brasil, de certa forma, instituiu no seu enredo da história

da historiografia nacional, ao estabelecer periodizações e uma linha evolutiva, a marca da leitura de

Varnhagen a partir da ótica de Capistrano de Abreu. Provavelmente este procedimento se justifique pelo

fato de José Honório Rodrigues ter sido um dos maiores estudiosos da obra de Capistrano de Abreu,

inclusive organizando a sua correspondência.116

Interessante pensar como é difícil dissociar um do outro no processo da construção das

análises, dando a impressão que o mesmo espectro de Varnhagen que atormentava o autor de Capítulos

de História Colonial tem perseguido os estudos contemporâneos, tanto que muitos têm feito a leitura da

obra Historia geral do Brazil a partir da edição anotada e comentada por Capistrano de Abreu (e Rodolfo

115 André de Lemos Freixo, José Honório Rodrigues: os clássicos e uma possível identidade historiográfica brasileira (décadas de 1940-80), Anais eletrônicos complementares XIII Encontro de História: Anpuh Rio, Identidades, Seropédica, ANPUH – Seção Rio de Janeiro/UFRRJ, 2008, p. 03. Conferir: Carlos Guilherme Mota, José Honório Rodrigues: a obra inacabada, Estudos Avançados, São Paulo, vol. 02, n. 03, set./dez. 1988, p. 107-110. 116 Conferir: José Honório Rodrigues. Duas obras básicas de Capistrano de Abreu, in: Vida e História, São Paulo, Perspectiva, 1986; José Honório Rodrigues, Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira, RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 221, out./dez. 1953; José Honório Rodrigues (org.), Correspondência de Capistrano de Abreu, 3 vols., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.

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Garcia), desconsiderando a 1ª edição, de 1854/57, e a 2ª edição anotada pelo próprio Varnhagen, de

1877.117

Em relação ao clima das celebrações do sesquicentenário do nascimento de Varnhagen,

já sob o regime militar instaurado desde 1964 no Brasil, Hélio Vianna relembrou as suas contribuições para

a escrita da história do Brasil e os esforços dos seus biógrafos no levantamento de sua grande bibliografia.

Varnhagen, segundo o autor, teria suscitado desde sua morte homenagens, preservando sua memória

intelectual,

Agora, por ocasião do sesquicentenário de seu nascimento, novamente é

lembrado Varnhagen, por sociedades históricas e admiradores de sua obra sem

par em nosso país. À vista de tantas e tão persistentes manifestações de aprêço,

fácil é a conclusão de que não trabalhou em vão o incansável historiador

Francisco Adolfo de Varnhagen, Barão e Visconde de Porto Seguro.118

Varnhagen, por este raciocínio, teria ainda lições a oferecer aos novos historiadores,

reforçando a retórica do exemplo. Talvez ele servisse de símbolo para a propaganda nacionalista

vivenciada pelo Brasil pós-1964, por seu discurso conservador, unitário e centralizador. Ao exaltar o autor

da Historia geral do Brazil, silenciava-se (in)voluntariamente sobre o destino de muitas vozes e textos

discordantes das representações hegemônicas do Brasil. Segundo Michel Foucault, esta celebração do

exemplo seria uma das funções de uma história genealógica tradicional, ou seja, a intensificação do poder.

O exemplo é a lei viva ou ressuscitada; ele permite julgar o presente, submetê-lo

a uma lei mais forte do que ele. O exemplo é, de certo modo, a glória feita lei, é a

lei funcionando no brilho de um nome. É no ajustamento da lei e do brilho a um

nome que o exemplo tem força de – e funciona como – uma espécie de ponto,

de elemento pelos quais o poder vai ficar fortalecido.119

117 Para um exemplo desta marcante presença na historiografia brasileira, conferir: José Carlos Reis, As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, 7 ed. Rio de Janeiro, Ed. da FGV, 2005. A crítica a esta prática pode ser observada em Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit.; Fernando José Amed, Atravessar o oceano para verificar uma vírgula: Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) lido por João Capistrano de Abreu (1853-1857), tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. 118 Hélio Vianna, Sesquicentenário de Varnhagen, RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 275, abr./jun. 1967, p. 200. 119 Michel Foucault, Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976) [Aula de 28 de janeiro de 1976],São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 78.

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Não por acaso, em 1972, foi feito o translado dos restos mortais do imperador D. Pedro I

de Portugal para o Brasil em meio às comemorações de sesquicentenário da Proclamação da

Independência – um tema muito caro ao historiador sorocabano.120 Entre as tantas festividades oficiais do

ano foi inaugurado no dia 05 de setembro o novo prédio do IHGB, situado na região da Lapa, com a

presença do presidente da República, o general Emílio Garrastazu Médici – homenageado com uma placa

de agradecimento no saguão pelos membros do grêmio. Também foi realizado pelo IHGB o Curso

Sesquicentenário da Independência do Brasil.121

Enquanto o corpo do herói da emancipação, tão exaltado nas páginas da Historia geral do

Brazil, era repatriado para as comemorações, os ditos subversivos – os questionadores do governo

ditatorial – eram perseguidos, silenciados ou sentenciados ao exílio.122

Não demoraria muito tempo para que o mesmo solo nacional, em que descansava

finalmente o emancipador do Brasil, tivesse a companhia daquele que havia escrito nas páginas da história

os seus feitos. Em 1978, durante as comemorações do centenário de sua morte, os restos mortais

Varnhagen retornariam para a sua pátria de nascimento e também de opção. Estes ilustres mortos,

apropriados pelo discurso ufanista dos novos donos poder, poderiam respaldar e mascarar uma realidade

marcada pela repressão e censura.

1978 foi o ano da publicação pela Companhia Melhoramentos de São Paulo da edição

comemorativa da Historia geral do Brazil, e da realização da Exposição comemorativa do centenário de

morte – Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro (1816-1878), organizado pela Seção de

Promoções Culturais da Biblioteca Nacional. Nesta exposição, uma série de documentos referentes a sua

vida e obra foi apresentada ao público como forma de saudar o primeiro centenário de sua ausência.

Varnhagen emergia como um historiador-monumento, fragmentos de sua existência eram elencados numa

ordem discursiva constituindo um homem-arquivo, uma vez que seus rastros foram ao longo de um século

120 Para saber sobre as comemorações do sesquicentenário da Independência e seus usos políticos, conferir: Iara Lis Schiavinatto, A praça pública e a liturgia política, Cadernos Cedes, Campinas, vol. 22, n. 58, dez. 2002, p. 92. 121 Não se pode perder de vista a articulação da agremiação com o Estado desde sua fundação no Império. Essa característica permaneceu após a proclamação da república. Segundo Hugo Hruby, diante da nova realidade política, o IHGB instituiu para si e para o novo regime que era uma instituição cientifico-cultural, e por isso mesmo neutra em relação às disputas de natureza política, e necessária para o oferecimento de informações para os assuntos de Estado: as solicitações do poder público permitiam uma maior visibilidade do Instituto na esfera federal, pois informações sobre o IHGB passaram a constar nos relatórios do governo. Hugo Hruby, Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo da grande obra: a História do Brasil no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912), dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p. 47. Conferir: Lucia Maria Paschoal Guimarães, Da escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938), op. cit. 122 No ano de 1972, no âmbito das universidades, foi realizado um debate acerca dos significados da independência do Brasil, criticando visões tradicionais sobre o evento na história política do país. As contribuições dos historiadores participantes no evento A independência do Brasil: um debate foram organizadas e publicadas por Carlos Guilherme Mota na coletânea 1822 Dimensões, 2 ed., São Paulo, Ed. Perspectiva, 1886 [1 ed. 1972].

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buscados pelos seus seguidores, biógrafos e estudiosos – sempre com o desejo de completar o mosaico

de múltiplas peças do seu retrato, perfil, numa ilusão biográfica.123

Livros, correspondências, edições críticas, traduções, introduções e notas, condecorações

entre outros documentos arrolados, a partir das escolhas e interesses daquele momento, faziam aparecer

o historiador-obra-monumento da nação. Varnhagen, homenageado em retratos, salas, ruas, praças,

biografias e exposições, incorporava valores, idéias e projetos de história, memória e nação, definidos pelo

IHGB. No prefácio do Catálogo da Exposição, José Honório Rodrigues reafirmava esta dimensão:

A soma dos fatos novos revelados, a extraordinária capacidade de pesquisa e de

trabalho, a edição cuidada de textos raros, a variedade de ensaios preparatórios,

e, enfim, a História geral do Brasil, a primeira história do Brasil colonial, feita de

acordo com as normas da metodologia do seu tempo, dão ao historiador o

galardão que todos lhe reconhecem.124

A Revista do IHGB, um dos lugares de memória privilegiado da sua atividade intelectual e

dos textos biográficos sobre sua vida e obra, para celebrá-lo registrou nas atas de suas sessões dos

meses de julho e agosto a realização das conferências de renomados sócios em sua homenagem. Entre

os convidados para as sessões comemorativas do centenário da morte do visconde de Porto Seguro

estavam o desembargador José Gomes Bezerra Câmara (1915-2001), com a palestra Varnhagen, o

homem e o historiador; o historiador José Honório Rodrigues, com a conferência Varnhagen, Visconde de

Porto Seguro;125 o engenheiro-arquiteto e catedrático Paulo Ferreira Santos (1904-1988), com a exposição

Varnhagen crítico de arte; e o historiador e presidente do grêmio, Pedro Calmon (1902-1985), com a

apresentação Varnhagen e sua obra.126

Na oportunidade, o IHGB contou também com o discurso de Renato Sêneca Fleury, sócio

do IHGSP e um dos fundadores do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Sorocaba, informando

123 Conferir: Pierre Bourdieu, A ilusão biográfica, in: Marieta de Moraes Ferreira e Janaina Amado (orgs.), Usos e abusos da história oral, op. cit., p. 181-191. 124 José Honório Rodrigues, Prefácio, in: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, 1816-1878. Catálogo da exposição comemorativa do centenário de morte, organizado pela Seção de Promoções Culturais, Rio de Janeiro, 1978, p. 07. 125 Conferência publicada posteriormente em: José Honório Rodrigues, Varnhagen. O primeiro mestre da historiografia brasileira (1816-1878), Revista de Historia de América, México, n. 88, jul./dez. 1979, p. 93-122. 126 Atas das Sessões do IHGB em 1978, RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 321, out./dez. 1978, p. 313-319. Os textos originais das conferências seriam, segundo a secretaria do Instituto, publicados posteriormente nas páginas da Revista do IHGB.

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das homenagens prestadas a Varnhagen em sua terra natal, inclusive a

inauguração, a 29 de junho último, dia do centenário da morte, do monumento

em cuja base foram para sempre encerradas as cinzas do autor da História Geral

do Brasil, vindas de Santiago, cerimônia que contou com a presença do

Embaixador Hector Bravo, representante diplomático do Chile, que pronunciou

expressiva oração, enaltecendo aquele que foi o mais completo e autorizado

historiador do Brasil. Lembrou o Sr. Renato Sêneca Fleury ter sido orador no

Gabinete de Leitura Sorocabano a 17 de fevereiro de 1916 na comemoração do

centenário de Varnhagen e a 29 de junho de 1928, quando foi comemorado o

cinqüentenário de sua morte. Assim, há mais de sessenta anos, vem

contribuindo para a exaltação da memória de nosso grande historiador, seu

conterrâneo de Sorocaba, onde afinal seus restos vieram repousar.127

No discurso de Renato Sêneca Fleury, percebe-se o desfecho de uma história

interrompida quando da morte de Varnhagen, ou seja, a sua vontade manifesta em testamento de ser

enterrado na sua terra natal. A não realização desse último pedido, uma vez que foi enterrado no Chile

depois de transladado de Viena, segundo os biógrafos, era digno de pesar. Oliveira Lima, por exemplo, em

seu discurso na Academia Brasileira de Letras havia reivindicado o retorno dos seus restos mortais para

receber as devidas honras no Brasil.128

Em 1978, como foi observado, os despojos de Varnhagen finalmente retornavam do longo

exílio para o lugar de seu nascimento, a sua origem. As comemorações em Sorocaba, segundo o seu

conterrâneo, tiveram seu ponto culminante com a vinda da urna, que foi depositada no pedestal do

monumento feito em sua memória,

cujo busto de bronze foi modelado pelo escultor Ernesto Biancalana (...) baseado

no retrato executado pelo pintor espanhol Madrazzo, em 1852, contando o futuro

Visconde com Grandeza, então a idade de 36 anos. Esse monumento, algo

modesto, está em praça pública da cidade natal daquele que foi estudante

militar, com batismo de fogo em Lisboa a favor de Pedro, ex-imperador do Brasil,

127 Ata da Sessão 2.212º Sessão em 9 de agosto de 1978, 3ª Conferência comemorativa do centenário da morte de Francisco Adolfo Varnhagen – Varnhagen critico de arte – Paulo Ferreira Santos, RIHGB, op. cit., p. 315. 128 Com base nos documentos consultados no IHGB, a proposta de repatriação dos restos mortais de Varnhagen remontava ao ano de 1921, quando o então presidente conde de Afonso Celso Figueiredo Jr. (1860-1938) encaminhou carta ao Dr. Epitácio Pessoa – presidente da República – apresentando proposta do IHGB para a repatriação dos restos mortais de Manuel de Araújo Porto Alegre e Francisco Adolfo de Varnhagen – IHGB, lata 341, pasta 36.

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historiador desde a mocidade, polígrafo, crítico de arte, poliglota, polemista e, em

cargo oficial, diplomata na Europa e na América do Sul.129

Sorocaba e o Brasil, por este raciocínio, tinham finalmente homenageado seu ilustre

historiador. Haveria, além dos discursos, das exposições e biografias, a sepultura-monumento para lembrar

o morto, perpetuando sua memória e do seu lugar de origem.130 Era o final perfeito da cronologia

biográfica, publicada por Renato Sêneca Fleury para as comemorações do primeiro centenário da morte do

historiador natural de Sorocaba.131

1978 era o ano o centenário da morte do visconde de Porto Seguro, mas também do

fechamento de um ciclo de recordações e início de outro, dessa vez marcado pelo contexto da

profissionalização da História – mesmo sob a presença da ditadura militar em franco processo de

desestabilização e questionamentos – com o fortalecimento dos programas de pós-graduação no país e

desenvolvimento das pesquisas acerca da historiografia brasileira.132

* * *

Biógrafos do perfil de Clado Ribeiro de Lessa e Renato Sêneca Fleury dedicaram anos de

suas vidas em busca de fragmentos deixados pelo morto como se fossem verdadeiras relíquias. Queriam

garimpar a verdade, a essência do Varnhagen e ao fazê-lo inventaram cada um o seu Varnhagen, crendo

que era o verdadeiro, o real. Eles desfizeram o novelo da sua existência, esticando a linha da vida do

nascimento à morte, ou melhor, à imortalidade. Com suas cronologias procuraram cristalizar verdades

sobre a sua trajetória, feito a partir da costura de documentos, tentando forjar um todo, um conjunto

129 Anexo – Discurso do Sr. Renato Sêneca Fleury, proferido em sessão do IHGB a 9 de agosto de 1978, comemorativa do centenário da morte de Varnhagen, Atas das Sessões do IHGB em 1978, RIHGB, op. cit., p. 316-317. Para conhecer os trâmites do traslado dos restos mortais de Varnhagen do Chile para o Brasil, conferir: Documentos relativos ao traslado dos restos mortais de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, de Santiago do Chile para Sorocaba (SP), enviados pelo secretário da Educação de Sorocaba Dr. Luiz Almeida Marins Filho (acompanha resposta do Dr. Pedro Calmon) – IHGB, lata 633, pasta 33, 05 docs. 130 Segundo Philipe Ariès, a cidade dos mortos e os monumentos em sua homenagem é o inverso da sociedade dos vivos, ou, mais propriamente que o inverso, a sua imagem intemporal. É que os mortos passaram o momento da mudança e os seus monumentos são os sinais visíveis da perenidade da cidade. Assim, o cemitério reconquistou na cidade um lugar, ao mesmo tempo físico e moral, que tinha perdido no início da Idade Média mas que tinha ocupado durante a Antiguidade. Philipe Áries, Sobre a história da morte no Ocidente desde a Idade Média, Lisboa, Teorema, 1989, p. 54. 131 Renato Sêneca Fleury (Natural de Sorocaba), Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro (“Natural de Sorocaba”). Biobibliografa do “Pai da nossa História”, a mais completa até agora publicada. Rio de Janeiro, Edição do Autor, 1978. 132 Conferir: José Roberto do Amaral Lapa, História e Historiografia: Brasil pós 1964, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.

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coerente e orientado.133 Segundo Regina Abreu, nesse processo de cristalização de verdades da vida do

sujeito estabelece-se

o ano e o local corretos do nascimento, as principais viagens, os encontros

amorosos, os filhos, os lançamentos das principais obras, as mudanças

marcantes no âmbito profissional (valorizando-se principalmente aquelas que

denotam conversões à atividade que consagrou o biografado). As cronologias,

uma vez estabelecidas, passam a ser tomadas como referências. Elas fornecem

a base para outros tipos de relatos que enfocam um período da vida da pessoa

ou uma atividade por ela exercida. É bem verdade que as cronologias estão

sempre sendo construídas e que algumas datas imprecisas ou eventos

duvidosos podem gerar debates que se estendem por anos.134

Discorrer acerca desses construtores de memórias autoriza a indagação da razão de

dedicarem anos a fio a um personagem como o visconde de Porto Seguro? A resposta possível dentre

tantas pode ser a esboçada por Jean Orieux: consagra-se esse tempo porque ele agrada, interessa,

diverte, comove, pelos seus méritos, pelos seus triunfos, pelas suas misérias, pelas suas grandezas e, até,

pelos seus defeitos e, por vezes, pelos seus vícios. É preciso suportar tudo: uma biografia é um

casamento.135

Por algum motivo os fragmentos da existência de Varnhagen instigaram o desejo por sua

história e a posse simbólica de sua memória.136 O dever de ofício como orador do IHGB, para Joaquim

Manuel de Macedo; a vontade de superação, por parte de Capistrano de Abreu; a defesa do lugar de

autoridade no momento da consagração, para Oliveira Lima; a devoção e a paixão de Clado Ribeiro de

Lessa; a necessidade de uma pedagogia da história, para José Honório Rodrigues; o compromisso de uma

nova edição, por Rodolfo Garcia e Hélio Vianna; a origem comum – ser sorocabano –, para Renato Sêneca

Fleury; a tarefa de cuidar do status da agremiação como casa da memória nacional, pelos seus guardiões.

E quem sabe a curiosidade, a vontade de lidar com aquele que nos soa tão distante e tão próximo ao

mesmo tempo.

133 Pierre Bourdieu, A ilusão biográfica, in: Marieta de Moraes Ferreira e Janaina Amado (orgs.), Usos e abusos da história oral, op. cit., p. 184. 134 Regina Abreu, Entre a nação e a alma: quando os mortos são comemorados, Estudos Históricos, op. cit., p. 209-210. 135 Jean Ourieux, A arte do biógrafo, in: Georges Duby et al, História e Nova História, 3 ed. Lisboa, Teorema, s.d., p. 44-45. 136 Uma das relíquias da vida de Varnhagen guardadas pelo IHGB foi a cópia – reprodução fotográfica – do Atestado de batismo de Francisco Adolfo de Varnhagen do livro parochial, ofertado por Dr. Eugênio Egas (1863-1953) – IHGB, lata 396, doc. 05.

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Não cabe aqui discernir o mais verdadeiro nesta empreitada, mas entender a partir do seu

locus, das suas experiências, de seus métodos e escolhas como fabricaram o Varnhagen desejado,

percebendo os fios das tramas biográficas no processo de enquadramento da memória.137 Enfim, como se

propôs neste capítulo, analisar os sujeitos históricos e instituições envolvidos no processo de invenção da

imagem de Varnhagen como pai da história do Brasil.138

Neste exercício de compreensão do enquadramento da memória do visconde de Porto

Seguro precisa-se atentar para aquilo que Rebeca Gontijo chamou de aspectos comumente lembrados: a

repetição.139 Adentrando pelos andaimes da construção dos textos biográficos, percebe-se na insistência

de determinados fatos, traços de personalidade, estilo e realizações na maneira como o autor da Historia

geral do Brazil foi inventado e (re)inventado ao longo do tempo.

Para os fins deste capítulo, elegeram-se quatro aspectos insistentemente lembrados pelos

textos biográficos sobre Varnhagen, sendo o primeiro a sua origem paulista e germânica como

determinante na formação da sua identidade como historiador-bandeirante; o segundo as suas qualidades

como homem-arquivo – responsável pela colossal busca documental sobre a história do Brasil; o terceiro

os juízos acerca das suas escolhas na escrita da Historia geral do Brazil; e, por último, a sua

representação como historiador-obra-monumento da nação por parte dos sócios do IHGB.

Ao fazer este exercício desconstrucionista das representações forjadas sobre Varnhagen

pelos seus biógrafos, procura-se efetuar a articulação do seu corpo com a história – como propôs a história

genealógica foucaultiana. Esta genealogia, amparada na análise da proveniência, precisaria mostrar o

corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo.140

Neste sentido, a leitura dessas biografias aponta para a permanência com variadas

tonalidades do mesmo discurso acerca do corpo-memória de Varnhagen, quase constituindo um sujeito a-

histórico, que sobrevoa pela história da historiografia brasileira como um deus intelectual – um santo

laicizado,141 que pode ser até criticado, mas nunca igualado pelos seus feitos. Seria uma espécie de

formas do mesmo, para usar uma expressão cara a Nilo Odália.142

137 Para Michael Pollak, enquadramento de memória seria uma chave para estudar, de cima para baixo, como as memórias são construídas. Michael Pollak, Memória, esquecimento, silêncio, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 02, n. 03, 1989, p. 10. 138 Conferir: Durval Muniz de Albuquerque Júnior, História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história, op. cit., p. 20. 139 Rebeca Gontijo, O “cruzado da inteligência”: Capistrano de Abreu, memória e biografia, Anos 90, op. cit., p. 57. 140 Michel Foucault, Microfísica do Poder, op. cit., p. 22. 141 Segundo Benito Bisso Schmidt, embora haja uma diferenciação entre biografia e hagiografia, tem sido recorrente nas construções biográficas a confusão entre elas, permitindo a seguinte pergunta: Serão os personagens que nós construímos apenas santos laicizados? Benito Bisso Schmidt, Grafia da vida: reflexões sobre a narrativa biográfica, História Unisinos, op. cit., 140. 142 Conferir: Nilo Odália, As formas do mesmo: Ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Lima, São Paulo, Ed. da UNESP, 1997, p. 11.

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Essa sensação fica nítida a partir do silêncio ou apagamento, por parte destes escritos dos

sócios do IHGB, dos interlocutores e novos intérpretes como os próprios Capistrano de Abreu e Oliveira

Lima ou os historiadores da década de 1930: Gilberto Freyre, Caio Prado Junior e Sérgio Buarque de

Holanda, entre outros nomes. Não havia trocas com estas outras leituras sobre o Brasil para se pensar

Varnhagen, embora José Honório Rodrigues já esboçasse uma proposta de reflexão historiográfica em

outras publicações.

Enfim, pairava nas páginas biográficas um só Varnhagen para um só Brasil e um só

passado desejado pelos intelectuais à volta do IHGB: o grêmio era a casa da memória nacional e

Varnhagen, seu filho ilustre, o patrono da História do Brasil. A sua Historia geral do Brazil, renegada

inicialmente pelo silêncio dos seus colegas do IHGB, transformou-se com o tempo numa espécie de

símbolo, de relíquia, da importância da instituição para a possibilidade de escrita de uma história do Brasil

feita por um brasileiro de Sorocaba. Era a prova documental da verdade que o IHGB instituía para si e para

a memória de Varnhagen.143

1.4. O ethos germânico do historiador-bandeirante__________________________________________

Toda biografia de cunho essencialista e apologética que se preze estabelece como

momento fundante de um indivíduo a sua origem, o seu ethos. Há uma obsessão pela árvore genealógica

e pelo lugar de nascimento, elementos determinantes na configuração da identidade – as marcas – do

sujeito. Definir a família e a nacionalidade, por esta lógica, é tarefa crucial para a constituição do perfil e da

cronologia do biografado. Nesta atividade de enquadramento de memória a geografia e genealogia tornam-

se importantes aliadas.144

Além disso, é preciso inseri-lo na linha do tempo da história da humanidade, constituir o

cenário de seu nascimento – o contexto histórico. Explicar o porque daquele fato à luz dos grandes

143 Para compreender as lutas pelo reconhecimento de sua Historia geral do Brazil dentro do IHGB, conferir: Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de sua Majestade Imperial. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, op. cit., capítulo III. As tensas relações entre IHGB e Varnhagen serão abordadas mais detidamente no capítulo II a partir da análise de sua correspondência ativa. 144 Para uma compreensão sobre a noção de identidade a partir das noções de genealogia e geografia, conferir: Paul Gilroy, Entre campos: nações, culturas e o fascínio da raça, São Paulo, Annablume, 2007, capítulo III.

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movimentos do mundo na política, economia e cultura. O sujeito seria o espelho de sua época, dos dilemas

do seu tempo.145

As biografias de Varnhagen não fugiram a esta regra. Houve por parte dos construtores de

sua memória a preocupação em demarcar sua origem, fazendo a sua genealogia e fixando o seu lugar no

espaço (nacional). Repetidamente a sua identidade germânica e paulista foi lembrada e celebrada,

credencial que lhe garantiu algumas características de personalidade e intelecto inatas. Seus talentos,

comportamentos e maneiras de ver o mundo se explicavam a partir desta marca – ter sangue germânico e

ter nascido em São Paulo, terra dos bandeirantes. Além disso, carregava a força da nobreza, uma herança

de poder e status.

A descendência germânica paterna e portuguesa materna – dos descobridores e

colonizadores do Brasil, somada aos atributos da sina de nascer em São Paulo, logo um desbravador por

natureza, segundo seus biógrafos, definiu o destino do pequeno fundidor Varnhagen. Falar de sua história

de vida era recuperar essas credenciais identitárias. Significa celebrar um modelo de brasileiro desejado –

masculino, branco, cristão (católico) e europeu. Ele incorporaria no corpo e na alma as marcas da

civilização. Era uma forma de mostrar quais eram as raízes históricas a serem valorizadas.146

Em seu necrológio na Sessão Magna Aniversária de 1878, Joaquim Manuel de Macedo

registrou com muita precisão a sua origem germânica e paulista, destacando que o ferro da fundição de

Ipanema havia moldado sua personalidade rígida:

Nascera em S. João de Ipanema, na provincia de S. Paulo, sendo filho do então

tenente-coronel Frederico Luiz Guilherme de Varnhagen, administrador da

fabrica de ferro Ipanema; de nobre família allemã, e nascido e embalado em

ninho de ferro, teve em sua natureza a combinação harmônica da constancia

inflexivel do germanico no culto de uma idéa com dureza fortíssima do metal do

seu berço.147

145 Para uma crítica da relação autor-texto-contexto na história intelectual, conferir: Celia Maria Marinho de Azevedo, A nova história intelectual de Dominick LaCapra e noção de raça, in: Margareth Rago e Renato Aloizio de Oliveira Gimenes (orgs.), Narrar o passado, repensar a história, op. cit. 146 Embora o IHGB tivesse a presença de uma forte corrente romântica indianista nos primeiros tempos, deve-se destacar que o tipo de índio cultuado tinha características européias, seguindo seus ideais de bravura e civilização. Conferir: Lilia Moritz Schwarcz, Estado sem nação: a criação de uma memória oficial no Brasil do Segundo Reinado, in: Adauto Novaes (org.), A crise do Estado-nação, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p. 349-393. 147 Joaquim Manoel de Macedo (orador), Discurso na Sessão Magna Anniversaria do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro no dia 15 de dezembro de 1878, RIHGB, op. cit., p. 483.

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A nobreza de berço, segundo o orador, justificaria as condecorações e títulos

nobiliárquicos recebidos em vida, bem como o fato de ser astro esclarecedor da historia da patria, o mais

digno sucessor de Rocha Pitta, e muito mais preciso do que este em factos e datas, graças ao tempo, ás

circumstancias e ás condições em que viveu.148

A esta nobre origem, Capistrano de Abreu acrescentou a herança bandeirante, digna dos

paulistas, habituados ao desconhecido, às expedições em busca de tesouros – no seu caso, documentos

para a construção do arquivo da nação.

Filho da nobre Província de São Paulo, iluminava-lhe a fronte a flama sombria de

Anhangüera. O desconhecido atraía-o. Os problemas não solvidos o

apaixonavam. Códices corroídos pelo tempo; livros que jaziam esquecidos ou

extraviados; arquivos marcados com o selo da confusão, tudo viu, tudo

examinou. Pelo terreno fugidio das dúvidas e das incertezas caminhava bravo e

sereno, destemido bandeirante à busca da mina de ouro da verdade.149

Por amor à verdade, o destemido bandeirante – abrasado pelo fogo da conquista, lembrou

Capistrano de Abreu, percorreu a província de nascimento em peregrinação sentimental e intelectual,

cumprindo o destino do historiador que investiga cartórios, compulsa as bibliotecas dos mosteiros, examina

os padrões de outras eras, colhe glossários e tradições, e nas localidades comenta e verifica os dizeres de

Taques e Frei Gaspar da Madre Deus.150

Segundo o historiador cearense, as suas expedições à caça de documentos não se

limitaram às fronteiras do Império, virando uma missão patriótica

Voltando a Portugal, nomeado adido à nossa legação, não arrefece um só

instante. Na Revista do Instituto pululam as memórias que envia, como os

documentos que oferece, e quase não há sessão em que seu nome não

apareça. De frente com essas ocupações, que satisfariam outros menos

ambiciosos, ou fatigariam outros menos diligentes, leva os encargos de editor

(...)

148 Ibidem, ibidem. 149 João Capistrano de Abreu, Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos (Crítica e História), op. cit., p. 82-83. 150 Ibidem, p. 84.

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Em Madrid, para onde mais tarde foi removido, possui-o o mesmo espírito febril,

e a idéia, que se tornara fixa, da história pátria. Em Simancas, como em Sevilha,

na Biblioteca Columbiana, como na do Escorial, colige a messe opulenta que

ninguém ainda teve tão completa, e, quando enfim saiu à luz a sua História,

podia gabar-se de que um só fato não existia que não tivesse pessoalmente

examinado, ao passo que os fatos materiais por ele descobertos, ou retificados,

igualavam, se não excediam, aos que todos os seus predecessores tinham

aduzido.151

Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Oliveira Lima aprofundou as

descrições do ethos germânico e paulista do visconde de Porto Seguro, dando relevo para a figura de seu

pai, tenente-coronel Frederico Luiz Guilherme de Varnhagen (1783-1842), mineralogista que restaurou e

administrou a conhecida fabrica de ferro de Ipanema e que com Eschwege, Debret, os Taunay e tantos

outros, fazia parte do grupo de europeos do Norte, ao qual o Brazil deveu um inestimável concurso

intelectual nos começos da sua existencia de nação independente.152

Para Oliveria Lima, Varnhagen seria um precioso exemplar para a comprovação da teoria

de Hippolyte Taine (1828-1893) sobre a influência da raça, do meio e do momento na vida do homem, uma

vez que

Da raça germanica recebeu elle em legado o amor ao trabalho aturado, a

paciência na elaboração de uma obra, o cuidado na exactidão dos resultados,

que a sua educação de engenheiro só podia ter fortalecido. Vindo para Portugal

aos oito annos, criou-se entre aquella geração do Panorama, ávida de

regeneração mental, seduzida pela evocação do longiquo passado nacional,

dominada pela grande corrente de curiosidade historica de que fallava Thierry.

Os primeiros ensaios de Varnhagen, depois das Refflexoens criticas encontrão-

se precisamente no mencionado órgão da propaganda romantica – tomando esta

expressão no seu sentido mais largo e mais levantado – collaborado por

Herculano, Oliveira Marreca, Rebello da Silva e tantos illustres escriptores do

tempo. O meio e o momento, portanto, não podião ser mais propicios ao

desabrochar dessa vocação de historiador, cuja corolla ainda desmaiada se

151 Ibidem, p. 84. 152 Manoel de Oliveira Lima. Francisco Adolpho Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, RIHGSP, op. cit., p. 67.

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volvia, sequiosa de luz e de calor que lhe avivassem as cores, para o sol

magnífico que doura cada dia o píncaro do monte Paschoal.153

Neste parágrafo, Oliveira Lima conseguia sintetizar os três aspectos básicos para

construção do perfil do seu biografado – a origem, o lugar e o contexto. Para ele, a viagem para Europa e a

convivência com a sua efervescência cultural e política contribuíram para sua formação intelectual. A sua

opção pela história estaria na confluência da herança germânica e paulista com o amor à terra natal e a

atmosfera cultural de Portugal na qual se formou.

Em sua Vida e obra de Varnhagen, Clado Ribeiro de Lessa também fez referência às

marcas desta origem germânica e paulista do visconde de Porto Seguro, enfatizando o papel de sua mãe

no despertar do amor pelo Brasil:

Portuguêsa de nascimento, tendo ou não antepassados no Novo-Mundo, a

verdade é que D. Maria Flávia de Sá Magalhães soube transmitir a seu ilustre

filho, além do culto das virtudes a que foi sempre fiel como homem e como

funcionário público, um grande e nunca desmentido amor pela terra de

nascimento e pátria de opção, pois, como teremos adiante oportunidade de ver,

Varnhagen teve de lutar pelo reconhecimento de sua cidadania brasileira. Tendo-

a conquistado com esforços e sacrifícios, serviu-a com zêlo e superior

inteligência durante tôda a vida. Da raça paterna herdou Francisco Adolfo a

inclinação para os estudos aturados e originais, o gôsto pelo apuro das minúcias,

e a tenacidade e orgulho que sempre revelou em defender, contra tudo e contra

todos, suas convicções, filhas dos resultados a que chegava em virtude de

pesquisas próprias, conduzidas com o máximo rigor de exegese.154

A mistura dos sangues germânico e bandeirante, que corriam pelas veias de Varnhagen,

segundo Oliveria Lima, explicaria seu temperamento duro e polêmico diante das questões de seu tempo.

Essa identidade, por exemplo, não poderia gerar

sentimentalismo sobre o que assentou em boa parte a corrente indianista da

nossa literatura. E como teve sempre a coragem das suas opiniões, mesmo se

153 Ibidem, p. 67. 154 Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (vol. 223), RIHGB, op. cit., p. 92.

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apodadas de pouco humanitarias, sustentou-as com convicção quando vinha a

proposito, e com vivacidade ao travar a tal respeito com o illustre prosador

maranhense João Francisco Lisboa a polemica de que ficou por memória o

folheto – Os Indios Bravos e o Sr. Lisboa.155

Justamente essa rigidez de temperamento germânico foi a que lhe rendeu, além das

qualidades de disciplina e obstinação, a pecha de orgulhoso entre os desafetos dentro e fora do IHGB,156

como observou o consócio Joaquim Manuel de Macedo:

Escrevendo sobre a historia, elle não procurava discutir nem averiguar mais:

dictava as sentenças; em sua consciência de mestre, que realmente era, julgava

sem appelação: era Pythagoras magister dixit. Recebeu castigo na revolta de

outros escriptores de alto merecimento, que em honra da philosophia da historia

quebraram lanças com elle, ferindo-o no seu orgulho de historiador.

Cada homem tem suas fraquezas: Achiles foi morto vulnerável só pelo

calcanhar; Hercules teve a tunica de Dejanira, que é a imagem do dominio do

mais forte pela paixão, que o enfraquece e abate; Varnhagen peccou pelo

orgulho; mas no seu tempo não houve, quem na seara imensa que elle immenso

cultivou tivesse mais escusas para o seu peccado de orgulho. Que outros mais

pequem assim, e a historia da patria fulgurará esplendida”.157

Em artigo de 1882, Capistrano de Abreu esboçou imagem semelhante da personalidade

do autor de Historia geral do Brazil, lembrando que este não tolerava a contradição. Era implacável com

seus contemporâneos, a valentia do ethos bandeirante se fazia presente nos seus juízos, e raramente foi,

não diremos benévolo, mas justo. Além disso,

Com os que o precederam, Varnhagen não raro é injusto. As Memórias do Rio

de Janeiro de monsenhor Pizarro, considera “uma obra confusa e até às vezes 155 Manoel de Oliveira Lima. Francisco Adolpho Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, RIHGSP, op. cit., p. 71. 156 A dureza do temperamento de Varnhagen seria retomada também por Basílio de Magalhães, em 1928: conforme acertadamente ainda pondera Oliveira Lima, - “o nosso historiador tinha qualidades negativas em diplomacia: era um impulsivo com rompantes de colerico e que se deixava instigar por considerações de equidade e de pundonor. Para elle, a diplomacia não era arte suprema de engulir desfeitas e disfarçar desaires. Achava-a compativel com a franqueza e a honestidade. Repugnava-lhe mentir, mesmo por conta de outros, e o que era justo, não via muito bem porque devesse occultal-o”. Basílio de Magalhães. Discurso – Sessão Commemorativa do 50º Anniversario do Falecimento de Francisco Adolpho de Varnhagen (Visconde de Porto Seguro) – realizada em 29 de junho de 1918, RIHGB, op. cit., p. 909. 157 Joaquim Manoel de Macedo (orador), Discurso na Sessão Magna Anniversaria do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro no dia 15 de dezembro de 1878, RIHGB, op. cit., p. 488.

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obtusa”, não se lembrando de que muitos fatos, de que se aproveitou, bebeu-os

aí.

No livro de Southey ele nota “falta de nexo e cansada repetição de insonsas

descrições”, e acha-o “mais do que uma história com a competente concisão e

unidade, memórias cronológicas coligidas de muitos autores e vários

manuscritos”. (...)

Estas e muitas outras feições do seu temperamento o tornam geralmente

antipático. É preciso tê-lo lido não uma, porém repetidas vezes, - lê-lo só uma é

o mesmo que lê-lo nenhuma -, é preciso descobrir suas qualidades por baixo de

seus defeitos, familiarizar-se com suas idéias, para compreender-lhes o alcance,

ter feito parcialmente o trabalho, de que ele apresenta a suma, comparado com

os que precederam e com os que se lhe seguiram, pesar a soma dos fatos que

incorporou definitivamente à nossa história, para tê-lo na devida consideração,

não chocar-se com seus modos rudes e afogar os desgostos passageiros numa

admiração calma, franca e de raízes bem profundas.158

Descrições próximas do temperamento do visconde de Porto Seguro ocuparam as páginas

do discurso de Pedro Lessa, em 1916. Ao selecionar trechos de seus escritos, procurou dar uma noção

nítida e clara do historiador, espelhando as virtudes e defeitos de espírito: o constante amor á verdade e á

justiça, a áspera franqueza, uma evidente ingenuidade e um temperamento violento, de envolta com um

escrupuloso cuidado, e não raro meticulosa minuciosidade, no expor os factos e no manifestar os seus

juizos.159

Em artigo de 1967, corroborando com as afirmações de Pedro Lessa, Hélio Vianna

definiria Varnhagen a partir de sua origem germânica como vaidoso, orgulhoso e teimoso, procurando

polêmicas e não temendo o risco das opiniões arrojadas, não era homem de fácil trato, conquanto educado

e terno, e até cozinheiro amador, na intimidade.160

No discurso de comemoração do cinqüentenário de sua morte, no IHGB, Basílio de

Magalhães, influenciado pela ideologia da paulistanidade da elite intelectual paulista do IHGSP, não fugiu

158 João Capistrano de Abreu, Sobre o Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos (Crítica e História), op. cit., p. 144; 145; 146. 159 Pedro Lessa, (sem título – elogio a Francisco Adolfo de Varnhagen, pronunciado na Sessão Solenne Especial, em 17 de fevereiro de 1916, commemorativa do centenário do nascimento do Visconde de Porto Seguro), RIHGB, op. cit., p. 620-621. 160 Helio Vianna, Sesquicentenário de Varnhagen, RIHGB, op. cit., p. 198.

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ao relato da origem de Varnhagen feito pelos biógrafos precedentes e reforçou a figura do bandeirante.161

O conferencista lembrou da origem paulista do visconde de Porto Seguro, nascido no rincão de Sorocaba

seis annos antes de conquistar a nossa pátria a soberania politica. Assim como Oliveria Lima, afirmou que

o sangue germânico tinha lhe incrustado no espírito as mais peregrinas virtudes da vigorosa raça ancestral,

entre as quaes sobreexcelle a do aturado esforço mental, pois o allemão, – conforme um paradoxo do

nosso insigne Joaquim Caetano da Silva – “estuda 28 horas por dia”. Do lado materno, a herança

portuguesa, formadora do povo bandeirante, fez-lhe desabrochar no coração um profundo e luminoso amor

pela “patria de nascimento e de adopção”.162

Por conta dessa descendência dos bandeirantes paulistas, segundo as biografias,

Varnhagen era um viajante por excelência,163 tendo desbravado do litoral ao interior da sua pátria. Suas

expedições, ao que permite deduzir desses discursos, pretendia integrar as partes do Brasil que os seus

antepassados haviam conquistado, ampliando as fronteiras da colônia, planta de que se originou a nova

nação. Instituía-se, dessa forma, a imagem, repetidas vezes dita, do historiador-bandeirante. A descrição

das suas incursões pelo vasto território brasileiro feitas por Basílio de Magalhães, repetindo o necrológio de

Capistrano de Abreu, enquadrava essa memória de desbravador do Brasil do século XIX.164

Na biografia de Renato Sêneca Fleury, o desejo de esmiuçar a origem de Varnhagen

superou as fronteiras da época do seu nascimento. Além de mencionar o seu ethos germânico e paulista, o

biógrafo apresentou sua árvore genealógica, que tinha raízes no século XV, às vésperas do descobrimento

do Brasil:

A genealogia dos Varnhagen pode ser conhecida desde fins do século XV. O

antigo nome da família era Von Ense, diz F. Sommer na Revista do Instituto

Heráldico Genealógico (S. Paulo, ano IV, nº 7), sendo que o nome Varnhagen

ter-se-ia constituído pela junção dos dois nomes Von Ense e Varnhagen, o

161 Para Luis Fernando Cerri, a paulistanidade foi a ideologia forjada pela oligarquia paulista que consistia na criação de uma identidade de ordem regional, valorizando a condição de pertencente ao Estado (numa operação de homogeneização, nível das idéias, de seus habitantes), ao mesmo tempo em que institui uma série de valores e características como próprias da condição de paulista e, para sacramentar essa construção, oferece uma explicação para essa situação por meio do recurso à História Regional, que aponta o bandeirante como ancestral, civilizador, patriarca do paulista. Luis Fernando Cerri, Nun Ducor, Duco: a ideologia da Paulistanidade e a escola, Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 18, n. 36, 1998, p. 115-136. Conferir: Kátia Maria Abud, O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições: a construção de um símbolo paulista, o bandeirante, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1986; Luis Fernando Cerri, A ideologia da Paulistanidade, São Paulo, Cone Sul, 1997. 162 Basílio de Magalhães. Discurso – Sessão Commemorativa do 50º Anniversario do Falecimento de Francisco Adolpho de Varnhagen (Visconde de Porto Seguro) – realizada em 29 de junho de 1918, RIHGB, op. cit., p. 896. 163 A metáfora do historiador-viajante é desenvolvida por Temístocles Américo Cezar, em Varnhagen in moviment: a brief anthology of na existence, Topoio – Revista de História, Rio de Janeiro, vol. 03, 2007, p. 01-27. 164 Basílio de Magalhães. Discurso – Sessão Commemorativa do 50º Anniversario do Falecimento de Francisco Adolpho de Varnhagen (Visconde de Porto Seguro) – realizada em 29 de junho de 1918, RIHGB, op. cit., p. 896-897.

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primeiro comum a duas aldeias vizinhas da cidade de Soest, e o segundo, que

era o de um castelo situado na floresta de Arnsberg.

O nome da família apareceu por volta de 1500, em Iserlohn. Adandonou-se,

porém, o nome Von Ense, permanecendo o de Varnhagen. 165

Ao associar a história da família de Varnhagen com os tempos das grandes viagens e

navegações, o biógrafo sorocabano desejou criar um ponto comum entre a origem da nação e do seu

primeiro historiador. Essa conexão ficou mais evidente na descrição feita da casa dos Varnhagen, no termo

de Ipanema, em Sorocaba. A residência, o lugar do nascimento do pequeno fundidor, apresentava

características coloniais, lembrando as que habitavam os povoadores portugueses. A casa do Ipanema

poderia ser encontrada em todo o Brasil desde que as naus cabralinas imergiram ferros, alvissareiramente,

nas acolhedoras águas de Pôrto Seguro. Ela congregava o símbolo da origem da nacionalidade – a casa-

grande. A figura do português colonizador era o símbolo eleito por Varnhagen para definir o motor da

civilização brasileira.

Penetrar-lhe os mais do que centenários umbris, contemplar-lhe as pesadas

linhas da estrutura, aquêles madeiros carpentejados a enxó, as largas portas e

janelas de grossos batentes e fôlhas espêssas, desgraciosas e sólidas, que,

apenas movidas, rangem nas articulações dos velhos e grosseiros gonzos, ouvir

a surda percussão dos passos nas largas e encurvadas tabus do escuro soalho,

é como que penetrar no próprio passado, não do lugar, não apenas do Ipanema,

porém de todo o Brasil, desde que as naus cabralinas imergiram ferros,

alvissareiramente, nas acolhedoras águas de Pôrto Seguro.

A casa é um daqueles vetustos solares coloniais, sob cujos tetos, em

Pernambuco ou em São Paulo, na Bahia ou em Minas, no Norte, ou no Centro,

ou no Sul, homens de têmpera de aço se harmonizaram para repelir o

estrangeiro invasor, ou para organizar bandeiras ou ainda concertar ousados

165 Renato Sêneca. Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, “Paulista de Sorocaba”. Ensaio Bibliográfico (...). op. cit., p. 13. Para o biógrafo, Varnhagen admirava tanto seu pai que o homenageou nas páginas Historia geral do Brazil: Êle próprio as fêz, detidamente, amoroso e sincero, com elas enchendo tôda a magnífica Secção LIII de sua História Geral do Brasil, admirável como tôdas as partes dessa obra monumental, mas encerrando sabores especiais, traduzindo sentimentos íntimos e comovedores, porque nela se manifestam, explicita e implicitamente, os afetos do Visconde para êsses delicados sentimentos, a essas tocantes ternuras do nosso historiador, é um dos modos mais legítimos e expressivos de tributar-lhe homenagem. Ibidem, p. 09. Conferir: Temístocles Américo Cezar, Em nome do pai, mas não do patriarca: ensaios sobre os limites da imparcialidade na obra de Varnhagen, História, São Paulo, vol. 24, n. 02, 2005, p. 207-240.

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planos de independência ou conjuras republicanas, argamassando as bases

inconcussas e inabaláveis da nação brasileira.166

Para Renato Sêneca Fleury, apresentar a casa colonial da família do visconde de Porto

Seguro, lembrando que esta seria um exemplo dos evocadores monumentos de nossas mais encarecidas

tradições, era uma forma de determinar (ou criar uma mística sobre) seu destino em virtude do seu lugar

de nascimento. Ao escrever a história do Brasil colonial, o historiador Varnhagen estava cumprindo a

missão de cultuar a sua própria casa, pois a origem do seu país misturava-se com a do vetusto casarão do

Ipanema e as raízes maternas portuguesas.167

E, seguindo este raciocínio, o biógrafo propunha que a casa colonial do Ipanema também

se transformasse, além de monumento do passado brasileiro, em um lídimo templo da nossa história,

porque tem, sôbre os mais, uma glória indiscutível e ùnicamente sua: agasalhou o bêrço do primeiro e

maior historiador nacional.168 Ali, o Varnhagen criança recebeu os primeiros ensinamentos que moldaram o

seu caráter rígido como as jazidas de ferro daquelas terras:

Ali, o áspero trabalho, perene e ruidoso, enchia de movimentos e calores,

fumaças e tinidos, chiados, cânticos ou apitos estrídulos, suores e gemidos, por

entre as ardências e crepitações dos altos fornos e das fornalhas e forjas

coruscantes, um recanto do pátrio solo, destinado, por isso, a imperecível fama,

assim também porque nêle teve berço o homem que “estremeceu sua pátria e

escreveu-lhe a história”.

No lar doméstico Varnhagen recebia lições de modéstia e tenacidade, não

apenas ouvidas nos conselhos dos pais, mas bebidas nos exemplos, que êles

lhe punham ante os olhos atentos e a inteligência prematura, e vividas nas

condutas, que dêle conseguiam.

Dir-se-ia que, nascido no local das famosas jazidas de ferro, o caráter

precocemente se lhe enrijecera por uma obra sobrenatural de transubstanciação

do rijo metal no espírito em formação do nobre infante.169

166 Ibidem, p. 21. 167 Ibidem, ibidem. O seu compromisso com a história do Brasil a partir do olhar do colonizador português foi apontada posteriormente por José Honório Rodrigues ao afirmar que: Responsabilidade e consciência êle as tinha; que a consciência não fôsse tão imparcial quanto êle pensava não importa. Era um historiador comprometido, como somos todos. Varnhagen justificou com mão de ferro o domínio colonial, a submissão do povo, os direitos da minoria mais dominante que criadora, sem cuidar que o grande problema no Brasil é assegurar os direitos da maioria. José Honório Rodrigues, Varnhagen, mestre da História Geral do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 196. 168 Ibidem, ibidem. 169 Ibidem, p. 23.

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O ethos de Varnhagen, filho da casa colonial, como destacou Clado Ribeiro de Lessa,

permitiu que se estabelecesse uma justificativa genealógica, racial e sentimental para a sua adesão à

monarquia e, conseqüentemente, a criação de uma obra que a legitimasse historicamente – instituindo

seus mitos fundacionais desde os tempos coloniais:

O monarquismo era, em Varnhagen, sincero, biológico, hereditário; não consistia

felizmente, como o de caráter conformista de muitos contemporâneos seus, em

mera satisfação da lei do menor esfôrço em política, a subserviência à ordem

estabelecida, que convinha acatar por comodismo; nem, tampouco, prendia suas

raizes ao terreno do pragmatismo puro, como sucedia com tantos outros, que

apenas enxergavam no império brasileiro uma fórmula de organização

provisória, exigida pela necessidade de manter a integridade nacional, enquanto

se aguardava o momento propício para o país se poder integrar, sem riscos, na

ordem republicana do continente. A essa espécie de monarquistas ad hoc,

atemorizados pelo espetáculo da anarquia e do caudilhismo hispano-

americanos, mas intransigentes partidários teóricos da excelência das

instituições republicanas, não pertencia, proclamemo-lo altamente em sua honra,

o futuro Visconde de Pôrto Seguro. Tinha bastante bom senso e bom gôsto para

isso.170

As tramas em torno do seu nascimento, como se pode verificar nesses textos, envolveram

a imaginação dos seus biógrafos, tanto que procuraram sempre revesti-las de significados, predestinações

e alegorias. Procurando esclarecer as verdades sobre o assunto, Clado Ribeiro de Lessa tomou o cuidado

de transcrever em sua volumosa biografia a carta de Frederico de Varnhagen à D. Francisco de Assis

Mascarenhas (1779-1843), Conde de Palma, governador e capitão-geral da capitania de São Paulo,

anunciando o aparecimento de seu filho. Esta carta-documento assumiria o papel de uma espécie de

certidão de nascimento de Varnhagen, a prova documental do início da cronologia de sua vida.171

170 Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (continuação do número anterior) (vol. 225), RIHGB, op. cit., p. 187. 171 “Participo a V. Ex.ª que no dia 17 do corrente apareceu nesta Fábrica um pequeno fundido de ferro com uma viagem muito feliz, e como V. Ex.ª se dignou a ser padrinho dêste pequeno fundidor, e nós desejamos que êle quanto antes fique dedicado à Santa Igreja , rogo a V. Ex.ª queira mandar uma procuração ou a Muller, que muito deseja me fazer uma visita; ou, quando êste não puder vir, ao Padre Antônio de Azevedo Veiga, irmão de Miguel Antônio. Madrinha é Nossa Senhora da Ponte de Sorocaba”. Frederico Sommer, Frederico Guilherme Luiz Varnhagen, in: Anuário Genealógico Brasileiro por Salvador de Moya, ano II, 1940, p. 241, citado por Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (vol. 223), RIHGB, op. cit., p. 88.

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A partir do apelido pequeno fundidor de ferro, utilizado pelo pai de Varnhagen para

apresentá-lo ao padrinho, Clado Ribeiro de Lessa construiu a apresentação do seu homenageado. Nota-se

que o autor adotou o metal ferro, assim como o fizeram os demais biógrafos, para definir o peso e a

durabilidade da obra do filho do tenente-coronel Varnhagen:

O fundidor, cuja vinda ao mundo se anunciava, não se dedicou à metalurgia,

porém, levado por diferente vocação, soube modelar e fundir em metal resistente

à ferrugem do tempo, o maior monumento até hoje erguido à história e à

erudição em terras brasileiras. Chamou-se o artista Francisco Adolfo de

Varnhagen, visconde de Pôrto Seguro; o monumento: uma série de

valiosíssimos trabalhos, entre os quais se destaca como peça principal a Historia

Geral do Brasil.172

Para além da celebração da nação da memória do IHGB, a partir da biografia do autor de

Historia geral do Brazil, a leitura de trechos desses textos acerca do ethos de Varnhagen permite a análise

de dois aspectos concernente à noção de identidade – o racismo e o regionalismo. As imagens produzidas

da existência do historiador sorocabano pautaram-se pela articulação desses elementos determinantes na

definição da sua essência, da sua verdade íntima.

O seu destino – ser o maior historiador nacional – estava traçado por uma série de

características decorrentes de biologia (raça) e meio (lugar). Em relação ao fator biológico, ele era

descendente da genética germânica e portuguesa, logo sua matriz era européia. Em virtude disso, como

destacaram os biógrafos, havia herdado pelo sangue virtudes e defeitos inatos, elementos que serviriam

para explicar suas ações na trajetória de vida. O atributo da raça, da genealogia, era a chave de

interpretação de Varnhagen. Haveria, portanto, uma verdade racial para forjá-lo, que o diferenciava dos

outros – aqueles que não se inseriam nos seus referenciais. Este determinismo racial explicava os seus

delicados juízos acerca dos povos indígenas e, em larga medida, também acabava legitimando-os para os

que comungavam de seu pensamento etnocêntrico.

Ao adotarem o discurso da raçacomo importante instrumento na construção do discurso de

sua biografia, os autores estabeleceram um lugar para Varnhagen dentro de uma hierarquia dos grupos

172 Ibidem, p. 88-89.

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humanos, da sua história e desenvolvimento.173 As suas escolhas, posicionamentos políticos e paixões se

dariam a partir do uso desta categoria naturalizada e essencial. A todo o momento o fator origem seria

lembrado para o enquadramento da sua memória. O sujeito Varnhagen era fruto da sua raça, da sua ilha

de particularidade. Para Paul Gilroy, a identidade quando se refere

a uma marca indelével, ou a um código de alguma forma inscrito nos corpos de

seus portadores, a alteridade só pode ser uma ameaça. A identidade é assim

um destino latente. Vista ou não vista, estando na superfície do corpo ou

enterrada profundamente em suas células, a identidade aparta para sempre um

grupo em relação a outros que sejam desprovidos dos traços particulares

escolhidos que se tornam a base para a tipologia e a avaliação comparativa.

Não sendo mais um locus para a afirmação da subjetividade ou da autonomia, a

identidade se transforma. Sua movimentação revela um desejo profundo de

solidariedade mecânica, serialidade e hipersimilaridade. O escopo da ação

individual diminui até desaparecer. As pessoas se tornam portadoras das

diferenças que a retórica da identidade absoluta inventa e as convida para

celebrar. Em vez de comunicativos e capazes de fazer escolhas, os indivíduos

são vistos como passageiros obedientes e silenciosos movendo-se em meio

uma paisagem moral insípida rumo aos seus destinos fixos, aos quais suas

identidades essenciais, seus genes e as culturas fechadas que eles criam os

têm relegado para sempre.174

Além do determinismo racial, o fator meio pesou na conformação da sua identidade. Era

paulista, natural de Sorocaba, como lembrou Renato Sêneca Fleury, descendente da linhagem dos

bandeirantes. Ser nascido em São Paulo significava, pela lógica do determinismo geográfico, assumir uma

série de qualificativos – aventureiro, desbravador, viajante – e ter uma missão civilizatória. Varnhagen, no

século XIX, cumpria a sina dos seus ancestrais, dava continuidade à epopéia paulista fazendo a história da

nação.

173 De acordo com Celia Maria Marinho de Azevedo, o racismo não deriva da raça, ou melhor, da existência objetiva da raça, seja em termos biológicos ou culturais. O racismo se constituiu historicamente em diferentes contextos sociais do mundo moderno, sistematizando-se como uma prática discursiva à medida em que as teorias raciais científicas impuseram a noção de raça como VERDADE. Este processo de racialização das pessoas que compõem uma dada sociedade alcança pleno sucesso sobretudo quando conta com o apoio formal do Estado na construção de uma ordem racial explícita. Celia Maria Marinho de Azevedo, Cota racial e Estado: abolição do racismo ou direito de “raça”?, in: Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo, São Paulo, Annablume, 2004, p. 31-32. Conferir também: Michel Foucault, Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976) [Aula de 28 de janeiro de 1976], op. cit., p. 75-98. 174 Paul Gilroy, Entre campos: nações, culturas e o fascínio da raça, op. cit., p. 130.

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Esta imagem do visconde de Porto Seguro como historiador-bandeirante, presente nos

textos de Capistrano de Abreu e Oliveira Lima,175 emergiu com toda força e vitalidade na biografia feita por

Renato Sêneca Fleury, membro IHGSP, grêmio congênere do Instituto carioca.

Para Antonio Celso Ferreira, os intelectuais do IHGSP, por intermédio das biografias e

genealogias de seus ilustres homens do passado como Varnhagen, buscavam a construção de trajetórias

incomuns,

responsáveis por grandes realizações, individuais ou clânicas, fazendo-as

transcender os marcos da própria colonização, com base no recuo a um passado

longínquo europeu. A nobilitação das personagens revela a ambição de fixar

uma epopéia paulista, sustentada por indivíduos aos quais se atribuía uma força

superior.176

No processo de criação do panteão dos seus heróis, além de enfatizar a identidade

nacional, era necessário apresentar São Paulo como o motor gerador da nação – dando um enfoque

regional para o tema. Era uma maneira de legitimar uma verdade regional: a supremacia de São Paulo

como locomotiva histórica, política e econômica do Brasil.177

Temperar a biografia de Varnhagen, entronizado como o pai da nossa História, com

toques do regionalismo paulista, permitiria completar a cronologia da sua epopéia, uma vez que os

moradores de Piratininga tinham sido os responsáveis pela ampliação do território nacional, enriquecendo

a metrópole com o ouro que encontraram em regiões distantes do litoral e levando a civilização para os

mais longínquos rincões da América, transformados por eles em possessão portuguesa178 e

posteriormente do Brasil.

Além disso, ainda dentro desta lógica, foi em terras paulistas que o príncipe D. Pedro, às

margens do riacho do Ipiranga, proclamou a independência do Brasil. E a história desta saga, segundo os

biógrafos, só poderia ter sido obra de um filho da terra, descendente da raça de gigantes, numa referência 175 Cabe lembrar que o elogio à Varnhagen, de autoria de Oliveira Lima, foi originalmente publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em 1908. 176 Antonio Celso Ferreira, A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940), São Paulo, Ed. da UNESP, 2002, p. 128. 177 Segundo Durval Muniz de Albuquerque Junior, todo discurso precisa medir e demarcar um espaço de onde se enuncia. Antes de inventar o regionalismo, as regiões são produtos deste discurso. (...) Em nenhum momento, as fronteiras e territórios regionais podem se situar num plano a-histórico, porque são criações eminentemente históricas e esta dimensão histórica é multiforme, dependendo de que perspectiva de espaço se coloca em foco, se visualizado como espaço econômico, político, jurídico ou cultural, ou seja, o espaço regional é produto de uma rede de relações entre agentes que se reproduzem e agem com dimensões espaciais diferentes. Durval Muniz de Albuquerque Junior, A invenção do Nordeste e outras artes, op. cit., p. 24-25. 178 Kátia Maria Abud, Somos todos bandeirantes!, Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 03, n. 34, jul. 2008, p. 25.

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à adjetivação feita pelo viajante naturalista francês August de Saint-Hilaire (1779-1853) e incorporada pelas

oligarquias paulistas.

De acordo com cada época, interesses e fins, o ethos de Varnhagen adquiriu novos

significados pelos artífices de sua memória biográfica, mas em larga medida preservando antigas

representações da nação e de sua história, seja como símbolo de lealdade à monarquia, seja como um

historiador-bandeirante do século XIX, seja como o legítimo exemplar da raça européia em terras tropicais.

E a genealogia e a geografia, como foi observado aqui, seriam importantes aliadas no processo de

determinação de sua identidade essencializada e monolítica.

Temperamento, costumes, escolhas políticas, posições ideológicas e méritos intelectuais

do visconde de Porto Seguro eram identificados e justificados com base nestes conceitos essencializantes,

amarrando-o ao legado da sua origem. Não havia, por este princípio, lugar para fazer uma genealogia de

Varnhagen que se demorasse nas meticulosidades, nos acasos dos começos e na descontinuidade, como

sugeria Michel Foucault.179 Segundo seus biógrafos, ele continuava a ser uma mesma verdade dada e não

poderia ser e agir diferente do que estava traçado. Varnhagen seria movido pela raça, meio e contexto.

1.5. O homem-arquivo da História do Brasil_________________________________________________

Os méritos de Varnhagen na averiguação dos fatos e na escrita documentada da história

foram repetidamente citados por seus biógrafos e estudiosos de sua obra. A sua correspondência, coligida

e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, tem sido fonte rica para se entender o seu compromisso com o

arquivo e com a busca de documentos e fatos históricos perdidos no tempo. Nas suas cartas, endereçadas

a alguns de seus correspondentes intelectuais, Varnhagen apresentava o seu método de trabalho, as suas

viagens pelos arquivos e bibliotecas e as descobertas documentais. Foi em cima dessa correspondência,

confessou seu biógrafo, dentre outros abundantes documentos, que nasceu Vida e obra de Varnhagen.

No anseio de preservar a sua memória e documentar sua existência, constituindo um

arquivo, Clado Ribeiro de Lessa tomou a iniciativa de publicar suas cartas, como justificou na introdução da

coletânea:

179 Michel Foucault, Microfísica do Poder, op. cit., p. 19. Para Margareth Rago, o filósofo-historiador Michel Foucault sempre se pôs em estado de alerta contra a ingenuidade de falar de fantasmas, de contar histórias de personagens imaginados, de estar escrevendo uma “genealogia de fantasmas”, acreditando falar dos indivíduos ‘de carne e osso’. Margareth Rago, O Historiador e o Tempo, in: Vera Lucia S. de Rossi e Ernesta Zamboni (orgs), Quanto tempo o tempo tem! Campinas, Ed. Alínea, 2003, p. 35.

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O acervo formado pela correspondência ativa de Varnhagen, que logramos aqui

reunir, incluindo nesta expressão alguns ofícios diplomáticos, que sem

inconvenientes se podem divulgar, ultrapassa duas centenas de peças, algumas

das quais bastante extensas. Oriundas da pena de uma dos maiores

historiógrafos e homens de pensamento dêste país, quer versem matéria de

erudição, quer assuntos políticos ou diplomáticos do dia, quer ainda, objetos de

interêsse familiar ou privado, estamos certos de que sua leitura não será

destituída de interêsse para o público culto do Brasil, cujo empenho em conhecer

particularidades do passado nacional, e da vida de seus ilustres, cresce

promissoramente de dia para dia. Eis porque tomamos a resolução de brindá-lo

com a presente coletânea.180

Além das cartas, a própria obra de Varnhagen se constituiu em testemunho da sua

obstinada tarefa de garimpeiro de documentos que desvendassem a história do Brasil. No que se refere à

revelação dos fatos, José Honório Rodrigues observou que ele havia feito mais do que poderia imaginar

qualquer leitor desavisado de sua Historia geral do Brazil. Na sua avaliação, nenhum historiador nacional

contemporâneo [a Varnhagen] o iguala no conjunto da obra. Era, prosseguia, incomparável pela

perseverança com que caminhou pelos caminhos da história brasileira, até então nunca palmilhados.181

As suas qualidades de homem de arquivo não ficaram de fora do discurso de Joaquim

Manuel de Macedo, lembrando das suas contribuições para o acervo e a Revista do IHGB. Em nome da

investigação histórica e aproveitando-se das vantagens do ofício de diplomata, Varnhagen engolfára-se

nas bibliothecas, empoeirára nos archivos, compulsára centenas de livros, achára thesouros e fontes de

luz em obras raras, descobrira em arcas antigas manuscriptos e documentos importantíssimos182,

dedicando anos a fio em estudos profundos e no acúmulo de conhecimentos.

Assim como o orador do IHGB, Capistrano de Abreu também não deixou escapar esta

faceta do perfil do historiador sorocabano, sendo objeto de sua admiração e posterior obsessão em revisar,

corrigir e anotar sua obra:

180 Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência Ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, RIHGB, op. cit., p. 08. 181 José Honório Rodrigues. Varnhagen, mestre da História Geral do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 170. 182 Joaquim Manoel de Macedo (orador), Discurso na Sessão Magna Anniversaria do Instituto Histórico e Goegraphico Brasileiro no dia 15 de dezembro de 1878, RIHGB, op. cit., p. 483.

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Ele era um desses homens fortes, que as dificuldades não detêm. Um problema

era uma incitação. Um manuscrito, desses que mal se podem ler, fixava-lhe,

absorvia-lhe a atenção, e ele acabava desvendando o mistério.

Ajunte-se que os arquivos portugueses ainda não haviam sido explorados. Cada

dia apareciam-lhe novidades e amontoavam-se descobertas. Mesmo em outra

pessoa que não tivesse grande pendor por investigações históricas, essa série

de felizes achados bastaria para determiná-lo.

Os achados de Varnhagen foram consideráveis, sobretudo quanto ao primeiro

século da nossa história. Não diremos que renovou a fisionomia da época, mas

descobriu bastantes elementos para quem possa e queira fazer obra definitiva.183

Ao recordar as marcas da passagem de Varnhagen pelos documentos quando os

consultava na Torre Tombo, Oliveira Lima ofereceu um testemunho ocular da sua habilidade como

pesquisador, permitindo a afirmação de que era um ardente investigador, um infatigável resuscitador de

chronicas esquecidas nas bibliothecas e de documentos soterrados nos archivos, um valioso corretor de

falsidades e illustrado collecionador de factos.184

O jurista Pedro Lessa, na esteira de Capistrano de Abreu e Oliveira Lima, apontou os

lugares percorridos por Varnhagen na Europa e na América na realização da sua tarefa de historiador,

exaltando a sua abnegação ao dispor de lazeres para se embrenhar em bibliotecas, arquivos e museus,

consultando livros, mappas, autographos, inscripções, medalhas, moedas, gravuras, pinturas e todas

especie de documentos.185

A sua renúncia aos prazeres momentâneos para se dedicar à missão de descobrir

documentos que ajudassem a construir a história do Brasil também foi ressaltada pelo forte discurso

moralista cristão de Basílio de Magalhães, o que reforçava a imagem de um grande exemplo a seguir e a

venerar.186 Essa observação – recorrente nas outras biografias – era o indicativo de uma pretensa imagem

183 João Capistrano de Abreu, Sobre o Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos (Crítica e História), op. cit., p. 133. 184 Manoel de Oliveira Lima. Francisco Adolpho Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, in: RIHGSP, op. cit., p. 65. 185 Pedro Lessa, (sem título – elogio a Francisco Adolfo de Varnhagen, pronunciado na Sessão Solenne Especial, em 17 de fevereiro de 1916, commemorativa do centenário do nascimento do Visconde de Porto Seguro), RIHGB, op. cit., p. 614-615. 186 Basílio de Magalhães assim descreveu o seu Varnhagen santificado: sempre lhe aprouve trocar os ephemeros prazeres das frívolas mundanidades pela consagração dos seus lazeres ás predilectas e uteis indagações de historia e de literatura antiga, assim como á observação e prompta divulgação de tudo quanto julgava applicavel ao fomento do pregresso economico do Brasil. Basílio de Magalhães. Discurso – Sessão Commemorativa do 50º Anniversario do Falecimento de Francisco Adolpho de Varnhagen (Visconde de Porto Seguro) – realizada em 29 de junho de 1918, RIHGB, op. cit., p. 897.

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mística de Varnhagen como um santo intelectual, valorizando ainda mais a monumentalidade de seus

feitos.187

A disciplina e a obstinação de um historiador-monasta somadas à sua erudição e

conhecimentos das línguas européias foram outros atributos recordados por Clado Ribeiro de Lessa,

ajudando na canonização intelectual de Varnhagen. A sua formação poliglota permitia-lhe consultar com

vantagem os livros dos viajantes e cronistas estrangeiros que se ocuparam do Novo Continente em geral, e

do Brasil em particular.188

De acordo com Rebeca Gontijo, a erudição tem sido uma das características mais

identificadas na qualificação de um intelectual. A adjetivação erudito se manifestaria, em especial, no caso

das personalidades como Varnhagen, Capistrano de Abreu e Oliveira Lima que se dedicaram ao estudo

histórico. Isso acontecia porque a história da disciplina história têm identificado sua origem na dupla

tradição filosófica e erudita.189

Esta tradição erudita, segundo a autora, remontava à época do Renascimento e estava

associada à figura do antiquário, definido como um estudioso das coisas antigas, que domina línguas

mortas, conhecimentos esotéricos, detalhes minuciosos sobre costumes, instituições, artefatos etc.190

Nessa figura gêmea do historiador, especificamente a partir do século XVIII, estaria

associada também uma mudança no método histórico. A partir do antiquário, segundo Temístocles

Américo Cezar,

foram fixadas normas e colocados certos problemas metodológicos

fundamentais, entre os quais as questões do documentos ( a distinção entre

fontes primárias e secundárias, e a utilidade de testemunhos não escritos, por

exemplo), dos modelos narrativos da história (neste caso da história antiga) ou

ainda problemas teóricos como a distinção entre a organização dos fatos.191

187 A construção da imagem de Varnhagen como herói intelectual passa por uma espécie de discurso biográfico permeado por uma hagiografia (escritos sobre a vida de santos) muito recorrente em outras biografias de intelectuais e políticos brasileiros como, por exemplo, Joaquim Nabuco. Conferir: Celia Maria Marinho de Azevedo, Quem precisa de São Nabuco?, Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, ano 23, n. 01, 2001, p. 87-97. 188 Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (vol. 223), RIHGB, op. cit., p. 99. 189 Rebeca Gontijo, O “cruzado da inteligência”: Capistrano de Abreu, memória e biografia, Anos 90, op. cit., p. 60. Conferir: François Furet, O nascimento da história, in: A oficina da história, Lisboa, Gradiva, s/d., p. 109-35. 190 Ibidem, ibidem. Para um estudo da erudição em Varnhagen, conferir: Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., capítulo I. 191 Temístocles Américo Cezar, Narrativa, cor local e ciência. Notas para um debate sobre o conhecimento histórico no século XIX, História Unisinos, São Leopoldo, vol. 08, n. 10, jul./dez. 2004, p. 16.

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Adotando-se essa definição de erudito, pode-se entender a preocupação de Basílio de

Magalhães, Renato Sêneca Fleury e Clado Ribeiro de Lessa em relatarem as habilidades intelectuais de

Varnhagen na investigação histórica, fazendo uso de diferentes saberes adquiridos ao longo do tempo para

superar dificuldades. Nessas descrições de suas capacidades eruditas, em algumas passagens, vislumbra-

se uma percepção quase mística de como se deu o seu aprendizado. Era uma genialidade intelectual

inconteste para esses autores nitidamente apaixonados pela esfinge de Varnhagen:

além do carinho particular que votou ás línguas indigenas sul-americanas,

elaborou em espanhol, em francez, em italiano e até em allemão algumas das

suas mais importantes monographias, que ia immediatamente editando nas

capitaes onde estivesse. E o amor paternal, que lhe mereciam as producções do

espirito, compellia-o não só a meticulosos cuidados na escolha do papel e das

illustrações e na revisão, como tambem a reimprimil-as, toda vez que á sua

aguda vaidade de escriptor consciencioso se antolhassem erros a corrigir e á

sua infatigavel paciencia de investigador se deparassem novos documentos, que

instruíssem melhor a materia tratada.192

Varnhagen, entretanto, sentia prazer em dominar as dificuldades. Era um espírito

forte, pertinaz, favorecido por singular clarividência, tal como se fôra dotado de

senso divinatório. Paleógrafo cuja competência e perícia estavam na razão

direta, ou eram conseqüência de sua cultura geral e especializada, conjugada ao

tirocínio adquirido no trato constante com códices e documentos de variadas

épocas e em outras línguas, a Varnhagen como que não surgiam obstáculos, a

não ser a carência do tempo, que êle procurava suprir aproveitando-o com

redobros de atividade e jamais malbaratando-o.193

Graças aos conhecimentos de Paleografia e de Diplomática poderia ler e

interpretar com facilidade os numerosos documentos em cursiva processual ou

cortesã, quase virgens, que atulhavam os arquivos portugueses, cheios de

imprevistas informações sobre os primórdios do Brasil-Colônia. As luzes

ministradas pela Economia política habilitavam-no muito especialmente a

192 Basílio de Magalhães. Discurso – Sessão Commemorativa do 50º Anniversario do Falecimento de Francisco Adolpho de Varnhagen (Visconde de Porto Seguro) – realizada em 29 de junho de 1918, RIHGB, op. cit., p. 897. 193 Renato Sêneca. Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, “Paulista de Sorocaba”. Ensaio Bibliográfico (...). op. cit., p. 49.

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compreender as condições e as necessidades materiais dos primitivos

colonizadores, e a encarar suas atividades em relação ao elemento silvícola por

um prisma muito diferente do adotado pelo sentimentalismo romântico e piegas

dos outros escritores brasileiros seus contemporâneos.194

Para Celso Vieira, em sua conferência inaugural no Instituto Varnhagen, em 1923, a

erudição do autor da Historia geral do Brazil traduzia-se na sua condição de escritor clássico, pois possuía

um sólido criterio de julgamento do bem e do mal (...), mercê de valores e formulas tradicionais, para o

encômio ou para o estigma, escrevendo de forma narrativa élo por élo os fatos.195 Na sua leitura, nestes

aspectos ele se assemelhava aos antigos cronistas portugueses.

A busca documental praticada à exaustão por Varnhagen, defendia Celso Vieira, era

decorrente de uma concepção judiciária da história. Era uma marca de sua obra a presença do historiador-

juiz, que coletava as provas, verificava sua autenticidade e emitia sua sentença sobre os fatos do passado:

a história antiga e moderna (...) não é em substância outra coisa senão uma

variante daquelle julgamento dos mortos, a que precediam, out’ora, os

sacerdotes (...). Juiz elle tem a idea fixa da prova: incumbe ao historiador, antes

do mais recolher depoimentos, pesquisar factos, colligir indícios. Argamassada a

prova, o juiz dará em seguida, com os seus fundamentos claros e breves, uma

sentença inappelavel.196

A referência como historiador-juiz na descrição Varnhagen seria repetida por Renato

Sêneca Fleury, ao descrever seus procedimentos de trabalho com as fontes documentais. Somente por

intermédio desses velhos papéis, fontes diretas e insuspeitas, poderia se emitir o juízo certo acerca da

verdade do passado brasileiro, desfazendo-se lendas, situando-se cronologicamente os acontecimentos,

corrigindo-se datas, destruindo-se afirmações injustas, reivindicando-se glórias a seus legítimos

merecedores.197

194 Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (vol. 223), RIHGB, op. cit., p. 99. 195 Celso Vieira, Varnhagen: o homem e a obra, op. cit., p. 35-39. 196 Ibidem, p. 43-44. 197 Renato Sêneca. Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, “Paulista de Sorocaba”. Ensaio Bibliográfico (...). op. cit., p. 68.

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O nível apurado do seu senso de justiça, combinado com a investigação em arquivos, foi

observado por Basílio de Magalhães quando abordou a polêmica de Varnhagen com os indianistas do

IHGB:

Quanto aos nossos selvicolas, Varnhagen, em cuja mentalidade preponderava o

forte cunho germanico e que não pode nunca conformar-se com o que elle

denominou “tendencias indiscretas e falsas de patriotismo caboclo”, as quaes

foram como que uma projecção do movimento romantico, que teve os mais

inspirados corypheos em Gonçalves Dias e Gonçalves de Magalhães (note-se

que o depois visconde de Araguaya tambem se collocou ao lado de João

Francisco Lisbôa contra Porto-Seguro, como consta de monographia “Os

indigenas perante a historia”, inserta em nossa “Rev.”, t. XXIII, 1860, p. 1ª, págs.

3-66), - externou as suas primeiras, idéas em 1850, no quinto capitulo,intitulado

“Da civilização dos indios por tutela”, do “Memorial organico”.198

Essa avaliação do comportamento de Varnhagen como um juiz da história, registrada pela

maioria dos biógrafos e estudiosos de sua obra, teve seu nascedouro no seu necrológio, escrito por

Capistrano de Abreu. Para o autor de Capítulos de História Colonial, o historiador Varnhagen agia como

um juiz em uma audiência, aplicando punições e absolvições aos homens e suas ações no passado. Suas

sentenças eram o resultado da ausência de espirito plástico e simpático:

Os pródomos da nossa emancipação política, os ensaios de afirmação nacional

que por vezes percorriam as fibras populares, encontram-no severo e até

prevenido. Para ele, - A Conjuração mineira é uma cabeçada e um conluio; a

Conjuração baiana de João de Deus, um cataclisma de que rende graças à

Providência por nos ter livrado; a Revolução pernambucana de 1817, uma

grande calamidade, um crime em que só tomaram parte homens de inteligência

estreita, ou de caráter pouco elevado. Sem D. Pedro a independência seria

ilegal, ilegítima, subversiva, digna da forca ou do fuzil. Juiz de Tiradentes e

198 Basílio de Magalhães. Discurso – Sessão Commemorativa do 50º Anniversario do Falecimento de Francisco Adolpho de Varnhagen (Visconde de Porto Seguro) – realizada em 29 de junho de 1918, RIGHB, op. cit., p. 926. Para compreender os meandros da polêmica de Varnhagen sobre os indígenas, conferir: Laura Nogueira Oliveira, Os índios bravos e Sr. Visconde: Os indígenas brasileiros na obra de Francisco Adolfo de Varnhagen, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Minas Gerias, Belo Horizonte, 2000; Lúcio Menezes Ferreira, Vestígios de Civilização: A Arqueologia no Brasil Imperial (1838-1877), dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002.

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Gonzaga, ele não teria hesitado em assinar a mesma sentença que o

desembargador Diniz e seus colegas.199

Na análise dos biógrafos, o problema estava na avaliação se Varnhagen era ou não um

bom historiador-juiz e não na crítica da própria idéia de história como um tribunal. As adjetivações

apresentadas para as sentenças varnhagenianas eram o termômetro para a sua absolvição ou

condenação. Biógrafos e biografado não abriam mão de uma visão judiciária e moralista da história. A

compreensão da história e de Varnhagen passavam necessariamente por um julgamento, uma

sentença.200

À parte a crítica a sua visão moralista, judiciária e utilitarista da história que lhe foi

recorrente desde o final do século XIX,201 elogios ao seu trabalho de homem de arquivo não foram raros. O

próprio Capistrano de Abreu, como já foi mencionado, não deixou de registrar gratidão e respeito pelos

feitos de Varnhagen como historiador: seja no mérito da pesquisa documental, seja nos progressos na

escrita da história da pátria.202 O escritor Thiers Martins Moreira lembrou que ele não foi um simples

arrumador de documentos entre caixilhos necessários à narrativa e à boa ordem lógica da exposição.

Varnhagen soube interpretar, unir, anotar e dar vida e inteligência crítica aos papéis dos arquivos e aos

textos dos livros.203

A sua peregrinação evangélica pelos arquivos e bibliotecas, segundo o seu conterrâneo

Renato Sêneca Fleury, era uma marca indelével da biografia de Varnhagen, digna de repetição e elogios:

Os que estudaram a vida de Varnhagen são unânimes em se referir, com viva

admiração, à sua pasmosa atividade, reveladora de uma invejável capacidade de

trabalho, bem rara em historiador como êle, que despendia largo tempo em

demoradas pesquisas, não se cingindo jamais a meras consultas a livros, ao

modo de simples compilador, mas efetuando investigações e estudos dos velhos

199 João Capistrano de Abreu, Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos (Crítica e História), op. cit., p. 89. 200 Para Marc Bloch, compreender não seria julgar. A análise histórica não comportaria a presença de um historiador-juiz: Uma palavra, para resumir, domina e ilumina nossos estudos: “compreender”. Não digamos que o historiador é alheio às paixões, ao menos, ele tem esta. Palavra, não dissimulemos, carregada de dificuldades, mas também de esperanças. Palavra, sobretudo, carregada de benevolência. Até na ação, julgamos um pouco demais. É cômodo gritar “à forca”. Jamais compreendemos o bastante. Quem difere de nós – estrangeiro, adversário político – passa, quase necessariamente, por mau. (...) A história, com a condição de ela própria renunciar a seus falsos ares de arcanjo, deve nos ajudar a curar esse defeito. Marc Bloch, Apologia da história, ou, O ofício de historiador, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2001, p. 128. 201 Na próxima seção essas apreciações acerca da concepção de história de Varnhagen serão retomadas na análise dos juízos emitidos sobre a sua Historia geral do Brazil. 202 Ibidem, ibidem. 203 Thiers Martins Moreira, Varnhagen e a história da literatura portuguesa e brasileira, RIHGB, op. cit., p. 156.

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documentos, e realizando obra pessoal, com material de primeira mão,

descoberto, decifrado, coordenado e relacionado – quando não corrigido, em

confronto com outros documentos – por êle próprio. Motivo pelo qual lhe eram

grandemente reduzidas as horas dedicadas a redigir, com fundamento na

documentação de que premunia, seus trabalhos, orientados pelo respeito à

verdade histórica.204

Em relação à formação de Varnhagen, os biógrafos apresentaram alguns indícios sem

muita profundidade. Havia uma espécie de hiato entre a sua viagem para Portugal e o começo de sua

atuação como estudioso dos conhecimentos históricos sobre o Brasil. Para Capistrano de Abreu, ainda

jovem, ele tivera de seguir o pai a Portugal e no exílio, ao habito perfumoso da saudade, infriltara-se-lhe

um patriotismo profundo e casto.205 Já Oliveira Lima limitou-se a comentar sobre o ambiente cultural em

que se criara era influenciado pela geração romântica do Panorama, representada por Alexandre

Herculano.206 Pedro Lessa noticiou que, em Portugal, estudou Varnhagen mathematicas no Real Colégio

Militar.207 Basílio de Magalhães, confirmando o que havia dito os demais, apenas destacou que fez os

estudos primarios e secundarios, bem como Engenharia militar.208 Para José Honório Rodrigues, a

formação militar do historiador modelou suas convicções ideológicas, que nunca foram abaladas.

Varnhagen, filosófica e politicamente, foi sempre o mesmo.209

O seu conterrâneo Renato Sêneca Fleury ofereceu mais detalhes acerca deste período de

sua vida escolar. Depois de finalizados os estudos primários, em 1825, o jovem Varnhagen matriculou-se

no Real Colégio da Luz, conhecida escola militar de Lisboa:

Na escola de cadetes ou Colégio Militar da Luz, como diz Morais Âncora, foi o

jovem brasileiro aluno distinto, com notável predileção para com os estudos da

língua portuguêsa, da geografia e principalmente da historia, para a qual sentia e

não refreava imperiosas propensões – sem detrimento do estudo das outras

disciplinas escolares – propensões que desde cedo o armaram de argúcia,

204 Renato Sêneca. Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, “Paulista de Sorocaba”. Ensaio Bibliográfico (...). op. cit., p. 38. 205 João Capistrano de Abreu, Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos (Crítica e História), op. cit., p. 83. 206 Manoel de Oliveira Lima. Francisco Adolpho Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, RIHGSP, op. cit., p. 67. 207 Pedro Lessa, (sem título – elogio a Francisco Adolfo de Varnhagen, pronunciado na Sessão Solenne Especial, em 17 de fevereiro de 1916, commemorativa do centenário do nascimento do Visconde de Porto Seguro), RIHGB, op. cit., p. 614. 208 Basílio de Magalhães. Discurso – Sessão Commemorativa do 50º Anniversario do Falecimento de Francisco Adolpho de Varnhagen (Visconde de Porto Seguro) – realizada em 29 de junho de 1918, RIHGB, op. cit., p. 894. 209 José Honório Rodrigues, Varnhagen, mestre da História Geral do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 190.

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paciência e meticulosidade nas pesquisas por amor da verdade dos fatos,

visando exposições aliviadas de fantasias e cunho novelesco, tão do gôsto de

Sotero dos Reis, J. Noberto de Sousa e Silva e outros cronistas e biógrafos um

tanto imaginosos.210

Em Vida e obra de Varnhagen, Clado Ribeiro de Lessa constatou que os biógrafos do

visconde de Porto Seguro apresentaram pouco interesse pelo período de sua formação. Esse desinteresse

ou desconhecimento justificava-se por considerarem de pouca expressão quanto aos efeitos sôbre a

gloriosa carreira do historiador-diplomata, interessando-se por eles a partir do instante em que ingressou

na Academia de Fortificações e se alistou nas hostes liberais do Duque de Bragança; em síntese, ficaram

restritas às informações contidas na Réplica Apologéticas.211 Na sua mais volumosa biografia, afirmava-se

que a carreira gloriosa de Varnhagen prescindia da sua formação.

Assim como outros letrados brasileiros de seu tempo, a formação de Varnhagen foi

marcada pela multiplicidade de campos de atuação, como evidenciou seu biógrafo:

Os estudos de Varnhagen não se limitaram às humanidades, matemáticas

superiores, e disciplinas aplicadas à arte militar e à engenharia civil. Quando da

organização da Escola Politécnica (de Portugal) aproveitou-a para freqüentar os

cursos de Ciências Físicas e Naturais (Química, Fisica, Mineralogia, Zoologia,

Botânica, etc.); fêz estudos de Paleografia e Diplomática, necessários às

pesquisas nos velhos manuscritos, a que o chamava a vocação despertada e

freqüentou também com a assiduidade e aproveitamento o curso de Economia

Política fundado e mantido pala Associação Mercantil de Lisboa.212

Esta formação eclética de Varnhagen autoriza fazer algumas observações sobre o perfil

dos sócios do IHGB, bem como outras agremiações regionais congêneres, do período imperial até às

primeiras décadas da República.

Em primeiro lugar, como afirmou Lucia Maria Paschoal Guimarães, entre os seus

membros, desde a fundação do grêmio, predominavam, no grupo, os indivíduos de origem urbana,

210 Renato Sêneca. Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, “Paulista de Sorocaba”. Ensaio Bibliográfico (...). op. cit., p. 24. 211 Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (vol. 223), RIHGB, op. cit., p. 95. 212 Ibidem, p. 98.

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descendentes de militares e de funcionários públicos213 e, também, de políticos. No caso de Varnhagen,

era filho de um tenente coronel, responsável pela restauração e administração da fundição em Ipanema –

contratado pela Coroa. Após concluídos os estudos e reconhecida sua nacionalidade brasileira, tornou-se

funcionário do Estado imperial, na função de diplomata em legações na Europa e América do Sul.

Em segundo lugar, os sócios do IHGB possuíam uma formação acadêmica oriunda dos

cursos de engenharia, medicina e direito das escolas nacionais ou universidades européias, como em

Portugal e França. Havia aqueles que seguiram para cursos de preparo para as carreiras das armas. Para

outros que não se graduaram nas universidades ou nas escolas militares, as únicas alternativas eram a

formação de nível médio, freqüentando seminário, aulas régias e humanidades. Varnhagen realizou seus

estudos em Portugal, primeiro no Real Colégio Militar da Luz, depois, matriculando-se na Academia da

Marinha. Promovido a oficial, após sua adesão à causa do ex-imperador D. Pedro I, na disputa pelo trono

português, engajado no 2º Batalhão de Artilharia, Varnhagen ingressou na Academia de Fortificações para

concluir o curso de engenharia militar.214 Logo, Varnhagen teve uma formação militar.

Retomando a referência feita por Clado Ribeiro de Lessa sobre os conhecimentos de

Varnhagen em diferentes temas, destaca-se o terceiro aspecto a ser observado na formação dos membros

deste tipo de agremiação até meados do século passado: o ecletismo.

Segundo Angela de Castro Gomes, numa análise da produção historiográfica das

primeiras décadas do século XX, que poderia ser pensada também para períodos anteriores, as distinções

disciplinares não eram claras, sendo elas mesmas produto quer de interseções, quer da busca do

estabelecimento de fronteiras.215

De acordo com Rebeca Gontijo, corroborando esta afirmação, a imagem do homem de

letras como erudito – figura oriunda do mundo diplomático e político, bem como das bibliotecas, arquivos,

instituições de ensino e academias de letrados, emergiram associados

213 Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de sua Majestade Imperial. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, op. cit., p. 32. 214 Informações extraídas do verbete Francisco Adolfo de Varnhagen, de autoria de Lucia Maria Paschoal Guimarães, in: Ronaldo Vainfas (org.), Dicionário do Brasil imperial, Rio de Janeiro, Objetiva, 2002, p. 285. Para maiores informações sobre a formação acadêmica de Varnhagen, conferir: Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., capítulo IV; Taíse Tatiana Quadros da Silva, A escrita da tradição: a invenção historiográfica na obra História Geral do Brazil, de Francisco Adolpho de Varnhagen (1854-1857), dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006, capítulo II. 215 Angela de Castro Gomes, História e historiadores: a política cultural do Estado Novo, Rio de Janeiro, Ed. da FGV, 1986, p. 75-76. Para Lilia Moritz Schwarcz, tendo como referência a presença da geração romântica, dentro do IHGB não havia lugar para uma divisão apurada do trabalho intelectual, destinava-se ao culto à ciência o mesmo fervor com que se veneravam as artes. Tratava-se de construir uma vida intelectual em sua totalidade, para o progresso das Luzes e conseqüentemente a grandeza da pátria. Lilia Moritz Schwarcz, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil –1870-1930, São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 103-04.

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a um tipo de conhecimento – obtido por meio da leitura extensa e intensa de

livros e/ou documentos – que pode e deve ser mobilizado nas discussões sobre

a escrita da história nacional, os limites do território, as especificidades da língua

etc. Isso indica que, longe de ser algo restrito a gabinetes antiquários, a erudição

também é um item importante dos gabinetes políticos mais amplos, sendo

utilizada para produzir argumentos de autoridade.216

A biografia de Varnhagen, em suas diferentes tonalidades a partir do gosto de cada época,

ao caracterizar suas virtudes de historiador de arquivo, ou melhor, de homem-arquivo, constituiu a imagem

monumento do intelectual exemplo da história da história do Brasil, sendo o seu fundador. Ele congregaria

uma série de virtudes e realizações – descobertas documentais – que definiria o retrato de um mito

intelectual, servindo ao projeto de construção da nação. Como já foi observado, escrever sobre a vida e

obra de Varnhagen também era uma forma de preservar e cultuar a memória do seu lugar de atuação, o

IHGB.

Nesse processo de fabricação do Varnhagen-monumento, caberia fazer a associação

autor e obra para que se cumprisse a caracterização do biografado. A sua obra serviria para explicá-lo,

para o desvendamento da sua verdade íntima. O conjunto de seus escritos permitiria concretizar a

construção do Varnhagen universal, capaz de ser atemporalmente compreendido por todos, não somente

como o mais verdadeiro símbolo da escrita da história do Brasil no século, mas também como a síntese da

ilusória sensação de ser o pensamento histórico padrão de todo o período imperial, o que não abriria

espaço para a diferença, o conflito, a dissidência – o desvio.217

Se Varnhagen era o mesmo sempre na sua postura como homem de arquivo e historiador-

juiz, como sentenciaram os biógrafos, deve-se deduzir que os discursos sobre ele e o IHGB deveriam

continuar se fixando na idéia de permanência e continuidade. Logo, a sua história não comportaria o

acaso, o descontínuo. Então, a razão de tantas biografias falando do mesmo Varnhagen seria a defesa de

um status quo historiográfico do qual o IHGB não abriria mão, mesmo diante da emergência de outros

fazeres da história – com diferentes lugares, procedimentos de análise e construções discursivas.218

216 Rebeca Gontijo, O “cruzado da inteligência”: Capistrano de Abreu, memória e biografia, Anos 90, op. cit., p. 60. 217 Conferir: Pierre Bourdieu, A ilusão biográfica, in: Marieta de Moraes Ferreira e Janaina Amado (orgs.), Usos e abusos da história oral, op. cit. Segundo Celia Maria Marinho de Azevedo, com base nas proposições de Dominick LaCapra, há relações entre vida do autor e texto que extrapolam e mesmo contradizem as intenções manifestas do autor. Há, portanto, necessidade de se desenvolver uma perspectiva psicobiográfica para que se possa perscrutar as motivações do autor, as quais podem ser apenas parcialmente conhecidas por ele, ou mesmo inconscientes. Celia Maia Marinho de Azevedo, A nova história intelectual de Dominick LaCapra e a noção de raça, in: Margareth Rago e Renato Aloizio de Oliveira Gimenes (orgs.), Narrar o passado, repensar a história, op. cit., p. 132. 218 Conferir: Michel de Certeau, A escrita da história, Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 2000.

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Ele incorporaria a verdade, ao menos aquela desejada pelo corpo social do IHGB, que se

instituía como um espaço de produção de saber sobre e para o Estado. Por intermédio desses usos de sua

memória, ficava evidente a intensidade e constância da relação entre poder, direito e verdade presente, por

exemplo, na construção do discurso histórico. Por esta razão a permanente avaliação se o visconde de

Porto Seguro era ou não era um historiador-juiz ideal.

Neste sentido, para Michel Foucault, estabeleceu-se na sociedade ocidental – o no Brasil

não seria diferente – uma vontade (para não dizer obsessão) de verdade:

O poder não pára de questionar, de nos questionar; não pára de inquirir, de

registrar; ele institucionaliza a busca da verdade, ele a profissionaliza, ele a

recompensa. Temos de produzir a verdade como, afinal de contas, temos de

produzir riquezas, e temos de produzir a verdade para poder produzir riquezas.

E, de outro lado, somos igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a

verdade é a norma; é o discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele

veicula, ele próprio propulsa efeitos de poder. Afinal de contas, somos julgados,

condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira

de viver ou a uma certa maneira de morrer, em função de discursos verdadeiros,

que trazem consigo efeitos específicos de poder. Portanto: regras de direito,

mecanismos de poder, efeitos de verdade. Ou ainda: regras de poder e poder

dos discursos verdadeiros.219

Enfim, por esta lógica biográfica essencialista, fosse pela ironia do destino, ou pelo

determinismo biológico, ou pelo fardo do contexto, a vida explicaria a obra e vice-versa. Ela anunciaria a

verdade do autor e da sua sociedade. A combinação dos fragmentos (escritos) permitiria a emergência da

totalidade do sujeito. Segundo Antonio Celso Ferreira, as homenagens póstumas ou em vida cumpririam a

tarefa de delinear para o presente e a posteridade o modelo ideal (inventado) almejado: o homem público,

pesquisador sério, escritor de múltiplas habilidades e, além de tudo, dotado de uma bela oratória.220

219 Michel Foucault, Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976) [aula de 14 de janeiro de 1976], op. cit., p. 29. 220 Antonio Celso Ferreira, A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940), op. cit., p. 123.

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1.6. Os juízos sobre a escrita da Historia geral do Brazil______________________________________

No contexto da publicação da 7ª edição da Historia geral do Brazil, em fins de 1962, o

historiador Hélio Vianna definiu esta como a maior e melhor obra relativa a todo o período colonial até o

processo de independência do Brasil, destacando que as qualidades de Varnhagen foram proclamadas

pelos estudiosos da história do Brasil, começando por seu primeiro anotador, Capistrano de Abreu, em

1878, passando por Rodolfo Garcia, em ensaio biobibliográfico de 1928, até a biografia de Clado Ribeiro

de Lessa, publicada na Revista do IHGB entre 1954 e 1955. Estes textos, segundo o autor, exploraram ao

longo das décadas após seu falecimento as singularidades de sua obra.221

A importância do legado de Varnhagen para a escrita da história do Brasil foi elogiada por

Joaquim Manuel de Macedo, no discurso de seu necrológio em 1878. Ele era elevado à condição de

primeiro historiador do Brasil. Em comparação com Rocha Pitta e Southey, Varnhagen havia anunciado

uma nova página na história da história da jovem nação àquela época:

Varnhagen não desthronou Rocha Pitta, nem annullou Southey, que ficaram

inabalaveis na grandeza de suas obras, medidas pelas proporções possiveis dos

conhecimentos historicos do Brasil nos tempos em que um e outro escreveram;

mas, não lhes disputando a palma da gloria chronologica, excedeu-os muito em

verificação de factos e de datas, em esclarecimentos documentados, a espancar

dúvidas e escuras nuvens de história, além de avançar não pouco em

informações e juízos sobre cousas de época mais recente.

Varnhagen assumiu por isso o elevado gráo de primeiro historiador do Brasil até

os nossos tempos, e basta isso para a glorificação do seu nome e para a

perpetuidade honorífica de sua memoria.222

Na mesma direção do discurso do orador do IHGB, Capistrano de Abreu reconheceu a

magnitude de sua obra por ser um grande progresso na maneira de conceber a história pátria, exigindo,

221 Hélio Vianna, Singularidade de um historiador [A propósito da 7ª edição integral da História Geral do Brasil e da 5ª edição da História da Independência, de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro], RIHGB, op. cit., p. 362. 222 Joaquim Manoel de Macedo (orador), Discurso na Sessão Magna Anniversaria do Instituto Histórico e Goegraphico Brasileiro no dia 15 de dezembro de 1878, RIHGSP, op. cit., p. 487.

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portanto, respeito e gratidão. A lógica da Historia geral do Brazil diferenciava-se da concepção de história

dos primeiros cronistas ou mesmo de um Rocha Pitta. Para o autor de Capitulos de história colonial,

Já não é a concepção de Gândavo ou Gabriel Soares, em que o Brasil é

considerado simples apêndice de Portugal, e a história um meio de chamar a

emigração, e pedir a atenção do governo para o estado pouco defensável do

país, sujeito a insultos de inimigos, contra os quais se reclama proteção. Não é

concepção dos cronistas eclesiásticos, que vêem simplesmente uma província,

onde a respectiva Congregação prestou serviços, que procuram realçar. Não é

de Rocha Pita, atormentado pelo prurido de fazer estilo, imitar Tito Lívio e achar

no solo americano cenas que relembrem as que passaram na Europa. Não é a

de Southey, atormentado ao contrário pela paciência de fugir às sociedades do

Velho Mundo, visitar países pouco conhecidos, saciar a sede de aspectos

originais e perspectivas pitorescas, a que cedem todos os poetas transatlânticos,

desde os autores de Atala e do Corsário até os das Orientais e Clara Gazul...

Não. Varnhagen atende somente ao Brasil, e no correr de sua obra procurou

sempre e muitas vezes conseguiu colocar-se sob o verdadeiro ponto de vista

nacional.223

Ao referir-se sobre a tarefa do historiador, Oliveira Lima afirmou que o estudo da história

da pátria iria além de uma mera tarefa simpática e agradável, traduzia-se na satisfação de uma tendência

da alma nacional:

O passado não só envolve a tradição, como gera o incentivo da acção pela

lembrança dos feitos gloriosos de outras gerações, que com a distancia do

tempo perdem as asperidades e imperfeições, e mais gloriosos parecem ainda

na sua idealização vaporosa não se lhes conhecendo as sombras nem os

defeitos. Assim, na pintura, por effeito da perspectiva, esfumao-se os contornos,

esbatem-se as cores, corrigem-se as desigualdades e uniformisa-se a visão.

Além disso, o passado pesa com todo o seu peso sobre o presente,

engrinaldando-o com a messe das suas virtudes e manchando-o com a

recordação dos seus crimes. O historiador que, exalçando-as, evoca as

223 João Capistrano de Abreu, Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos (Crítica e História), op. cit., p. 89-90.

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primeiras e, vilipendiando-os tenta corrigir os segundos, faz obra de moralista e

merece mais do que a admiração, tem jus á veneração publica.224

Diante desses desafios de ofício, somente os sentimentos de honestidade profissional e de

equidade social de Varnhagen permitiriam que ele realizasse a missão de escrever a história do Brasil.

Para Oliveira Lima, Varnhagen havia feito uma obra de moralista com proposta pragmática, escrevendo

para incentivar os homens de seu presente à ação:

Nas proprias palavras delle a historia deve ter por intenção “formar e melhorar o

espirito publico nacional”, e foi sem tergiversações que desempenhou este papel

de moralista, na accepção mais elevada da palavra, a saber, do historiador que

faz servir a historia de ensinamento para os seus contemporaneos, porque,

como Varnhagen disse algures, o presente não é mais do que a repetição do

passado.225

A originalidade de Varnhagen em sua empreitada, nas palavras de Pedro Lessa, estava na

ausência de um modelo, de um antecessor ou de um guia para orientá-lo. Este fato era mais do que

suficiente para celebrá-lo e tomar cuidado na força das críticas. Para o conferencista, nenhum brasileiro ou

português teria escrito um livro que pudesse carregar o título de História do Brasil antes da publicação de

sua Historia geral do Brazil:

Perfeitamente ocioso fora demonstra-lo, recordando neste momento a natureza

dos escriptos dos nossos primeiros chronistas como Gandavo, Anchieta,

Nóbrega, Gabriel Soares, que nunca poderiam pretender o titulo de historiador.

Os que vieram depois, ou escrevessem sobre assumptos especiaes e muito

restrictos, como Jaboatão na Chronica dos Frades Menores da Provincia do

Brasil, inçada, como era natural, de superstições e graves erros, ou se

occupassem de nobiliarchias, como Pedro Taques na Genealogia das principaes

famílias de S. Paulo, titulo que por si só, quaesquer que fossem os desvelos do

auctor no consultar e interpretar os archivos e documentos, exclue a idéa de

Historia; ou preparassem as Memorias para a Historia de uma capitania, como

224 Manoel de Oliveira Lima. Francisco Adolpho Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, RIHGSP, op. cit., p. 76-78. 225 Ibidem, ibidem.

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fez para a de S. Paulo frei Gaspar da Madre de Deus, que Capistrano de Abreu

recommenda que sempre se leia com cautela; ou accumulassem

desordenadamente materiaes para a Historia, como Pizarro nas Memorias

historicas do Rio de Janeiro e das provincias annexas á juristicção do Vice-Rei

do Estado do Brasil; ou Luiz Gonçalves dos Santos nas Memorias para servir á

Historia do reino do Brasil; todos esses que vieram depois de Gandavos, dos

Nobregas, dos Gabrieis Soares, apenas proporcionaram ao historiador alguns

subsidios, que só podiam ser aproveitados depois de uma rigorosa selecção. Tal

foi tambem o concurso de Ayres do Casal, de Fernandes Pinheiro, de Ignácio

Accioli e de alguns outros.226

A Historia geral do Brazil, segundo Clado Ribeiro de Lessa, constituiu-se como a primeira

história global brasileira que apareceu no século XIX, principalmente por ser da autoria de um historiador

da terra. Era escrita com base na lição dos documentos originais e nos bons cânones da heurística e da

crítica. À época de sua publicação,

O público ilustrado, as maiores sumidades de ambos os continentes, acolheram-

na com entusiasmo, consagrando definitivamente, como pai da história brasileira,

êsse estudioso no vigor da idade, que no frontespício de sua obra, intitulando-se

Um sócio do Instituto Histórico do Brasil natural de Sorocaba, prestava de inicio

homenagem aos dois títulos de que mais se orgulhava.227

Esta afirmação acerca da receptividade da Historia geral do Brazil foi feita anteriormente

por Rodolfo Garcia, quando este observou que essa obra foi recebida com geral aplauso. Antes da sua

publicação, relatou o historiador no ensaio biobibliográfico, a história do Brasil carecia de pesquisa

documental, muito presa às crônicas, embora úteis, mas insufficientes, como fontes unicas, para a

interpretação definitiva dos factos narrados, para lhes dar a significação precisa, as circunstâncias que os

determinaram e a finalidade que cumpriram.228

226 Pedro Lessa, (sem título – elogio a Francisco Adolfo de Varnhagen, pronunciado na Sessão Solenne Especial, em 17 de fevereiro de 1916, commemorativa do centenário do nascimento do Visconde de Porto Seguro), RIHGB, op. cit., p. 624. 227 Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (vol. 223), RIHGB, op. cit., p. 170. 228 Rodolfo Garcia, Appenso Ensaio Bio-bibliográfico sobre Francisco Adolpho de Varnhagen, Visconde de Porto-Seguro, in: Francisco Adolpho de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, História Geral do Brasil antes de sua separação e independência de Portugal, op. cit., p. 436-452.

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Ao ordenar de forma sistemática a história colonial, Varnhagen havia provocado uma

distorção na narrativa em relação aos portugueses. Segundo Américo Jacobina Lacombe, a maioria dos

estudiosos de sua época defendia o movimento de independência com uma forte marca de desaprêço por

tudo que era metropolitano. Estes literatos, imbuídos do romantismo crescente, transferiram todo o

sentimento de patriotismo, para o índio, o caboclo, glorificado nos desfiles na Bahia, nos panos de boca de

teatros, nos poemas e nas canções.229

Para o futuro presidente do IHGB, as idéias políticas de Varnhagen, presentes na Historia

geral do Brazil, navegando em rota contrária dos indianistas românticos, estariam fundamentadas na

defesa da continuidade. Entre o projeto do caboclismo romântico e da europeização que se vê emergir com

a corrente comtista, Varnhagen estaria numa posição de equilíbrio:

O que ele queria estabelecer como base do seu nacionalismo era a continuidade

com a obra colonizadora. Mas ficou ainda aquém do movimento que um século

depois se vem fazendo, ressaltando as qualidades étnicas e culturais do

português, sob o título de lusotropicalismo e ibero-tropicalismo.230

Assim como os demais estudiosos de Varnhagen, Américo Jacobina Lacombe não deixou

de registrar que sua obra principal era uma criação sem paralelo, seja pela vastidão da pesquisa, seja pela

acumulação dos fatos, seja pelo achados novos. Historia geral do Brazil trazia nas suas páginas o esforço

de constituição de uma síntese, numa suma não só cronológica, como crítica.231

Esse desejo de síntese constituiu-se em objeto das críticas em torno da sua obra, uma vez

que era acusado de não tê-lo concretizado a contento ou se como gostaria que tivesse sido feito. Para

José Honório Rodrigues, apesar de conter revelação de fatos mais do que poderia esperar o leitor, a

Historia geral do Brazil não obedecia a critérios rigorosos na distribuição da matéria. Era um livro de viés

mais cronológico do que temático. Os títulos dos capítulos, na sua análise, eram inexpressivos no

desvendar de seus temas, mais escondiam que revelavam as novidades que continham. Em síntese,

porque é mais cronológica que temática, na concepção geral, é também expressão de um processo

construtivo mais estático que dinâmico. (...) O grande tema é a obra da colonização portuguêsa no

Brasil.232

229 Américo Jacobina Lacombe, As idéias políticas de Varnhagen, RIHGB, op. cit., p. 141. 230 Ibidem, p. 142. 231 Ibidem, p. 144. 232 José Honório Rodrigues, Varnhagen, mestre da História Geral do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 175-176.

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A crítica de José Honório Rodrigues a Varnhagen remonta aos juízos de Capistrano de

Abreu, nos textos de 1878 e 1882 respectivamente, quando este acusa o autor da Historia geral do Brazil

de jamais colocar o debate no campo da justiça, mas no da conveniência e da utilidade.233

No Necrológio de 1878, Capistrano de Abreu percebeu que, embora a obra de Varnhagen

inovasse pela escavação de documentos, ela pecava pela ignorância ou desdém do corpo de doutrinas

criadoras que naquela época se constituíam como ciência sob o título de sociologia. Na sua leitura,

Sem esse facho luminoso, ele não podia ver o modo por que se elabora a vida

social. Sem ele as relações que ligam os momentos sucessivos da vida de um

povo não podiam desenhar-se em seu espírito de modo a esclarecer as

diferentes feições e fatores reciprocamente.234

A Historia geral do Brazil, retomou no ensaio de 1882, seria um dos livros mais ariscos e

mais fugidios que conhecia, pois haveria em suas páginas um quê, que escapa, que resiste, que não se

acha quando se procura, mas que é preciso procurar para achar.235

Para Capistrano de Abreu, o visconde de Porto Seguro poderia ter apresentado obra

melhor, se não fosse a falta de aptidões artísticas, se ele fosse capaz de ter uma noção de conjunto:

Sob as mãos de Varnhagen, a história do Brasil uniformiza-se e esplandece; os

relevos arrasam-se, os característicos misturam-se e as cores desbotam. Vê-se

uma extensa, mas plana, sempre igual, que lembra as páginas de um livro que o

brochador descuidoso repete. E, todavia, mesmo as pessoas que conhecem a

história pátria infinitamente menos que Varnhagen, percebem que as épocas se

sucedem, mas não se parecem, e muitas vezes não se continuam.236

233 João Capistrano de Abreu, Sobre o Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos (Crítica e História), op. cit., p. 137. 234 João Capistrano de Abreu, Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos (Crítica e História), op. cit., p. 90. 235 João Capistrano de Abreu, Sobre o Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos (Crítica e História), op. cit., p. 139. Segundo Maria da Glória de Oliveira, para a geração de Capistrano de Abreu a escrita da história pressupunha a circunscrição de uma ordem de tempo específica, o tempo da nação. Um desafio ao qual ele responderia distintamente do modo com que o havia feito, por exemplo, Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878): mesmo escrevendo a partir da sua História Geral, projetou quebrar os seus “quadros de ferro” e, a contrapelo, abriu caminhos, “a grandes traços e largas malhas”, com a sua história em capítulos do Brasil colonial. Maria da Glória de Oliveira, Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu (1853-1927), op. cit., p. 10. 236 João Capistrano de Abreu, Sobre o Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos (Crítica e História), op. cit., p. 140.

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Em relação a estas críticas, Pedro Lessa partiu em sua defesa, fazendo uma série de

indagações aos que julgaram de forma injusta o creador da Historiographia do Brasil. A peça oratória em

homenagem a Varnhagen tornou-se uma espécie de réplica quanto às acusações que pesavam contra

suas posições políticas, seus procedimentos de pesquisa e sua obra:

Quero alludir, senhores, áqueles implacaveis criticos de Varnhagen que

reconhecem e confessam redondamente a exactidão das discripções, a

authenticidade dos documentos e a segurança da critica, que são os predicados

essenciais da Historia Geral do Brasil, mas accusam com vivacidade o nosso

historiador do grave delicto de haver desprezado o conselho de von Martius, e de

não ter feito da nossa Historia um epos “composto com todo amor e todo o zêlo,

patriotico, com aquelle fogo poetico proprio da juventude, o que não exclue a

applicação e profundeza de juizo e firmeza de character, peculiares á edade

madura e varonil.237

Varnhagen publicou a sua obra no meado do seculo XIX. Não lhe podiam servir

de modelo os nove capitulos, dedicados ás nove Musas, e recheados de lendas

e fabulas, da Historia de Heródoto, nem aquelllas descripções de scenas da mais

enaltecida moral, phantasiadas por Xenophonte na Historia de Cyro, nem

aquelles equivocos, erros e falsidades, nem aquellas brilhantes e

eloquentissimas arengas, que abundam nas Decades de Tito Livio, nem aquellas

páginas admiraveis que Sallustio escreveu só para exhibir o seu estylo

magnífico.

Em 1854, não era possivel a um espirito sério e instruido conceber a Historia

desse modo. A primeira qualidade do historiador (será preciso repeti-lo?) é a

fidelidade nas descripções, a verdade, a exactidão.238

Na opinião do jurista, a falta mais grave pela qual foi sistematicamente atacado foi de uma

apreciação, de um conceito, de um comentário: o do juízo de Varnhagen sobre a escravização dos indios e

237 Pedro Lessa, (sem título – elogio a Francisco Adolfo de Varnhagen, pronunciado na Sessão Solenne Especial, em 17 de fevereiro de 1916, commemorativa do centenário do nascimento do Visconde de Porto Seguro), RIHGB, op. cit., p. 630. 238 Ibidem, p. 630-631.

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o tractamento a estes ministrado. Este seria o calcanhar de Aquiles do visconde de Porto Seguro

constantemente lembrado por seus contemporâneos e posteriores.239

Em sua volumosa biografia de Varnhagen, Clado Ribeiro de Lessa destacaria os embates

acerca da proposta de escravização dos índios presentes na sua obra. Para ilustrar os meandros da

contenda de Varnhagen com os indianistas românticos dentro do IHGB, o biógrafo citou a dissertação Os

Índios perante a nacionalidade brasileira, publicada em 1857 no tomo II da Historia geral do Brazil:

Em 1857 publicava o 2º volume da História Geral, precedendo-o da dissertação:

Os Índios perante a nacionalidade brasileira, anteriormente lida em duas sessões

da Academia de História de Madrid. Nesse trabalho faz solene profissão de fé

contrária à teoria do patriotismo cabloco, e, discutindo várias proposições

atinentes o tema, termina por concluir que “os Índios não eram donos do Brasil,

nem lhes era aplicável, como selvagens, o nome de Brasileiros; não podiam

civilizar-se sem a presença da fôrça, da qual não se abusou tanto como se

assoalha; e finalmente de modo algum podiam êles ser tomados para nosso

guias no presente e no passado em sentimentos de patriotismo ou em

representações da nacionalidade”.

Estas conclusões, tão sensatas em si mesmas, e tão moderadas na forma por

que foram expostas, provocaram, não obstante, tremenda campanha por parte

dos defensores intransigentes dos índios, de que foi campeão o néo-convertido

Timon, e ainda hoje têm contestadores exaltados entre os admiradores

incondicionais dos jesuítas (cuja obra e pensamento diretor, aliás, ignoram) e

aquêles que fazem do Humanitarismo meio de vida e promoção.240

De acordo com José Honório Rodrigues, além da sua oposição ao caboclismo romântico,

Varnhagen também deixava transparecer sua repulsa às populações brasileiras de camadas sociais mais

baixas ou inferiores. Esse sentimento traduzia-se na forma como os representava em trechos da Historia

geral do Brazil, que se convertiam em noticiário de ocorrências policiais. Como juiz e moralista da história,

239 Conferir: Laura Nogueira Oliveira, Os índios bravos e Sr. Visconde: Os indígenas brasileiros na obra de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit. 240 Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (vol. 223), RIHGB, op. cit., p. 178.

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Varnhagen deixava transparecer no julgamento das figuras e no tratamento dos inconformismos

preconceitos políticos, sociais, religiosos. 241

Tanto Pedro Lessa, quanto Clado Ribeiro de Lessa advogaram abertamente em defesa

(da posição) de Varnhagen no trato das questões sobre os indígenas. Pedro Lessa alertou para a

necessidade de compreendê-lo à luz de seu contexto, mostrando que suas idéias não estavam restritas a

seus escritos. As idéias de Varnhagen

Faziam parte integrante do ambiente da ephoca. A necessidade do recurso á

força e a inutilidade em muitos casos da catechese e dos meios suasorios eram

affirmadas em documentos officiaes, em que Varnhagen se apóia para justificar

as suas asserções. Além de muitos relatórios de presidentes de provincia,

lembra o nosso historiador muito notadamente o do ministro do Imperio de 1852,

em que se lê este trecho, relativo aos indigenas: “sem o emprego da fôrça... não

é possivel repellir a aggressão dos mais ferozes, reprimir suas correrias, e

mesmo evitar as represalias a que ellas dão logar”, ao que accrescenta

Varnhagen, reproduzindo a observação de um missionário: “Entre os Indios era

tal a idéa dos beneficios da ameaça e do terror, que elles proprios pretendiam

intimidar os céos, disparando-lhes frechas com o intento de applaca-lo”.

Varnhagen era um homem profundamente convencido das idéas que expendia a

respeito dos Indios, e sobretudo perfeitamente persuadido de que a applicação

de seu plano redundava em beneficio incontestavel para os indígenas, por ser o

unico processo efficaz de civilização para os selvagens.242

Já para Clado Ribeiro de Lessa, em muitos aspectos concordando com Varnhagen, esses

posicionamentos se justificariam na sua qualidade maior: o patriotismo. Em outras palavras, o biógrafo

defendia a permanência do pensamento racista excludente como instrumento de análise e ação na

historiografia e ideologia política brasileira.243

241 José Honório Rodrigues, Varnhagen, mestre da História Geral do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 177-178. Para uma análise dos posicionamentos políticos e ideológicos de Varnhagen na construção do discurso histórico, conferir: Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999. 242 Pedro Lessa, (sem título – elogio a Francisco Adolfo de Varnhagen, pronunciado na Sessão Solenne Especial, em 17 de fevereiro de 1916, commemorativa do centenário do nascimento do Visconde de Porto Seguro), RIHGB, op. cit., p. 655-656. 243 Neste tipo de discurso civilizatório pautado pela exclusão dos outros internos defendido por Varnhagen e, conseqüentemente, por seu biógrafo mais apaixonado, Michel Foucault identificaria a vinculação com uma espécie de racismo de Estado: um racismo que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre os seus próprios elementos, sobre os seus próprios produtos; um racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões fundamentais da normalização social. Michel Foucault, Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976) [Aula de 21 de janeiro de 1976], op. cit., p. 73.

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Em nome desse sentimento patriótico de forte marca de intolerância para com os outros –

índios e negros, defendeu Clado Ribeiro de Lessa, Varnhagen enfrentou os dilemas e problema de sua

época:

Os tão decantados monarquismo intolerante e lusitanismo de Varnhagen mal

podem ser estudados separadamente, pois um sentimento era função do outro, e

resumiam-se numa única qualidade: patriotismo. Reconhecendo, em face da

evidência, a supremacia do papel dos portuguesês e de seus descendentes

brancos na conquista do território pátrio aos bárbaros, e em sua integração na

cultura gótico-romana do Ocidente europeu, seria ilógico que o historiador

pudesse simpatizar: 1º, com os índios bravos e errantes, que constituíam

embaraço à ocupação produtiva do solo; 2º, com a ação dos jesuítas no

empenho de segregarem o silvícola do contato com o colono europeu, e subtraí-

lo à prestação de serviços êste; 3º, com as emprêsas militares de franceses,

ingleses e holandeses, que tentaram estabelecer-se em pontos diversos do país,

arrancando-os ao domínio dos primeiros colonizadores, qualquer que fôsse o

valor dêsses alienígenas como agentes de civilização; 4º, finalmente, com os

diversos movimentos de propósito separatistas do período colonial do primeiro

reinado, todos de tendências a um tempo republicanas e localistas. Acima de

tudo colocava a magnitude e a unidade política do território brasileiro, que

sómente a forma monárquica tinha o condão de realizar e manter; e a

preponderância dos elementos brancos civilizadores., que eram os filhos da

Europa e o mazombos de sangue puro, infelizmente em minoria, pensamos nós,

e sómente capazes de resistir a avalanche desorganizadora do nativismo

mestiço graças ao dique constituído por um regime de índole aristocrática,

embora temperado pelas idéias liberais do século XIX.244

Por esta linha de interpretação, a vida de Varnhagen justificava única e exclusivamente as

suas posições políticas e ideológicas. A sua biografia ajudaria a definir sua obra, ora condenando, ora

absolvendo Varnhagen. Os seus escritos assumiriam o papel de prova-chave no tribunal da história,

formado pelos seus biógrafos e estudiosos, que o elevou a condição de pai da história do Brasil.

244 Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (vol. 224), RIHGB, op. cit., p. 185-186.

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Neste sentido, a leitura da Historia geral do Brazil cumpriria a função de legitimar esses

discursos de reconhecimento de seu legado historiográfico e também de preencher as lacunas da sua

existência, revelando aspectos não verificados em outras fontes documentais. Ela ajudaria a constituir o

arquivo de Varnhagen no processo de enquadramento de sua memória. 245

Essa relação automática entre autor (Varnhagen) – obra (Historia geral do Brazil) –

contexto (Brasil Império) apresentada pelos estudiosos da vida e obra do visconde de Porto Seguro tem

apresentado seus limites de interpretação, especialmente na sua pretensão de fabricação de uma

totalidade intelectual. A invenção biográfica de Varnhagen congrega nos seus alicerces a busca de uma

imagem completa de sua vida, presa a uma realidade dada, uma metanarrativa denominada Brasil

Império.246

A sua Historia geral do Brazil assumiria neste projeto de escrita da biografia de Varnhagen

a função de legado, de contribuição para a posteridade. Ela seria o seu testamento intelectual para o

Brasil: fazer a primeira história da nação. Em diversos trechos dos textos biográficos, a idéia da herança,

da paternidade, se fez presente ao se referir a Varnhagen.

Essas considerações acerca da conexão entre autor e obra no discurso biográfico

aproximaram-se das afirmações de Rebeca Gontijo, quando esta observou que

A relação da trajetória individual à história da nação é um recurso capaz de

alimentar um duplo entendimento: o da obra (e, por conseguinte, do autor) e o da

nação. O autor é valorizado devido à sua capacidade (nata ou adquirida) de

compreender e explicar o Brasil. A obra adquire relevância por ser o meio pelo

qual essa explicação se torna possível. Além de contribuírem para constituição

de um autor como unidade sólida e fundamental, que serve como uma espécie

de âncora para a obra e para outros discursos.247

245 Em Mal de arquivo: uma impressão freudiana, Jacques Derrida teceu as seguintes considerações sobre o conceito de arquivo no mundo da cultura: Não devemos começar distinguindo o arquivo daquilo a que o reduzimos freqüentemente, em especial a experiência da memória e o retorno à origem, mas também como o arcaico e o arqueológico, a lembrança ou a escavação, em suma, a busca do tempo perdido? Exterioridade de um lugar, operação topográfica de uma técnica de consignação, constituição de uma instância de um lugar de autoridade (o arconte, o arkeion, isto é, freqüentemente o Estado e até mesmo um Estado patriárquico ou fratriárquico), tal seria a condição do arquivo. Isto não se efetua nunca através de um ato de anamnese intuitiva, viva, inocente ou neutra, a originalidade de um acontecimento. Jacques Derrida, Mal de arquivo: uma impressão freudiana, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001, p. 07-08. 246 Para Nilo Odália, seguindo esta linha de raciocínio, a Historia geral do Brazil resumiria e consubstanciaria os anseios, as preocupações, os ideais, os projetos de uma classe dominante em relação a uma nação em constituição. Na sua leitura, a obra máxima de Varnhagen assumiria uma visão de mundo política, pois trazia a dupla missão de revelar que a nação em formação era a síntese do processo colonizador e civilizador, europeu e branco, de orientador da continuidade dessa formação. Conferir: Nilo Odália, Biografia, in: Varnhagen. Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo, Ática, 1979, p. 07-27; Nilo Odália, As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna, op. cit. 247 Rebeca Gontijo, O “cruzado da inteligência”: Capistrano de Abreu, memória e biografia, Anos 90, op. cit., p. 65.

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Por esta leitura, o visconde de Porto Seguro, em que pesem as críticas ao modelo da sua

escrita, seria o Pero Vaz de Caminha do século XIX a relatar o descobrimento e saga da nação, buscando

suas origens na primeira certidão de nascimento do Brasil, em 1500.248 A Historia geral do Brazil seria a

epopéia do Brasil – a nova certidão documentada de seu nascimento. Eles seriam os monumentos da

nacionalidade brasileira, como sentenciou Basílio de Magalhães, em 1928, no encerramento de sua

conferência em comemoração cinqüentenário da morte de Varnhagen:

Cumpre, pois ao governo do nosso paiz não permittir que o regaço carinhoso da

Patria aconchegue os restos de tão egrégio filho, - que tanto se orgulhava de

havel-a tido por berço que tanto a serviu, dentro e fóra das suas fronteiras, -

sem que, ao mesmo tempo, os encime um monumento, o qual, além de

corresponder ao “monumentum aere perenius” da “Historia Geral do Brasil”,

aponte perpetuamente á geração coetanea e aos nossos posteros, como

“grande exemplo a seguir e a venerar”, o nome de Francisco Adolpho de

Varnhagen, esclarecido e inflexivel patriota, incansavel pioneiro e fecundo cultor

das sagradas tradições nacionaes, seguro e luminoso phanal de um passado

quadrisecular em coração generoso do nosso povo, para pulsar mais forte e

confiante no presente e para poder melhor construir a sua grandeza cyclopica do

futuro!249

Em síntese, o santo ou pai da história do Brasil precisava de altar para que as futuras

gerações de historiadores não se esquecessem de sua origem, ao menos do começo que se almejava

instituir como uma verdade. Neste caso não seria exagero perceber indícios de que a sua Historia geral do

Brazil seria uma espécie de evangelho da História, relembrando que o próprio José Honório Rodrigues

pregava que não podia se formar historiador no Brasil sem ler Varnhagen.250 Só resta saber qual seria o

sentido desta obrigatoriedade da leitura: compreensão, juízo ou celebração?

248 Para uma análise sobre as apropriações da carta de Caminha na construção do discurso fundacional da nação, conferir: Leandro Karnal & Flávia Tatsch, A Memória Evanescente: Documento e História, in: Leandro Karnal e José Alves de Freitas Neto (orgs.), A Escrita da Memória: interpretações e análises documentais, São Paulo, Instituto Cultural Banco Santos, 2004, p. 40-61. 249 Basílio de Magalhães. Discurso – Sessão Commemorativa do 50º Anniversario do Falecimento de Francisco Adolpho de Varnhagen (Visconde de Porto Seguro) – realizada em 29 de junho de 1918, RIHGB, op. cit., p. 935-36. 250 Conferir: José Honório Rodrigues, Teoria da História. Introdução Metodológica, op. cit, p. 455.

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1.7. O historiador-obra-monumento da nação (e do IHGB)__________________________________

Ao pensar a história numa relação dialógica, Dominick LaCapra propôs que a sua

compreensão pudesse articular os esforços das pesquisas documentais com a interpretação, desviando

dessa maneira das simplificações de textos complexos, como a Historia geral do Brazil, em meros reflexos

de seu tempo – como se traduzisse o pensamento do seu autor (Varnhagen) e de seu tempo (a sociedade

do Brasil Império).251

Negligenciar ou tratar de forma secundária a relevância da interpretação nas práticas do

historiador, transforma-lo-ia num mero observador a descrever os fatos ou coletor e arranjador de

documentos. Desconsiderar o ponto de vista do historiador acerca do seu objeto de estudo, conduziria a

pseudo-idéia de uma posição onipresente, isenta, pura do historiador. Historicizar as formas de

entendimento da vida e obra de Varnhagen seria uma estratégia para desnaturalizá-las, mostrando as

estratégias discursivas na fabricação pelos sócios do IHGB do historiador-monumento e obra-monumento

da história da história do Brasil.252 É preciso dessacralizar o cânone historiográfico.253

A eleição de Varnhagen e da Historia geral do Brazil como símbolos da origem da

historiografia brasileira tem atendido a diferentes interesses da cultura histórica e política, em seus

diferentes matizes, a partir da segunda metade do século XIX e ao longo do XX. Embora se possa produzir

uma visão a-histórica da sua obra, este processo de produção dos discursos tem sido dinâmica, marcada

por diferentes sujeitos, lugares institucionais e saberes. No caso deste capítulo, centrou-se a análise nos

historiadores vinculados direta ou indiretamente ao IHGB e à construção permanente da sua memória

como casa da história da nação.

Ao longo do primeiro centenário de sua morte, Varnhagen e o conjunto de sua obra foram

transformados em historiador-obra-monumento da nação e do IHGB, servindo como símbolos para a

celebração da nacionalidade brasileira e da memória da casa da memória nacional. Os membros do IHGB

251 Para o autor, uma implicação prática dessas considerações é a possibilidade de reconstruir normas e convenções em formas que podem ser mais duradouras precisamente porque nos permitem argumentar melhor com o criticismo e com a contestação. A esse respeito, uma função do diálogo com o passado é aprofundar a tentativa de determinar o que merece ser preservado, reabilitado ou transformado criticamente na tradição. Dominick LaCapra, Rethinking Intellectual History, in: Dominick LaCapra e Steven L. Kaplan (eds.), Modern European Intellectual History: Reappraisals and New Perspectives, op. cit., p. 78. 252 Ibidem, p. 78-79. 253 Para Pedro Paulo Abreu Funari e Glaydson José da Silva, as formulações pós-modernas, ao postularem a desnaturalização dos sujeitos e identidades ontológicos como o homem universal europeu, burguês, colonialista, branco, macho e cristão, têm contribuído para uma compreensão da pluralidade das experiências, principalmente ao reconhecerem a elaboração de sujeitos e identidades como produtos de forças culturais conflitantes, que operam em meio a jogos de relações de poder marcados pelo conflito. Pedro Paulo Abreu Funari e Glaydson José da Silva, Teoria da História, São Paulo, Brasiliense, 2008, p. 87.

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procuraram sempre vincular a origem e existência do primeiro historiador do Brasil, o fundador da história

do história do Brasil, ao momento de criação do grêmio e ao seu projeto de escrita da história.

O presidente do grêmio, Américo Jacobina Lacombe, em conferência publicada na sua

Revista, no começo dos anos 1990, manteria viva a visão consagrada por Joaquim Manuel de Macedo do

IHGB como necessidade para a emergência de Varnhagen como o pai da história do Brasil:

Eis que o homem capaz de levar a cabo este empreendimento surge

providencialmente nesse momento! Francisco Adolfo de Varnhagen, então oficial

do exército português, que volta ao Brasil para reivindicar a nacionalidade

brasileira. Não podia chegar em ocasião mais propícia. Não somente é acolhido

pelo cônego Januário Barbosa, então o grande secretário e principal incentivador

dos trabalhos do Instituto, mas é hospedado por ele. Os primeiros trabalhos de

Varnhagen estão todos publicados na Revista. Ele é um elemento-chave na

origem das questões levantadas. A “Memória da Martius”, publicada no tomo VI

da Revista, influi visivelmente na sua orientação. E começou a lenta elaboração

da sua grande História geral do Brasil que vai aparecer em 1854 e marcar uma

época em nossa historiografia. Como estilo e exposição, Capistrano considera

Southey superior. Mas a incorporação das numerosas buscas e a orientação

nacional da concepção, fazem de Varnhagen o pai da nossa história.

Sem o ambiente que ele encontrou, de interesse em torno da nossa formação,

criado pelo IHGB ele não teria talvez criado ânimo para seu trabalho.254

O IHGB soube cultivar esta memória nas celebrações de sua morte, em 1878, no

centenário de seu nascimento, em 1916, no cinqüentenário de sua morte, em 1928, no sesquicentenário de

seu nascimento, em 1966, e no centenário de sua morte, em 1978. Nessas solenidades, Varnhagen era

exaltado como filho ilustre do IHGB, exemplo a seguir e a venerar, nas palavras Basílio de Magalhães. Ele

também congregaria a mentalidade de uma época da história da nação – uma janela para se entender o

século do Império brasileiro, marcado pelo entusiasmo pela Monarquia, pelo desejo de salvar a unidade do

Império, pela narrativa da continuidade. Nas páginas da sua Revista estariam guardadas os fragmentos de

254 Américo Jacobina Lacombe, A construção da historiografia brasileira: o IHGB e a obra de Varnhagen, RIHGB, op. cit., p. 256-257.

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sua existência e as memórias produzidas pelos consócios sobre o mestre da Historia geral do Brazil, como

diria José Honório Rodrigues. 255

Segundo Américo Jacobina Lacombe, a obra de Varnhagen seria a expressão mais

perfeita daquele estado de espírito no campo da história. Ela seria perpétua assim como a memória do

IHGB, ventre que forjou seu artífice:

Esta tem tal superioridade e tal perfeição no acabamento que resistiu à

passagem da atmosfera que a criou, e o autor permanece sobranceiro na

historiografia brasileira, mesmo quando suas teses são postas em cheque. Tal é

o verdadeiro valor de uma obra científica e uma obra de arte.256

Enfim, o visconde de Porto Seguro traduziria a história do Brasil, a história da escrita da

História do Brasil e a história do IHGB. Inventar a biografia de Varnhagen era revitalizar um conjunto de

referências de lugares de autoridade, daquilo que se desejava lembrar e esquecer.257

Seu legado, a exemplo de outros letrados ilustres, materializaria a instituição, dando

literalmente um corpo a noções abstratas que as gerações posteriores desejavam celebrar. Assim como

Rui Barbosa representava a liberdade, Machado de Assis, a literatura, o Barão do Rio Branco, o território,

Varnhagen era a incorporação da história e do IHGB.258

Ao fazer o culto à figura de Varnhagen, os artífices da sua memória estariam, de certa

forma, retomando a noção de historiador como herói, presente nos textos do escritor escocês Thomas

255 Para Lúcia Lippi Oliveira, citando Raoul Girardet, a festa tem sempre uma função pedagógica e unificadora, reduzindo as diferenças existentes. Embora seu sonho homogeneizador tenha sido desfeito e hoje “a festa revolucionária tenha sido eliminada da história com seus teóricos, seus doutrinadores e seus párocos, parece, no entanto, que nem por isso desapareceu a noção de um liame necessário a ser estabelecido (ou restabelecido) entre o religioso e o político, a convicção de uma indispensável integração (ou reintegração) do sagrado na organização da Cidade”. Lúcia Lippi Oliveira, As festas que a República manda guardar, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 02, n. 04, 1989, p. 174. Conferir: Raoul Girardet, Mitos e mitologias políticas, São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 150. 256 Américo Jacobina Lacombe, A construção da historiografia brasileira: o IHGB e a obra de Varnhagen, RIHGB, op. cit., p. 257. 257 De acordo com Luigi Bonafé, a lembrança convive com o esquecimento. O ato de lembrar depende invariavelmente de uma dose considerável de seleção daquilo que é digno de ser lembrado, e da “gestão de um equilíbrio precário” ente o que deve ser dito e o que merece ser silenciado. Há muito que os teóricos da memória se voltam para a compreensão das relações entre estas duas dimensões indissociáveis da memória: a lembrança e o esquecimento. Elas apontam para a necessidade de uma reflexão sobre as relações entre passado, presente e futuro. Luigi Bonafé, Um herói em dois tempos: apontamentos para uma história da memória sobre Joaquim Nabuco, in: Martha Abreu et al (orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história, op. cit., p. 334. 258 Na leitura de João Felipe Gonçalves, as celebrações póstumas têm sustentado que os grandes homens como Rui Barbosa, Rodrigues Alves, Machado de Assis, Osvaldo Cruz entre outros construíram a nação, literalmente fizeram-na com seus dotes inatos e únicos. O Brasil era visto como um grande artifício dessas vontades individuais, como um produto desses homens com qualidade acima do normal. João Felipe Gonçalves, Enterrando Rui Barbosa: um estudo de caso da construção fúnebre de heróis nacionais na Primeira República, Estudos Históricos, op. cit., p. 154.

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Carlyle (1795-1881).259 Diante das incontáveis dificuldades do trabalho de escrita da história, o autor

vislumbrava que criar uma narrativa significava organizar o material caótico de maneira coerente, que

poderia ser traduzido pelo próprio principio de fundação do IHGB: colligir, methodisar, publicar ou archivar

os documentos necessarios para a historia e geographia do Imperio do Brazil260. O historiador-herói, nesta

leitura, além da função de mediador, desempenharia também a de árbitro, elegendo aquilo que mereceria

ser selecionado em meio ao caos. Para Débora El-Jaick Andrade,

A idéia do historiador enquanto mediador, retornaria em nova roupagem no

decorrer de seus textos [Thomas Carlyle], implicando na analogia entre a função

do historiador e a do grande homem. Inspirado na leitura dos alemães, Schlegel,

Fichte e Jean Paul Richter, Carlyle defende em sua obra a tese de que o

historiador seria uma espécie de herói diante do Caos da Existência que

corresponderia à história humana, pois seria o sujeito iluminado que conferiria

sentido, que imporia a ordem sobre a desordem, decifrando a filosofia da

natureza, que era, segundo sua definição, inesgotável, irredutível e em muitos

sentidos inapreensível.261

Uma personagem do romance Amores risíveis, do escritor tcheco Milan Kundera, interpela

um colega numa situação de debate dentro da academia sobre o significado de uma vida, de uma

biografia. Segundo a personagem do professor, qualquer vida humana daria margem a inúmeras

interpretações. Logo, completou seu raciocínio, segundo a maneira como é apresentado, o passado de

qualquer um de nós tanto pode se tornar a biografia de um chefe de Estado adorado como a biografia de

um criminoso.262

Se esta afirmação é válida, a quem serviria a eleição de Varnhagen como o patrono da

historiografia brasileira?

259 Ao analisar o papel do herói no discurso histórico, Caio César Boschi teceu as seguintes considerações: É tão exagerada a glorificação de alguns agentes históricos que por vezes somos levados a crer que se trata de personagens de ficção – e quanto mais nos afastamos da análise histórica centrada no movimento coletivo dos homens, mais se abre espaço para o aparecimento de heróis. O perfil do herói é modelado e reforçado pelos detentores do poder, que o transformam em parâmetro a ser seguido e reverenciado. A imagem pública de muitas dessas figuras, aliás, é um lembrete permanente sobre os estreitos limites entre a História e a ficção. Caio César Boschi, Por que estudar história? São Paulo, Ática, 2007, p. 54. 260 Extractos dos Estatutos, RIHGB, Rio de Janeiro, vol. I, 1839, p. 18. 261 Débora El-Jaick Andrade, Escrita da história e política no século XIX: Thomas Carlyle e o culto aos heróis, História & Perspectivas, Uberlândia, n. 35, jul./dez. 2006, p. 226. Conferir: Débora El-Jaick Andrade, O Paradoxo no pensamento de Thomas Carlyle: resistência à democracia e o culto ao grande homem, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2002; Thomas Carlyle, On History, in: Thomas Carlyle: selected writings, Harmondsworth, Penguin Books, 1986. 262 Milan Kundera, Risíveis Amores, São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 29-30.

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A partir da leitura das repetitivas biografias do visconde de Porto Seguro, forjadas em

diferentes contextos, encontrou-se uma possível reposta para tal questionamento: A sua escolha como

herói ou mito intelectual da História do Brasil pela ótica do panteon de papel do IHGB263 tinha a finalidade

de forjar um discurso que procurava arrogar para o grêmio o papel de locus fundacional da historiografia

brasileira.264 Varnhagen só seria possível como historiador graças ao surgimento do IHGB e a escrita de

uma história do Brasil verdadeiramente nacional só teria começo com ele. A história da escrita da História

do Brasil, numa linha cronológica e evolutiva, teria um marco: antes e depois de Varnhagen. Seus

antecessores não se igualariam a seu feito intelectual e seus sucessores teriam de lhe pagar tributo pelos

caminhos desbravados por ele na pesquisa e escrita histórica. Em síntese, o IHGB-Varnhagen era a

origem da historiografia nacional.265

Em nome desta representação política de defesa de espaço institucional diante da criação

e desenvolvimento da pesquisa história no interior das universidades brasileiras, sua memória foi

enquadrada e ressignificada, aparando arestas, fissuras e desvios. Era o veneno amargo da origem que

descia pela garganta dos historiadores do Brasil do século XX.266

No próximo capítulo, os fragmentos escritos de Varnhagen serão objeto de estudo para se

compreender como o dito destemido bandeirante, assim nomeado pelos seus biógrafos, produziu suas

próprias representações sobre si mesmo, o IHGB e a escrita da história do Brasil, bem como narrou os

bastidores da composição da 1ª edição de sua Historia geral do Brazil. Uma história que não

necessariamente marcava uma relação de profunda cumplicidade e aceitação em relação ao IHGB e ao

seu projeto de construção da memória nacional, pois segundo o escritor norte-americano Mark Twain

(1835-1910), as biografias são apenas as roupas e os botões da pessoa. A vida da própria pessoa não

pode ser escrita.267

263 A metáfora panteon de papel para se referir à Revista do IHGB foi cunhada por Maria da Glória de Oliveira, em Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista, op. cit., p. 31. 264 Segundo Ian Watt, qualquer narrativa deve ter um começo no tempo; e isto significa que uma das funções do mito é ancorar o presente no passado, e da história é ancorar o passado no presente. Ian Watt, Mitos do Individualismo Moderno: Fausto, D. Quixote, D. Juan, Robinson Crusoé, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1997, p. 323. 265 O discurso inaugural de criação do Instituto Varnhagen, pelo consócio José Francisco da Rocha Pombo, em 1923 é lapidar na direção da construção do Varnhagen como um marco: Varnhagen é integral. Ha de ser bem difficil e pouco provavel que se descubram nos tres seculos da colonia factos que não estejam no seu contexto. Depois é, pode-se dizer, o legitimo criador da nossa historia, tanto pelo culto que a ella rendeu em toda a sua vida, como pela inestimavel somma de serviços que prestou a quantos queiram no futuro completar-lhe a obra pela amplitude. José Francisco da Rocha Pombo, Discurso inaugural, op. cit., p. 24-25. 266 Para a genealogia nietzschiana adotada por Michel Foucault, a história precisaria também ensinar a rir das solenidades da origem: A alta origem é o “exagero metafísico que reaparece na concepção de que no começo de todas as coisas se encontra o que há de mais precioso e mais essencial”: gosta-se de acreditar que as coisas no seu início se encontravam em estado de perfeição; que elas sairiam brilhantes das mãos do criador, ou na luz sem sombra da primeira manhã. Michel Foucault, Microfísica do Poder, op. cit., p. 18. A questão da obsessão pelas origens na historiografia do IHGB e de Varnhagen será retomada na análise dos enredos temáticos da Historia geral do Brazil, a ser realizada no capítulo III. 267 Conferir: Mark Twain, Autobiografia, Belo Horizonte, Itatiaia, 1961.

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Enfim, a história de uma vida, como bem afirmou Pierre Bourdieu, não pode ficar restrita a

idéia de trajetória, caminho, linearidade.268

268 Pierre Bourdieu, A ilusão biográfica, in: Marieta de Moraes Ferreira e Janaina Amada (orgs.), Usos e abusos da história oral, op. cit., p. 183.

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______________________________________SEGUNDO CAPÍTULO

INVENÇÕES DE SI: AS CARTAS DE VARNHAGEN E A ESCRITA DA HISTÓRIA DO BRASIL

(1839-1860)

A carta torna o escritor “presente” para aquele a quem ele a envia. E presente

não simplesmente pelas informações que lhe dá sobre sua vida, suas atividades,

seus sucessos e fracassos, suas venturas e desventuras; presente como uma

espécie de presença imediata e quase física.

[Michel Foucault, Escrita de Si].

Há verdades acerca das quaes o historiador deve proceder como o dramaturgo,

que esconde de traz dos bastidores o que julga conveniente á melhoria da sua

producção.

[Francisco Adolfo de Varnhagen, Como se deve entender a nacionalidade na

História do Brasil].

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2.1. Varnhagen e as escritas de si_________________________________________________________

No exercício biográfico, marcado pela vontade de verdade, não raramente tem se

identificado a preocupação obsessiva de coletar sistematicamente um conjunto de documentos que

permitisse reconstituir a totalidade de uma vida. Cada fragmento descoberto da existência do individuo era

tratado como se fosse uma preciosidade, uma peça do quebra-cabeça da sua identidade.

Após a busca das fontes documentais – as evidências materiais do individuo-verdade,

haveria uma série de procedimentos internos de análise que funcionariam a título de princípios de

classificação, de ordenação, de distribuição.1 Esses procedimentos auxiliariam na confecção de uma

narrativa que faria emergir dos documentos, assumidos como transparência do passado, o homem de

carne e osso. O biografado, por esta lógica, seria ressuscitado do seu tempo pretérito para o presente do

biógrafo: uma personagem vista como um todo, um conjunto coerente e orientado.2

Em larga medida, essa biografia de cunho essencialista e apologética procurava desenhar

o individuo a partir da tríade origem, meio e contexto.3 A sua história de vida estava atrelada a estes

determinismos, definidores da sua identidade. Ele seria meramente, por este raciocínio, reflexo de seu

tempo – um escravo de sua época, agindo mediante as vontades das grandes estruturas narrativas. Não

seria possível a existência das descontinuidades ou dos acasos, propostas por Michel Foucault.4 E quando

estes apareciam nos escritos eram relegados ao silêncio ou tidos como anormalidades ou exceções,

permitindo por vezes afirmações problemáticas de um sujeito fora ou à frente do seu tempo. O diferente do

desejado pelo biógrafo ou historiador era condenado a sair do cenário da história, escondido entre as

pilhas documentais.

Feitos os procedimentos necessários para o estabelecimento da ordem discursiva,

previamente definida para o anúncio da essência de uma vida – a do morto,5 haveria a reverberação de

1 Michel Foucault, A ordem do discurso [Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 02 de dezembro de 1970], 8 ed., São Paulo, Edições Loyola, 2002, p. 21. 2 Pierre Bourdieu, A ilusão biográfica, in: Marieta de Moraes Ferreira e Janaina Amado (orgs.), Usos e abusos da história oral, 8 ed. Rio de Janeiro, Ed. da FGV, 2006, p. 184. 3 Para a crítica da noção da identidade fixa e essencializada, conferir: Paul Gilroy, Entre campos: nações, culturas e o fascínio da raça, São Paulo, Annablume, 2007. 4 Michel Foucault, Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979, p. 19. 5 Para Durval Muniz de Albuquerque Júnior, o nome do biografado é quase sempre um nome de morte, de alguém que já não pode contestar as imagens que dele se construíram; mas a morte é a única possibilidade de esta imagem se estabilizar, quando um sujeito absoluto é apresentado no lugar de um sujeito possível. Durval Muniz de Albuquerque Júnior, História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história, Bauru, EDUSC, 2007, p. 117.

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uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos.6 Era como se o autor do texto biográfico estivesse

ausente na construção da narrativa, amparada numa pretensa ilusão de neutralidade.7

No capítulo anterior, os meandros da positividade discursiva que forjaram as biografias de

Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) no primeiro centenário de sua morte foram analisados

procurando perceber as maneiras como foram criadas as narrativas de enquadramento de sua memória

como historiador símbolo da nação e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Os fragmentos

de sua existência, colhidos como se fossem pepitas de ouro garimpadas nas minas dos arquivos e

bibliotecas, foram sistematizados e organizados em nome de uma trama biográfica, articulando vida e obra,

que justificaria a sua imagem como pai da história do Brasil.8 Ao apresentá-lo como o fundador da história

da história da nação, os consócios do grêmio também criavam os elementos para o discurso de

legitimação da instituição como pioneira na pesquisa histórica no país.

Não seria possível, por essa interpretação, um Varnhagen e, conseqüentemente, uma

historiografia brasileira sem a criação do IHGB. Na repetição da história da sua vida, geralmente em

momentos de celebração de datas importantes da sua biografia e da história da instituição, mantinha-se

ardente a força de um legado, de uma herança intelectual. Logo, Varnhagen-discurso era o instrumento de

fabricação e propaganda da memória almejada para o IHGB. Na linha do tempo da história da História do

Brasil, 1838 seria seu marco de origem. Varnhagen seria uma invenção discursiva dos outros – no caso os

pares da agremiação que produziram sua memória. Sua biografia assumiria, nas palavras de Durval Muniz

de Albuquerque Júnior, papel fundamental na estratégia de memorização dos sujeitos, de sua constituição

a serviço de interesses de um dado momento.9

Neste capítulo, os fragmentos escritos do visconde de Porto Seguro serão objeto de

estudo para se compreender como o historiador sorocabano constituiu suas próprias representações sobre

si mesmo, o IHGB e a escrita da história do Brasil, assim como narrou os bastidores da redação da 1ª

edição da sua Historia geral do Brazil, publicada em dois tomos respectivamente em 1854 e 1857.

6 Michel Foucault, A ordem do discurso [Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 02 de dezembro de 1970], op. cit., p. 49. 7 Segundo Keith Jenkins, a história depende dos olhos e da voz de outrem; vemos por intermédio de um intérprete que se interpõe entre os acontecimentos passados e a leitura que deles fazemos. Keith Jenkins, A História repensada, São Paulo, Contexto, 2001, p. 32. 8 Segundo Durval Muniz de Albuquerque Júnior, com base nos escritos de Jacques Derrida, a biografia não seria um meio de fundir a vida e a obra, pois haveria sempre uma distância entre ela que é apenas dramatizada pelo texto biografado. A biografia, observou o autor, seria apenas um gênero literário que instaura uma figura de leitura desta relação e que permanentemente reescreve seus dois pólos, produzindo vidas e obras diferenciadas. Durval Muniz de Albuquerque Júnior, História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história, op. cit., p. 117. 9 Ibidem, p. 116.

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Neste sentido, tomou-se como referência para a construção dos eixos analíticos deste

capítulo sua correspondência ativa, coligida e organizada por Clado Ribeiro de Lessa,10 uma vez que ela

permite um contato com o mundo privado de Varnhagen, marcado por sentimentos, desejos e conflitos.11

Por intermédio das cartas, pode-se empreender uma leitura das suas redes de sociabilidade, suas viagens

pelos arquivos e bibliotecas européias em busca de documentos sobre o passado colonial brasileiro e das

estratégias pensadas para a escrita da sua obra-síntese.

Sem se amparar num biografismo essencialista, as cartas de Varnhagen auxiliarão no

entendimento da constituição de uma memória de si – que aqui será denominada de escritas de si. A

grande questão deste capítulo, em suma, seria Varnhagen e invenção de si por meio de suas cartas.

A partir das tramas traçadas pelas suas missivas, retornar-se-á às páginas da Revista do

IHGB, não mais a procura de escritas sobre a vida e obra de Varnhagen, mas para empreender um diálogo

de suas propostas de escrita da história com as memórias dos fundadores do grêmio, procurando

identificar suas afinidades e diferenças quanto à empresa historiográfica no século XIX.12

A análise da sua correspondência ativa não tem a pretensão de restituir, num embate com

as biografias, o verdadeiro ou autêntico Varnhagen, mostrando suas falhas ou lacunas. Não faz parte do

universo das reflexões aqui pensadas a ilusão biográfica, traduzida pela busca da origem, pelo

estabelecimento de linearidade e pela definição de uma coerência do indivíduo.13

Ao abordar as práticas de escrita de si e seus usos como objeto de estudo dos

historiadores, Angela de Castro Gomes – procurando fugir desta pretensão biográfica, afirmou que

Os registro de memória dos indivíduos modernos são, de forma geral e por

definição, subjetivos, fragmentados e ordinários como suas vidas. Seu valor,

especialmente como documento histórico, é identificado justamente nessas

características, e também em uma qualidade decorrente de uma nova

concepção de verdade, próprias às sociedades individualistas. Sociedades que

10 Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência Ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1961. 11 Para Pierre Ansart, fazer uma história dos (res)sentimentos colocaria uma dificuldade permanente para os estudiosos da história: a de restituir e explicar o devir dos sentimentos individuais e coletivos. Mas esta dificuldade ganha, no caso dos ressentimentos, um relevo excepcional. Certamente é muito mais difícil traçar a história de ódios do que a história de fatos objetivos. Pierre Ansart, História e memória dos ressentimentos, in: Maria Stella Martins Bresciani e Márcia Naxara (orgs.), Memória e (Res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível, Campinas, Ed. da UNICAMP, 2004, p. 29. 12 Adota-se a sugestão analítica feita por Manoel Luiz Salgado Guimarães, no artigo A disputa pelo passado na cultura histórica oitocentista no Brasil, in: José Murilo de Carvalho (org.), Nação e cidadania no Império: novos horizontes, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 93-122. 13 Pierre Bourdieu, A ilusão biográfica, in: Marieta de Moraes Ferreira e Janaina Amado (orgs.), Usos e abusos da história oral, op. cit., p. 183-184.

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separaram o espaço público do privado, a vida laica da religiosa, mas que, em

todos os casos, afirmaram o triunfo do indivíduo como um sujeito voltado para si,

para sua razão e seus sentimentos. Uma sociedade em cuja cultura importa aos

indivíduos sobreviver na memória dos outros, pois a vida individual tem valor e

autonomia em relação ao todo. É dos indivíduos que nasce a organização social

e não o inverso.14

Para Durval Muniz de Albuquerque Júnior, as categorias de individuo, identidade, sujeito e

autor, tão celebradas pela modernidade, eram correlatas do processo de disciplinarização do corpo próprio,

de que a biografização da vida e da própria escritura seriam um artifício determinante:

O procedimento biográfico faz parte do processo de internalização da própria

idéia de “eu” no Ocidente, a idéia de que temos uma verdade interior, uma

essência, um segredo que pode ser apanhado, flagrado aos poucos, em cada

atitude nossa, em cada marca que deixamos no mundo.15

O visconde de Porto Seguro, como autor de biografias nas páginas da Revista do IHGB,

sabia da importância de se produzir uma memória a mais verdadeira possível de uma existência. Ao

elaborá-las, era recorrente a sua preocupação de coletar e sistematizar documentos que autorizassem o

preenchimento de lacunas ou dados incompletos. Não poucas vezes retocou ou complementou as

biografias que compusera. Para o historiador-diplomata, as biografias ofereceriam elementos para a

construção de uma historia geral da nação. Ao comentar sobre a escrita do seu florilégio em sua missiva

enviada ao imperador D. Pedro II (1825-1891), ele procuraria explicar a importância das pesquisas

biográficas para a história e a literatura nacional pelo fato destas serem capazes de criar em todos nobres

sentimentos de patriotismo de nação, único remédio contra as chagas do provincialismo.16

O autor da Historia geral do Brazil tinha plena consciência da importância de ocupar as

páginas monumentais de um panteão de papel como eram os necrológios, elogios e biografias, produzidos

pelos seus consócios.17 E por saber muito bem desse fato não deixou de zelar pela construção de uma

14 Angela de Castro Gomes, Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo, in: Ângela de Castro Gomes (org.), Escrita de si, escrita da história, Rio de Janeiro, Ed. da FGV, 2004, p. 13. 15 Durval Muniz de Albuquerque Júnior, História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história, op. cit., p. 117. 16 Carta ao imperador D. Pedro II, de 14 de julho de 1857, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 247. 17 Conferir: Maria da Glória de Oliveira, Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

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memória de si – trabalhando de forma árdua, como pode ser percebido na correspondência, no seu

reconhecimento como intelectual e homem a serviço de Estado, constituindo uma espécie de arquivo da

própria vida.18 Para Varnhagen, as palavras do primeiro secretário cônego Januário da Cunha Barboza,

proferidas no discurso de abertura das atividades do IHGB, em 1838, tinham um significado claro não

apenas para os varões ilustres do passado, mas também para aqueles que se esmeravam na construção

do Império brasileiro:

A nossa historia abunda de modelos de virtudes; mas um grande numero de

feitos gloriosos morrem ou dormem na obscuridade, sem proveito das gerações

subsequentes. O Brazil, senhores, posto que em circumstancias não

semelhantes ás da França, póde comtudo apresentar pela historia, ao estudo e

emulação de seus filhos, uma longa serie de varões distinctos por seu saber e

brilhantes qualidades. Só tem faltado quem os apresentasse em bem ordenada

galeria, collocando-os segundo os tempos e os logares, para que sejam melhor

percebidos pelos que anhelam seguir os seus passos nos caminhos da honra e

da gloria nacional.19

A leitura crítica da correspondência ativa permite a compreensão dos meios e estratégias

adotados por Varnhagen na constituição de sua autoridade como historiador e diplomata e na busca do

reconhecimento dos seus feitos intelectuais e profissionais. Autoridade e reconhecimento que passavam

pela chancela dos pares do IHGB e, principalmente, do monarca. Na sociedade da corte, a consagração de

um súdito era marcada por rituais e símbolos como a concessão de condecorações e títulos

nobiliárquicos.20 O desejo de ser reconhecido como o grande historiador do IHGB e do Império tomava

conta das suas cartas endereçadas, em especial, ao imperador D. Pedro II. No seu caso ainda haveria as

batalhas para o reconhecimento de sua nacionalidade como brasileiro.

Além da busca pelo lugar de autoridade reconhecida, pode-se identificar na sua

correspondência a sua rede de sociabilidade: nomes que permitiriam acesso aos arquivos e bibliotecas, às

18 Para Philippe Artières, fazemos triagens nos nossos papéis: guardamos alguns, jogamos fora outros; damos arrumações quando nos mudamos, antes de sairmos de férias. E quando não o fazemos, outros se encarregam de limpar as gavetas por nós. Essas triagens são guiadas por intenções sucessivas e às vezes contraditórias. (...) Arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é contrapor à imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e de resistência. Philippe Artières, Arquivar a própria vida, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 21, 1998, p. 10-11. 19 Januário da Cunha Barboza. Discurso do Primeiro Secretário Perpétuo do Instituto, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 01, 1839, p. 15-16. 20 Para compreender a sociedade da corte, conferir: Norbert Elias, O processo civilizador: uma história dos costumes, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1994.

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informações privilegiadas, à documentação particulares ou sob a guarda de determinados contatos nos

espaços institucionais, a uma lista de contatos acadêmicos e intelectuais na Europa e na América.

Nas cartas também se pode vislumbrar o mundo dos (res)sentimentos e afetividades de

Varnhagen como a admiração pelo pai, o cuidado com os amigos mais próximos, as angústias e as

realizações na pesquisa documental e na escrita da sua Historia geral do Brazil, a revolta com os

privilégios e títulos concedidos aos desafetos ou àqueles tidos como de pouco merecimento, as desilusões

e as amarguras pela demora dos louros da glória, entre outros.

Não se postula com a eleição deste tipo de fonte documental fazer a defesa da

possibilidade de se encontrar um Varnhagen diferente ou mais próximo do real, condenando os textos

biográficos. Assim como os biógrafos produziram uma verdade sobre Varnhagen, ele mesmo, por meio de

uma escrita de si, constituiu verdades sobre sua vida.21 Ele, ao seu tempo, também foi protagonista na

fabricação de uma imagem de si que desejava deixar para a posteridade. A preocupação com uma

memória de seu legado estava presente direta e indiretamente nas suas cartas, prefácios, memórias e

livros. E foi a partir destes escritos de Varnhagen que as biografias foram criadas, embora marcadas por

interesses, escolhas e necessidades de diferentes contextos da história do país entre 1878 e 1978.

Por serem portadoras de memória, as cartas seriam povoadas de narrativas carregadas de

uma temporalidade descontinua e fragmentada, definida por Maria do Socorro de Sousa Araújo como o

tempo da experiência: a memória guarda lembranças que, ao ser recordada, traz de volta o que ficou nas

experiências. Logo, escrever cartas seria um constante exercício de reinvenção da vida.22 No caso aqui

abordado, trariam as verdades reinventadas por Varnhagen.

A partir das considerações de Angela de Castro Gomes, pensar as verdades de visconde

de Porto Seguro implica entendê-las como um forte vinculo com as idéias de foro íntimo e de experiência

de vida dos indivíduos. A noção de verdade, a partir da perspectiva da cultura da sociedade do

individualismo, não se restringiria apenas a uma dada verdade factual, objetiva, total e refém da prova

documental, que continua a ter vigência e credibilidade e que também tece conexões com o individualismo

moderno. Em outras palavras,

21 Para Ernesto Manuel de Melo e Castro, o hoje da recepção e da leitura vêm sempre depois do hoje da escrita e depois do hoje do envio, que agora já é um ontem e esses dois hojes já sendo defasados no tempo, contem a possibilidade quase certa de aquilo que nas cartas se lê, já não é mais o que está acontecendo (...) O hoje que leio é já um ontem do que foi escrito... É isso que me desagrada e ao mesmo me atrai desagradavelmente... essa intromissão do passado que as cartas me trazem no presente que estou vivendo, enquanto fico sem nada saber do presente simultâneo de quem me escreveu. Ernesto Manuel de Melo e Castro, Odeio Cartas, in: Walnice Nogueira Galvão e Nádia Battella Gotlib (orgs.), Prezado senhor, prezada senhora: estudo sobre cartas, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 15. 22 Maria do Socorro de Sousa Araújo, Paixões políticas em tempos revolucionários: nos caminhos da militância, o percurso de Jane Vanini (1964-1974), dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2002, p. 29.

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a verdade passa a incorporar um vínculo direto com a subjetividade/profundidade

desse indivíduo, exprimindo-se na categoria sinceridade e ganhando, ela

mesma, uma dimensão fragmentada e impossível de sofrer controles absolutos.

A verdade, não mais unitária, mas sem prejuízo de solidez, passa a ser pensada

em sentido plural, como são plurais as vidas individuais, como é plural e

diferenciada a memória que registra os acontecimentos da vida.23

As reflexões sobre o indivíduo nas sociedades modernas remeteriam a uma preocupação

recente com a adoção e a divulgação de muitas das práticas de adestramento de si já existentes em outras

épocas – como meditações, exames de consciência e memorizações. Estas práticas estariam presentes na

escrita de si e na idéia de verdade como sinceridade.24

Esses exercícios de adestramento de si por si mesmo convidariam um diálogo com os

escritos de Michel Foucault dedicados às artes de si mesmo: sobre a estética da existência e do domínio

de si e dos outros na cultura greco-romana, mas não adotadas como a busca de uma origem primeira de

uma concepção de produção do si.25

Uma carta, dentro de um conjunto de fragmentos de uma existência escolhido,

selecionado e disposto numa ordem de um enredo biográfico, pode ser pensada como a marca de uma

ausência – do morto. Contudo, no universo de trocas de missivas entre quem envia e quem recebe, ela

assumiria um efeito de uma presença, pois escrever seria uma forma de se mostrar, ou seja, de

se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro. E isso significa que a

carta é ao mesmo tempo um olhar que se lança sobre o destinatário (pela

missiva que ele recebe, se sente olhado) e uma maneira de se oferecer ao seu

olhar através do que lhe é dito sobre si mesmo. A carta prepara de certa forma

um face a face.26

A idéia de uma ausência seria problemática quando na carta se poderia perceber as

representações da existência de um indivíduo – no caso Varnhagen, por meio dos contornos da letra, dos

assuntos abordados, das novidades compartilhadas, dos sentimentos e das confidências trocadas, dos 23 Angela de Castro Gomes, Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo, in: Ângela de Castro Gomes (org.), Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 13-14. 24 Ibidem, p. 14. 25 Michel Foucault, A escrita de si [1983], in: Ética, sexualidade, política, Coleção Ditos & Escritos V, 2 ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2006, p. 144. 26 Ibidem, p. 156.

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traçados e do estilo e das formas de tratamento.27 Para Michel Foucault, a partir da correspondência entre

Sêneca e Lucilius, a carta seria uma forma de presentificação:

Ela é alguma coisa mais do que um adestramento de si mesmo pela escrita,

através dos conselhos e advertências dados ao outro: constitui também uma

certa maneira de se manifestar para si mesmo e para os outros. A carta torna o

escritor “presente” para aquele a quem ele a envia. E presente não

simplesmente pelas informações que lhe dá sobre sua vida, suas atividades,

seus sucessos e fracassos, suas venturas e desventuras; presente como uma

espécie de presença imediata e quase física.28

Neste sentido, a carta como objeto do historiador, segundo Maria do Socorro de Sousa

Araújo, seria uma fonte de significações diversas e uma forma de representação daquele que a escreve:

Cartas, sempre cartas. Elas são curiosas e produzem outras curiosidades se se

considerar enquanto partes constituidoras de um tempo e de pessoas singulares.

O conteúdo de uma carta possibilita sempre ao leitor projetar, na imaginação, um

espaço capaz de configurar todas as cenas que são descritas e enunciadas pelo

conteúdo que apresenta. Elas, as descrições, são representações das verdades

do emissor, as quais atualizam informações, (re)formam cenários e (re)formulam

emoções.29

Para Angela de Castro Gomes, os usos das correspondências seriam um convite para o

estabelecimento de relações entre uma história da subjetividade do individuo moderno, uma história das

práticas culturais da escrita de si e uma história da História que reconheceu novos objetos, fontes,

metodologias e critérios de verdade histórica.30

27 Segundo Maria Helena Werneck, com base no estudo da correspondência machadiana, a emenda no texto, a letra tremida, diminuta, são vestígios de um progressivo engajamento na relação consigo mesmo através do olhar do outro. Maria Helena Werneck, “Veja como ando grego, meu amigo”. Os cuidados de si na correspondência machadiana, in: Walnice Nogueira Galvão e Nádia Battella Gotlib (orgs.), Prezado senhor, prezada senhora: estudo sobre cartas, op. cit, p. 143. 28 Michel Foucault, A escrita de si [1983], in: Ética, sexualidade, política, op. cit., p. 155-156. 29 Maria do Socorro de Sousa Araújo, Paixões políticas em tempos revolucionários: nos caminhos da militância, o percurso de Jane Vanini (1964-1974), op. cit., p. 32. 30 Angela de Castro Gomes, Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo, in: Ângela de Castro Gomes (org.), Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 14.

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A partir das práticas de escrita de si de Varnhagen por meio de sua correspondência ativa,

este capítulo procurará adentrar o mundo das representações31 forjadas por ele sobre si mesmo, seu oficio

e a sua escrita de uma historia geral da nação, bem como sobre a sua percepção da receptividade de suas

idéias no universo dos pares do IHGB, principalmente no contexto da publicação da 1ª edição da Historia

geral do Brazil.

Ao escrever a história das memórias de si de Varnhagen, este capítulo também não deixa

de inventar uma representação do historiador sorocabano, uma criação do tempo presente – mediada

pelas suas questões, dilemas e problemas, embora ancorada nos signos deixados pelo passado.32

2.2. Entre o arquivo e o livro: os (des)caminhos das cartas de Varnhagen_______________________

Para Rebeca Gontijo, no estudo da correspondência de intelectuais, haveria um dos usos

possíveis desse escrito direcionado para crença na possibilidade de acesso aos bastidores da construção

de uma obra ou livro e da formação de um autor ou escritor. Este tipo de documentação poderia colaborar

na compreensão da personalidade do intelectual, bem como no incentivo a fabricação de uma memória

que alimentasse o imaginário sobre o seu mundo:

O uso da documentação privada pode favorecer a afirmação de uma imagem

pública do intelectual, dotando-a de aparência, ao ressaltar determinados

aspectos físicos e gestos específicos, mencionados pelos missivistas sobre si

mesmos ou sobre outros; falas particulares e sentimentos que fazem parte da

sua sociabilidade, como afetos, ódios, ressentimentos, saudades etc.33

Antes de adentrar as tramas das missivas de Varnhagen, cabe conhecer como se deu o

processo de busca, seleção e publicação de sua correspondência ativa e também o lugar atribuído a ela na

sua vida e obra.

31 Segundo Roger Chartier, as representações seriam social, institucional e culturalmente determinadas, produzindo maneiras diferenciadas de interpretação. Roger Chartier, A História Cultural: entre práticas e representações, Lisboa, DIFEL, 1990, p. 26-28. 32 Durval Muniz de Albuquerque Júnior, História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história, op. cit., p. 33. 33 Rebeca Gontijo, “Paulo Amigo”: amizade, mecenato e ofício do historiador nas cartas de Capistrano de Abreu, in: Angela de Castro Gomes (org.), Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 14.

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A correspondência ativa do visconde de Porto Seguro foi coligida e anotada pelo seu mais

conhecido biógrafo, o consócio Clado Ribeiro de Lessa (1906-1960), sendo publicada em 1961 pelo

Instituto Nacional do Livro do Ministério da Educação e Cultura. Após um tempo considerável de busca

copiosa em arquivos e bibliotecas, o biógrafo trouxe ao conhecimento do público 242 cartas, dispostas em

ordem cronológica numa série única, desde as mais antigas em data até as mais recentes.34

Ao pensar a ordem das cartas, além da disposição cronológica, Clado Ribeiro de Lessa

havia aventado outras duas possibilidades: 1º. separação das cartas pelos destinatários e, dentro de cada

grupo, fazer sua seriação cronológica; 2º. adoção de um critério eclético ou misto: consistente em formar

grupos especiais para as cartas endereçadas a cada destinatário, quando fôssem muito numerosas; e

enfeixar as restantes (...) numa série única de avulsas.35

A opção por uma série única, em ordem cronológica, seria justificada com base em três

aspectos observados nas cartas coligidas: a) a dificuldade de definição de um tema recorrente; b) um

mesmo assunto era, em algumas situações, confidenciado com mais de um interlocutor; c) a disposição

cronológica numa única coleção atenderia os propósitos de uma espécie de autobiografia.36 As cartas

foram distribuídas em quatro fases: Formação – até 1842; Expansão – 1842 a 1858; Na América – 1859 a

1868; Últimos tempos – 1868 a 1877.

Em relação a este último aspecto, cabe notar a preocupação de criar uma autobiografia a

partir do estabelecimento de uma ordem cronológica nas cartas. Não poderia ser uma autobiografia, pois a

disposição das missivas atendia aos gostos do lugar social, do tempo presente e da subjetividade do

biógrafo. O enredo traçado para aqueles fragmentos escritos de Varnhagen, coletados em diferentes

lugares, não era uma escolha do historiador sorocabano. Aquela autobiografia, inventada por Clado Ribeiro

de Lessa, teria a finalidade de atender a um discurso biográfico fixado na sua Vida e obra de Varnhagen,

publicada em 1854 nas páginas da Revista do IHGB. Ela, supunha o autor, anunciaria um Varnhagen

autêntico e verdadeiro, desvendado pela costura das cartas na cronologia da sua vida:

Dispostas numa única coleção as cartas de Varnhagen passam a constituir

vívida e palpitante autobiografia, escrita quase à maneira de diário, sob a

influência das sensações e emoções diuturnamente experimentadas ao longo de

uma vida a que não faltaram grandes episódios e fortes abalos decorridos em

todos os cenários em que teve de atuar, tanto do Velho como do Novo 34 Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência Ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., 1961, introdução, p. 15. 35 Ibidem, ibidem. 36 Ibidem, p. 16.

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Continente. As múltiplas facêtas do seu temperamento de erudito, patriota e

homem de sociedade mostrar-se-nos-ão assim com tôda a pureza e

espontaneidade das reações imediatas aos excitantes de cada dia. Achamos

também razoável separá-las pelas datas em quatro séries, correspondentes

sucessivamente às fases em que dividimos a existência do autor, o que fazemos

antepondo a cada uma o seu resumo biográfico durante o período em que foram

escritas.37

Este tipo de documentação de arquivos privados, segundo Giselle Martins Venâncio, teria

alimentado as pretensões de uma história-verdade entre historiadores e biógrafos como Clado Ribeiro de

Lessa. Ao adentrar o mundo dos arquivos, eles seriam tomados pela possibilidade de tornar o passado

tangível, tocar o que de real restou de um tempo pretérito, vivendo a sensação de atingir de forma definitiva

e próxima os testemunhos do passado.38

Para Roger Chartier, os usos de documentos como as cartas como fonte de pesquisa

pelos historiadores muito mais do que um testemunho de uma dada realidade pretérita, trariam elementos

sobre o mundo intelectual que as apropriou e atribuiu uma ordem de significados:

os usos da escrita, em todas as suas variações, são cruciais para se

compreender como as comunidades e os indivíduos constroem representações

de seu mundo e investem de significações plurais, contrastadas, suas

percepções e experiências. Em uma história cultural redefinida como o lugar em

que se estrutura práticas e representações, o gesto epistolar é um gesto

privilegiado.39

No caso de Clado Ribeiro de Lessa, os seus propósitos ao coligir as cartas ou escrever

uma biografia de Varnhagen, já observados no capítulo anterior, eram preservar e celebrar a imagem dele

como o patrono da história do Brasil e símbolo de herói intelectual da nação e do IHGB.

37 Ibidem, ibidem. 38 Giselle Martins Venâncio, Cartas de Lobato a Vianna: uma memória epistolar silenciada pela história, in: Ângela de Castro Gomes (org.), Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 112. 39 Roger Chartier, Avant-propos, in: Roger Chartier (dir.), La correspondence: les usages de la lettre au XIXe siècle, s. l., Fayard, 1991, p. 09 (tradução livre).

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Enfim, as cartas de Varnhagen constituíam-se mais como vestígios de histórias do que

uma totalidade, partes fragmentárias de uma existência, transformadas em objeto da escrita histórica ou

biográfica após serem seriadas e ordenadas. Neste sentido,

como um lugar de memória, a correspondência mantém traços de histórias em

migalhas. Convém, em primeiro lugar, analisar o processo de conservação e

construção desse objeto, registrado no tempo e no espaço social, desde o

nascimento, de uma a uma das cartas singulares, até sua comunicação aos

historiadores pela família, como um todo indissociável.40

As epistolas coligidas por Clado Ribeiro de Lessa, em especial as inéditas, foram

garimpadas em arquivos públicos e particulares. Algumas cartas, segundo o biógrafo, haviam sido

impressas de forma fragmentária em jornais e revistas, principalmente nas páginas da Revista do IHGB:

Segundo a nossa contagem e verificação – a que não temos a pretensão de

atribuir valor de certeza, das 245 peças desta coletânea, 171 (mais de dois

terços do total) são inéditas (na íntegra), e 72 apenas já foram impressas, e

dentre elas algumas com supressões, que aqui restituímos ao respectivo texto.41

As cartas publicadas nesta coletânea eram provenientes do IHGB, geralmente publicadas

nas páginas da sua Revista, da pasta de Varnhagen no Ministério das Relações Exteriores, de acervos

particulares existentes na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, do arquivo do Museu Imperial, de

periódicos nacionais e estrangeiros, de jornais e de outras coletâneas. Clado Ribeiro de Lessa identificou

ainda cartas do historiador-diplomata que se encontravam nos acervos da Biblioteca de Évora, do Arquivo

Militar de Lisboa, da Biblioteca da Universidade de Coimbra, entre outros. Essa obstinada busca por suas

cartas era assim justificada na introdução da coletânea:

Oriundas da pena de um dos maiores historiógrafos e homens de pensamento

dêste país, quer versem matéria de erudição, quer assuntos políticos ou

diplomáticos do dia, que ainda, objetos de interêsse familiar ou privado, estamos 40 Cécile Dauphin, Pierrette Lebrun-Pezerat e Danièle Poublan, Une correspondece familiale au XIXe siècle, in: Mireille Bossis (dir.), La lettre à la croisée de l’individuel et du social, Paris, Kimé, 1994, p. 126 (tradução livre). 41 Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência Ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., 1961, introdução, nota 02, p. 07. Há inconsistências nos números apresentados pelo biógrafo nesta citação.

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certos de que sua leitura não será destituída de interêsse para o púbico do

Brasil, cujo empenho em conhecer particularidades do passado nacional, e da

vida de seus homens ilustres, cresce promissoramente de dia para dia. Eis

porque tomamos a resolução de brindá-lo com a presente coletânea.42

Embora muito rica e variada, a coletânea está longe de ser tida por completa, o próprio

biógrafo registrou as lacunas e as exclusões existentes nas cartas coligidas de Varnhagen, uma vez que a

correspondência particular não encerraria nem metade das originais ainda existentes por ai, esquecidos

em gavetões de velhas cômodas dos tempos da Monarquia. Além disso, por motivos de sigilo em relação

aos assuntos de Estado, foram retirados todos os ofícios diplomáticos de caráter mais ou menos

confidencial, que se conservam no arquivo do Ministério das Relações Exteriores.43

Ao analisar os meandros da publicação da correspondência ativa de Varnhagen, tem-se a

preocupação de abandonar a idéia do arquivo e da sua constituição como um lugar neutro, imparcial.

Procura-se também desmistificar algumas ilusões ou fantasias em torno do universo do privado de

intelectuais e políticos, deixando de lado representações anedóticas que apresentariam o historiador como

aquele detetive ou bisbilhoteiro da vida alheia. Segundo Rebeca Gontijo,

as correspondências, como outros documentos pessoais, sugerem uma

mensagem de verdade, pois constituem um meio de expressão do indivíduo na

sua intimidade, espaço do espontâneo, de certa liberdade, onde, supostamente,

deve reinar a sinceridade. Ler escritos pessoais assemelha-se a invadir locais

escondidos, revelados a poucos, entre os quais o leitor invasor acaba se

incluindo, podendo sentir-se, por vezes, como um cúmplice, que compartilha os

sentimentos e idéias do invadido; um esperto detetive, pronto a capturar o

missivista em flagrante; um juiz parcial, apto a julgar as condutas privadas; ou

ainda, como uma espécie de deus que tudo vê, capaz de avaliar pensamentos,

atos e palavras. Esse leitor pode ter a impressão de estar surpreendendo o autor

da carta, pegando-o desprevenido nas suas liberdades, violando seus segredos,

tirando sua máscara para, finalmente, revelar ao público suas idiossincrasias.44

42 Ibidem, p. 08. 43 Ibidem, p. 13. 44 Rebeca Gontijo, O velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da historiografia ao historiador, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006, p. 173.

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Adentrar as tramas das cartas de Varnhagen implicaria em traçar, por exemplo, as suas

redes de sociabilidade no contexto do Segundo Reinado, a intensidade e importância de suas relações

com figuras como o imperador D. Pedro II, os debates e reflexões historiográficas e políticas presentes nas

cartas com interlocutores dentro e fora do IHGB, os conflitos e as questões pessoais que permeavam suas

relações sociais e a relevância de sua correspondência para se compreender o pensamento historiográfico

do oitocentos. Ao lado de outros escritos, as cartas do autor da Historia geral do Brazil ajudariam a

vislumbrar outros cenários para o entendimento das suas imagens de si e da escrita da história da nação

no período.

A seguir a correspondência ativa de Varnhagen será observada a partir das suas

contribuições para se fazer uma leitura da história política e das redes de sociabilidade no Segundo

Reinado, assim como da sua importância para se pensar a escrita da história no século XIX brasileiro.

2.3. Cartas de Varnhagen para...: história, política e redes de sociabilidade______________________

A convivência entre homens de letras, assim como as práticas de leitura, é peça

fundamental para a emergência de idéias, projetos e sensibilidades.45 As cartas permitiriam, neste

processo, compreender as dimensões privadas do circuito intelectual ao qual personagens como

Varnhagen faziam parte. Elas seriam um instrumento importante para se aproximar das sociabilidades dos

indivíduos. Segundo Michel Trebitsch, a correspondência seria por si só um lugar de sociabilidade, esfera

do privado, certamente, em oposição aos locais públicos, tais como revistas, colóquios ou manifestos, mas

também um lugar de troca, não só entre os indivíduos, mas entre os comportamentos individuais e as

regras impostas do exterior, códigos sociais ou padrões de escrita.46

Para escrever sua Historia geral do Brazil entre outros textos, Varnhagen teria de estar

vinculado a uma rede de sociabilidade que o situasse no mundo da cultura e lhe permitisse forjar

45 Angela de Castro Gomes, Em família: a correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre, in: Ângela de Castro Gomes (org.), Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 51. 46 Michel Trebitsch, Correspondances d’intelectuels: lês cas des lettres d’Henri Lefebvre à Norbert Guterman (1935-1947), Le Cahiers de L’IHTP, Sociabilities Intellectuelles: leiux, milieux reseaux, Paris, n. 20, 1992, p. 82 (tradução livre).

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interpretações sobre o universo social e político de sua época. A troca de cartas feita pelo historiador, por

ser um ato de sociabilidade, apontaria para uma prática social que não se limitava ao âmbito do privado.47

Havia, com base em Michel Trebitsch, uma interpenetração do privado e do público. As

cartas de Varnhagen trariam referências aos textos públicos de sua autoria ou de outros. A

correspondência, por este raciocínio, seria uma zona enigmática entre a vida e o texto, autorizando um

intercâmbio entre a escrita privada e a pública.48

Tendo em mente estas trocas entre o público e o privado por meio das missivas, observa-

se a necessidade de se entender o quanto é imprescindível em uma análise o conhecimento das redes de

sociabilidade de um intelectual como Varnhagen. Segundo Angela de Castro Gomes,

Por isso afirma-se que não é tanto a condição de intelectual que desencadeia

uma estratégia de sociabilidade e, sim, ao contrário, a participação numa rede de

contatos é que demarca a específica inserção de um intelectual no mundo

cultural. Intelectuais são, portanto, homens cuja produção é sempre influenciada

pela participação em associações, mais ou menos formais, e em uma série de

outros grupos, que se salientam por práticas culturais de oralidade e/ou escrita.49

Ao mapear as redes de sociabilidade de Varnhagen, a partir de suas relações profissionais

durante o Segundo Reinado, Raquel Glezer50 realizou uma leitura das missivas coligidas por Clado Ribeiro

de Lessa, identificando os seus interlocutores. Na sua análise prévia das cartas, a autora conseguiu

observar alguns conjuntos:

o das relações com historiadores; as das relações profissionais, nas quais incluí

os relatórios de atividades profissionais, que perfazem um total de 44, e as de

relações sociais, em número de 36 cartas. A destinadas ao Imperador Pedro II, o

maior conjunto com cerca de 68 cartas, possuem características diversas e

47 Segundo Rebeca Gontijo, servindo como meio de comunicação privilegiado entre intelectuais, que compartilham interesses, experiências e projetos, as cartas indicam a existência de redes de estudo a distância, através das quais se constrói um espaço singular para reflexões sobre si mesmo, sobre a história e sua escrita. Tais reflexões, longe de constituir teorias da história rigidamente elaboradas e acabadas, favorecem um tipo de conhecimento dialógico, construído de maneira coletiva e, ao mesmo tempo, fragmentada. Rebeca Gontijo, História e historiografia nas cartas de Capistrano de Abreu, História, São Paulo, vol. 24, n. 02, 2005, p. 159. 48 Michel Trebitsch, Correspondances d’intelectuels: lês cãs des lettres d’Henri Lefebvre à Norbert Guterman (1935-1947), Le Cahiers de L’IHTP, op. cit., p. 82-83 (tradução livre). 49 Angela de Castro Gomes, Em família: a correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre, in: Angela de Castro Gomes (org.), Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 51. 50 Desde 2004, Raquel Glezer coordena o projeto de pesquisa Objeto de Estudo: Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), aprovado pelo edital Memória do Saber, lançado pelo CNPq em conjunto com a Fundação Miguel de Cervantes da Biblioteca Nacional.

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devem ser trabalhadas isoladamente, pois tanto há cartas de ofertas de

publicações, pedidos de promoção e de titulação, como cartas com análise de

conjuntura política e informações diplomáticas.51

Entre os interlocutores historiadores de profissão ou diletantes, indivíduos com quem

Varnhagen estabeleceu diálogos historiográficos, contatos para busca de documentos ou trocas de

leituras, pode-se perceber com especial destaque a figura de Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara (1809-

1859), intelectual, político português e diretor da Biblioteca de Évora. De 1839 a 1849 foram enviadas

aproximadamente 50 missivas, tidas como fonte rica para a compreensão da construção de uma relação

de amizade, do amadurecimento intelectual de Varnhagen no processo de busca de documentos sobre o

passado brasileiro e dos encaminhamentos de seu projeto historiográfico.

Nestas cartas, nos anos iniciais o tom é cerimonioso – pois Varnhagen era um

iniciante no campo da pesquisa histórica; mas, nos anos finais são cartas de

amizade, com noticiais pessoais. De qualquer modo, sempre os assuntos

centrais são fontes históricas – objeto de pesquisa dos interlocutores, com

informações sobre manuscritos, arquivos locais, estado de documentação e o

envio de publicações, com os agradecimentos pelas recebidas e pelas notícias

de publicação.52

Para além das questões acadêmicas, a correspondência com o diretor da Biblioteca de

Évora era marcada por confidências e solidariedades, perceptível quando do falecimento do pai de

Varnhagen em 1842:

Ilmo Amº e Snr. Ao chegar de Leiria, onde negocios urgentes de familia me tinham

chamado, encontro a amigavel e obsequiosa carta de V. Sª de 23 p.p. – As

expressões foram mais um lenitivo para a mudança e sentimento que toda esta

familia sente pela perda de tão bom chefe. Acceite V. Sª de todos os mais

cordeaes agradecimentos, e não se esqueça do antigo promettido com fim

menos triste: venha V. Sª suavizar nossa pena com a sua boa e sincera

51 Raquel Glezer, Relações profissionais no Império brasileiro: Francisco Adolfo de Varnhagen e seus amigos, Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo, Assis, ANPUH – Seção São Paulo/UNESP, 24 a 28 de julho de 2006, p. 02. 52 Ibidem, p. 03.

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companhia nas proximas férias. – Encontrar-nos-há naturalmente já n’outras

cazas, na Rua do Loreto n.º 39; mas que será de V. Sª como esta o é ainda.

Os numerosos amigos que V. Sª aqui deixou esperam como eu, menos feliz do

que elles, essa occasião de admirar de perto o mérito que já tanto conhecem e

veneram como eu que do coração sou.53

A lista de contatos com historiadores apresenta figuras ilustres como o historiador francês

Ferdinand Denis (1798-1890), administrador da Biblioteca Santa Genoveva em Paris, o frei Francisco de

São Luis (1766-1845), conhecido por Cardeal Saraiva, o oitavo patriarca de Lisboa, e o próprio cônego

Januário da Cunha Barboza (1780-1846), primeiro secretário do IHGB.

Com o renomado historiador francês e conhecedor dos assuntos da história do Brasil,

além das trocas de informações sobre arquivos e documentos e de oferecimento de obras editadas,

Varnhagen encontraria um importante incentivador. Segundo Raquel Glezer, o apoio de Ferdinand Denis

foi importante em sua carreira profissional, com cartas de recomendação, e nas indicações de contato com

outros autores.54

Em suas missivas ao Cardeal Saraiva, Varnhagen deixava transparecer uma relação de

proximidade, procurando destacar pontos de afinidades como a dedicação aos estudos históricos e o

desejo pela busca documental. Ele teria do patriarca de Lisboa ajuda para conseguir sua transferência para

o Brasil e entrada na carreira diplomática e militar.55 Na carta de 22 de fevereiro de 1843, ele expressaria

seu afeto e reconhecimento à figura de D. Francisco de São Luis:

Eminentíssimo Senhor. V. Emª tem tanta bondade, e acompanha-me de tanta

honra os favores que se digna conceder-me que não tendo eu expressões

bastantes de reconhecimento, desejava resumir a prova deste indo mais uma

vez beijar cordialmente a mão de V. Emª.

Mas, embargado disso pelo tempo e pelo receio ainda maior de o tomar a V. Emª

não posso dispensar-me de ir desde já por este modo aos pés de V. Emª, em

quanto, cortando por todos os escrúpulos, lhe não vou roubar alguma hora.56

53 Carta a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, diretor da Biblioteca de Évora, 10 de dezembro de 1842, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 90-91. 54 Raquel Glezer, Relações profissionais no Império brasileiro: Francisco Adolfo de Varnhagen e seus amigos, Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo, op. cit., p. 03-04. 55 Ibidem, p. 04. 56 Carta a D. Francisco de São Luis, Cardeal Saraiva, 22 de fevereiro de 1843, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 102.

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A sua aceitação na Academia Real de Ciências de Lisboa como sócio correspondente, em

1839, deveu-se ao juízo do Cardeal Saraiva acerca das suas Reflexões Criticas sobre o escripto do século

XVI. Segundo o futuro Cardeal Patriarca, Varnhagen havia apresentado uma monografia com bom juízo e

discernimento, com estilo claro e conciso, e com erudição curiosa, oportuna e não ensaiada.57

No caso do primeiro secretário do IHGB, sua relação seria marcada sempre por um tom

cerimonioso. As suas cartas se caracterizavam pelo envio de publicações, relatos das viagens pelo Brasil

em arquivos e cartórios, informações sobre a documentação encontrada e coligida e propostas de temas

de pesquisa. Em correspondência de 08 de julho de 1841, Varnhagen relataria ao consócio as suas

pesquisas nas cidades de Coimbra e Évora para a produção de biografias de varões ilustres:

Ilmo. Snr. Posto que nesta mesma data escrevo particularmente a V. Sª, julguei

dever meu dar ainda que de longe noticia de mim à corporação litteraria que tão

obsequiosamente me recebeu no seu seio. Sinto não me ser possível

acompanhar já esta de algum trabalho para a publicação do Instituto. Por ora só

me occupo de colligir, e todo o tempo acho isso pouco, ainda que bem deligencio

aproveital-o. Tenho também precizão de ir a Coimbra e a Évora; mas não sei se

me será isso possível. Naquella cidade desejava eu ver dos livros da

Universidade se se encontram esclarecimentos acerca das biographias de certos

brasileiros illustres, taes com Fr. Gaspar, Claudio Manuel da Costa, Manuel

Ignácio da Silva Alvarenga, Arruda da Câmara, Mello Franco, Dr. Hyppolito, Dr.

Couto, Ferreira Cardozo e Luiz Joaquim Henriques de Paiva, conforme tratei

com V. Sª, e prometti ao nosso Instituto.

Isto requeria que eu podesse dispor de mim por mais de um mez além de outros

auxílios que por hora não tenho. – Entretanto, esta só serve para V. Sª fazer

presente nos meus deveres e desejoso de os cumprir.58

A maioria das cartas de Varnhagen enviados aos secretários do IHGB era publicada

integral ou parcialmente nas páginas da sua Revista. Eles eram tratados em sua correspondência com

57 Citado por Rodolfo Garcia, Appenso Ensaio Bio-bibliográfico sobre Francisco Adolpho de Varnhagen, Visconde de Porto-Seguro, in: Francisco Adolpho de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, História Geral do Brasil antes de sua separação e independência de Portugal, 3 ed. integral, tomo II, Editora Melhoramentos, 1928, p. 438. 58 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 08 de julho de 1841, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 62-63.

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formalidade, restringindo-se a fazer referência a manuscritos localizados; obras editadas; cópias

remetidas.59

Além dos interlocutores historiadores, Varnhagen tinha na sua rede o contato profissional

com quem mantinha correspondência sobre assuntos diplomáticos. Entre os destinatários de suas cartas

estavam ministros, conselheiros, oficiais, políticos e colegas de oficio. Segundo Raquel Glezer, as missivas

de cunho profissional tinham como marcas o respeito e a cerimônia com que as informações consideradas

necessárias para a imagem, defesa do território, melhor aproveitamento da produção agrícola são

passadas aos superiores, além das atividades e funções executadas, sempre exaltando as suas atividades

e o seu patriotismo.60

As atividades como diplomata – servindo ao Império do Brasil no exterior, foram vitais para

o desenvolvimento de suas pesquisas documentais em arquivos e bibliotecas por atender às demandas do

IHGB, aos assuntos de governo e à redação da sua Historia geral do Brazil. Os tempos de legação em

Lisboa e Madrid, por exemplo, foram profícuos na busca, coleta e cópia de fontes sobre o passado colonial

brasileiro.61

As cartas endereçadas ao monarca constituem um capítulo à parte na prática epistolar de

Varnhagen tanto pela quantidade, quanto pela intensidade de informações nelas contidas. Neste sentido,

para José Honório Rodrigues, a coletânea organizada por Clado Ribeiro de Lessa,

mostra as relações de Varnhagen com D. Pedro (em 241 cartas, 67, afora a

Dedicatória, são dedicadas a D. Pedro, ou seja, mais de um quarto da

Correspondência), os apelos e pedidos que Sua Majestade fazia, as injustiças e

queixas que lamenta, inclusive do Instituto Histórico, as paixões que nutre, a

constante preocupação por ser brasileiro de primeira geração. Nelas

transparecem seus sentimentos, suas filiações partidárias, seu patriotismo, seu

pessimismo em certa fase de sua vida.62

Nas cartas de Varnhagen aos seus interlocutores historiadores, profissionais e amigos

questões como a escrita da história do Brasil, os destinos políticos do Império e o circuito intelectual

59 Raquel Glezer, Relações profissionais no Império brasileiro: Francisco Adolfo de Varnhagen e seus amigos, Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo, op. cit., p. 04. 60 Ibidem, p. 05. 61 Conferir: Virgilio Corrêa Filho, Missões brasileira nos arquivos europeus, RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 213, out./dez. 1953, p. 01-43. 62 José Honório Rodrigues, História e Historiografia, Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 1970, p. 127. O autor registrou erroneamente 241 cartas ao invés das 242 coligidas pelo biógrafo.

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estavam imbricadas umas nas outras. Nestes temas da escrita epistolar do visconde de Porto Seguro

estava no centro a imagem da nação que se desejava construir a partir do seu passado.

A história, a política e a cidade letrada eram peças estratégicas no jogo da fabricação da

identidade nacional. As apropriações dos vestígios do passado serviriam ao estabelecimento de uma

memória nacional, marcada pelo discurso da continuidade e da unidade, de uma política de Estado, que

procurava se consolidar a monarquia como regime político e desejava estabelecer a legitimidade do

território ocupado pela nação, e de uma concepção de historiador como o portador da narrativa autêntica e

documentada da pátria.63

Em meio a estas tramas historiográficas e políticas estava a própria história de vida de

Varnhagen com seus dilemas, anseios, medos e realizações. O público e o privado, no caso específico de

determinados interlocutores – Cardeal Saraiva, Fernand Denis, Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara e o

próprio monarca – encontravam-se e se confrontavam. Para Rebeca Gontijo, o exercício de pensar por

carta incentivaria os missivistas

a testar formas de pesquisa e expressão bastante distintas daquelas

encontradas em livros e artigos, por exemplo. Às vezes, em meio a recordações

do passado, referências à saúde e comentários sobre os problemas do dia-a-dia,

a vida alheia, a política e os trabalhos em andamento, é possível localizar

indícios de um saber em contínua transformação. De modo lacunar e muitas

vezes inconcluso, a correspondência permite uma rápida construção,

confrontação e difusão de idéias. Entre convenções e improvisos, a reflexão

toma um rumo provisório, efêmero, aberto a futuras modificações, o que permite

explorar certas liberdades de dizer e de pensar.64

Não se trabalha aqui com a lógica da história do sujeito permeada pela idéia da confissão

e de julgamento, tão criticada por Michel Foucault.65 Ler as cartas de Varnhagen, procurando compreender

como se constituiu suas redes de sociabilidades, não significa definir seu gosto ou a sua atitude de viver

63 Angel Rama cunhou este conceito para explicar a participação dos intelectuais na sociedade latino-americana desde a conquista até o a primeira metade do século XIX relacionando-os à esfera do poder. Esse grupo de letrados teria papel preponderante até no processo de organização das cidades, instituindo discursos de ordem. Segundo o autor, para levar adiante o sistema ordenado da monarquia absoluta, para facilitar a hierarquização e a concentração do poder, para cumprir sua missão civilizadora, acabou sendo indispensável que as cidades, que eram a sede da delegação dos poderes, dispusessem de um grupo social especializado ao qual encomendar esses encargos. Foi também indispensável que esse grupo estivesse imbuído da consciência de exercer um alto ministério que o equipava a uma classe sacerdotal. Angel Rama, A cidade das letras, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 41. 64 Rebeca Gontijo, História e historiografia nas cartas de Capistrano de Abreu, História, op. cit., p. 159-160. 65 Conferir: Michel Foucault, História da sexualidade: a vontade de saber, vol. 01, 15 ed., Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988, p. 22-23.

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em sociedade, e sim estudar a sua participação na dinâmica da vida associativa do Brasil do Segundo

Reinado, tendo como locus privilegiado o IHGB.66

Por esta perspectiva de análise, a escrita epistolar de Varnhagen assumiria uma dupla

dimensão: a do discurso ou simbólica e a da organização. Sua correspondência ativa ajudaria a desenhar,

por um outro ângulo, o espaço social produzido pelo IHGB e a sua atuação no processo de produção e

circulação das idéias durante o período imperial. Varnhagen e IHGB não estavam isolados no espaço e no

tempo. Neste sentido, segundo Jacques-François Sirinelli, a palavra sociabilidade revestir-se-ia de uma

dupla acepção, ao mesmo tempo “redes” que estruturam e “microclimas” que caracterizam um microcosmo

intelectual particular.67

O espaço de sociabilidade de Varnhagen seria, portanto, geográfico e afetivo, uma vez

que ao constituir relações de adesão ou de rejeição forjava uma certa sensibilidade ideológica:

Todo grupo de intelectuais organiza-se também em torno de uma sensibilidade

ideológica ou cultural comum e de afinidades mais difusas, mas igualmente

determinantes, que fundam uma vontade e um gosto de conviver. São estruturas

de sociabilidade difíceis de apreender, mas que o historiador não pode ignorar

ou subestimar.68

Neste caso, os seus interlocutores dentro do IHGB fariam parte de um espaço de

sociabilidade formal. Segundo Marco Morel, as sociabilidades formais eram aquelas que ocorriam em

associações, ou seja, estabeleciam-se institucionalmente de alguma maneira. Além disso, o seu caráter

era multifuncional, cumprindo simultaneamente várias funções sociais como a pedagógica, a política e a

cultural. 69

Em nome do e para o grêmio Varnhagen estabelecia seus contatos intelectuais. A

associação era a vitrine da elite letrada do Império brasileiro e, a partir dela, discursos sobre e para a

nação foram constituídos. Sua correspondência ativa permite a compreensão do significado do ser membro

do IHGB e do fazer histórico no período. Tal significado que não necessariamente corrobora as imagens

66 Para Marco Morel, Maurice Agulhon propunha que os estudos sobre sociabilidades não fossem um mero tratamento intuitivo ou impressionista, mas sim o conhecimento das sociabilidades pela densidade da existência de associações constituídas e suas mutações num quadro geográfico e cronológico delimitado. Marco Morel, As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade Imperial, 1820-1840, São Paulo, Hucitec, 2005, p. 221. 67 Jacques-François Sirinelli, Intelectuais, in: René Rémond (org.), Por uma história política, Rio de Janeiro, Ed. da FGV, 2003, p. 252-253. 68 Ibidem, p. 248. 69 Marco Morel, As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade Imperial, 1820-1840, op. cit., p. 221.

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esboçadas pelo discurso hegemônico e unificador da agremiação presente nas páginas de sua Revista,

após sua morte.

Por assumir papel aglutinador no contexto de consolidação da monarquia e da nação no

século XIX, o IHGB emergiu como uma associação de formação de consenso, de afirmação de hegemonia.

Em outras palavras, era um espaço de interseção e de homogeneização, diante de conflitos.70 Logo, há

que se buscar a partir de Varnhagen, assim como de outras vozes ali dentro, falas que apresentassem

contradições e heterogeneidades soterradas pela memória institucionalizada. Deste modo, como sugeriu

Marco Morel,

o estudo destes centros (que em determinado momento exerceram papel

aglutinador) deve levar em conta não apenas o resultado coerente e harmonioso,

constantemente presente em seus discursos oficiais, mas também as dissensões

e diversidades diante das quais surgiu e influenciou. A unidade destas

associações unificadores era forjada após disputas e alianças as mais diversas e

que, invariavelmente, remetiam para relações que ultrapassavam o quadro

institucional.71

As cartas ao imperador são emblemáticas para se compreender as nem sempre tranqüilas

relações entre Varnhagen e o IHGB, especialmente quando dos comentários acerca da idéia do elemento

indígena ser símbolo de nacionalidade ou mesmo da silenciosa recepção da sua História geral do Brazil. A

sua correspondência com o monarca e também com os secretários do grêmio trazem informações sobre o

seu envolvimento com o projeto da construção da memória nacional, mostrando um sócio comprometido a

sua maneira com as diretrizes da casa da memória. A sua aversão à proposta indianista dos consócios

românticos do IHGB, à guisa de ilustração, indicariam a inexistência de um consenso de qual modelo

deveria ser eleito para a elaboração da identidade nacional.72

Com base nestas considerações, cabe aqui percorrer as trilhas da escrita epistolar de

Varnhagen procurando entender as suas reflexões compartilhadas sobre o papel do IHGB na sua prática

historiadora, o que seria ser historiador no século XIX, a escrita da sua história geral e o enfretamento da

70 Ibidem, p. 295. 71 Ibidem, p. 295-296. 72 Conferir: Pedro Puntoni, O sr. Varnhagen e o patriotismo caboclo: o indígena e o indianismo perante a historiografia brasileira, in: István Jancsó (org.), Brasil: Formação do Estado e da Nação, São Paulo, Hucitec; FAPESP; Ijuí, Ed. UNIJUÍ, 2003, p. 633-675.

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proposta indianista romântica de definição da identidade da nação. Não se pretende fazer aqui uma leitura

das cartas para preencher as eventuais lacunas da obra de Varnhagen.

Como sugeriu Dominick LaCapra, não se pensa que Varnhagen tenha escrito um só texto

ao longo de sua obra.73 Não há o desejo de conceber seus escritos como um conjunto que confirmasse

uma mesma totalidade discursiva. A sua escrita da história não seria linear e não representaria sempre

uma unidade: as suas cartas apontam que nem sempre suas intenções estavam muitos claras para ele

mesmo, provavelmente ele tenha descoberto suas intenções no próprio ato de escrever.74

As cartas de Varnhagen são, portanto, tomadas como uma das formas de manifestação do

seu desejo pelo saber histórico e um meio de exposição das suas empreitadas de pesquisa em arquivos e

bibliotecas, de seu cotidiano de trabalho e de sua metodologia de busca documental e de sua escrita da

história. Segundo Maurice Trebitsch, neste meio privado de trocas seria possível encontrar relatos que não

necessariamente estariam em meios púbicos como revistas, livros e colóquios – no caso a Revista do

IHGB seria um exemplo lapidar.75

2.4. O IHGB como lugar de autoridade: em busca do reconhecimento na cidade letrada___________

Para um homem das letras, o reconhecimento de seus feitos intelectuais era uma

necessidade. Varnhagen, ao longo de sua vida, desejou e trabalhou para a sua aprovação como um

erudito, ou melhor, uma autoridade como historiador. A sua correspondência é emblemática por oferecer

as marcas desta vontade de ascender aos lugares de glória. Segundo Laura Nogueira Oliveira, o

historiador-diplomata, seguidor dos preceitos da historia magistra vitae, sabia que a tarefa de escrita de

uma história geral não seria apenas importante para os seus contemporâneos, ela também significaria o

73 Mesmo a sua Historia geral do Brazil, publicada originalmente entre 1854 e 1857, passou por momentos de revisão e reescrita pelo próprio autor, o que caracterizaria sua escrita como um processo em movimento a partir de um diálogo com a sociedade e com a cultura de seu tempo. 74 Segundo Célia Maria Marinho de Azevedo, as intenções do autor não podem se constituir no critério decisivo para se chegar a uma interpretação válida do texto. Célia Maria Marinho de Azevedo, A nova história intelectual de Dominick LaCapra e a noção de raça, in: Margareth Rago e Renato Aloizio de Oliveira Gimenes (org.), Narrar o passado, repensar a história, Coleção Idéias 2, Campinas, Gráfica do IFCH-UNICAMP, 2000, p. 131. Conferir: Dominick LaCapra, Rethinking Intellectual History, in: Dominick LaCapra e Steven L. Kaplan (eds.), Modern European Intellectual History: Reappraisals and New Perspectives, Ithaca, Cornell University Press, 1983. 75 Michel Trebitsch, Correspondances d’intelectuels: lês cãs des lettres d’Henri Lefebvre à Norbert Guterman (1935-1947), Le Cahiers de L’IHTP, op. cit., p. 82 (tradução livre).

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reconhecimento da posteridade e seria eternamente relembrada como um monumento de patriotismo e de

amor à verdade histórica.76 E a consagração da obra seria também a de seu autor.

Em carta endereçada a Antonio Feliciano de Castilho (1800-1875), primeiro visconde de

Castilho, o historiador sorocabano o aconselhava a fazer uma tradução qualquer para enfrentar naquele

momento a pouca appetencia para os trabalhos litterários. Ele justificava seu pedido ao amigo com base

em dois grandes estímulos para uma alma grande: os do amor da pátria e do amor da gloria.77

Diante destes argumentos persuasivos, Varnhagen fez a sua proposta ao primeiro

visconde de Castilho, contando com a sua adesão ao projeto literário:

Julga-se perdido um dos monumentos da infância da litteratura portugueza: - o

original de Vasco de Lobeira. Porque, pois, meu caro amigo, não emprehende V.

Exª agora o restutuil-o à patria. Ninguem poderá fazel-o melhor. – Se não tiver

editor, eu me offereço a sêl-o. Dei esta idéa, há muitos annos, ao nosso amigo

Ramalho, como preferivel à de empenhar-se tanto com os seus clans, os seus

high-landers e os seus nevoeiros, que nunca foram nem serão populares entre

nós. Se, porém, V. Exª chega a realizar a obra, providencia terá sido que o

Ramalho não me entendesse.78

No oficio das letras, por esta perspectiva, estaria a possibilidade de busca da eternidade

no panteão intelectual. As formas de reconhecimento, na leitura dos homens do tempo de Varnhagen,

deveriam acontecer em vida com títulos, honrarias e homenagens por parte dos pares e principalmente do

monarca. Os louros da consagração dos consócios do IHGB e da monarquia eram o objeto de interesse de

sua tarefa historiadora, que não se limitava à mera busca de documentos do passado nacional em arquivos

e bibliotecas. Fazer parte de associações como o IHGB ou mesmo a Academia Real de Ciências de Lisboa

era a condição de aceitação de um homem de letras, mas a missão não se restringia ao ingresso nestes

espaços: era preciso produzir uma biografia intelectual digna de lembrança pelas futuras gerações.

O seu contato com diferentes associações eruditas, segundo Taíse Tatiana Quadros da

Silva, também ajudaria a esboçar a arquitetura da história filosófica e crítica varnhageniana. Além do IHGB

76 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007, p. 66. 77 Carta a Antônio Feliciano de Castilho, visconde de Castilho, 19 de maio de 1872, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 365. 78 Ibidem, ibidem.

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e da Academia Real, foi membro da Sociedade de Geografia de Paris, do Instituto Histórico de Buenos

Aires e da Academia Real de Munique, entre outros.

Em todas estas Varnhagen haveria pleiteado o título de sócio o que indica haver,

para além das tarefas expressamente profissionais, um interesse particular de

Varnhagen no envolvimento com certo ambiente social, bem como com

manuscritos e impressos antigos. O prazer antiquário do contato com estes

documentos, entretanto, estava, no regime das atividades letradas de que

participaria Varnhagen, mediado também pelas intervenções eruditas efetuadas

no interior dessas instituições, onde os materiais seriam rearticulados

constituindo os seus acervos particulares. Imbricado com uma rede de lugares

onde a relação com o passado seria estabelecida por meio da reorganização dos

registros ou documentos utilizados Varnhagen, como historiador, distribuir-lhes-ia

segundo uma nova ordem, agrupando textos das mais diversas procedências,

investigando a sua origem, avaliando as suas possibilidades interpretativas.79

De acordo com Lucia Maria Paschoal Guimarães, para alcançar o prestígio e a autoridade

de membro do IHGB exigia-se pré-requisitos definidos por normas muito rígidas, mas carente de critérios

acadêmicos:

O aspirante a sócio deveria ter seu curriculum vitae apresentado por um membro

efetivo, o qual se tornava responsável pela indicação. A proposta era

encaminhada, de início, para a apreciação pelas comissões de História ou de

Geografia, de acordo com a seção pretendida pelo candidato, que emitiam o seu

parecer a respeito. Finda esta etapa, o parecer seria submetido à Mesa Diretora,

que o votava em escrutínio secreto. Aprovado pela alta cúpula, o nome do futuro

integrante era levado à Assembléia Geral, para que fosse referendado ou não.80

Com base no cumprimento destes pré-requisitos de aceitação, Varnhagen pôde adentrar

as portas do salão da casa da memória nacional como sócio correspondente. As mesmas Reflexões

79 Taíse Tatiana Quadros da Silva, A reescrita da tradição: a invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857), dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006, p. 18-19. 80 Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, Rio de Janeiro, ano 156, n. 388, jul./set. 1995, p. 484.

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Criticas, que lhe renderam o acesso à Academia Real de Ciências, foi o seu passaporte para o IHGB, em

1840.

Segundo Renato Sêneca Fleury, quando tomou conhecimento da fundação do grêmio no

Brasil, ele se apressou em estabelecer contato com seus membros, enviando à sua biblioteca um exemplar

do seu famoso ensaio, o que fez por meio do conselheiro Antônio de Menezes Vasconcelos de Drummond

(1794-1865), à época ministro do Brasil em Portugal e sócio correspondente do IHGB.81 A referida

contribuição foi enviada por carta ao secretário do IHGB, cônego Januário da Cunha Barboza, datada de

05 de outubro de 1839:

Illmo. Snr. Tenho muita satisfação de levar às mãos de V. Sª para que se digne

apresentar ao Instituto de que é digno secretário, o incluso exemplar de um

escripto que acabo de publicar; contando desde já, fiado na benevolencia e

illustração de seus membros, que me serão reveladas minhas faltas, e as

irregularidades typographicas pelo serviço que procurei prestar-lhe, e desejo e

espero continuar. 82

A comissão encarregada de elaborar o parecer sobre as Reflexões Criticas, formada por

Rodrigo de Sousa da Silva Pontes (1799-1855), Tomás José Pinto Serqueira (1805-1885) e Cândido José

de Araújo Viana (1793-1875), apresentou relatório com elogios sem restrições à obra ofertada por

Varnhagen e propondo os seguintes encaminhamentos:

1.º Que se conserve na Bibliotheca do Instituto Historico e Geographico

Brazileiro a obra intitulada – Reflexões Criticas.

2.º Que se agradeça ao Sr. Varnhagen o exemplar de que fez presente ao

Instituto.

3.º Que por meio da Revista Trimestral se recommende a leitura das Reflexões

Criticas a todos os estudiosos das cousas do Brazil.83

81 Renato Sêneca Fleury, Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, “Paulista de Sorocaba”. Ensaio Bibliográfico (...), São Paulo, Edições Melhoramentos, 1952, p. 30. 82 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 05 de outubro de 1839, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 39. Lida na sessão de 19 de dezembro de 1839. 83 Parecer a’cerca da obra intitulada Reflexões criticas sobre o escripto do século XVI, impresso com o titulo de Noticia do Brasil no T. 3 da Colecção de Not. Ultr., por Francisco Adolpho de Varnhagen, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 02, 1840, p. 112.

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Aceito como sócio correspondente do IHGB, Varnhagen daria início a sua atuante

participação como colaborador das suas atividades acadêmicas. O ministro Drummond seria seu

incentivador nos primeiros tempos de sua vida como homem de letras, criando condições para o seu

acesso ao circuito intelectual. Em carta enviada ao secretário Januário da Cunha Barboza, de 10 de

novembro de 1839, ao remeter por sua legação um exemplar do Diario da Navegação de Pero Lopes de

Souza, o referido diplomata não economizaria nos elogios aos méritos de pesquisador de seu autor,

comentando com detalhes as suas façanhas nos arquivos de Portugal:

O auctor offerece os mencionados dous exemplares ao nosso Instituto Historico,

que achará nelles, quanto a mim, apurada a verdade Historica da primeira época

da Historia do Brasil, e são por isso de muita valia e estimação.

O Sr. Varnhagen occupa-se ainda em procurar outros documentos da mesma

natureza, egualmente interessantes á nossa Historia. Devemos esperar de seu

talento e grande actividade que continue a prestar ao Paiz do seu nascimento

importantes serviços deste gênero. (...)

Cabe aqui referir a V. S.ª que o Sr. Varnhagen descobriu, o anno passado, na

sachristia do Convento da Graça, em Santarem, o jazigo de Pedro Álvares

Cabral, de que não havia memória escripta, nem tradicional. Está em sepultura

raza com uma loisa simples de treze palmos de comprido, com meia largura, e o

seguinte epitaphio em gothico florido (vulgarmente assim dito).84

A primeira glória do jovem historiador seria o indicativo para que o seu nome fosse

apresentado pelo representante diplomático do Brasil em Portugal como um homem de quem o Brasil teria

necessidade. Ele seria cotado para assumir a função de adido à sua legação. Encaminhava-se Varnhagen

para uma dupla missão: a diplomacia e as investigações históricas. Em oficio reservado, de 14 de

dezembro de 1839, ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Caetano Maria Lopes Gama (1795-1864), o

futuro visconde de Maranguape, o ministro Drummond propôs a nomeação do sorocabano para um posto

na legação em Lisboa:

84 Carta escripta ao Sr. 1º Secretario Perpetuo Januário da Cunha Barbosa pelo socio correspondente e Ministro Plenipotencionario do Brasil em Portugal, o Ex.mo Sr. Antonio de Menezes Vasconcellos de Drummond, Ata da 30ª sessão, em 11 de janeiro de 1840, RIHGB, op. cit., p. 136-137.

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Pretende ser empregado no serviço do Brasil, sua pátria de nascimento, e nós

gostaríamos com isso, suponho eu, mormente se êle fôsse empregado com o

título de adido a esta Legação, com encargo especial de coligir documentos e

diplomas para a História do Brasil e diplomática, coordená-los e analisá-los de

modo que certifique datas e acontecimentos e apure a verdade do fabuloso. Um

ordenado de 800$000 anuais seria, quanto a mim, suficiente recompensa para

adquirir já um moço de tanto talento e trabalho, posto que em tenra idade, e que

nos tem prestado bons serviços com a publicação de suas obras a respeito do

Brasil. Fazendo esta proposta a V. Excia, com a mira de animar e proteger um

engenho pátrio, que pode vir a ser honroso ao nosso país, não pretendo de

forma alguma prejudicar a nomeação já feita de outro digno patrício.85

A sua aceitação como membro da legação só se efetivaria em 1842, na função de adido

de primeira classe, após o reconhecimento de sua nacionalidade brasileira pelo governo imperial. Dessa

feita Varnhagen teria em mãos as condições necessárias para a realização do projeto intelectual: uma rede

de contatos, livros e manuscritos em quantidade em arquivos e bibliotecas, fonte de renda como

funcionário público, proteção imperial e o IHGB. As cartas enviadas aos seus interlocutores no período

apresentam um homem comprometido com a missão que lhe fora delegada pela diplomacia e pelo grêmio.

A pesquisa e compilação de documentos tomavam seu tempo e notícias de suas

descobertas ocupavam as sessões e as páginas da Revista do IHGB, sempre acompanhadas de rituais de

reconhecimento e júbilo pelos consócios. Além disso, dedicava a escrita de memórias, juízos e biografias,

constituindo em torno de si uma imagem de homem de letras comprometido com os princípios defendidos

pelos Estatutos da instituição:

Art. 1o O Instituto Historico e Geographico Brazileiro tem por fim colligir,

methodisar, publicar ou archivar os documentos necessarios para a historia e

geographia do Imperio do Brazil; e assim tambem promover os conhecimentos

destes dous ramos philologicos por meio do ensino publico, logo que o seu cofre

proporcione esta despeza.86

85 Citado por Renato Sêneca Fleury, Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, “Paulista de Sorocaba”. Ensaio Bibliográfico (...), op. cit., p. 34-35. 86 Extracto dos Estatutos, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 01, 1839, p. 18.

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Ao longo das primeiras décadas de existência do IHGB haveria a publicação massiva nas

páginas de sua Revista de memórias históricas dedicadas à compilações documentais e notícias

descritivas acerca das partes constituintes do Império. E Varnhagen seria um nome recorrente entre os

colaboradores da publicação principal do grêmio. Segundo Maria da Glória de Oliveira,

O uso recorrente dessa forma de registro historiográfico corresponde, sem

dúvida, à concepção cumulativa de construção do conhecimento histórico que

pressupunha o trabalho de ordenação e arquivamento de vestígios do passado e

constituía-se, portanto, em precondição para a escrita de uma história “geral” do

Brasil.87

A sua Revista, foro privilegiado para se compreender o projeto intelectual e político da

agremiação, além de espaço de publicação de registro de relatórios, eventos comemorativos, fontes

primárias, memórias e biografias, era o espaço de ver e ser visto para os seus consócios e a cidade

letrada. Era o lugar de prestígio e autoridade. Ter o seu nome entre os seus colaboradores era motivo de

orgulho e sinal de reconhecimento. Para os membros, o periódico tinha papel fundamental na divulgação

dos trabalhos do IHGB e também de seus ilustres varões. Seu papel como locus de propaganda e

preservação da memória da nação da associação foi celebrado pelo seu primeiro secretário Joaquim

Manuel de Macedo (1820-1882), na Sessão Aniversária, de 15 de dezembro de 1852:

Não é um arrojo de orgulho, é uma verdade incontestável: a collecção das nossas

Revistas se tem tornado em cofre precioso, onde se guardam em deposito

thesouros importantissimos; e a leitura d’ellas será muitas vezes fructosa para o

ministro, o legislador e o diplomata, e em uma palavra para todos aquelles que

não olham com indiferença as cousas da patria. E quando mesmo se chegasse a

averbar de exagerada esta observação, sobrava para demonstrar a importancia da

nossa publicação trimestral a certeza de que ella será a fonte abundante e pura,

onde os nossos futuros historiadores irão beber as chronicas e as tradições do

passado.88

87 Maria da Gloria de Oliveira, Traçando vidas de brasileiros distintos com escrupulosa exatidão: biografia, erudição e escrita da história na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839-1850), História, São Paulo, vol. 26, n. 01, 2007, p. 155. 88 Joaquim Manuel de Macedo, Relatorio do primeiro secretario interino, Sessão Publica Anniversaria em 15 de dezembro de 1852, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 15, 1852, p. 492.

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O visconde de Porto Seguro, ao lado de letrados como o cônego e o jornalista Januário da

Cunha Barboza, o romancista e político João Manuel Pereira da Silva (1817-1898), o crítico literário e

historiador mineiro Joaquim Norberto de Sousa e Silva (1820-1891), o poeta e diplomata Domingos José

Gonçalves de Magalhães (1811-1882) e o cônego doutor Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, aparecia

como profícuo colaborador com memórias e biografias. Entre 1840 e 1878, Varnhagen publicou nas

páginas da Revista, à guisa de ilustração, 31 notícias biográficas. Além das Reflexões Criticas, ele

ofereceu memórias de grande repercussão entre os homens de letras como Memoria sobre a necessidade

do estudo e ensino de línguas indígenas do Brazil (1841), O Caramuru perante a História (1848) e

Ethnographia indigena, linguas,emigrações e archeologia. Padrões de marmore dos primeiros

descobridores (1849).89

Embora Varnahgen tenha vivido boa parte de sua vida fora do Brasil, exercendo diversos

cargos em legações brasileiras na Europa e na América do Sul, ele pensou e escreveu suas obras com o

olhar voltado para a sua pátria de nascimento. Tanto nos números da Revista, quanto em outros escritos,

Varnhagen preocupava-se em orientar a estruturação e consolidação do Brasil como uma nação. Havia um

compromisso político e ideológico na sua escrita. Ele era sujeito no processo de invenção do Brasil e não

apenas reflexo daquele projeto. Os homens de sua geração deram contornos e formas representativas aos

distintos mundos do social e empenharam-se em conservá-los – o Império do Brasil nascia com os olhos

na Europa e os pés na América:

Fundar o Império do Brasil, consolidar a instituição monárquica e conservar os

mundos distintos que compunham a sociedade faziam parte do longo e tortuoso

processo no qual os setores dominantes e detentores de monopólios construíam

a sua identidade como uma classe social.90

Para Varnhagen, herdeiro e construtor de um novo império, a glória estaria na sua

consolidação e legitimidade pelo discurso da história, ou seja, de uma narrativa que criasse um sentimento

de pertencimento e celebrasse um regime de governo monárquico. A sua escrita, bem como a dos demais

consócios no IHGB, estava intimamente ligada ao projeto de fortalecimento do poder do soberano:

89 Conferir: Francisco Adolfo de Varnhagen, Memoria sobre a necessidade do estudo e ensino de línguas indígenas do Brazil, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 03, 1841, p. 53-63; O Caramuru perante a História, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 10, 1848, p. 129-152; Ethnographia indigena, linguas, emigrações e archeologia. Padrões de marmore dos primeiros descobridores, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 13, 1849, p. 366-376. 90 Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema: a formação do Estado imperial, 5 ed. São Paulo, Hucitec, 2004, p. 139.

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Nesses termos, e assinalando um deslocamento, a Soberania do Império não

mais se constituía apenas pela referência aos demais Estados, as “Nações

civilizadas”. Ela era construída tendo como referência principal a própria

sociedade – uma multidão de homens, unidos numa pessoa única por um poder

em comum, para sua paz, sua defesa e seu proveito comuns –, e fazia do

Soberano ou do Poder o responsável pela manutenção da paz e da ordem,

outorgando-lhe um monopólio: o monopólio de uma responsabilidade.91

Ao arrogar para si o compromisso do IHGB com a fabricação de uma história nacional,

pautada pela noção de unidade territorial e política e lealdade à monarquia da casa dos Bragança, os seus

letrados empenharam suas mentes e corações na empreitada de delinear um perfil para a nação brasileira.

Sob o manto protetor do imperador D. Pedro II, a sua missão historiográfica era posta como uma tarefa

oficial, e a obra realizada um bem nacional – uma espécie de monumento. Nas cartas de Varnhagen, esta

idéia estaria bem marcada e seria repetidas vezes lembrada.

Em carta ao primeiro secretário do IHGB, lida na sessão de 19 de abril de 1843, o

historiador sorocabano lembrava do peso da sua atividade de pesquisa nos arquivos e bibliotecas em

Portugal, garimpando documentos para a construção da história geral do Brasil:

A V. Sª, bem como a muitos outros e particular, que me honram com a amizade,

e me favorecem com sua correspondencia, tenho eu mui frequentemente

provado estar bem presente em que a honra de pertencer a tal associação, e de

ser até pelos membros della benevolamente favorecido, me confere obrigações,

de que me não posso esquecer. Ainda bem que hoje, graças à munificência do

nosso Augusto Imperador, me acho e situação muito favorável, não só para me

occupar em servil-a já e directamente no que me encarregar, como pouco a

pouco e indirectamente, reunindo por mais antiga e espontanea vocação os

elementos para a organização de uma conveniente Historia da Civilização do

Brasil, que é este dos paizes que mais se proporciona quando haja os elementos

ao novo methodo de escrever a historia.92

91 Ibidem, p. 161. 92 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sem data no original, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 91-92.

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A referência ao patrocínio do imperador em sua correspondência reforça a imagem oficial

das atividades do grêmio e o seu compromisso com o projeto de construção da memória do Segundo

Reinado. A força deste vinculo paternal entre IHGB e Império ficou evidente no discurso pronunciado pelo

próprio D. Pedro II, seu patrono, na sessão de 15 de dezembro de 1849, quando da inauguração das

novas instalações da casa da memória:

Sem duvida, Srs., que a vossa publicação trimestral tem prestado serviços,

mostrando ao velho mundo o apreço, que tambem no novo merecem as

applicações da intelligencia; mas para que esse alvo se attinja perfeitamente, é de

mister que não só reunaes os trabalhos das gerações passadas, ao que vos

tendes dedicado quase que unicamente, como tambem, pelos vossos proprios,

torneis aquella a que pertenço digna realmente dos elogios da posteridade: não

dividi pois as vossas forças, o amor da sciencia é exclusivo, e, concorrendo todos

unidos para tão nobre, util, e ja difficil empreza, erijamos assim um padrão de

gloria á civilisação da nossa patria.

Congratulando-me desde já comvosco pelas felizes consequencias do empenho,

que contrahis, reunindo-vos em meu palacio, recommendo ao vosso presidente

que me informe sempre da marcha das commissões, assim como apresente,

quando lhe ordenar, uma lista, que espero será a geral, dos socios que bem

cumprem com os seus deveres; comprazendo-me aliás em verificar por mim

proprio os vossos esforços todas as vezes que tiver a satisfação de tomar parte

em vossas lucubrações.93

A restituição do legado das gerações do passado e da história do tempo presente – uma

memória do Segundo Reinado – era o dever a ser cumprido pelos letrados IHGB. No caso desta história

recente do Império, a finalidade estava posta pela própria fala do trono: criar uma imagem pública de D.

Pedro II e do seu reinado. A esfinge do imperador emergia com eloqüência nos discursos, memórias

históricas, poemas, em sua maioria, publicados na Revista do IHGB, e nas próprias cartas trocadas entre

os consócios e o monarca. Em diversas missivas, Varnhagen procurava registrar ao seu soberano que sua

tarefa historiadora era sua prova de lealdade e amor ao seu líder e à sua pátria.

93 Extractos da 212ª sessão, de 15 em dezembro de 1849, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 12, 1849, p. 552.

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O passado e o presente do Brasil se conjugavam na figura do único monarca americano.

O seu corpo traduzia o corpo da própria pátria. A costura documental e de memórias históricas

confeccionavam o manto real discursivo que cobriria o território e definia o desenho das suas fronteiras. 94

D. Pedro II significava a certeza de um futuro promissor para o Império.

Para Joaquim Manuel de Macedo, em seu relatório das atividades de 1856, o imperador

era um homem predestinado, um enviado pela providência divina para levantar o monumento da nação

brasileira:

Porque cada anno que passa deixa em legado ao futuro uma conquista da

civilisação, um triumpho do genio, e uma gloria mais para o reinado do sr. dom

Pedro II, que é o principe predestinado pela divina providencia para lançar os

seguros fundamentos da immensa grandeza do imperio do Brazil.

Predestinado, sim! A historia já o proclama, e a voz potente dos factos o tem ja

repetido mil vezes, e o esta repetindo ainda.

Elle é o principe que nasceu quando ja brilhava o sol da independencia no céo

brazileiro, e que dormiu o primeiro somno embalado pelos cantos do Ypiranga e

pelos hymnos constitucionaes.

Elle é o principe que passou do berço para o throno, e que teve então o anjo da

liberdade velando perto do solio augusto, e defendendo n’elle a sua propria e

mais firme garantia no futuro. (...)

E’ o imperador, em cujo reinado ainda se não levantou um patibulo, nem a

espada da lei derramou uma gotta de sangue para punir um crime politico.

E´ o imperador, que apagou os odios e as paixões que dividiam os Brazileiros

em dous campos inimigos, e levantou a paz, a concórdia e a felicidade da nação

sobre as ruinas da intolerancia e do egoismo.

E’ o imperador, que além do throno magestoso em que se senta, tem ainda um

throno de amor no coração de cada um de seus súbditos, e ha de ter um throno

na memoria da posteridade agradecida.95

94 Conferir: Demétrio Magnoli, O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912), São Paulo, Ed. da UNESP; Moderna, 1997; Renato Amado Peixoto, A máscara da medusa: a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. 95 Joaquim Manuel de Macedo, Relatorio do primeiro secretario, Sessão Magna em 15 de dezembro de 1856, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 19 (Supplemento), 1856, p. 121-122.

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A história de vida de D. Pedro II, pela narrativa do primeiro secretário, acompanhava a

história do Império. O seu crescimento e amadurecimento representavam a consolidação do Brasil entres

as nações civilizadas. Em nome das glórias do presente, o passado deveria ser organizado e constituído.

Na colônia estava a infância da nação. A independência, como se abordará no próximo capítulo, seria o

ritual de passagem para a fase adulta, logo da emancipação.

Varnhagen, de forma marcante, teceria sua narrativa dos enredos cronológicos e

temáticos da sua Historia geral do Brazil a partir da lógica da continuidade e unidade, tendo o Estado como

o grande protagonista. Para Taíse Tatiana Quadros da Silva,

a empresa colecionadora de Varnhagen convergiria com as perspectivas de uma

monarquia preocupada em legitimar, por meio da historiografia, seu território e sua

nação. Varnhagen enquanto enviado da coroa brasileira no exterior estaria assim,

exercendo uma tarefa diretamente relacionada à organização simbólica do Estado

brasileiro, que dependia, então, da constituição de um patrimônio documental,

confundindo-se assim o funcionário público com o erudito, o acadêmico com o

diplomata defensor dos interesses nacionais no exterior. Seria no cruzamento

destes diversos papéis que emergiria, conjuntamente com sua obra, o historiador.

Assim, quando editada com a graça do então Imperador do Brasil, D. Pedro II, a

História varnhageniana estamparia entre suas finalidades, não apenas a meta de

insuflar o sentimento nacional entre os ‘brasileiros’, mas também a intenção de

representar, em meio às questões de ordem diplomática que enfrentava o Brasil,

os próprios direitos do Estado nacional, afirmando-os para o mundo, através da

História pátria. Este elemento que sobrecarregaria a narrativa de

responsabilidades, também lhe definiria a forma, sendo as notas e documentos

citados uma expressão da validade jurídica do discurso histórico apresentado.96

A escrita de Varnhagen procurava produzir a versão oficial do passado brasileiro almejada

pela fala do imperador. E não poucas vezes, como se analisará neste capítulo, pediu a bênção monárquica

para o livro-síntese nas missivas enviadas ao palácio imperial. A oficialização da sua Historia geral do

96 Taíse Tatiana Quadros da Silva, A reescrita da tradição: a invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857), op. cit., p. 17-18.

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Brazil pelo monarca e IHGB seria a consagração da pátria e também do seu artífice – o próprio

historiador.97

Segundo Rodrigo Turin, este tipo de escrita da história encerrava-se em um espaço

demarcado, transformando-se em uma escrita oficial por meio da chancela do Estado imperial:

Tanto a prática quanto o produto inscreviam-se em um circuito bem definido,

tornando-se o historiador um dos braços mais importantes do Estado na

confecção de uma identidade coletiva e na reflexão acerca de modelos de ação

para o governo. A pesquisa histórica, assim, mostrava-se como uma matriz

cientifica da construção de estratégias e táticas da arte de governar,

configurando sentidos que dessem forma ao objeto e orientassem a ação estatal

sobre o mesmo. Mais do que isso, cabia ainda a esses letrados, pelo estudo da

história pátria, cantar, tal como um aedo moderno, as glórias do Brasil à

posteridade. Ao historiador, caberia também distribuir glória e ordenar a memória

da sociedade.98

Ao estabelecer essa relação estreita entre o projeto intelectual do IHGB e o projeto político

conduzido pela elite imperial, Laura Nogueira Oliveira alertou para o perigo de se considerar esta

historiografia como mero reflexo daquele projeto político. A história no século XIX seria o saber que

ofereceria as bases científicas para um projeto nacional. Essa percepção da história como fonte de oferta

de respaldo científico para aquele presente era resultado da concepção que os letrados do grêmio tinham

da própria disciplina:

Em primeiro lugar, a história era vista como a portadora das verdades reveladas

pela análise da documentação acumulada.

Em segundo lugar, a partir das verdades reveladas pela análise histórica, poder-

se-iam construir leis do desenvolvimento humano e prever-se o progresso futuro.

97 Para Lucia Maria Paschoal Guimarães, a chancela do Instituto Histórico e a divulgação da produção historiográfica dos associados estiveram condicionadas ao “teatro de sombras” da política imperial. Onde os idealizadores do Instituto e seus sucessores, ao longo do Segundo Reinado, desempenharam papéis de primeira grandeza. Em que pesem o fervor das constantes manifestações de apreço e fidelidade a Clio, externadas por todos os dirigentes e demais integrantes da “Casa”, em suas alocuções, principalmente, quando se tratava de datas festivas. Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, op. cit. p. 573. 98 Rodrigo Turin, Uma nobre, difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista, História da Historiografia, Ouro Preto, n. 02, mar. 2009, p. 15-16.

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Por fim, essa história verdadeira, porque construída a partir da análise da

documentação, tinha um caráter pragmático. A história era a mestra-da-vida

porque o conhecimento do passado forneceria aos homens subsídios para se

orientarem no presente. Do passado, poderiam ser extraídos exemplos e

aprendizagens, para que os homens pudessem melhor escolher os caminhos a

seguir.99

Ser protagonista no processo de construção da memória nacional era motivo de orgulho e

consagração do historiador oitocentista. O reconhecimento de seu feito pelas redes de sociabilidade do seu

tempo constituía um desejo, em muitos casos, disfarçado pela retórica da humildade perante a sociedade

e, no ambiente do privado, assumido com profunda paixão. Varnhagen, como se pode observar em sua

carta ao amigo Antonio Feliciano de Castilho, tinha plena consciência que a dedicação às letras implicava

um duplo amor: a pátria e a glória.

Cabe recordar que sua luta pela sua oficialização como historiador da verdadeira e

nacional história geral do Brasil não se restringia apenas a sua atuação como dedicado compilador de

documentos em arquivos e bibliotecas. Ela passava principalmente pela defesa da chancela de autoridade:

de homem das letras ou de historiador. Segundo Laura Nogueira Oliveira,

Por um lado, o texto varnhageniano dá ao seu leitor a sensação de que se

travava uma batalha: havia sempre uma causa em prol da qual se guerreava.

Por outro, exatamente porque empregava esses recursos, seu texto tem

circunspeção, é sisudo, revela a verdade. Essa foi um efeito por ele perseguido e

calculado.100

As batalhas de reconhecimento passaram pelo silêncio do IHGB diante da sua Historia

geral do Brazil, fracasso no seu intento de ser o “cronista-mor” do Império e demora na outorga dos títulos

nobiliárquicos. Ele se ressentia por não ter o status ambicionado, em virtude da sua obra historiográfica

dedicada à pátria, ao monarca e à casa da memória.

A emergência de sua imagem como historiador símbolo do IHGB, como foi analisado no

capítulo anterior, só se tornou possível após a sua morte, em 1878. A autenticação da paternidade só 99 Laura Nogueira Oliveira, Os índios bravos e Sr. Visconde: Os indígenas brasileiros na obra de Francisco Adolfo de Varnhagen, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Minas Gerias, Belo Horizonte, 2000, p. 121. 100 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 239.

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aconteceria tarde demais. Depois de abandonar a cidade dos vivos, Varnhagen faria parte do pantheon de

papel do IHGB, não sendo mais sujeito (autor), mas objeto (personagem) da narrativa histórica e

institucional do grêmio.

Para alcançar os louros da glória, o historiador teria de seguir preceitos básicos, definidos

por um lugar e uma prática. Preocupado em desenhar a identidade daquele que se dedicava à pesquisa

histórica, Varnhagen não deixou de registrar seus conselhos e prescrições de oficio. A construção do

monumento da história da nação dependeria da competência do historiador, ao menos dos dotes por ele

concebidos como necessários em suas missivas e mesmo no prefácio da 1ª edição da sua Historia geral

do Brazil, publicado como uma espécie de resposta aos críticos no tomo II, em 1857.

2.5. “Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil” ou o oficio de historiador______

2.5.1. As faces do historiador varnhageniano: erudito, filósofo, literato e, às vezes, poeta

Na cultura histórica dos oitocentos, a relação com o passado não era questão secundária.

Segundo Taíse Tatiana Quadros da Silva, ela era fundamental na definição das possibilidades sobre o

devir, como forma de invenção de si mesmo e de transitar entre esta invenção e o diverso.101 Diante deste

fato era preciso, aos que se dedicavam ao fazer histórico, questionar-se sobre o que seria o seu ofício a

partir das áreas de conexão (nem sempre tranqüilas) entre o cientista e o literato.

Se o passado, à semelhança da História, como sugeriu Durval Muniz de Albuquerque

Júnior, é uma invenção do presente de quem a escreve, embora ancorada nos signos deixados pelo

passado,102 pode-se afirmar que Varnhagen foi um dos protagonistas no processo de fabricação de uma

escrita da história no século XIX brasileiro. A operação historiográfica por ele elaborada, à luz das práticas

101 Taíse Tatiana Quadros da Silva, A erudição ilustrada de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-77) e a passagem da historiografia das belas letras à história nacional: breve análise histórica, in: Manoel Luiz Salgado Guimarães (org.), Ensaios sobre a escrita da história, Rio de Janeiro, 7Letras, 2007, p. 114. Conferir também: Taíse Tatiana Quadros da Silva, A reescrita da tradição: a invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857), op. cit., capítulo II. 102 Durval Muniz de Albuquerque Júnior, História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história, op. cit. , p. 33.

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e do lugar que controlavam e codificavam as suas convenções, criou uma maneira de narrar o passado,

evidenciando a sua verdade documental latente.103

Varnhagen não só coligiu documentos e escreveu uma história geral para o Brasil, ele

também produziu reflexões sobre o que deveria ser o ofício de historiador, trazendo o seu lugar e as suas

práticas para o mundo dos homens das letras. Havia nos seus escritos, em especial nas suas cartas, a

preocupação de estabelecer para os seus interlocutores como deveria se proceder a pesquisa histórica.

Ao contrário do que os escritos bio-bibliográficos sobre Varnhagen sentenciaram ao longo

do tempo sobre o seu status de historiador conhecido pela sua capacidade de pesquisa documental, uma

espécie de traça de arquivo, pode-se identificar na sua obra uma necessidade de marcar, de forma

incisiva, uma identidade para a sua profissão. Reduzir Varnhagen e mesmo os seus colegas do IHGB a

meros compiladores de fontes seria negar as práticas historiográficas complexas e ricamente elaboradas

no Brasil oitocentista.

Se sua escrita e estilo narrativo nos dias de hoje podem soar estranho, enfadonho ou

mesmo digno de anedotas, precisa-se ter em mente que essa mesma escrita produziu verdades e definiu

maneiras de ser, sentir e interpretar o Brasil e o seu povo. Encarar sua Historia geral do Brazil e seus

outros escritos significa a possibilidade, mesmo que desconfortável, de um diálogo com questões, temas e

enredos que ainda se fazem presentes teimosamente na historiografia, nas ementas das disciplinas de

História do Brasil dos cursos de graduação e pós-graduação, nos currículos de História do ensino

fundamental e médio e nos manuais e livros didáticos.104

Varnhagen escreveu uma narrativa identitária, essencialista e excludente, mas isso não

autoriza o historiador do presente a entendê-lo a partir da ótica de um juiz num tribunal, oferecendo

sentenças laudatórias e fechadas. Neste sentido, as palavras de Durval Muniz de Albuquerque Júnior

oferecem alguns apontamentos necessários para esta pesquisa, pois as escritas da história são mediadas

por temporalidades e experiências:

a História não está a serviço da memória, de sua salvação, mas está, sim, a

serviço do esquecimento. Ela está sempre pronta a desmanchar uma imagem do

103 Michel de Certeau, A escrita da história, 2 ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2000, p. 66. 104 Conferir: Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, capítulo VIII; Thais Nivia de Lima e Fonseca, “Ver para compreender”: arte, livro didático e história da nação, in: Lana Mara de Castro Siman e Thais Nivia de Lima e Fonseca, Inaugurando a História e construindo a nação; discursos e imagens no ensino de História, Belo Horizonte, Autêntica, 2001, p. 91-121; Ciro Flávio de Castro Bandeira de Melo, Senhores da História e do Esquecimento: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de História na segunda metade do século XIX, Belo Horizonte, Argumentum, 2008; Circe Maria Fernandes Bittencourt, Livro didático e saber escolar (1810-1910), Belo Horizonte, Autêntica, 2008.

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passado que já tenha sido produzida, institucionalizada, cristalizada. Inventado, a

partir do presente, o passado só adquire sentido na relação com este presente

que passa, portanto, ele anuncia já a sua morte prematura.105

No processo de (re)escrita da sua Historia geral do Brazil, o visconde de Porto Seguro

procurou definir em diferentes momentos os preceitos que deveriam orientar o seu trabalho e legitimar a

sua narrativa. Ao lado de outros membros do IHGB, ele procurou enfrentar a indeterminação de um modelo

de escrita de história a seguir. A pergunta que ecoava pelos salões do IHGB era sobre como se deveria

escrever a história do Brasil.

De acordo com Nelson Schapochnik, o desejo compartilhado sobre a necessidade de

produzir uma história representativa da integridade nacional e do regime monárquico esbarrava com a

ausência de uma escrita que desenhasse, a partir de apreciações críticas, o retrato da nação:

De qualquer maneira, seria importante lembrar que, mesmo os homens de letras

ressentindo-se da carência de um modelo orgânico que fosse capaz de dar conta

da “marcha dos nossos sucessos relacionados entre si”, já se assinalava a

presença de uma pluralidade de formas que assumiria a escrita da história. Sem

nenhuma tradição interna a que se filiar e tampouco sem uma definição clara de

um padrão explicativo que resultasse em uma “história bem organizada”, os

membros do Instituto Histórico experimentaram modalidades distintas de

intervenção sob a forma de relatórios, anais e memórias.106

Para a primeira geração do IHGB, a experiência do tempo havia sido ressignificada. A

independência e a emergência do Brasil como corpo político e territorial autônomo implicou numa mudança

da percepção em relação ao passado. A compreensão daquele presente como conseqüência do passado,

segundo Valdei Lopes de Araujo, abria a necessidade de sua experiência como algo a meio caminho,

como as etapas necessárias de um longo fio que não pode ser partido.107

O evento de 1822 era um novo marco na cronologia do império colonial português ou luso-

brasileiro, responsável por uma abertura epistemológica. Com base nesta fissura no fio, o passado colonial

105 Durval Muniz de Albuquerque Júnior, História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história, op. cit. , p. 61. 106 Nelson Schapochnik, Como se escreve a história?, Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 13, n. 25/26, set. 1992, p. 67. Conferir: Nelson Schapochnik, Letras de fundação: Varnhagen e Alencar – projetos de narrativa instituinte, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade de São Paulo, 1992. 107 Valdei Lopes de Araujo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), São Paulo, Hucitec, 2008, p. 155.

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precisava ser compreendido não apenas como parte da história da expansão e domínio da Coroa

portuguesa, mas também como o espaço e o tempo da formação da nacionalidade brasileira. Nele estaria

a biografia da nação, as suas origens primordiais. A América e o Brasil deveriam ser historicizados pelos

membros do IHGB:

O que estava em jogo era a apropriação e a unificação de um passado, tanto

recente quanto longínquo, por homens que, havia bem pouco, não se

incomodavam em por múltiplas camadas de identidade não contraditórias. Essa

nova demanda por memória exigia do relato histórico um grau de unidade e

organicidade inédito. O espaço geográfico, chave fundamental na constituição

dessa organicidade, precisava ser transformado em um lugar histórico que, como

tal, pudesse integrar-se à totalidade “identitária”.108

Diante destes desafios, essa primeira geração do IHGB procurou elaborar propostas e

diretrizes para a escrita de uma história geral do Brasil que, em larga medida, apresentavam os caminhos a

serem trilhados pelo historiador. Nos primeiros tempos do grêmio seria possível encontrar memórias

versando sobre o tema da escrita da história, forjadas pelos seus sócios. Manoel Luiz Salgado Guimarães

chamaria de textos de fundação esse conjunto de contribuições apresentados ao IHGB e publicados em

sua Revista.

Fundação igualmente de uma forma peculiar de escrita; a escrita da história do

ponto de vista nacional, e também de um personagem; o historiador, que, se

bem compartilha com diversos especialistas do código letrado algumas

características e tradições, por outro lado desenha uma nova especialidade para

as atividades das letras: escrever a história do Brasil a partir de procedimentos

adequados, capazes de assegurar a verdade do narrado segundo os protocolos

em construção e que começam a vigir para esse tipo de escrita peculiar.109

108 Ibidem, p. 160. 109 Manoel Luiz Salgado Guimarães, A disputa pelo passado na cultura histórica oitocentista no Brasil, in: José Murilo de Carvalho (org.), Nação e cidadania no Império: novos horizontes, op. cit., p. 99.

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Entre os textos de fundação indicados estariam o discurso no ato de instituição do IHGB,

de autoria do seu primeiro secretário, o cônego Januário da Cunha Barboza,110 o texto a respeito do melhor

meio para obter o maior número possível de documentos sobre a história e geografia do Brasil, do bacharel

e diplomata Rodrigo de Souza da Silva Pontes,111 e a dissertação acerca do sistema de escrever a história

antiga e moderna do Brasil, do militar Raimundo José da Cunha Mattos (1776-1839).112 Além desses,

Manoel Luiz Salgado Guimarães observou que a monografia premiada do naturalista bávaro Karl Friedrich

Philipp von Martius (1794-1868)113 seria outro exemplo pela sua notoriedade, definindo alguns dos mitos

fundadores dessa escrita nacional.114 O famoso escrito de von Martius seria lembrando e instituído

posteriormente como o texto símbolo do projeto historiográfico do IHGB, embora se saiba que dentro do

grêmio não houvesse um consenso quanto ao modelo de escrita a ser adotado.115

Apesar de escrita num contexto diferente dos primeiros anos de criação do IHGB, a

memória Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil, destinada ao imperador por

Varnhagen, em 18 de julho de 1852,116 bem como suas cartas e seu prefácio à 1ª edição da Historia geral

do Brazil, pode estabelecer um profícuo diálogo com estes textos de fundação, ao evidenciar os aspectos

comuns e destoantes na definição do perfil do historiador a ser constituído naquele momento.117

Na carta apresentando a referida memória, Varnhagen registrava ao imperador que

aquelas reflexões eram fruto da sua paixão pelo Brasil e de sua lealdade ao seu soberano. Em nome da

monarquia e do Brasil jurava dedicar sua escrita como instrumento de luta e defesa: A minha vida é do

Brazil, que é minha pátria, e de V. M. Imperial, que me protege.118

110 Januário da Cunha Barboza. Discurso do Primeiro Secretario Perpetuo do Instituto, RIHGB, op. cit., p. 09-17. 111 Rodrigo de Souza da Silva Pontes, Quais os meios de que se deve lançar mão para obter o maior numero possivel de documentos relativos á Historia e Geographia do Brasil?, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 03, 1841, p. 149-157. 112 Raimundo José da Cunha Mattos, Dissertação acerca do systema de escrever a historia antiga e moderna do Imperio do Brasil, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 26, 1863, p. 121-143. 113 Karl Friedrich Philipp von Martius, Como se deve escrever a história do Brasil, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 06, 1844, p. 389-390. 114 Manoel Luiz Salgado Guimarães, A disputa pelo passado na cultura histórica oitocentista no Brasil, in: José Murilo de Carvalho, Nação e cidadania no Império: novos horizontes, op. cit., p. 99. 115 Conferir: Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, op. cit., p. 575. A monografia premiada de von Martius será analisada a partir de seu diálogo com o projeto historiográfico de Varnhagen no capítulo III. 116 Esta memória, encaminhada por carta a D. Pedro II, naquele mesmo ano foi lida na Academia de História de Madrid e foi publicada apenas em 1948 no Anuário do Museu Imperial. Francisco Adolfo de Varnhagen, Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil (1852), Anuário do Museu Imperial, Petrópolis, Ministério da Educação e Saúde, vol. 09, 1948, p. 229-236. Para uma análise detalhada desta memória com os demais escritos de Varnhagen, conferir: Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., capítulos I, II e III. 117 Segundo Arno Wehling, o que nos pareceu o substrato do Instituto: a existência de uma elite política ‘moderada’, vinculada ao movimento do Regresso e que se opunha, ideologicamente tanto ao modelo político jacobino e sua solução democrática, quanto ao modelo neo-absolutista da Restauração. Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 45. 118 Carta ao imperado D. Pedro II, 18 de julho de 1852, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 188.

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Ao longo do texto, Varnhagen apresentou de forma sistemática os pressupostos que

deveriam orientar a escritura da sua Historia geral do Brazil e, além disso, defendeu alguns atributos

necessários ao historiador no exercício de seu fazer. Na sua leitura, este profissional precisaria ser um

erudito, filósofo, literato e por vezes poeta.

Eis uma questão, d’alta transcendência, preliminar á nossa História, e que

desejáramos ver tratada sem prevenções, e discutida e esclarecida com o animo

tão tranqüilo e despreocupado, como temos ao inspirar-nos as idéias que

passaremos a transcrever, depois assentarmos bem quaes sejão

reconhecidamente os dotes necessários ao historiador.

No seculo actual ninguem poderá alcançar este título, sem que a um tempo seja

erudito no assumpto, philosophico, litterato, e até diremos ás vezes, poeta.119

Preocupado em cuidar da sua imagem como historiador e de se fazer compreendido e

reconhecido pelos pares, Varnhagen em suas cartas, memórias e prefácios cuidava de esclarecer sobre

seus posicionamentos e escolhas no processo da escrita de sua obra. Ele se prevenia e respondia aos

eventuais ataques ou críticas dos seus leitores, em especial aqueles que desfrutavam de autoridade sobre

temas da história do Brasil. Cuidar da recepção de seus textos pela crítica era uma tarefa permanente da

sua escrita epistolar e prefacial.

No caso dos prefácios, Laura Nogueira Oliveira percebeu que o visconde de Porto Seguro

os redigiu sempre se dirigindo diretamente ao seu leitor e usando esse espaço para introduzir e comentar

as intenções, idéias e conceitos que nortearam sua escrita:

Por um lado, ele buscava convencer seu leitor da boa intenção que o movera ao

redigi-la, apresentando-a como resultado de anos de pesquisa e reflexão em

busca da verdade histórica. Por outro, pretendia guiar seu leitor em direção ao

que considerava ser a correta leitura e compreensão da obra. (...)

A força da argumentação varnhageniana nesses textos prefaciais não pode ser

menosprezada. Afinal, o autor não apenas buscava demonstrar a solidez de

119 Francisco Adolfo de Varnhagen, Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil (1852), Anuário do Museu Imperial, op. cit., p. 229.

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seus princípios, como pretendia garantir que eles não ficassem diluídos ao longo

da obra. 120

Ao fazer esses exercícios de escrita de si pelas cartas e prefácios, ou seja, de preservação

de seu status como homem das letras e, conseqüentemente, de sua individualidade, o visconde de Porto

Seguro procurava sempre lembrar aos seus interlocutores e leitores de seu compromisso em conquistar os

dotes por ele apresentados como marcas de excelência em sua profissão.

Além da sua (auto)defesa e da busca se fazer entendido, Varnhagen fazia uso destes

espaços como uma forma de promoção de seu trabalho, de apresentar-se diante da rede de sociabilidade

da qual fazia parte: associações literárias, institutos históricos, academias científicas, entre outros.

No universo das cartas, por exemplo, ele fazia a preparação dos seus privilegiados leitores

para as tramas e as descobertas de sua obra. Não foram poucas vezes, na sua correspondência com o

monarca, que o historiador sorocabano abordou os bastidores da escrita da sua Historia geral do Brazil.

Por meio desta confidência epistolar, ele desejava angariar simpatias, curiosidades e apoio. No caso de D.

Pedro II, isso implicava patrocínio e chancela oficial. Para os demais interlocutores, significava a busca de

uma base de proteção e divulgação da sua obra, uma vez que contava com a sua autoridade intelectual no

processo de aceitação e reconhecimento.121

A glória intelectual exigia muito mais do que a produção do texto propriamente dito.

Varnhagen não era apenas o autor de texto, mas estava umbilicalmente envolvido com a fabricação de seu

objeto ao lado de outras personagens do mundo do impresso e dos leitores.122 Segundo Angela de Castro

Gomes, a correspondência pessoal entre intelectuais seria um espaço revelador de suas idéias, projetos,

opiniões, interesses e sentimentos, mas também de constituição de suas identidades pessoais e

profissionais.123 E esse trabalho de escrita de si envolvia o cuidado com a publicização de seus escritos.

120 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 17-18. 121 Com base nesta observação, a correspondência, segundo Gisele Martins Venâncio, seria um espaço que a um só tempo define a sua sociabilidade e é definido por ela. Giselle Martins Venâncio, Cartas de Lobato a Vianna: uma memória epistolar silenciada pela história, in: Angela de Castro Gomes (org.), Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 113. 122 Ao analisar as circunstâncias relacionadas ao processo de definição do livro como objeto da cultura, Roger Chartier afirmou que os autores não escreviam livros, e sim textos que outros sujeitos transformavam em objetos impressos. Em outras palavras, contra a representação, elaborada pela própria literatura, segundo a qual o texto existe em si mesmo, independente de qualquer materialidade, deve-se lembrar que não há texto em si mesmo, independente de qualquer materialidade, deve-se lembrar que não há texto fora do suporte que o dá a ler (ou a ouvir) e que não há compreensão de um escrito, seja qual for, que não dependa das formas nas quais ele chega ao seu leitor. Por isso, a distinção indispensável entre dois conjuntos de dispositivos: aqueles que dizem respeito às estratégias de escritura e às intenções do autor, aqueles que resultam de uma decisão de editor ou de uma imposição de oficina. Roger Chartier, À beira da falésia: a história entre incerteza e inquietudes, Porto Alegre, Ed. da Universidade; UFRGS, 2002, p. 71. 123 Angela de Castro Gomes, Em família: correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre, in: Ângela de Castro Gomes (org.), Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 51-52.

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Neste sentido, Varnhagen manipulava saberes e conceitos de uma comunidade de

sentido, de uma cidade letrada. Ao propor como condição necessária para o historiador os dotes de

erudito, filósofo, literato e também poeta, ele dialogava com as questões de seu tempo que se debruçavam

sobre a pesquisa e a escrita histórica. Por esta razão, nas suas cartas esses atributos eram abordados

com seus pares dentro e fora do IHGB, que compartilhavam do interesse pela produção histórica.

Para Varnhagen, a escrita da história só seria possível a partir do domínio pleno dos fatos,

o que requereria uma extensa pesquisa documental. A posse do conhecimento autêntico do passado era o

antídoto para combater os males da ficção. A sua erudição era comprovada pela sua capacidade de

recuperar dos empoeirados arquivos os vestígios necessários à fabricação de sua narrativa:

Sem erudição no assumpto não existe matéria de que escrever historia, ou a

obra escripta, sem factos muito averiguados (por mais esmerada que seja a

elocução) não poderá ser recebida, sobretudo dos estrangeiros, senão como

uma novella ou romance provável.124

Feita a pesquisa documental, o historiador deveria reconstituir os fios da trama dos

acontecimentos e relatar aos leitores, de forma clara e objetiva, a trajetória percorrida desde as suas

origens até o momento presente. A sua narrativa, logo, precisava ter um caráter filosófico, ou seja,

discernimento critico (para o qual se necessita luzes geraes dos conhecimentos humanos). A ausência

desse dote seria prejudicial à história de um país, porque não ofereceria maximas de politica e de sciencias

do governo se conduzida pelas paixões e impulsos menos nobres de odio, ou de despeito, ou de vingança.

De acordo com Varnhagen, uma história filosófica digna deste nome teria de ser, além de testemunha do

tempo passado,

luz e guia para a marcha da nação á qual a historia deve não só ministrar

exemplos de patriotismo e de governo, como apontar e censurar os erros e faltas

commetidas no passado, a fim de poupar gerações futuras o cair nos que já

custarão tristes experiencias a outros.125

124 Francisco Adolfo de Varnhagen, Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil (1852), Anuário do Museu Imperial, op. cit., p. 229. 125 Ibidem, p. 229.

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No exercício de narrativa das glórias pretéritas da pátria, o historiador-filosófo deveria

assumir a função de um dramaturgo, deixando de lado as ações boas ou más desnecessárias, segundo

seu ponto de vista, para os contemporâneos. Essa atitude exigiria um aguçado juízo para saber separar o

joio do trigo, a mentira da verdade.126 A escrita varnhageniana, por este raciocínio, desejava oferecer

evidências ao Estado que fortificasse os vínculos de unidade e pertencimento nacional e a crença na

autoridade monárquica instituída.

A verdadeira historia do Brasil reduz-se á da colonização, civilização,

organização e desenvolvimento deste Estado. Ao patriotismo do historiador toca

apresentar dela os fatos com dignidade.127

Em relação aos atributos de literato e poeta, Varnhagen trouxe reflexões sobre a prática da

escrita e a forma de tratar e usar a linguagem. Na sua leitura, o historiador havia de ser zeloso com as

regras da língua. Ele tinha de escrever de maneira correta, pura e harmoniosa, sabendo usar as palavras,

de forma a seduzir e conquistar coração e mente do seu leitor. Preocupado com a questão do cuidado com

a língua, o visconde de Porto Seguro alertava que mesmo um historiador erudito e filósofo poderia produzir

uma pessima historia, com que não ature um só leitor.128

Para Varnahgen, o cuidado com o estilo da narrativa era imprescindível para o êxito da

missão do historiador. O estilo deveria se espelhar no dos oradores da tribuna. Com base neste conselho,

cumpria ao historiador-literato e, às vezes, poeta ter retidão, pureza, harmonia e elegância na escrita sem,

no entanto, cair em afetação:

Todo escripto historico depende de narração; e esta se acha submettida aos

preceitos da unidade, da verossimilhança, (pois verdades ha que mal contadas

se tornão ‘inverossimeis’), e do interesse para todo o leitor. Estes preceitos não

forão conhecidos ou entendidos pelos dous chronistas do Rio de Janeiro, Pizarro

e Balthazar, e por isso suas obras tem quem as lea. (...)

Exige-se nos historiador algum genio poetico mas não para ‘improvisar’. A

poesia, em sua accepção mais lata, tem por fim verdadeiramente a expressão do

bello e do sublime, quer com a harmonia da palavra, quer com os sons da

126 Ibidem, p. 234. 127 Ibidem, p. 232. 128 Ibidem, p. 230.

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musica, quer com o pincel ou o cinzel, quer finalmente com as proporções

architectonicas. Tem alma poetica todo o que é capaz de conceber e definir, por

qualquer d’estas formas, o bello e o sublime; mas verdadeiramente, só é poeta o

que em logar de combinar os sons a manejar o pincel ou o cinzel, ou servir-se do

esquadro (isto é, em logar de ser musico, pintor, esculptor ou architeto) domina a

palavra, e a obriga a moldar-se á sua concepção ‘poetica’. Factos há tão

sublimes na historia de todos os povos, paragens tão encantadoras em alguns

paizes, como o nosso, acções tão bellas e generosas de alguns heroes, que o

historiador que os não descrevesse poeticamente não interessaria o leitor, de um

modo conveniente á propria verdade. Não poderá por via de regra, ter todos os

dotes de historiador um poeta, digamos assim, de profissão. A propria erudição

historica que tem de colher, os aridos estudos de politica e legislação, a que

deve dedicar, não se coadunão com a impaciencia dos grandes genios

criadores, e serião, só por si, capazes de suffocar muito estro a menos que o

poeta não fosse d’esses privilegiados do Céo, como os Schiller e os D. Francisco

Manueis, que reunião ao estro grandes dotes historiographicos. Deve pois,

alguma vez que outra, o historiador sentir como os poetas, e expressar-se como

elles, para poder desempenhar o seu mister. Algumas imagens poéticas não só

concilião ás vezes mais ‘interesse’, como dão á pintura mais ‘verossimilhança’.129

Ao escrever uma obra de história, portanto, era importante seguir cinco qualidades

essenciais: precisão na escolha das palavras; elegância e clareza de texto; correto arranjo do assunto; zelo

de elocução; e produção de efeito de naturalidade. Atendidas estas exigências, o historiador teria

alcançado os seus objetivos e as condições necessárias para ser reconhecido e respeitado pelos pares.

Afastando-se do rótulo de garimpeiro de arquivos, Varnhagen nesta memória aparecia

com a sua pena voltada para as questões de como se deveria escrever a história do Brasil. Ele primava

pelo uso da palavra e o efeito que se almejava que ela tivesse entre os seus leitores. Segundo Laura

Nogueira Oliveira, o estilo estava na pauta da escrita varnhageniana. Para o autor da Historia geral do

Brazil, o estilo apropriado ao gênero histórico era próximo do gênero judiciário:

A seu ver cabia à história, assim como aos juízes, conseguir as provas, analisá-

las, para finalmente, emitir o veredicto final, defendendo ou acusando uma causa

129 Ibidem, p. 230-231.

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e provando para seus leitores a veracidade dos fatos que narrava. Como um juiz,

o historiador construiria sua narrativa sem deixar brechas para dúvidas ou

questionamentos. Prescritivo, Varnhagen estabelecia que a narrativa histórica

estava submetida a regras.130

A consciência de que o oficio de historiador não se limitava apenas à atividade de

compilador foi defendida veementemente por Varnhagen em outras situações como, por exemplo, na

polêmica com o manual escolar, do general José Inácio de Abreu e Lima (1794-1869). Em carta ao

primeiro secretário do IHGB, Januário da Cunha Barboza, em aditamento ao seu juízo emitido sobre o

compêndio de História do Brasil, do consócio militar, Varnhagen apontou a necessidade daqueles atributos

no oficio de historiador:

Escrever uma historia, encarar n’ella devidamente os factos, e contal-os com

algum interesse para o leitor, e com proveito para o paiz, não é ser mero

compilador. Para escrever uma historia é necessario ter fé viva no que se

escreve, e um enthusiatico amor pela verdade: é necessario que a alma do

historiador se tenha arrebatado á vista da grandeza dos acontecimentos que tem

de descrever, afim de apresental-os elevada e nobremente. Para ajuizar os

factos é necessario que o historiador tenha erudição no assumpto, critica

historica, independencia de caracter, luzes geraes dos conhecimentos humanos

e consciência: é necessario que seja grave, urbano, e que tenha miras de bom

estadista – Para ser compilador, e ainda melhor, plagiário, basta ter ido á escola

e saber copiar traslados, e ter muito atrevimento, -- como têm sempre os mais

ignorantes.131

A defesa de um modelo de historiador com qualidades de erudito, filósofo, literato e poeta

estaria presente também nas suas missivas aos seus interlocutores, mostrando a sua vontade de

estabelecer dentro da sua rede de sociabilidade um conjunto de práticas que ajudariam a não só definir um

ofício, mas também criar a percepção de que sua obra teria sido elaborada a partir delas.

130 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 82. 131 Carta escripta ao secretario do Instituto em 1846 em additamento ao Juízo, sobre o compendio da Historia do Brasil, publicado no n. 21 da Revista (t. 6, p. 60) – por Francisco Adolfo de Varnhagen, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 13, 1850, p. 400. Nota do editor da Revista: Esta carta, que fórma o documento do Appendice B na Replica Apologética impressa em Madrid em 1846, era dirigida ao antigo secretario do Instituto, e se desencaminhou no original, talvez pelo falecimento do mesmo (p. 396).

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2.5.2. O historiador-erudito

Em relação à presença da erudição na atividade historiadora, nas suas cartas sempre

procurava reforçar a sua obsessão pela pesquisa em arquivos e busca de documentos e fatos perdidos

sobre o passado da nação. O reconhecimento dos méritos do historiador, como lembrou em sua memória

de 1852, passaria por um seguro conhecimento de fatos colhidos em documentos.132 Em missivas

endereçadas ao amigo Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, Varnhagen registrava seu interesse pela

busca de fontes que auxiliassem na correção das informações de suas Reflexões Criticas:

Outro objecto me leva agora a incommodar a V. Sª. No incluso correio receberá

V. Sª as minhas Reflexões Críticas, que a Academia das sciencias está

imprimindo e vão já na 8ª folha, V. Sª diz que há nessa Biblioteca trez copias; eu

desejava dar dellas circunstanciada noticia na Obs. (C), de que faço menção à

pag. 9, e então só em V. Sª é que a possibilidade do desempenho. Quizera o

título, author e anno que encerram differentes copias; e da mais antiga dellas

precizava do resultado de uma cotejação nos nomes adulterados para publicar

as variantes.133

Na carta de 05 de outubro de 1839, enviada ao cônego Januário da Cunha Barboza,

oferecendo as suas Reflexões Criticas, Varnhagen, ao apresentar-se, procurou registrar o seu apreço e

dedicação à pesquisa documental e seu conhecimento do acervo dos arquivos e bibliotecas na Europa.

Embora jovem e iniciante nos assuntos históricos, ele mostrava para o primeiro secretário do IHGB as suas

habilidades na tarefa de recuperação de documentos para a escrita da história. Com base nestes

argumentos, o historiador sorocabano propunha que se empreendesse uma missão de busca desses

vestígios do passado do Brasil espalhados pelos arquivos europeus:

Os archivos e bibliothecas da Europa, especialmente os de Portugal, contêm tão

ricos e preciosos manuscriptos sobre o Imperio, que muito conviria ao Instituto

tomar providencias, para os possuir por copia, análogas às que outr’ora praticou 132 Francisco Adolfo de Varnhagen, Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil (1852), Anuário do Museu Imperial, op. cit., p. 233. 133 Carta a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, diretor da Biblioteca de Évora, 03 de julho de 1839, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 21.

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Portugal, votando sommas para conservar o monsenhor Ferreira em Madrid, o

visconde de Santarém em Paris, e outros litteratos enviados à Italia e Inglaterra.

Sobre este assumpto devia talvez intervir o governo, que devendo alimentar o

espírito de nacionalidade, deve ter presente que são a primeira base talvez

desta, a historia e o conhecimento do paiz natal.134

Quando da sua primeira viagem ao Brasil, em 1840, Varnhagen não deixou de registrar em

suas missivas a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara e Januário da Cunha Barboza sua peregrinação pelos

arquivos, bibliotecas e cartórios locais atrás de preciosidades documentais. Na carta para o diretor da

Biblioteca de Évora, além de comentar sobre os achados na Biblioteca do Rio de Janeiro como as 5

primeiras partes do Thesouro do P.João Daniel, ele fez referência também às suas primeiras impressões

ao ver novamente a paisagem da sua terra natal, mostrando seu deslumbramento com a sua

monumentalidade:

Esta é escripta do Mundo Novo, mas por em quanto de uma capital que já em

muitas coisas arremeda mais o velho. Não lhe contarei uma por uma as

impressões agradaveis que tenho recebido desde que levantei ferro de Tejo.

Quanto às scenas de mar resumirei que são variadas no último ponto e tão

ferteis que seria possivel chamar ao Oceano todas as scenas da vida e dar-lhe

colorido tirado da situação grandiosa de ver um madeiro arrostando o temido e

insoldavel oceano, até ver terra. Impossivel me é n’uma carta breve descrever a

commoção que experimentei ao descobrir e entrar nesta bahia toda rodeada de

escabrosos morros de granito, que infundem no espírito uma especie de pasmo

e admiriação que chega a ser horrorosa ao mesmo tempo que agradavel.135

Já na carta para o cônego Januário da Cunha Barboza, datada de 05 de novembro de

1840, Varnhagen ateve-se na descrição das suas incursões pelo interior da província de São Paulo,

fazendo menção às suas visitas nos arquivos locais e também aos seus achados. Nesta missiva,

dialogando com os princípios professados pelo IHGB, ele reforçaria a idéia de que não seria possível a

134 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 05 de outubro de 1839, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 40-41. 135 Carta a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, diretor da Biblioteca de Évora, 20 de agosto de 1840, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 51-52.

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escrita da história sem o pleno do domínio por parte do historiador dos documentos, o que implicava

também a sua presença nos locais onde estavam guardados tais preciosidades:

Por esta rogarei a V. Sª que faça presente ao Instituto que eu, apezar de

ausente, e privado de assistir às suas sessões, não tenho sido omisso nas

obrigações que me impõe o cargo de seu membro. Tenho folheado nesta cidade

os livros e papeis dos Archivos da Câmara Municipal, e os de datas de semarias

da antiga Provedoria da Fazenda, não me escapando o cartorio dos Jesuitas,

que me forneceu alguns esclarecimentos, neste vim achar tambem uma copia da

doação de Pero Lopes de Sousa, que confrontei com a que tinha publicado.

Procurei familiarizar-se com differentes pessoas que figurarão em diversas

épochas, pelo que encontrei escripto, ainda da menor insignificancia apparente,

para algum dia emprehender alguma tentativa amena na litteratura Brasileira.

Verifiquei e acertei pela confrontação várias investigações de Fr. Gaspar, que

não tenho ocasião de fazer chegar ao conhecimento do Instituto, porque me

estou dispondo para isso seguir viagem para as villas do interior, cujos archivos

tambem visitarei.136

Em outras cartas enviadas ao amigo Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, já empossado

como adido à legação brasileira em Lisboa e encarregado de realizar busca em arquivos de documentos

referentes à história do Brasil, observa-se um Varnhagen freqüentando quase que diariamente a Torre do

Tombo ou fazendo referência ao curso de Paleografia que fazia com a finalidade de auxiliá-lo na decifração

dos manuscritos encontrados.137 Para ele, não bastava apenas ir aos arquivos coletar documentos

perdidos, era preciso preparação para que se pudesse fazer a verificação e cotejamentos adequados à

pesquisa histórica.

136 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 05 de novembro de 1840, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 55-57. Outras informações sobre suas pesquisas arquivisticas pelo interior de São Paulo, seriam relatadas também nas cartas de 16 de dezembro de 1840 (Curitiba) e de 06 de janeiro de 1941 (Santos), conferir: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 58-62. 137 Para Manoel Luiz Salgado Guimarães, a pergunta que vai se desenhando da parte dos modernos diria respeito exatamente à possibilidade de transformar textos sacralizados pela prática antiquária em fontes para uma escrita desse passado. E nesse esforço de releitura do passado através de seus textos o papel da Filologia seria central como metodologia de trabalho para assegurar uma maior veracidade dos conhecimentos pretendidos. Ao lado dela a cronologia fornecia os procedimentos necessários para uma correta apreciação dos restos do passado. Mesmo os conhecimentos antiquários a respeito dos monumentos, moedas e inscrições, marcas visíveis da existência do passado, eram considerados pelos modernos como importantes elementos na tentativa de explicação desse passado. Estavam sendo postos em marcha dispositivos intelectuais que transformarão progressivamente esse conjunto material em “fontes” para a escrita da História. Manoel Luiz Salgado Guimarães, Reinventando a tradição: sobre o antiquariado e a escrita da história, Humanas: Revista de Filosofia e Ciências Humanas, Porto Alegre, vol. 23, n. 01-02, 2000, p. 118.

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Nesse período de peregrinação nos arquivos portugueses e, posteriormente, espanhóis

não serão poucas as cartas ou informes nas páginas na Revista do IHGB sobre as atividades e

descobertas do historiador-diplomata. O grêmio constantemente era presenteado com o envio das cópias

de documentos encontrados por Varnhagen. Em 1842, à guisa de ilustração, as atas das sessões do

grêmio trariam informes sobre o recebimento de documentos encontrados por Varnhagen em Portugal:

O mesmo Sr. Presidente offereceu para a Bibliotheca do Instituto o MS. –

Observações relativas á agricultura; comercio e navegação do Continente do Rio

Grande de S. Pedro do Sul no Brasil – que diz lhe fôra remettido de Lisboa pelo

Sr. Varnhagen para esse fim, quando por ventura o julgasse digno de ser

apresentado; e que lhe parecendo que o citado codice não é destituido de

merecimento, por isso cumpria a vontade do nosso consocio.138

foi offertado, e recebido com especial agrado o seguinte: pelo Sr. Francisco

Adolpho de Varnhagen – Collecção de varios escriptos ineditos politicos e

litterarios de Alexandre de Gusmão, Secretario privado d’El-Rei D. João V,

ultimamente publicada no Porto: pelo Exm. Senador o Sr. Jozé Bento Leite o

MS.139

Nas missivas encaminhadas ao primeiro secretário, em boa parte publicada também na

Revista, Varnhagen trazia listagens e apontamentos de documentos referentes ao passado brasileiro

localizados ou que pretendia perseguir os rastros pelos arquivos. Nelas fazia questão de lembrar aos pares

do IHGB que a pesquisa e a posterior organização documental era etapa imprescindível para que se

pudesse escrever a história geral do Brasil:

Ilmo. E caríssimo Amigo Firme, Pelo amor de Deus não me leve a mal o não ser

mais assíduo e mais extenso nas minhas correspondências particulares. O

tempo de manhã até as horas está todo dividido entre a Legação (onde agora

sirvo como secretário) e a Torre do Tombo, onde me vai aparecendo tanta coisa,

que não devo fazer mais do que copiar e andar para diante. Lá virá tempo em

que eu não tenha archivos e então o organizar dos documentos, a redação

138 Extractos da ata da 79ª sessão em 12 de janeiro de 1842, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 04, 1842, p. 100. 139 Extractos da ata da 85ª sessão em 10 de maio de 1842, RIHGB, op. cit., p. 217.

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157

histórica será o meu cuidado. – Estes documentos soltos não os quero enviar por

que é necessário para terem curiosidade mesmo na Revista unil-os e combinal-

os em doutrinas que façam tal ou tal corpo.140

Ao longo da vida, em sua correspondência ativa, o visconde de Porto Seguro sempre fez

referência às obstinadas atividades de pesquisa. Ele fazia uso da sua rede de sociabilidade com outros

letrados e associações literárias e cientificas para pedir e oferecer informações sobre documentos

encontrados, solicitar cópias de manuscritos, comunicar suas visitas a arquivos e bibliotecas e,

principalmente, divulgar o resultado de suas pesquisas.

Esses trabalhos em arquivos não atendiam somente aos interesses do IHGB, mas também

da diplomacia do Império brasileiro. Eles serviam aos interesses do Ministério dos Negócios Estrangeiros

quando da discussão e negociação de acordos e tratados acerca dos desenhos das fronteiras da nação.141

Na da carta de 03 de junho de 1843, Varnhagen lembrava ao amigo Joaquim Heliodoro da

Cunha Rivara a importância da legação em Lisboa para facilitar seu acesso à Torre do Tombo, mostrando

mais uma vez as articulações entre a diplomacia do Estado imperial e a pesquisa histórica:

Cá estou de voltas com trabalhos para isso na Torre, onde hoje tenho entrada

amplíssima para mexer à minha vontade, por uma ordem do Governo, requerida

officialmente a favor do Secretário Interino da Legação, que hoje é este seu

creado, como sabe: o que ainda hontem me fez estar oito horas a escrever para

um navio que hoje se foi para o Rio --142

Ao longo da sua atuação de garimpeiro de arquivos, Varnhagen procurou seguir os

ensinamentos de Januário da Cunha Barboza, que professava a organização criteriosa das fontes e a

batalha contra o esquecimento dos fatos memoráveis do passado, tarefa somente possível por meio de

140 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 14 de março de 1843, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 103. 141 Carta a Antonio de Meneses Vasconcelos de Drummond, ministro plenipotencionário do Brasil em Portugal (Ofício-relatório), in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 142-151. Conferir: A missão Varnhagen nas Repúblicas do Pacífico: 1863 a 1867, 2 vols., Rio de Janeiro, Centro de História e Documentação Diplomática; Rio de Janeiro, FUNAG, 2005; Virgilio Corrêa Filho, Missões brasileiras nos arquivos europeus, RIHGB, op. cit. 142 Carta a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, diretor da Biblioteca de Évora, 03 de junho de 1843, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 112.

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uma atuação imparcial e cuidadosa do historiador. A legitimidade e a autoridade de uma história do Brasil

dependeriam da pesquisa documental.143

Ao ter como princípio que o documento atestaria a veracidade dos fatos narrados e

acontecidos no passado, Rodrigo de Souza da Silva Pontes faria coro às solicitação do primeiro secretário

por intermédio da solicitação que se fizesse um levantamento dos arquivos espalhados pelo território do

Império para que se empreendesse uma coleta de fontes sobre a história do Brasil:

O primeiro passo portanto que deve dar o Instituto é sollicitar o consentimento

dos que nos podem fazer patentes os cofres preciosos, onde se encerram tantos

documentos da maior importância para a Historia e para a Geographia da nossa

terra natal. Segue-se depois (á medida que taes exames nos sejam permittidos)

a nomeação da commissões que examinem esses depositos de documentos,

comissões compostas de dois membros, quando muito, pois que a experiencia

diariamente ensina quando é difficil e embaraçado o trabalho de commissões

numerosas.144

O próprio Varnhagen, em carta a Rodrigo de Souza da Silva Pontes, de 1º de fevereiro de

1845, informa-lo-ia a respeito de suas diligências quanto à localização de obras e documentos pedidos ao

arquivo da Mesa de Consciência e Ordens. Diante da dificuldade de acesso e a pouca atenção dada pelos

responsáveis pelo arquivo, ele solicitava a intervenção do conselheiro:

Quanto à tal justificação do Dr. João Thomaz Bram não me poderia V. Exª dahí

ajudar com um fio d’Ariadna, para entrar, ao menos quanto ao anno, no labiryntho

do archivo da Mesa da Consciência e Ordens.

Há muito que chegou de Anvers a resposta ao pedido que por via da Legação

Belga eu para lá tinha feito a respeito de Paulo Brans; della conheci que a

influencia dos individuos da Legação para aquelles a qual pediam era pouca, ou

que estes não davam ao negocio muita importancia, e respondiam sem maiores

dilligencias.145

143 Januário da Cunha Barboza. Discurso do Primeiro Secretario Perpetuo do Instituto, RIHGB, op. cit., p. 10. 144 Rodrigo de Souza da Silva Pontes, Quais os meios de que se deve lançar mão para obter o maior numero possivel de documentos relativos á Historia e Geographia do Brasil?, RIHGB, op. cit., p. 149-150. 145 Carta ao conselheiro Rodrigo de Sousa da Silva Pontes, 1º de fevereiro de 1845, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 130-133.

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O visconde de Porto Seguro também encontraria nos escritos do marechal Raimundo José

da Cunha Mattos lições sobre o que deveria ser coletado nos arquivos sobre o passado brasileiro. Nesta

memória prescrevia que o grosso dos melhores materiais para se escrever a história do Brasil e de outros

lugares seriam os oficiais:

os monumentos e as inscripções abertas em laminas de pedra e metallicas; os

diplomas legislativos, as cartas imperiaes ou regias, os regulamentos ou

regimentos, resoluções, avisos, provisões e patentes. Termos de posse dos

governadores, bispos, magistrados, officiaes municipaes, e das outras classes

de empregados publicos, e as cartas de sesmarias das terras concedidas aos

mais antigos povoadores.146

Para os fundadores do IHGB e Varnhagen, a pesquisa de fontes documentais inscrevia-se

como uma das principais preocupações daqueles que se dedicassem à tarefa de escrever a história do

Brasil. Sem os documentos coligidos e organizados não haveria as condições para o aparecimento de uma

autêntica narrativa condizente com a verdade. Em síntese, eles desfrutavam daquilo que Anthony Grafton

denominou de prazeres do arquivo:

A biblioteca e o arquivo se transformaram, pela mágica da metáfora, em uma

galeria de antigüidades tridimensionais; as fontes a serem interrogadas, em

objetos preciosos. O historiador, por sua vez, transforma-se no homem de bom

gosto, cuja percepção mágica do que é genuíno e do que é falso se torna pedra

de toque. Ao aplicá-la habilidosamente, o historiador astuto e critico realiza uma

mágica: reúne a poeirenta miscelânea em conjuntos coerentes de material de

períodos históricos distintos, organizado em diferentes salas, datado, etiquetado

e comprovado.147

Assim como Leopold von Ranke (1795-1886), o visconde de Porto Seguro seria um

historiador viajante que visitava, não cidade após cidade na Europa e na América do Sul, mas arquivos

após arquivos. A descrição feita do historiador alemão por Peter Gay cairia feito uma luva no colega de

146 Raimundo José da Cunha Mattos, Dissertação acerca do systema de escrever a historia antiga e moderna do Imperio do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 137-138. 147 Anthony Grafton, As origens trágicas da erudição: pequeno tratado sobre a nota de rodapé, Campinas, Papirus, 1998, p. 45-46.

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oficio brasileiro: quantos documentos era o primeiro a ler, quantos fatos era o primeiro a interpretar ou, pelo

menos, a interpretar nalguma base fatual sólida.148

A estes prazeres do arquivo, desfrutados por historiadores como Ranke e Varnhagen,

Jacques Derrida denominaria de mal de arquivo, de uma pulsão de conservação, como se fosse possível

por meio deste lugar armazenar a verdade dos tempos passados. Este inconfesso misto de prazer e mal,

dependendo do ponto de vista, presente no oficio do historiador oitocentista e mesmo de tempos depois,

não existiria sem a certeza de um limite radical, sem a possibilidade de um esquecimento que não se limita

ao recalcamento. Sobretudo, e eis a mais grave, além ou aquém deste simples que chamam finitude, não

haveria mal de arquivo sem a ameaça desta pulsão de morte, de agressão ou de destruição.149

2.5.3. O historiador-filósofo

A história, na percepção do visconde de Porto Seguro, teria lições a oferecer aos homens.

Ela ensinaria a partir dos fatos do passado a evitar os erros do presente, possibilitando um futuro repleto

de glórias. O seu historiador-filósofo seria capaz de trazer do limbo do passado os grandes feitos que

permitiram a formação da nação brasileira. Esse projeto historiográfico, segundo Manoel Luiz Salgado

Guimarães, atendia à necessidade de se estudar o Brasil como uma forma de torná-lo conhecido dentro e

fora das suas fronteiras: uma articulação entre conhecimento e exercício do poder, entre demandas

fundadas num conhecimento da história e do território e a implantação de um projeto de construção

nacional.150

De acordo com Januário da Cunha Barboza, uma narrativa histórica deveria ser explicativa

e expositiva. Sua noção de história estava impregnada de uma idéia de história pragmática, ou seja, de um

instrumento para o aperfeiçoamento da sociedade e das instituições, tendo o Estado como grande

personagem. Para o primeiro secretário do IHGB, as dimensões filosófica e pragmática eram faces da

mesma moeda:

148 Peter Gay, O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 74. 149 Jacques Derrida, Mal de arquivo: uma impressão freudiana, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001, p. 32. 150 Manoel Luiz Salgado Guimarães, Entre as Luzes e o Romantismo: as tensões da escrita da história no Brasil oitocentista, in: Manoel Luiz Salgado Guimarães (org.), Ensaios sobre a escrita da história, op. cit., p. 71.

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A vida moral tem suas condições e suas leis; compõe-se tambem de

circumstancias ligadas por meio de relações quase necessarias; a philosophia

póde reconhecel-as e demonstral-as; e a imaginação, com mais celeridade e

certeza, saberá então dellas assenhorear-se. A razão do homem, sempre

vagarosa em sua marcha, necessita de um guia esclarecido e seguro, que

accelere os seus passos. O talento dos historiadores e dos geographos é só

quem póde offerecer-nos essa galeria de factos, que, sendo, bem ordenados por

suas relações de tempo e de logar, levam-nos a conhecer na antiguidade a fonte

de grandes acontecimentos, que muitas vezes se desenvolverão em remoto

futuro.151

Já, para Raimundo da Cunha Mattos, a texto do historiador precisava ser essencialmente

expositivo, tomando como referência os documentos originais. Ele deveria ser uma narrativa comprometida

com os fatos como eles realmente aconteceram e com a arte da escrita, transformando a leitura em

processo agradável e exato. Enfim, a história, segundo o marechal, era a ciência de narrar ou descrever os

acontecimento do presente e do passado e, também, oferecer profecias ou previsões para o futuro. Além

disso,

a historia abrange todos os ramos dos conhecimentos humanos: póde ser geral

ou particular, e divide-se em secções principaes, que são subdivididas em

particulares ou especiaes. Ela em a materia, ordem, e estylo deve ser escripta

por um modo harmonioso, agradavel, conciso, decente, exacto e o mais claro

que for possivel; e o fim principal da historia politica e civil, é encaminhar os

homens á pratica das virtudes e ao aborrecimento dos vicios para que d’ahi

resulte o bem estar das sociedades.152

A proposta Varnhagen aproximava-se mais dos argumentos de Januário da Cunha

Barboza, embora não deixasse de reconhecer a importância da história pragmática. Logo, uma história

filosófica e pragmática fazia parte de sua agenda de trabalho. No caso da segunda dimensão, sua

correspondência ofereceria alguns indicativos desta permanente preocupação.

151 Januário da Cunha Barboza. Discurso do Primeiro Secretario Perpetuo do Instituto, RIHGB, op. cit., p. 12. 152 Raimundo José da Cunha Mattos, Dissertação acerca do systema de escrever a historia antiga e moderna do Imperio do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 137.

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Em sua carta ao primeiro secretário perpétuo, de 05 de outubro de 1839, o historiador

sorocabano deixava claro que deveria ser dever do Estado cuidar da história e do conhecimento do país

natal, sendo ele o grande incentivador do espírito de nacionalidade.153

Neste sentido, ele apoiava a articulação entre o IHGB e o Estado imperial na construção

da história da nação brasileira. Não se cansava de exaltar o status do grêmio como uma instituição util e

patriótica para o Brasil.154 Nas suas cartas ao IHGB, sempre consagrava palavras de amor à corporação

litterária que tão obsequiosamente o recebera como sócio.155

Em correspondência, por exemplo, ao segundo secretário do IHGB, Manuel Ferreira Lagos

(1816-1871), datada de 14 de julho de 1845, Varnhagen renovaria os seus votos de lealdade e

compromisso para com a casa da memória, colocando-se a seu serviço a partir de uma retórica da

humildade:

Com a melhor boa vontade procurarei cumprir todas as ordens que receber do

Instituto, cuja prosperidade tão bem desenvolvida por V. Sª em seu último

relatório, muito nos deve a todos dar prazer e animar. Pela minha parte se bem

reconheço que as côres da amizade ahí me favoreceram, cobrarei com isso

novos estímulos, ao menos a não me tornar indigno da confiança que em mim

haja de depositar o Instituto (...)156

Reconhecer a autoridade de lugar institucional da associação era uma maneira de

fortalecer também a sua imagem de historiador para a cidade letrada. Varnhagen, como funcionário do

governo e membro do IHGB, ao lado da experiência de pesquisa que granjeava para si, sentia-se em

condições para assumir a tarefa de erguer o monumento da nacionalidade e cobrar o devido

reconhecimento.

Em seu Memorial, provavelmente apresentado ao Ministro do Império no final de 1851,

listou as suas contribuições produzidas em benefício da história da pátria, desejando alcançar a graça de

uma condecoração. Ele fazia tal pedido com base no entendimento de que a história constituía peça

153 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 05 de outubro de 1839, in: in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 39-40. 154 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 05 de novembro de 1840, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 55. 155 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 08 de julho de 1841, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 63. 156 Carta a Manuel Ferreira Lago, segundo secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 14 de julho de 1845, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 135-136.

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importante no processo de construção do Brasil. Assim sendo, alegava que, além de se dedicar à

diplomacia, havia entregado seus dias ao Brasil, roubando até horas de sono:

Entregou-os a uma composição em que ideou symbolizar no feito d’Amador

Bueno a unidade do Imperio;

Entregou-os a um trabalho em que pretendeu abraçar as Províncias enfeixando

n’um só corpo brasileiro chamado Florilegio, o que cada uma dellas tem

produzido;

Entregou-os a ganhar por concurso o premio de uma medalha de ouro no valor

de quatro centos mel reis, da qual cede, bem que pobre, para se criar com outro

premio novos estímulos ao trabalho;

Entregou-os a escrever as biographias dos fallecidos brasileiros distinctos, sobre

que tem podido colher noticiais;

Entregou-os a fazer mais populares na Europa e até no Brazil os Épicos

Brazileiros;

Entregou-os a preparar uma edição do encyclopédico escriptor do Brazil Gabriel

Soares, cuja publicação poderá contribuir à gloria do Instituto Histórico; (...)

Entregou-os a sérios estudos sobre os Indios e a Colonização que nos poderão

talvez, algum dia, levar a abraçar de novo a tal respeito a jurisprudencia antiga;

Entregou-os finalmente a meditar sobre outros pontos de nossa administração, e

a dizer por escripto ao paiz muitas verdades em vez de o adular.157

Em linhas gerais, Varnhagen lembrava aos seus superiores que a sua missão diplomática

e, em especial, historiadora estava atrelada aos projetos da consolidação da nação. A sua escrita estava a

serviço do Brasil. Ele semeava com seus textos as sementes do nacionalismo entre os brasileiros.

Portanto, era justo que lhe concedesse a graça de Officialato do Cruzeiro.

O recebimento de comendas, honrarias e títulos por parte do Império brasileiro significaria

o reconhecimento do papel do historiador para a pátria e a valorização da presença da dimensão filosófica

na sua prática, ou seja, do seu dever de escrever uma história que ministrasse exemplos de patriotismo e

157 Memorial apresentado ao Ministro do Império, por Francisco Adolfo de Varnhagen (1851), in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 167-168.

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de governo e apresentasse lições aprendidas com os erros e faltas do passado para resguardar as futuras

gerações.158

Segundo o próprio Varnhagen, suplicar uma graça não significava meramente a busca de

recompensa, mas sim da valorização daquele que trabalha por amor ao trabalho e por ganhar, à custa

deste, um bom nome. Por esta razão, a ninguém mais que o juízo esclarecido do governo se pode dirigir

para obter, por meio de demonstrações públicas, a sanção deste bom nome.159 Portanto, a glória do

historiador seria também a da história da nação por ele escrita. A celebração e premiação dos seus feitos

pelo imperador traria o reconhecimento da sua autoridade de fala e escrita entre os pares e a nação.

A importância moral das obras históricas estaria na credibilidade da sinceridade das

escolhas feitas pelo historiador. Ele seria um juiz a examinar as provas do passado e emitir sentenças para

o presente, almejando o futuro. Varnhagen desejava ser lembrado em vida e pela posteridade como aquele

que escreveu em nome da verdade e das lições da história, ou melhor, autor de uma narrativa que serviu à

manutenção e consolidação da unidade do Brasil. Se a nação era a sua verdade, o longo percurso

percorrido para a conquista da glória nacional era a lição a ser aprendida e repetida.

Na sua missiva a D. Pedro II, de 14 de julho de 1857, o autor registrava esse propósito

patriótico da história nos debates pelo país e na composição da sua Historia geral Brazil. A possibilidade e

a conveniência da unidade nacional, registrou Varnhagen,

ainda na época do porvir em que o Brazil possa chegar a contar mais de cem

milhões de habitantes, quando o espírito público se forme pela historia de um

modo idêntico, foi por mim sustentada tenazmente em 1851 em muitas

discussões com meus amigos deputados pelo norte, e não perco occasião de a

pregar na Historia Geral, que por si só, se for adoptada nas Academias, há de

contribuir e muito a elevar o patriotismo e à harmonia do espírito nacional,

fomentada pela igualdade de educação de todos os subditos.160

158 Francisco Adolfo de Varnhagen, Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil (1852), Anuário do Museu Imperial, op. cit., p. 229. 159 Memorial apresentado ao Ministro do Império, por Francisco Adolfo de Varnhagen (1851), in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 169. 160 Carta ao Imperador D. Pedro II, 14 de julho de 1857, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 246.

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Ao buscar as lições morais do passado, segundo Laura Nogueira Oliveira, Varnhagen

restituía a compreensão do papel e da finalidade da história da Antigüidade clássica, da historia magistra

vitae. Na sua leitura, ele tratava temas caros aos antigos como Cícero, Heródoto, Strabo e Tácito:

a função moral da história e o incentivo à imitação e emulação, a convicção de

ser necessário escrever uma história imparcial, capaz de premiar e de

vilipendiar, a certeza de que escrevia a verdade histórica e a esperança de

alcançar a eternidade graças à obra que se edificava.161

Ao defender esta concepção exemplar da história, Varnhagen manteria viva a concepção

da historia magistra vitae que havia sido lembrada pelo cônego Januário da Cunha Barboza, no discurso

inaugural de 1838, e retomada por von Martius, na sua monografia premiada de 1844:

Basta atendermos ao que diz Cícero sobre a historia, para conhecermos logo as

vantagens que se devem esperar de um Instituto que della particularmente se

occupe, e composto de homens os mais conspícuos por suas lettras e por suas

virtudes. – A historia (escreve aquelle philosopho romano) é a testemunha dos

tempos, a luz da verdade e a escola da vida.162

A historia é uma mestra, não somente do futuro, como também do presente. Ella

póde diffundir entre os contemporaneos sentimentos e pensamentos do mais

nobre patriotismo. Uma obra historica sobre o Brazil deve (...) despertar e

reanimar em seus leitores brasileiros amor da patria, coragem, constancia,

industria, fidelidade, prudência, em uma palavra, todas as virtudes cívicas.163

Esse modelo de história como magistra vitae, passando por reformulação até o final do

século XVIII, encontraria nos historiadores do IHGB, em especial entre os fundadores e mesmo em

161 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 67. 162 Januário da Cunha Barboza. Discurso do Primeiro Secretario Perpetuo do Instituto, RIHGB, op. cit., p. 09. 163 Karl Friedrich Philipp von Martius, Como se deve escrever a história do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 409.

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Varnhagen, adeptos e praticantes.164 Segundo Arno Wehling, eles falavam de uma história que deveria ter

uma tríplice função:

filosófica (ou seja, interpretativa, que elucidasse o significado dos acontecimentos

à luz das grandes tendências), pragmática (que servisse de orientação para a

sociedade do presente) e crítica (que, através de métodos confiáveis,

restabelecesse a verdade objetiva, ressalvadas as distorções partidárias, quer

políticas, quer religiosas, e os excessos literários).165

Para Renata William do Santos do Vale, ao fundarem o IHGB, os espaço da experiência

dos seus sócios era o da história como magistra vitae. Este espaço era o passado presente – pensamento

comum, as experiências passadas que se faziam presentes, que indicava o norte de sua bússola para uma

concepção antiga de história, e para como os fundadores do grêmio haviam vivido a história. Contudo,

no horizonte de expectativa destes homens estava a nova e moderna concepção

de história moderna, filosófica, verdadeira, única, apontada para o progresso. Ao

olharem para trás, viam uma história mestra da vida, e ao olharem para frente,

viam uma história moderna e filosófica.166

No entroncamento entre estas duas noções de história estaria a escrita de Varnhagen.

Instrumento da narrativa, juízo e testemunho seriam palavras presentes no vocabulário dos historiadores

do seu tempo. Eles visavam à construção da imagem de uma história promotora da verdade, a partir dos

usos das fontes documentais fidedignas sobre o passado, tendo a nação como metanarrativa.167 A história

teria ainda muitas lições a ensinar.

164 Segundo Manoel Luiz Salgado Guimarães, os letrados do IHGB compartilhavam da concepção da história como mestra, mesmo que esse topos esteja sendo revisto pela escrita oitocentista, apoiando-se na defesa do que denominam uma história filosófica. Manoel Luiz Salgado Guimarães, A disputa pelo passado na cultura histórica oitocentista no Brasil, in: José Murilo de Carvalho (org.), Nação e cidadania no Império: novos horizontes, op. cit., p. 118. Conferir: Temístocles Américo Cezar, Lições sobre a escrita da história: historiografia e nação n Brasil do século XIX, Diálogos, Maringá, vol. 08, n. 01, 2004, p. 11-29. 165 Arno Wehling, A invenção da história: estudos sobre o historicismo, Niterói, Ed. da UGF; Ed. da UFF, 1994, p. 166. 166 Renata William Santos do Vale, Lições da história: as concepções de história dos fundadores do IHGB, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003, p. 12. 167 Para Valdei Lopes de Araujo, os membros do IHGB alinharam os conceitos de estado, pátria e monarca em um conjunto único de referência que deveria responder pelo interesse público, o qual, na concepção desses homens, se confundia com a manutenção dessa conjunção conceitual. Valdei Lopes de Araujo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), op. cit., p. 151.

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167

2.5.4. O historiador-literato e, às vezes, poeta

Ao trazer para o espaço das atribuições do historiador a questão escrita correta e

elegante, Varnhagen dialogava com a preocupação do cônego Januário da Cunha Barboza em relação à

necessidade de textos de história com uma narrativa bem elaborada, tornando a leitura agradável e útil.

Para o primeiro secretário do IHGB, inspirado no barão de Barante (1782-1866),

a historia seria, portanto, incompleta, descoberta e arida, si occupando-se

unicamente de resultados geraes, por uma mal entendida abstracção, não

collocasse os factos no theatro em que se passaram, para que melhores se

apreciem pela confrontação de muitas e poderosas circumstancias que

desembaracem a intelligencia dos leitores. A sorte geral da humanidade muito

nos interessa, e nossa sympatia mais vivamente se abala quando se nos conta o

que fizeram, o que pensaram, o que soffreram aquelles que nos precederam na

scena do mundo: é isso o que falta á nossa imaginação, é isso o que resuscita,

por assim dizer, a vida do passado, e que nos faz ser presentes ao espectaculo

animado das gerações sepultadas. Só desta arte a historia nos póde offerecer

importantissimas lições; ella não deve representar os homens como instrumentos

cegos do destino, empregados como peças de um machinismo, que concorrem

ao desempenho dos fins do seu inventor.168

Para Temístocles Américo Cezar, os escritos de Prosper de Barante seriam uma espécie

de manual do historiador no discurso de Januário da Cunha Barboza. O historiador francês, representante

da escola romântica, professava que se poderia ressuscitar o passado, desde que se tivesse a

competência para manipular de forma correta as fontes. Além disso, ele defendia a escrita da história

pautada por um estilo vívido e literário. A defesa da cor local era uma das premissas de organização da

narrativa, uma vez que ao preservar o potencial criativo das fontes herméticas ou áridas, pode torná-las

mais vivas, mais intensas.169

168 Januário da Cunha Barboza. Discurso do Primeiro Secretario Perpetuo do Instituto, RIHGB, op. cit., p. 12-13. 169 Temístocles Américo Cezar, Narrativa, cor local e ciência: notas para um debate sobre o conhecimento histórico no século XIX, História Unisinos, São Leopoldo, vol. 08, n. 10, jul./dez. 2004, p. 24-25.

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168

Essa estetização do passado, influenciada pelo uso da noção de cor local como estratégia

de construção narrativa histórica do século XIX, defendida pelo primeiro secretário perpétuo, confirmava a

importância deste procedimento para a eficiência das tarefas de rememoração.170 Segundo Valdei Lopes

de Araujo, embora uma das preocupações recorrentes nos textos originais do IHGB, a forma da narrativa

era menos evidente quando comparada com os aspectos eruditos e as demandas filosóficas.171 Neste

sentido, as memórias de Raimundo da Cunha Mattos e de Rodrigo de Souza da Silva Pontes seriam

exemplares desta hierarquia de interesses, pois estariam muito mais voltadas para a questão da reunião e

organização de documentos e da periodização da história do que com a própria narrativa.

Com base na análise da correspondência ativa e dos prefácios de suas obras, Laura

Nogueira Oliveira observou que a dimensão literária em Varnhagen se fazia presente por meio da

discussão do estilo. Para o prescritivo autor da Historia geral do Brazil, o historiador deveria ter estilo. O

estilo que advogava para o gênero histórico era próximo ao do judiciário, mas lembrava que mesmo um

veredicto não poderia deixar em segundo plano o belo.

Do mesmo modo que a criação poética, ao redigir um texto o historiador tinha

(...) de preocupar-se com o belo; mas se o belo na poesia era alcançado pela

harmonia da forma, no discurso histórico ele era atingido graças à capacidade de

o historiador torná-lo verossimilhante, por meio da invenção apropriada.172

Ao abordar a questão do estilo nos escritos de Varnhagen, a autora ponderou que ser

historiador-literato e poeta para ele não implicava em improviso ou adesão cega à inspiração. Pelo

contrário, significava cuidar da arquitetura textual: a revelação da verdade dependia do controle da palavra

e de seu correto emprego.173

Neste caso, o visconde de Porto Seguro se aproximava das afirmações do barão de

Barante – referenciado no discurso de Januário da Cunha Barboza – que também destacou a semelhança

entre a narrativa histórica e a poesia, pois ambas falariam à imaginação, embora a primeira dependesse da

verdade dos fatos:

170 Manoel Luiz Salgado Guimarães, A disputa pelo passado na cultura histórica oitocentista no Brasil, in: José Murilo de Carvalho (org.), Nação e cidadania no Império: novos horizontes, op. cit., p. 107. 171 Valdei Lopes de Araujo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), op. cit., p. 143. 172 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 83. 173 Ibidem, ibidem.

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169

a história, no seu sentido mais geral, é a narrativa dos fatos. Ela deve, logo,

variar em seu caráter, na sua aparência segundo os fato narrados, e de acordo

com quem a narra. Ela ensina os tempos decorridos, não somente em relação ao

relato dos acontecimentos; mas também, especialmente quando foi escrita pelos

contemporâneos, ela representa o espírito, a vida moral de cada época.

A arte histórica, como todas as outras artes, teve e deve ter suas fases da

civilização. Tal como os homens e os povos nem sempre pensaram e agiram

com as mesmas disposições, uma vez que nem sempre viram os fatos sob o

mesmo aspecto. Esta foi a raça humana, a história o foi: é justo que a pintura

varie conforme o modelo.174

Em sua correspondência ativa, Varnhagen abordou a questão da escrita correta e elegante

com alguns interlocutores como o próprio monarca D. Pedro II e Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara. Por

meio da confidência epistolar, o historiador expôs seus cuidados com os seus escritos, procurando se fazer

bem compreendido pelo leitor. Conselhos, sugestões e orientações sobre a redação dos textos eram

ofertados e recebidos.

Nas missivas endereçadas ao IHGB, ele também registrou seu interesse pela forma como

o historiador deveria cuidar da construção da sua narrativa. Na despedida da carta ao cônego Januário da

Cunha Barboza, logo que iniciou suas atividades de pesquisa em Portugal, Varnhagen justificava a demora

de envio de contribuições para a Revista como uma precaução, pois havia de zelar pela qualidade da sua

escrita:

Concluirei asseverando a V. S. que é quasi exclusivamente à geographia e

historia do nosso paiz, que o Instituto tanto tem já fomentado, que se dedicam

todas as minhas horas vagas; e que eu não dou d’isso já provas e documentos

pela imprensa, é porque me reservo a fazel-o com mais madureza, e sem

precipitação por todos os escriptores condemnada nas expressões proverbiaes

do velho Horácio.175

174 Amable Guillaume Prosper Brugière (barão de Barante), Etudes historiques et biographiques, Paris, Didier et Cie, 1858, p. 183 (tradução livre). 175 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sem data no original, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 95.

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170

Para o visconde de Porto Seguro, a construção dos seus textos exigia, além de profunda

pesquisa documental, dedicação no trato das regras e do estilo da linguagem. A produção de seus

escritos, portanto, dependia de apurado trabalho de lapidação. Assim como cobrava de si qualidades de

erudição e literária, não deixava de procurá-los nos textos dos outros.

Em outra carta ao primeiro secretário do IHGB, de 1º de maio de 1844, Varnhagen teceria

elogiosas palavras ao programa Qual era condição social do sexo feminino entre os indigenas do Brasil?,

apresentado pelo consócio e político paulista José Joaquim Machado de Oliveira (1790-1867),176

reconhecendo justamente a sua capacidade imaginativa no desenvolvimento dos argumentos:

Ilmo. Snr. No numero 14 da Revista Trimestral foi impresso o tão eloquente

como erudito desenvolvimento do nosso consocio o Sr. Machado de Oliveira ao

programa sorteado “Qual era a condição social do sexo feminino entre os

indígenas do Brasil.

Ao acabar de ler essa excellente dissertação o espírito fica satisfeito à vista de

tantos argumentos que lhe fallam à razão, à imaginação e até ao sentimento; e

quase essa leitura deixa em nós repugnancia à só idéa da possibilidade da

mínima opposição ás bellas e consoladoras doutrinas apresentadas.177

Na sua correspondência com o amigo Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, segundo Laura

Nogueira Oliveira, Varnhagen seria mais profícuo ao abordar os atributos literários necessários ao

historiador.178 O diretor da Biblioteca de Évora seria interlocutor eleito pelo autor da Historia geral do Brazil

para esmiuçar os contornos formais e estéticos da narrativa histórica.

Além da cumplicidade entre amigos e trocas de informações sobre documentação nos

arquivos, Varnhagen fazia um exercício de escrita sobre sua prática como historiador dedicado ao culto da

pátria brasileira e da cidade letrada. Não poucas vezes fazia questão associar as suas atividades de

pesquisa e de escrita a um amor as letras. Confidenciava este fato porque acreditava que o amigo

conhecia por si próprio o que era aquele sentimento.179

176 Conferir: José Joaquim Machado de Oliveira, Programma – Qual era a condição social do sexo feminino entre os indigenas do Brasil, RIHG, Rio de Janeiro, tomo 04, 1842, p. 168-201. 177 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1º de maio de 1844, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 125-126. 178 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 86, nota 17. 179 Carta a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, diretor da Biblioteca de Évora, 29 de agosto de 1849, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 156.

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As prescrições, os conselhos e os pedidos trocados entre Varnhagen e Joaquim Heliodoro

da Cunha Rivara poderiam ser pensadas aqui com base nas análises de Michel Foucault acerca da

correspondência entre de Sêneca e Lucilius. As cartas enviadas ao amigo permitiram a Varnhagen fazer

um exercício pessoal, pois ao escrever, se lê o que se escreve, do mesmo modo que, ao dizer alguma

coisa, se ouve o que se diz.180

Neste sentido, oferecer orientações de como escrever era uma forma de exercitar consigo

mesmo o cuidado com a língua. As suas cartas agiam tanto sobre aquele que, pela (re)leitura, a recebia,

quanto sobre quem a enviava. O próprio gesto da escrita realizava este dialogo de si com o outro.181

As cartas a Joaquim da Cunha Rivara, ao menos as que tinham a finalidade de ministrar

conselhos de redação, não se restringiam a uma mera introspecção, de deciframento de si por si, eram

mais uma abertura que se daria ao outro sobre si mesmo.182 Ao indicar, por exemplo, os caminhos

necessários com a linguagem para a sua aprovação no interior das regras e dos anseios da revista O

Panorama, Varnhagen expunha também as suas próprias percepções do que seria a escrita do historiador-

literato e, às vezes, poeta.183

Na missiva de 04 de setembro de 1839, o jovem historiador não apenas sugeria ao amigo

os cuidados estilísticos dos textos, mas incluía um indicativo do que e como abordar nas páginas do

periódico. Estas prescrições afetivas atendiam ao interesse de Varnhagen que Joaquim Heliodoro da

Cunha Rivara fosse aceito e reconhecido pela sua comunidade de escritos em torno de O Panorama.

A respeito do Panorama devo dizer que os Directores me disseram, que

desejavam que os artigos fossem quanto possivel sobre si e nunca maiores de

trez columnas. É máo dar artigos grandes e peior é o cortal-os. Tambem me

disseram que deixavam ficar o Mahomet porém que não desejavam muitas

coisas desta natureza: e só quando possivel noticiais de Portugal e algumas

curiosidades do Brasil. De Portugal podia V. Sª esboçar vários períodos

históricos de differentes reinados etc., ou emprehender a continuação de uns

quadros de historia portugueza que o sr. Alexandre Herculano deixou

180 Michel Foucault, A escrita de si [1983], in: Ética, sexualidade, política, Coleção Ditos & Escritos V, op. cit., p. 153. 181 Ibidem, ibidem. 182 Ibidem, p. 157. 183 O Panorama era revista de caráter artístico e científico de que era proprietária a Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, patrocinada pela própria rainha D. Maria I (1734-1816). Em torno deste periódico se reuniria a elite letrada portuguesa, tendo Alexandre Herculano como uma das suas referências. Ela seria o reduto dos românticos durante a primeira metade do século XIX. Segundo Thiers Martins Moreira, O Panorama é normalmente conhecido como revista do romantismo. Tal é a força literária da palavra, a publicação parece limitar-se a um único mérito: fonte de poetas e novelistas, ainda inéditos ou em surgimento. Thiers Martins Moreira, Varnhagen e a história da literatura portuguesa e brasileira, RIHGB, Rio de Janeiro, volume 275, abr./jun. 1967, p. 157.

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interrompidos desde o 1º vol. – creio que desde Sancho 2.º, de quem ainda

tratou. Não digo bem: parou no fim do reinado de Affonso 3.º, à pag. 156 do 1.º

Vol. do Panorama. Estes artigos podiam agora continuar-se no mesmo sentido; i.

é o de encarar as dissenções com Roma antiga, que hoje nos utilizariam.

Convem porém abstrahir na história das particularidades biographicas que todos

os nossos querem sempre contar dos reis etc. Em D. Dinis vem a propósito a

Universidade sobre que V. Sª não terá poucas noticias, etc.

Convêm ainda dizer outra reflexão; que convirá ser effetiva para todos os artigos

que se escreverem em periódicos como o Panorama. É necessário que em todos

elles trabalhe a imaginação, quero dizer, que com verdade haja imagens e

poesia que deleite. V. Sª bem o saberá – É necessario que quem escreve incuta

as suas ideas e é nisto que consiste a maior originalidade que de V. Sª pedem

os Directores do Panorama. V. Sª escreverá como poder e tiver agora vagar,

mas não deixaria de ser talvez lisongeiro à Direcção, que V. Sª quando assim

não estivesse para escrever, recommendasse os artigos com um termo médio a

respeito de originalidade e de traducção – isto deve-lhe ser mais favoravel que

prejudicial.184

Para Varnhagen, a imaginação era instrumento vital no processo de escrita do historiador.

O leitor teria de ser seduzido por um texto que abordasse os fatos com imagens e poesia. Outro aspecto

marcante nas orientações ao amigo estava a necessidade de se tomar um tempo considerável na

elaboração dos artigos, evidenciando um cuidado com a escolha e o uso das palavras. Este tipo de

prescrição na sua escrita epistolar vislumbraria uma outra representação do historiador sorocabano que

fugiria à idéia de um mero compilador de documentos. Para ele, segundo Laura Nogueira Oliveira,

do mesmo modo que na criação poética, ao redigir um texto o historiador tinha

(...) de preocupar-se com o belo; mas se o belo na poesia era alcançado pela

harmonia da forma, no discurso histórico ele era atingido graças à capacidade de

o historiador torná-lo verossimilhante, por meio da invenção apropriada.185

184 Carta a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, diretor da Biblioteca de Évora, 04 de setembro de 1839, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 33-34. 185 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 83.

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173

A preocupação com a beleza da escrita, traduzida pela correção e harmonia, aparecia

também na forma e na ordem como Varnhagen achava que deveria ser apresentados os temas na revista,

seguindo uma espécie de cronologia. Um bom e articulado enredo temático, pelo seu raciocínio, ajudaria

na construção de imagens vivas e agradáveis ao público e na compreensão dos propósitos do autor. A

disposição do lugar em que fatos e personagens entrariam na narrativa foi abordada na carta de 18 de

setembro de 1839:

Sei que a Direcção gostou muito do artigo àcerca dos indígenas, que até já vi

composto, e creio que ainda vai 1.º do que a vida do Arcebispo. – Eu já a fui ler,

e achei nella a viveza de imagens que agrada ao respeitavel público, em

objectos desta natureza. Para quando V. S.ª acabar o que tem à cerca dos

indigenas talvez eu continue com um artigo à cerca do Descobrimento,

imprimindo por esta occasião a linda narração de Pero Vaz de Caminha.

Recommendo a V. Sª que não se esqueça dos quadros de Historia Portugueza,

na qual, como V. Sª diz, não faltam pontos intactos.186

A relevância da narrativa para Varnhagen, por exemplo, fazia-se presente no seu desejo

de divulgar as belezas da carta de Pero Vaz de Caminha. Este texto seria a base da sua Crônica do

Descobrimento, publicada nas páginas de O Panorama, em 1840, cumprindo a promessa feita ao amigo

Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara. Ele apresentava a carta de Caminha de forma ficcional procurando

ser o mais próximo possível da realidade e, dessa forma, mais convincente, porque mais

verossimilhante.187 Na construção da crônica percebe-se a proximidade das intenções de Varnhagen com

as sugestões do barão de Barante, ou seja, o uso da imaginação na produção de uma narrativa verdadeira

e agradável como uma forma de cativar o leitor.188

Em outra missiva de 10 de março de 1840, o visconde de Porto Seguro traria de novo a

recomendação ao amigo de uma narrativa que trouxesse elementos de estilo para ajudar no

186 Carta a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, diretor da Biblioteca de Évora, 18 de setembro de 1839, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 35. 187 Laura Nogueira Oliveira, Os índios bravos e Sr. Visconde: Os indígenas brasileiros na obra de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 53. 188 Segundo Temístocles Américo Cezar, o êxito da proposta do barão de Barante estava justamente no tempero da escrita com as cores locais: Instrumento da narrativa histórica, seja ela um romance, uma peça de teatro, uma pintura de um acontecimento ou de um personagem do passado, a cor local confere visibilidade à história sem, no entanto, abrir mão da faculdade imaginativa, a mesma que autoriza, eventualmente, o leitor a não percebê-la. Temístocles Américo Cezar, Narrativa, cor local e ciência: notas para um debate sobre o conhecimento histórico no século XIX, História Unisinos, op. cit., p. 23.

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convencimento do público. As palavras bem adoçadas, com toques de romance, seriam o caminho, ao lado

da documentação compilada, para conseguir credibilidade e cumplicidade:

Não se esqueça V. Sª d’algum romance ainda que não seja muito romanceado.

O que se quer é historia verdadeira, mas com certo colorido que agrade. Para

isso serve de muito o pictoresco; i. é. o estado da athmosphera etc. V. Sª poderá

aproveitar os seus muitos conhecimentos nas sciencias physicas e naturaes.189

Diante do amigo, Varnhagen não escondia seus próprios receios compartilhados sobre o

processo da escrita. A juventude era o tempo das inseguranças e da necessidade de reconhecimento dos

pares mais antigos da cidade letrada. Ao mesmo tempo em que procurava seguir a orientação de um certo

descaramento litterario, sugerido pelo historiador Alexandre Herculano (1810-1877), ele não conseguia

afugentar os fantasmas da dúvida, do medo de ferir a escrita, de deixar lacunas.

Vejo que V. Sª faz muito caso de difficuldades futuras e passadas. Lembro a V.

Sª que muitas vezes tenho ouvido ao Sr. Herculano, “que quem quer escrever

para o publico deve ser descarado em quanto está com a penna na mão”.

D’outro modo tudo são receios, tudo são dúvidas, medos de errar, de deixar

escapar alguma coisa, de... tudo. Convem sim ter e seguir certas normas, mas

não sermos tão scepticos que depois de escrevermos uma duzia de vezes

algumas linhas n’um papel não atrevemos a continuar. Quem me daria a mim, --

um rapaz de 22 annos, atrevimento para me arrastar em questões acadêmicas,

se não fosse às vezes o preciso descaramento litterario, tão necessario como o

político! Bem sei que disto se deve servir só quem o precisa, -- que tal talento

haverá que se conheça tão bem as suas forças que de nada duvíde, e não

precise fazel-o por systema, e outros haverá que por demazia de ignorancia não

precizem o conselho, -- que é um ditado ser a ignorancia de si atrevida.190

Além disso, a busca de saber e erudição como pré-condição para se enveredar pelo

território minado da redação, alertava ao diretor da Biblioteca de Évora, poderia ser um elemento de

189 Carta a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, diretor da Biblioteca de Évora, 10 de março de 1840, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 46. 190 Carta a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, diretor da Biblioteca de Évora, 18 de setembro de 1839, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 35-36.

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paralisia da pena na mão. Para ilustrar tal perigo, lembrava que conhecia em Lisboa um velho de grande

saber e erudição, e como tal conceituado; a tudo tem que dizer e notar alguma coisa: mas por isso mesmo

ainda se não atreveu a pôr penna em papel com medo de que lhe escape alguma noticia, ou algum Autor a

citar.191

Ao comentar os medos que tomavam conta da escrita do amigo, Varnhagen fazia uma

autocrítica das suas próprias agruras diante do processo criativo. O espaço da carta era uma forma de dar

vazão, ou melhor, de compartilhar na esfera da intimidade epistolar aquilo que atormentava seu espírito e

precisava ser expurgado. Deveria ficar o zelo com as palavras, mas não o sentimento de incapacidade pela

obsessão de tudo averiguar e referenciar, lembrando à comunidade de leitores – o seu tribunal – que havia

consultado as fontes para compor o seu texto.

Não por acaso cobrava de Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara que não se contaminasse

pelos receios da escrita, pois sabia que aparente acanhamento poderia significar pouca autoridade ou

mesmo ausência de conhecimento. Na carta de 25 de abril de 1840, tal advertência era exposta ao amigo

de maneira clara e direta:

Muito agradeço por occasião da recepção da última folha do G. Soares todo o

trabalho que commigo tem [tido] V. Sª, e eu pela parte só tenho sabido

agradecer fazendo-o recahir no seu crédito litterário, além daquelle que o

Panorama lhe tem feito popular.

Lê-se com gosto tudo quanto V. Sª escreve, e hoje só se estranha a falta, e há

quem diga que sabe a pouco. V. Sª poderá bem remediar este sabor. Já não tem

de que ser timorado quem tão bem se tem sahido. –192

Da mesma forma que fazia suas prescrições, também contava com a sinceridade epistolar

do interlocutor de Évora. Esboços de textos eram encaminhados a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara

com a finalidade de angariar sugestões e comentários. Projetos e rascunhos literários eram partilhados e

debatidos entre cartas que iam e vinham.

Fiquei assustado com as suas expectativas de uma edição prima. Não sr.: é uma

edição pequena, sem pretensão; mas de muita consciencia, e feita manual de

191 Ibidem, ibidem. 192 Carta a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, diretor da Biblioteca de Évora, 25 de abril de 1840, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 47.

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proposito para convidar a que se estude o livro e para ouvi o público sobre

minhas opiniões a respeito da tal poesia. Não sei se assim me entenderão em

Portugal, e se assim me farão a justiça que mereço. (...)

A introdução foi redigida demasiado à pressa: lendo-a um dia destes pareceu-me

às vezes menos clara, e desagradou-me a 1.ª linha de pag. XXI, porque poderá

ser mal interpretada. Escreva-me francamente o que pensa. 193

Para os contemporâneos de Varnhagen, a escrita não era uma atividade tão simples. O

bom ou mau uso das palavras poderia determinar o seu destino dentro dos espaços de sociabilidade.

Como evidenciou Laura Nogueira Oliveira, o domínio das palavras era um atributo imprescindível para a

construção discursiva da obra do visconde de Porto Seguro. Se fazer bem compreendido pelos leitores era

a obsessão do homem das letras. O reconhecimento e a glória intelectual dependiam da manipulação

precisa, harmoniosa e elegante das palavras. Poesia e romance não estavam necessariamente

abandonadas pela cidadela do historiador. A escolha do estilo a ser adotado não se limitava aos elementos

decorativos, implicava avaliação e julgamento do melhor modelo e forma para realizar o gênero literário

que pleiteava.194

A escrita da história, na sua leitura, não estava fora do campo das produções literárias e

negociava com as regras do seu jogo. Varnhagen, segundo a autora, era um homem de estilo e assim se

apresentava aos seus interlocutores nas cartas, prefácios e memórias:

Aquele que dominava a palavra, fazendo-a dobrar-se aos seus intentos. Ele

julgava suas estratégias de composição textual tão sutis que era necessário

destacá-las e desvendá-las. Ou, talvez, o valor da obra estivesse exatamente na

capacidade de seu autor saber empregá-las.195

Neste sentido, os argumentos de Laura Nogueira Oliveira aproximaram-se da leitura de

Taíse Tatiana Quadros da Silva, que entendeu a operação historiográfica de Varnhagen como um

acontecimento literário, civilizador e de culto à língua. Para ela, a nobreza do historiador, de um homem

reconhecido pelas letras,

193 Carta a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, diretor da Biblioteca de Évora, 29 de agosto de 1849, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 155-156. 194 Laura Nogueira Oliveira, Os índios bravos e Sr. Visconde: Os indígenas brasileiros na obra de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 53. 195 Ibidem, p. 96.

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adviria do comprometimento pátrio, mas também da solidez simbólica de uma

narrativa em que a poética de sua forma livresca e textual estabeleceria as

possibilidades da escrita histórica instituindo, pelo tratamento aos temas e às

fontes da tradição de que se valeria, a posição de seu autor diante do debate

literário de seu tempo.196

Ser o construtor e o símbolo da escrita da história do Brasil imperial, segundo a autora, foi

a missão da vida intelectual de Varnhagen, motivando-o a buscar o caminho até o método e escrita da

inédita história. Dentro desta perspectiva,

a escrita varnhageana tornar-se-ia paladina de um certo modelo pedagógico que

procuraria instilar o calor de um patriotismo moral capaz de converter seus

leitores em monarquistas cristãos comprometidos, como von Martius também

julgara necessário em seu plano para a escrita da história do Brasil. Tal

vinculação da escrita da história ao projeto político centralizador aproximaria

nosso historiador da visão difundida pelo iluminismo sobre a responsabilidade

pedagógica do intelectual.197

A imagem esboçada de Varnhagen como um homem de estilo, presentes nesses estudos,

dialogaria com as formulações de Peter Gay sobre o assunto. Para o autor, ainda que se procure negar, o

entrelaçamento entre forma e conteúdo constituiria a tessitura de toda arte e todo ofício, inclusive o do

historiador. Este profissional teria no seu fazer a presença de duas práticas profundamente carregadas de

questões de estilo – a escrita e a leitura:

como escritor, sofre a pressão de se tornar estilista mantendo-se cientista; cabe-

lhe proporcionar prazer sem comprometer a verdade. Seu estilo pode ser uma

ferramenta convencional, uma confissão involuntária ou iluminação admirável.

Como leitor, ele preza a qualidade literária, absorve fatos e interpretações,

explora as palavras diante de si em busca de verdades atuantes sob a

196 Taíse Tatiana Quadros da Silva, A reescrita da tradição: a invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857), op. cit., p. 72. 197 Ibidem, ibidem.

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superfície; o estilo, para ele, pode constituir um objeto de satisfação, um vinculo

de conhecimento ou instrumento de diagnóstico.198

Essas afirmações, ao lado da leitura da correspondência ativa de Varnhagen, ajudam

nessa pesquisa a entender, por exemplo, a Historia geral do Brazil não apenas como um conjunto

desarmônico de fatos colhidos em documentos dispersos em arquivos e bibliotecas. Pelo contrário, permite

a compreensão da obra-síntese do visconde de Porto Seguro como um evento discursivo, fruto de um

conjunto de articulações temáticas e de costuras documentais, permeados pelo agenciamento de atributos

eruditos, filosóficos, literários e, por vezes, poéticos. O projeto historiográfico oitocentista, segundo Lúcio

Menezes Ferreira, implicava uma série de fazeres:

escavar o passado, retirar dos fragmentos esparsos e desconexos da História a

glória da Nação, reunir numa mesma galeria os heróis nacionais, recuperar nas

camadas da massa documental a transmissão da Palavra e do Exemplo a ser

perorada às gerações do presente e do futuro. O historiador, como um

naturalista ou arqueólogo, desenterraria monumentos históricos e geográficos,

desencravaria dos estratos do passado, da espessura histórica de instituições,

eventos e personagens, os fatos necessários para recompor, no contínuo

homogêneo do tempo, a História da Nação.199

Em outras missivas e no prefácio à 1ª edição da Historia geral do Brazil, Varnhagen

visitaria estas representações das atribuições do historiador à luz da composição da sua história geral,

sempre trazendo para si o status de exemplo – de modelo a ser reconhecido e, supõe-se, seguido. Neste

projeto historiográfico estaria a expectativa da sua consagração, por parte do monarca e do IHGB, como o

historiador oficial do Império.

198 Peter Gay, O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 18. 199 Lúcio Menezes Ferreira, Vestígios de Civilização: A Arqueologia no Brasil Imperial (1838-1877), dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002, p. 20.

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2.6. Os bastidores da escrita da primeira edição da Historia geral do Brazil______________________

As possibilidades e os dilemas sobre a escrita de uma história geral do Brasil se fizeram

presentes nos debates e textos produzidos pelos sócios do IHGB desde a fundação da agremiação,

envolvendo questões como temas, recortes, fontes e periodização. Nos textos de fundação da casa de

memória, segundo Manoel Luiz Salgado Guimarães, pairava dúvidas e propostas de como escrever uma

história do Brasil que atendesse os preceitos e procedimentos adequados. Esses escritos, guardadas as

suas especificidades, traziam contornos de uma consciência histórica, que se manifestaria e ganharia

expressão através da combinação entre procedimentos acadêmicos e usos políticos do passado,

configurando abordagens possíveis para o trabalho de historiografia.200

Para homens como Januário da Cunha Barboza, Rodrigo de Souza da Silva Pontes e

Raimundo José da Cunha Mattos, o IHGB tinha a árdua tarefa de criar as condições – busca e coleta de

documentação – e definir o enredo temático e cronológico para a viabilização da escrita de uma história do

Brasil que fixasse uma memória que se contrapusesse aos escritos existentes sobre o país, em sua

maioria, de autores estrangeiros. Segundo Temístocles Américo Cezar, o desafio era narrar ou explicar a

fundação do Brasil a partir do ponto de vista dos brasileiros.201

Preocupado com as reais condições de se produzir uma história genuinamente nacional,

Raimundo da Cunha Mattos procuraria lembrar aos colegas do IHGB uma série de questões e problemas

que tomavam conta do debate sobre o que se tinha até então produzido em termos do passado do Brasil

pelos escritores estrangeiros:

Como será possivel escrever uma historia philosophica do povo do Brasil antes

de levar ao cadinho da censura mais severa o immenso fardel de escriptos

inexactos, insulsos, indigestos, absurdos e fabulosos anteriores ao anno de 1822

em que unicamente se imprimia em Portugal, e rarissimas vezes no Brasil,

aquillo que um governo desconfiado, uma inquisição intolerante, um Ordinario

sem criterio, uma mesa da commissão sobre a censura dos livros permittiam que

fosse publicado? Como será possivel escrever a historia philosophica do Brasil

tomando por pharól os livros estrangeiros impressos antes da declaração da

200 Manoel Luiz Salgado Guimarães, A disputa pelo passado na cultura histórica oitocentista no Brasil, in: José Murilo de Carvalho (org.), Nação e cidadania no Império: novos horizontes, op. cit., p. 101. 201 Temístocles Américo Cezar, Lição sobre a escrita da história: historiografia e nação no Brasil do século XIX, Diálogos, op. cit., p. 19.

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independencia do imperio? O que vemos ácerca da historia em quasi todos os

escriptores estrangeiros? Aquillo que escreveram os portuguezes, e os

brasileiros; e demais a mais muitas invectivas, insultos, calumnias, improperios,

falsidades em desabono do povo do Brasil!202

Ao lado das falsidades a respeito do povo do Brasil, o marechal ainda apontaria como

outro elemento que dificultava a escrita da história moderna do país a ausência de uma boa crítica que

verificasse documentação existente a ser coligida, metodizada e arquivada.

No discurso inaugural das atividades do IHGB, Januário da Cunha Barboza já havia

chamado a atenção para os malefícios de uma história escrita por mãos não brasileiras que contaminavam

os fatos do passado com erros e juízos condenáveis. Para o primeiro secretário, o silêncio perante aquela

situação, reprehensivel de certo em maneira que tanto affecta a honra da pátria, tem dado occasião a que

os historiadores uns de outros se copiem, propagando-se por isso muitas inexactidões, que deveriam ser

immediatamente corrigidas.203

As precariedades existentes eram tidas como empecilhos para a concretização do plano

de escrita da história do Brasil e, em determinadas situações, conduziam à sua inviabilidade. Embora

propusessem temas e cronologias para uma possível história da nação, a questão esbarrava no receio das

lacunas documentais do seu arquivo. O próprio Rodrigo de Souza da Silva Pontes, sem se ater à

viabilidade ou não desse projeto historiográfico, iria oferecer os indicativos de quais deveriam ser as

preocupações primeiras do grêmio, ou seja, a busca dos documentos perdidos e espalhados pelos

arquivos e bibliotecas do Império e da Europa. Para ele, o cerne das reflexões estava nos primeiros

objetivos dos Estatutos do IHGB, relegando para um outro momento a composição de uma narrativa:

A primeira e mais urgente das incumbencias do Instituto Historico e Geographico

consiste, segundo se vê do mesmo artigo 1.º dos seus Estatutos, em colligir e

preparar os materiaes necessarios para a historia e geographia do Brasil. Esses

materiaes porêm ou se encontram já formados, ou cumpre ainda que sejam

organizados. A estes vai dando o Instituto principio e existencia, á proporção que

discute, e publica memorias, pareceres, e outros quaesquer trabalhos, ou

elaborados no seio, ou offerecidos por pessoas, que posto não façam parte da

202 Raimundo José da Cunha Mattos, Dissertação acerca do systema de escrever a historia antiga e moderna do Imperio do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 123. 203 Januário da Cunha Barboza. Discurso do Primeiro Secretário Perpétuo do Instituto, RIHGB, op. cit., p. 10.

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nossa associação, tomam comtudo a peito o progresso dos conhecimentos

historicos e geographicos.204

O próprio monarca, em seu discurso na sessão aniversária do IHGB de 1849,

reconheceria que a escrita da história nacional, como parte de um projeto imperial, seria uma empresa

nobre e útil, mas também difícil. Ao qualificá-la com estes adjetivos, D. Pedro II percebia o pesado fardo

daquele dever pátria, o que engrandecia ainda mais as glórias que receberiam os historiadores que

concretizassem a grande obra.205

Para Lucia Maria Paschoal Guimarães, os idealizadores do IHGB haviam direcionado o

seu fazer para o âmbito da memória, ocupando-se pouco da História, o que explicaria a dificuldade de se

criar uma história do Brasil. As páginas da sua Revista revelariam a presença constante de um

descompasso entre o pretenso discurso sobre a História e a sua escrita efetiva, ou seja, a sua prática.206

Apesar da escrita da história do Brasil fazer parte da missão do IHGB, as discussões

acerca das possibilidades de concretização de tal empreitada se perdia no meio das propostas para o

estabelecimento de suas fontes e métodos. Havia impasses incontornáveis nas tramas dos bastidores da

fabricação de uma memória nacional. As disputas pela verdade do passado, segundo Taíse Tatiana

Quadros da Silva, permeavam também os meios de investigação o que tornava tanto as fontes, quanto os

métodos em termos centrais de um embate cultural e político que se expressaria como científico.207

A inexistência de um modelo de escrita e as dificuldades de constituição de um acervo

documental não inviabilizaram, em última análise, a emergência de projetos e narrativas que procurassem

forjar uma história para o Brasil, pautada pela defesa da integridade nacional e exaltação da monarquia

constitucional. Dentro do IHGB, em especial nas páginas da sua Revista, surgiriam esboços de uma

história da nação por intermédio de outras formas: relatórios, anais, memórias e biografias. As

preocupações iniciais com a coleta e organização das fontes documentais passariam

a ser sobrepujadas pela publicação de trabalhos inéditos sobre a história,

geografia e etnologia que correspondem à definição e tematização dos

problemas que doravante norteariam a produção dos homens de letras. Desta

204 Rodrigo de Souza da Silva Pontes, Quais os meios de que se deve lançar mão para obter o maior numero possivel de documentos relativos á Historia e Geographia do Brasil?, RIHGB, op. cit., p. 149. 205 Extractos da 212ª sessão, de 15 em dezembro de 1849, RIHGB, op. cit., p. 552. 206 Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, op. cit., p. 457 e também capítulo II. 207 Taíse Tatiana Quadros da Silva, A reescrita da tradição: a invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857), op. cit., p. 36.

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maneira, começa-se a conformar uma perspectiva histórica que girava em torno

de dois fatos fatais (o descobrimento e a independência), da tentativa de

contribuir para a definição do território nacional através das pesquisas sobre os

limites e ocupação do país e, finalmente, dos estudos sobre os diversos grupos

indígenas. 208

Nem faltariam também tentativas mal sucedidas como a do general José Inácio de Abreu e

Lima, cujo compêndio foi objeto de acusações duras de plágio e inconsistência por parte dos colegas do

grêmio, tendo em especial Varnhagen como seu algoz em acirrada polêmica.209

Embora as afirmações de Taíse Tatiana Quadros da Silva e de Nelson Schapochnik

confirmassem os desafios e os embates em torno de tamanha empreitada historiográfica dentro do grêmio,

elas não adotariam tão taxativamente a compreensão do IHGB como um lugar de portas fechadas para

história, uma vez que mostravam nas mesmas páginas da Revista e na obra de Varnhagen exercícios de

uma escrita voltada para a construção de uma história nacional.210

No caso do visconde de Porto Seguro, mesmo a sua não aceitação e saudação imediata

quando da publicação da 1ª edição da sua Historia geral do Brazil não pode ser pensada como uma recusa

da história pelo IHGB, mas sim como indício de ausência de um consenso sobre a melhor maneira de

compor essa narrativa. Além do mais, como se observou nos textos fundacionais do grêmio e na memória

Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil, de autoria de Varnhagen, o processo de

busca e organização de documentos estava impregnado com as questões historiográficas vividas pelo

Brasil do século XIX. A eleição do que colligir, methodizar, archivar e publicar oferecia os caminhos de qual

narrativa histórica se deseja instituir.

A vontade de ver se concretizar a história geral do Brasil se faria presente nos discursos

dos membros do IHGB, sendo por exemplo objeto de manifestação do próprio cônego Januário da Cunha

Barboza, em seu relatório dos trabalhos do grêmio de 1842, mesmo sabendo dos desafios colossais que

tal missão implicava:

208 Nelson Schapochnik, Como se escreve a história?, Revista Brasileira de História, op. cit., p. 67. 209 Conferir: Luís Cláudio Rocha Henriques de Moura, Abreu e Lima: uma leitura sobre o Brasil, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade de Brasília, Brasília, 2006, capítulo V; Selma Rinaldi de Mattos, Para formar os brasileiros. O compêndio da História do Brasil de Abreu e Lima e a expansão para dentro do Império do Brasil, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007, capítulo II. 210 Segundo Temístocles Américo Cezar, não há nenhuma dúvida que o IHGB produziu uma memória nacional, mas eu não estou certo que esta opção implique necessariamente o abandono da história. Temístocles Américo Cezar, Presentismo, memória e poesia. Noções da escrita da História no Brasil oitocentista, in: Sandra Jatahy Pesavento (org.), Escrita, linguagem, objetos: leituras de história cultural, Bauru, EDUSC, 2004, p. 55.

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Muitas pennas, aliás illustres, tem escripto memorias, annaes e relatorios das

cousas do Brasil; mas podemos dizer, senhores, podemos dizer, que ainda nos

falta uma historia bem organisada, que apresente ao conhecimento dos nossos e

dos estranhos um quadro fiel de pouco mais de tres seculos, em que se veja a

marcha dos nossos successos relacionados entre si desde a descoberta d’esta

parte do novo mundo. E’ grande este trabalho, sim, mas é necessario; os

enfados que arrasta serão vencidos pela perseverança de seus literatos

emprehendedores, serão continuados sob a valiosa protecção do liberal governo

de Sua Magestade Imperial o senhor D. Pedro II, nosso augusto e immediato

protector.211

A descrição de nobre, útil, e difícil empresa para a escrita da história, evocada pelo

monarca, ocuparia as páginas da Revista do IHGB e também as obras dos historiadores do século XIX. No

prefácio da Historia geral do Brazil, publicado no tomo II em 1857, Varnhagen relataria algo semelhante ao

falar do seu feito historiográfico e patriótico. Ele confirmaria a validade das falas recorrentes dos consócios

do IHGB quando sentenciavam que fazer uma história geral organizada era missão árdua e complexa,

exigindo do historiador renúncia e disciplina:

Seja porém como fôr: saiba-se que desde que nos proposemos a consagrar ao

Brazil as nossas vigílias, para, no esclarecido reinado de Pedro II, e mediante o

seu alto e valioso apoio, escrever, com certa unidade de fórma e com a dos

principios que professamos, uma conscienciosa historia geral da civilisação do

nosso paiz, padrão de cultura nacional, que outras nações civilisadas só ao cabo

de seculos de independencia chegaram a possuir, ou não possuem ainda,

fizemos abnegação de tudo: e por tanto arrostámos com os provaveis

desasocegos e injustiças futuras, -- se é que não ja presentes. Embora! Deu-se

em todo caso o primeiro passo. Fez-se, por assim dizer, a primeira resenha geral

ou antes o primeiro enfeixe proporcionado dos factos que, mais ou menos

desenvolvidos, devem caber na Historia Geral (...)212

211 Januário da Cunha Barboza, Relatorio dos trabalhos do Instituto durante o quarto anno social, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 04, (Supplemento), 1842, p. 05. 212 Francisco Adolfo de Varnhagen, Prefacio, in: História geral do Brazil, Madrid, Imprensa da V. de Dominguez, 1857, p. VI.

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Na leitura de historiadores como Varnhagen, observou Rodrigo Turim, além da

cientificidade e da utilidade – retomando as afirmações de D. Pedro II, a escrita da história precisava ser

encarada com sinceridade. O processo de fabricação desta narrativa seria um exercício árduo, de

abnegação como registrou o próprio historiador sorocabano em seu prefácio e também em suas missivas:

Não é qualquer um que detém as capacidades necessárias para a realização de

tal tarefa. O historiador, para cumprir sua missão, deve sacrificar a si próprio,

vertendo todas as suas forças no imenso trabalho de coleta, crítica e exposição

dos documentos em uma narrativa apropriada. A função do historiador exige,

como sinal de verdadeira vocação, o necessário esquecimento de si.213

Em carta ao imperado D. Pedro II, de 14 de julho de 1857, Varnhagen anunciava em clima

de celebração a finalização do tomo II da sua Historia geral do Brazil e fazia uma espécie de balanço da

empreitada realizada, procurando granjear apoio e reconhecimento num contexto adverso por conta do

silêncio do IHGB e dos ataques dos críticos ao tomo I, publicado em 1854. Assim como no prefácio, na

missiva ao seu soberano, o historiador-diplomata não deixou de registrar os sacrifícios na produção da sua

obra-síntese:

Chegou a hora de poder humildemente comparecer ate o Throno de V. M. I. com

o 2.º volume concluido da Historia Geral do Brazil, depois de haver trabalhado às

vinte horas por dia, de forma que quasi que estes ultimos seis annos da vida me

correram tão largos como os trinta e tantos anteriores. – Ao ver a final concluida

a obra, não exclamei, Senhor, cheio de orgulho, “Eregi monumentu aere

perennius” a minha triste peregrinação pela terra. Porém cahí de joelhos, dando

graças a Deus não só por me haver inspirado a idéa de tal grande serviço à

nação e às demais nações, e concedido saúde e vida para realizar (sustentando-

me a indispensável perseverança para convergir sobre a obra desde os annos

juvenis, directa e indirectamente, todos os meus pensamentos), como por haver

permittido que a podesse escrever e ultimar no reinado de V. M. I., Cujo Excelso

213 Rodrigo Turin, Uma nobre, difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista, História da Historiografia, op. cit., p. 17.

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Nome a posteridade glorificará, como já o universo todo glorifica a sua sabedoria

e justiça.214

Em diferentes momentos entre 1842 e 1857, Varnhagen iria abordar com seus

interlocutores diversas questões e etapas do seu projeto intelectual: a escrita da Historia geral do Brazil.

Suas cartas constituem-se fonte rica para se compreender os bastidores da sua atividade historiadora. Ele

traria para o seu universo epistolar informações sobre suas idéias, dúvidas, necessidades, anseios e

frustrações. Escrever a história da nação implicava também fazer a preparação do público para a sua

recepção e criar estratégias de sua consagração como um historiador-autor. Por intermédio das cartas, ele

tentava colocar a sua obra em construção na ordem do dia da cidade letrada. Era preciso criar uma

expectativa, um desejo.

A primeira vez que Varnhagen faria menção ao seu intento de fazer uma história geral do

Brasil ainda na primeira carta ao IHGB, quando iniciava as buscas documentais nos arquivos europeus. Ele

acreditava que aquela atividade de garimpagem de fontes sobre o passado colonial, dentro do espírito dos

textos de fundação do grêmio, iria ajudar na determinação dos meios para a organização de uma

conveniente Historia da Civilização do Brazil.215

Em carta ao primeiro secretário Januário da Cunha Barboza, datada de 14 de março de

1843, o visconde de Porto Seguro relembraria ao amigo que, passada a etapa do arquivo e da

sistematização dos documentos, a redação histórica seria o seu próximo passo.216

A escrita da Historia geral do Brazil não seria apenas objeto de suas cartas ao IHGB,

apareceria no seu memorial endereçado ao Ministro do Império, de 1851. Além dos serviços prestados na

organização da Secretaria e archivo e bibliotheca do Instituto, Varnhagen destacava que escrevia a

Historia do Brasil para offerecer a S. Magestade como uma das justificativas para o recebimento de uma

graça. 217

214 Carta ao imperador D. Pedro II, 14 de julho de 1857, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 242. 215 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto História e Geográfico Brasileiro, sem data no original, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 92. 216 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 14 de março de 1843, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 103. 217 Memorial apresentado ao Ministro do Império, por Francisco Adolfo de Varnhagen (1851), in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 168.

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Ao imperador, por exemplo, Varnhagen encaminharia neste período aproximadamente 26

missivas, tendo como seu fio condutor basicamente a escrita da Historia geral do Brazil.218 D. Pedro II

constituir-se-ia o seu interlocutor durante a realização das pesquisas, na definição das tramas do texto e na

leitura dos esboços e primeiras impressões do livro.219 Ele também assumiria a função de patrocinador do

empreendimento do historiador sorocabano, uma vez que por meio das cartas eram solicitadas dispensas

para viagens, cartas de apresentação para ter acesso aos arquivos e bibliotecas na Europa, ajuda de custo

para aquisição de cópias de documentos e financiamento da publicação dos dois tomos do livro.

Varnhagen contava com o apoio financeiro e o prestígio do monarca para conseguir, por

exemplo, que a sua Historia geral do Brazil fosse assumida como obra oficial do IHGB e adotada nas

escolas de direito e militares e nos colégios secundários do Império. Cuidar da escrita da história da nação

era entendida como uma função nobre. No caso de Varnhagen, essa escrita emanava da vontade do seu

soberano e a ele era devotada. Segundo Taíse Tatiana Quadros da Silva, as cartas e a dedicatória de

Varnhagen ao imperador procuravam criar uma vinculação entre seus trabalhos eruditos e a distinção

social, como se seus trabalhos históricos lhe conferissem direitos nobiliárquicos os quais ele nunca deixaria

de mencionar e exigir.220

Em algumas cartas a D. Pedro II, Varnhagen relatava os desafios que ocupavam o seu

ofício por conta das sucessivas mudanças devido às obrigações diplomáticas. No Brasil ficara por pouco

tempo, a maior parte da sua Historia geral do Brazil foi escrita em Portugal e Espanha. Na missiva de 02 de

maio de 1852, já em seu posto na legação de Madrid, o historiador-viajante escrevia ao seu soberano

interlocutor comunicando a sua instalação e a expectativa da chegada dos papéis e livros necessários para

continuidade à sua cara história:

Até agora os negocios d’officio e o ter de instalar-me em nova casa, e que me

occupar nella do arranjo e classificação de meus livros e papeis, tem-me tomado

tanto tempo que pouco tenho podido dedicar-me à minha cara historia, para

proseguir a qual prefiro tambem que me cheguem alguns papeis e livros que,

com uma parte de minha bagagem, partiram, com direcção, a Málaga, no navio

218 Além da já conhecida carta de 18 de julho 1852, na qual expôs ao seu privilegiado interlocutor a orientação que havia adotado na redação da Historia geral do Brazil, dando destaque para os atributos eruditos, filosóficos e literários necessários ao historiador, Varnhagen escreveria ao imperador com a intenção de fazer uma espécie de diário da escrita do livro. 219 Para Laura Nogueira Oliveira, o historiador acreditava ser imprescindível esclarecer a seu privilegiado destinatário que a escrita da [História geral do Brazil] fora realizada de maneira muito premeditada e cuidada. Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 66. 220 Taíse Tatiana Quadros da Silva, A reescrita da tradição: a invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857), op. cit., p. 113.

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S. Pedro, que saíu à vela do Rio de Janeiro, no mesmo dia em que eu com o

vapor “Tay”, e que, se não se perdeu (o que Deus não permitta), já traz mais de

quatro mezes de viagem. Também necessito dar uma nova chegada à

bibliotheca de Paris, mas não me atrevo a requerer, por ora, para isso licença a

V. M. I.221

A demora das notícias sobre a embarcação, que trazia suas anotações, cópias de

documentos e livros e a possibilidade de uma tragédia em alto mar, deixaria Varnhagen atordoado com a

idéia de ter perdido parte considerável das informações e fatos colhidos em pesquisas arquivísticas de

mais de uma década de vida.222 Na carta de 29 de junho de 1852, ele compartilharia com o imperador as

lacunas deixadas pela falta do material que estava na sua bagagem:

No prosseguimento da minha Historia algumas vezes me tenho visto

embaraçado com a falta de um que outro livro ou documento dos que vinham no

barco S. Pedro, do qual apenas sei que na lat. 1º, 4’ havia sido socorrido de

algum mantimento que pediu a um navio francez que encontrou.223

Ao relatar este tipo de infortúnio, Varnhagen demonstrava ao seu interlocutor que além dos

dotes de erudito, filósofo e literato, tinha que contar com a sorte para os imprevistos, o que reforçava o seu

discurso de uma tarefa árdua. As cartas sempre insistiam na marcação das dificuldades enfrentadas para a

concretização da sua Historia geral do Brazil, o que em determinadas situações abria brechas para pedidos

de ajuda do seu soberano. Na missiva, por exemplo, de 07 de fevereiro de 1853, ele pediria auxílio

financeiro do governo imperial para dar início à edição do livro e licença para ir à Paris cuidar

pessoalmente do assunto com os editores.

Não sei se terei dinheiro para realizar (provavelmente em Paris, onde muito

conto com o auxílio e informações dos artistas do Sr. Ferdinand Denis) uma

edição digna do século em que vivemos. Entretanto para uma empreza destas

eu não devo deixar de contar, em caso de necessidade, com a protecção do

221 Carta ao imperador D. Pedro II, 02 de maio de 1852, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 180. 222 Segundo seu bíógrafo, quando já todos a julgavam perdida, a goleta S. Pedro aportou a Málaga a 18 de agôsto de 1852, com sua carga salva. Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 180, nota 1. 223 Carta ao imperador D. Pedro II, 29 de junho de 1852, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 186.

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governo e em todo caso conto, e creio que conto bem com a Munificência de V.

M. I.

Se para o verão, em que toda a Corte abandona Madrid, me fôr permittido

chegar a Paris, inspeccionarei os trabalhos de que promptamente começarei a

cuidar, no caso de que V. M. I., sabendo que sou incapaz de abusar, For Servido

Dar-me a tal respeito suas ordens.224

As cartas seguintes aos pedidos indiretamente indicavam que os mesmos haviam sido

atendidos pelo monarca, o que deixa mais do evidente a importância da tutela do monarca para a

realização do seu projeto intelectual, pois ela libertaria o historiador do domínio dos editores e da política

de favores de terceiros. A proteção monárquica, representada pelos gestos de acolhimento das demandas

do súdito, significava o reconhecimento dos seus méritos como homem da letras e um tom de oficialidade

na sua escrita.

O historiador sorocabano era investido, por este raciocínio, na condição de uma espécie

porta-voz de uma narrativa verdadeira da história do Brasil, ao menos daquela comprometida com o poder

político que a financiava. Para Taíse Tatiana Quadros da Silva, a autonomia do saber histórico do IHGB,

traduzida pelo caso de Varnhagen, seria dependente da vinculação com processo de centralização do

poder do Estado monárquico:

Tanto o Instituto quanto o historiador seriam diretamente protegidos por D. Pedro

II que se manteria interado dos projetos da associação não apenas enquanto

mecenas, mas como sócio honorário da agremiação protegida. (..) A confecção e

a leitura da história conformariam as expectativas sobre as condições políticas,

servindo como diagnóstico e dispondo de prognósticos para a jovem nação. Na

experiência literária de Varnhagen esta nova tarefa da escrita historiográfica

determinaria a construção de sua narrativa. “Escrita – memória” e “escrita –

pragmática”, a história nacional fundiria tanto aspectos da cultura letrada

emergente do romantismo, quanto da proposta política legitimada pelo emprego

224 Carta ao imperador D. Pedro II, 07 de fevereiro de 1853, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 197.

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de uma metodologia eficaz no levantamento das condições sociais e do território

brasileiro.225

Depois de recuperada a sua bagagem com os livros e documentos, Varnhagen iniciou um

processo de arquivamento dos rascunhos da Historia geral do Brazil, temendo os desastres das sucessivas

viagens e mesmo a idéia recorrente de ser acometido por doença e morte. Ele seria acometido pelo mal de

arquivo, ou seja, a compulsão de guardar fragmentos da própria vida, que naquele momento se traduzia no

livro. Aquela obra seria o passaporte para a sua consagração intelectual e a prova maior de seu amor à

pátria e de fidelidade ao imperador. A possibilidade do limite imposto pela morte, como lembrou Jacques

Derrida, alimentava o medo de seu trabalho ficar inconcluso ou mesmo de cair no esquecimento.226

Arquivá-lo e indicar um tutor para a levá-lo adiante, em caso de óbito, foram os passos seguintes dados

pelo visconde de Porto Seguro.

À medida que a publicação se aproximava do seu fim, a pulsão de morte se alastrava

pelos pensamentos e, conseqüentemente, encontravam espaço para manifestação em sua

correspondência. Na missiva a D. Pedro Sabau y Larroya (1808-1879), secretário da Real Academia de

História de Madrid, de 06 de maio de 1853, pediria o arquivamento naquela instituição de cópia da Historia

geral do Brazil para que não corresse mais o risco de confiá-la as ondas em razão das sucessivas viagens.

Além de solicitar a guarda da obra, Varnhagen fez algumas prescrições como a preservação da identidade

de sua autoria:

Não querendo expor de novo este trabalho que resume quanto em minha

colleção há de mais precioso, às contingencias das viagens e dos tempos, e da

minha propria existencia, e desejando antes de tudo salvar, em favor da Historia,

os factos que ahí se apuram, sobretudo quando peso fazer imprimir essa obra

fòra de Hespanha, fiz tirar uma copia, afim de mandal-a à impressão, guardando

commigo original.

Imaginando porém que este (que se acha encadernado em dois grossos

volumes de folio) poderia ficar melhor depositado na rica bibliotheca de

manuscriptos da Real Academia de Historia, de que V. Sª é digníssimo

Secretário, a qual tem por um dos principaes fins de sua Instituição reunir e

225 Taíse Tatiana Quadros da Silva, A reescrita da tradição: a invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857), op. cit., p. 69. Para compreender a relação entre monarquia e IHGB, conferir: Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, op. cit. 226 Jacques Derrida, Mal de arquivo: uma impressão freudiana, op. cit., p. 32.

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salvar do extravio os documentos históricos, sobre tudo tendo, como uma

Historia do Brazil, tantos factos que pertencem simultaneamente á Historia d’este

Reino cujos reis n’aquelle Estado dominaram por 60 annos, vou rogar-lhe o favor

de pedir, com a devida vênia, a necessária licença a essa sabia corporação, afim

de que ella auctorize a V. Sª ou ao Sr. Bibliothecario, a (mediante um recibo)

acceitar o dito original, por mim antes competentemente sellado a sua vista; com

a única clausula de se dever me conservar fechado por dez annos, se antes o

não houver eu resgatado, como espero, com um exemplar impresso, e

authenticado com a minha assignatura: ou se não me fôr urgente abril-o, alguma

vez, afim de o consultar.

Conclúo pedindo a essa corporação pela liberdade que tomo, e rogando a V. Sª

o favor de calar o meu nome, se alguem houver de dar publicamente conta deste

meu pedido; por quanto estou na idéa de imprimir a dita Historia, declarando

somente ser ella escripta por um sócio effectivo do Instituto Histórico e

Geographico do Brazil.227

A decisão de arquivar um exemplar da Historia geral do Brazil seria comunicada ao

imperador numa carta também marcada pelas sombras do medo da morte. Varnhagen confidenciava a D.

Pedro II que tomava aquela decisão porque temia que a sina de mortes repentinas na sua família cruzasse

o seu caminho. As ameaças do extravio e da morte eram os inimigos que ele tentava vencer, procurando

garantir os meios para a realização do seu projeto historiográfico a todo custo. Assim como na carta a D.

Pedro Sabau y Larroya, ele retomou o argumento do incomensurável serviço que havia tido para fazer as

pesquisas necessárias para a escrita do livro. Insistia que ali estava o fruto de um trabalho de abnegação,

ou seja, de renúncia aos prazeres e alegrias da vida:

Meu Senhor! Na minha anterior participei a Vossa Magestade Imperial que

acabava de escrever o último capítulo da nossa Historia Geral. Desde então não

tenho aberto mão dos necessários retoques, correcções, e da redacção das

notas que vão no fim dos dois volumes.

Esta última tarefa ainda não está concluída; mas como a Academia da Historia

admittio a minha proposta de acceitar o original em depósito, e já lhe está lá mais

227 Carta a D. Pedro Sabau, secretário da Real Academia de História de Madrid, 06 de maio de 1853, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 204-205.

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de um mez, não é facil extraviar-se; e uma pessoa de saber e consciencia e bom

amigo com o Dr. Silva, ou outra que V. M. I. indicasse, se encarregaria, se eu

faltasse, da impressão e das correcções em algumas irregularidades, que, as

vezes, só nas provas da imprensa se deixam ver.

Penso, meu senhor, tantas vezes nestas prevenções; porque pertenço a uma

familia, em geral pouco feliz; porque perdi, na flôr da idade, meus dois irmãos

mais velhos; e porque, ainda o outro dia teve que dar graças a Deus por me

haver deixado vivo, e sem desastre maior, ao ir de bruços ao chão, por occasião

de escorregar e caír o cavallo que eu montava, em Aranjuez; facto este que,

ainda para mais o soffrer, a voz geral em Lisboa converteu em um duelo.

Demais: quando me lembro do trabalho que tenho tido em juntar documentos,

quasi desde a minha infancia (tal que me faltara hoje o animo para começal-o

segunda vez), e dos estudos históricos a que me tenho dedicado, sinto quase a

convicção de que [se] os meus trabalhos se perdessem, ficaria a nossa historia

ainda por depurar de erros, -- quem sabe por quanto tempo...228

Nas cartas enviadas ao monarca, Varnhagen oferecia detalhes do andamento da sua obra

passo a passo. A cronologia, os temas e os impasses da escrita eram compartilhados com o seu ilustre

leitor. Em outros momentos, como já foi observado, procurava granjear uma viagem ou uma licença com a

finalidade de visitar um arquivo para conferir documentos ou livros que ajudassem a preencher lacunas na

Historia geral do Brazil. O mecenato de D. Pedro II era uma pré-condição para a concretização do seu

monumento historiográfico. O livro precisava da aceitação do imperador e, portanto, havia de agradá-lo.

Ela tinha de evidenciar a verdade desejada pelo Segundo Reinado, ou seja, de um passado ressignificado

que legitimasse as escolhas e decisões do tempo presente.

Desta vez posso ter a consolação de dizer afoutamente a Vossa Magestade

Imperial que a Historia do Brazil avança a passos largos. Comecei-a toda de

novo em limpo, dando a alguns pontos mais desenvolvimento, sobretudo na

parte descriptiva, ajudado pelas impressões que adquiri ultimamente, e as quaes

consegui incutir, sobretudo ao descrever as fundações de S. Vicente,

Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Vão escriptos vinte e seis grossos

228 Carta ao imperador D. Pedro II, 08 de julho de 1853, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 205-206.

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cadernos todos numerados e em estado de se puderem imprimir se me

succedesse alguma desgraça. Comprehendem a parte mais importante e mais

desorganizada até agora da nossa historia, a qual espero poder ter daqui a anno

e meio completa. Dou uma sufficiente idéa da cultura, lingua e legislação

portugueza na época da colonização para melhor se apreciar o primitivo

regimem municipal das nossas capitanias.229

Nas missivas de 02 de dezembro de 1852 e de 07 de fevereiro, por exemplo, Varnhagen

retomaria o assunto da escrita da sua história geral não apenas para mantê-lo informado, mas também

para lembrá-lo que a sua empreitada era resultado de horas diárias de dedicação. O tamanho da tarefa de

organização do passado brasileiro exigia tempo e esforços que deveriam em algum momento ser

reconhecido pelo próprio imperador:

Senhor! Com Vossa Magestade Imperial tanto no pensamento em todo o dia de

hoje, agora que, pela noite, me vou dedicar à tarefa quotidiana de me occupar do

nosso passado, não posso deixar de dirigir a Vossa Magestade Imperial algumas

linhas por occasião do Seu Anniversário, assegurando em particular, como o fiz

já officialmente, que sigo fazendo os mais ardentes votos pela saúde e vida de V.

M. I. e de Sua Augusta Familia.

A Historia do Brazil está já em 1654. Capituralam os Hollandezes e foram-se

embora. A esta celebre guerra de trinta annos dediquei tres capitulos, que creio

mais que sufficientes para não ser aqui, só por que haja mais historiadores, mais

minucioso do que antes ou depois, Ao conde de Nassau, primeiro Principe das

casas reinantes da Europa que poz os pés na América, e a cuja só presença

Pernambuco deveu tanto, depois de haver tanto soffrido de seus invasores,

dedico um desses capítulos e talvez que, com o retrato do Principe, o farei

brevemente publicar em separado.

Já Vossa Magestade vê que não estou ocioso. Seguindo como até aqui,

sobretudo agora que o caminho é mais facil, ainda espero que dentro de um

229 Carta ao imperador D. Pedro II, 29 de junho de 1852, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 185.

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anno terei chegado à declaração da Independencia e do Imperio, onde conto dar

fim; visto que o resto já tem muito de contemporâneo.230

Na nossa Historia sigo trabalhando seis a oito horas por dia, e já estou no

período de 1715 a 1750, período cuja gloria principalmente pertence aos

Paulistas, e os assumptos importantes às provincias de Minas, Goyas, e Matto

Grosso, concluindo com 1º tratado de limites. O período seguinte abrangerá até

o 2º tratado de limites, isto é até 1777, e virá a compreender o reinado de elrei D.

José, e por conseguinte a administração do Márquez de Pombal. Já a Historia

nesta altura se emancipa dos nomes dos Governadores (às vezes

obscuríssimos) que cada trez annos se mudavam nas differentes capitanias.

Esses roes de nomes pretores os darei talvez no fim da obra para poderem

servir alguma vez à chronologia. O que escrevi até 1654 acha-se já tudo de novo

copiado em tres livros que formarão talvez o 1º tomo da obra impressa, e que

leio de quando em quando para apurar mais a redacção.

Agora creio poder afoutamente dizer que daqui a alguns mezes espero ter

concluido, consentindo-o Deus, a minha empreza, e tanto estou nesta persuação

que deseja ir já tratando, senão da impressão pelo menos dos mapas e gravados

com que tenho de acompanhar a obra, (...)231

Nessas cartas se pode identificar a presença de três temas importantes no enredo

temático da sua Historia geral do Brazil: o início da colonização, as lutas contra os holandeses e o desenho

das fronteiras. A eleição destes episódios do tempo colonial ilustraria a intenção de constituir uma narrativa

a partir da perspectiva portuguesa.

Os colonizadores, como será analisado no próximo capítulo, seriam os motores da

construção da civilização nos trópicos. A fundação das primeiras cidades seria o início das marcas de

conquista e domínio do território brasileiro. O Brasil nação seria herdeiro das possessões da ex-metrópole

Portugal. Segundo Helena Miranda Mollo, a história varnhageniana seria entendida como a sucessão

natural dos fatos. Logo, a história da colonização portuguesa e a construção do Estado brasileiro se

230 Carta ao imperador D. Pedro II, 02 de dezembro de 1852, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 193-194. 231 Carta ao imperador D. Pedro II, 07 de fevereiro de 1853, Carta ao imperador D. Pedro II, 02 de dezembro de 1852, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 195-196.

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entrelaçam, não se oferecendo como oposição na obra do historiador sorocabano; ao contrário, afinam-se

em certo concerto.232

A história da invasão e da expulsão dos holandeses ganharia contornos de mito fundador

da nacionalidade brasileira na sua obra. O sentimento de brasilidade, para Varnhagen, teria seu momento

instituinte na luta contra os holandeses no Nordeste. As figuras do índio Poty, do negro Henrique Dias e do

branco Vidal Negreiros seriam elevados à condição de heróis da epopéia brasileira em defesa do território

da colônia, planta da futura nação. Ele comporia as imagens deste fato com base nas fontes inéditas

colhidas pessoalmente nos arquivos da Holanda.

No contexto dos conflitos do Prata (1864-1870), Varnhagen retomaria o tema da expulsão

dos holandeses, como uma forma de campanha de motivação dos brasileiros nos campos de batalha, com

a composição da sua Historia das lutas com os hollandezes no Brazil desde 1624 a 1654.233 Ao buscar um

exemplo de grande vitória do passado, ele procurava fortalecer o ânimo dos compatriotas diante dos

reveses nos campos de batalha.

A questão das fronteiras estaria presente nas páginas da sua obra principal e na memória,

intitulada As primeiras negociações diplomáticas respectivas ao Brasil, publicada postumamente nas

páginas da Revista IHGB.234 Ao lado da operação historiográfica varnhageniana estava a diplomática.

Fazia parte das suas atribuições produzir, com base nos vestígios do passado, um saber que justificasse a

posse brasileira do território e o desenho dos limites das fronteiras, principalmente num contexto de

contendas com nações vizinhas como o Paraguai. 235

Os documentos colhidos nos arquivos e bibliotecas serviriam como provas para os

interesses do Império na mesa de negociação dos tratados de limites. A temática dos tratados do século

232 Helena Miranda Mollo, História Geral do Brasil: entre o espaço e o tempo, in: Wilma Peres Costa e Cecília Helena de Salles Oliveira (orgs.), De um império a outro: estudos sobre a formação do Brasil, séculos XVIII e XIX, São Paulo, Hucitec; FAPESP, 2007, p. 99-100. 233 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia das lutas com os hollandezes no Brazil desde 1624 a 1654, Nova edição melhorada e acrescentada, Lisboa, Typographia de Castro Irmão, 1872. 234 Conferir: Francisco Adolfo de Varnhagen, As primeiras negociações diplomáticas respectivas ao Brasil, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 65, 1902, p. 425-453. 235 Segundo Teresa Malatian, desde o século XIX a relação entre Estado monárquico e produção historiográfica aprofundara-se e manifestava-se na prática por meio do uso do serviço diplomático como suporte institucional para a construção da memória nacional. Varnhagen – como exemplo expoente deste projeto – realizou amplo levantamento documental na Torre do Tombo e prosseguiu suas pesquisas em arquivos holandeses, espanhóis, paraguaios e austríacos, associando diplomacia e história. Entre as fontes coletadas sob o patrocínio do IHGB adquiriu representatividade a documentação considerada necessária à história diplomática, tanto no que se refere às relações com os países hegemônicos com os quais o Brasil manteve relações políticas significativas desde sua independência, quanto no atinente à demarcação de fronteiras. Teresa Malatian, Oliveira Lima e a construção da nacionalidade, Bauru, EDUSC; São Paulo, FAPESP, 2001, p. 10.

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XVIII teriam espaço significativo nas páginas da sua Historia geral do Brazil, o que explicaria o destaque

dado ao assunto na sua carta ao imperador.236

Ao abordar exaustivamente os tratados de limites feitos e desfeitos, entre 1750 e 1777,

para a definição das fronteiras entre os domínios de Portugal e Espanha, Varnhagen – também como

diplomata – tinha os olhos voltados para as questões do seu presente – a necessidade de por um ponto

final nas disputas pelo desenho definitivo das fronteiras do Império, em especial com o Paraguai.

Evidenciar no passado a presença e domínio português nestas partes ditas distantes da antiga colônia era

uma forma de produzir uma verdade histórica, militar e jurídico-diplomática para os interesses do Império

brasileiro.237

Na Historia geral do Brazil, à guisa de ilustração, o visconde de Porto Seguro registrou

como o Império Português documentou e produziu um conhecimento sobre os terrenos fronteiros à época

do tratado de 1777 – Tratado de Santo Ildefonso – elementos necessários para a sua defesa do legado

territorial da metrópole para a nova nação:

Com as viagens, as observações e as discussões dos comissarios, engenheiros

e astronomos, tanto se adiantou no conhecimento dos terrenos fronteiros, que

ainda hoje são talvez elles do Brazil o que ha de mais conhecido e exactamente

delineado nas cartas, depois das costas e bahias. – Por este lado as duas

tentativas de demarcação (bem que as demarcações não se levassem ávante)

produziram beneficio real, pois quanto ao mais, no fim do século passado, pela

linha da fronteira, havia nada menos que dez paragens disputadas.

Alem das muitas plantas originaes, principalmente dos rios, merecedoras de todo

conceito, que existem nos nosso archivos [no archivo militar, secretaria dos

negocios estrangeiros e Inst. Hist. do Rio de Janeiro], possuímos todas as

correspondencias; as quaes, quando sejam publicas, comparadas com as 236 Embora objeto de interesse e reflexão de Varnhagen na Historia geral do Brazil, de sua correspondência ativa e de outros escritos, a temática das fronteiras não foi abordado nesta pesquisa com um olhar mais detido porque requereria uma discussão específica, articulando aspectos relacionados à história e diplomacia. Cabe destacar que a (re)leitura do visconde de Porto Seguro acerca dos tratados dos limites do século XVIII entre as coroas portuguesa espanhola, bem como o culto à figura do Marquês de Pombal como modelo de governante, a partir das questões geopolíticas vividas pelo Império brasileiro, constitui-se em um dos possíveis futuros desdobramentos deste estudo. O que se oferece nos parágrafos seguintes são alguns apontamentos. Para uma descrição da atuação diplomática de Varnhagen, conferir: Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen (continuação do número anterior), RIHGB, Rio de Janeiro, vol. 225, out./dez. 1954, p. 120-185 (Capítulo III). 237 Segundo Francisco Doratioto, no delicado jogo de xadrez da geopolítica que desencadeou a guerra contra o Paraguai, a diplomacia imperial – da qual Varnhagen fazia parte – buscava alcançar três objetivos: o primeiro, decisivo para a província de Mato Grosso se comunicar com a corte no litoral, era a obtenção da livre navegação do rio Paraguai; o segundo era buscar definir um tratado de delimitação de fronteiras com o país guarani, ratificando a expansão territorial brasileira ocorrida desde os tempos da colônia; e, por último, evitar uma possível incorporação do Paraguai pela Argentina restabelecendo-se assim um Estado que corresponderia ao antigo vice-reino do Rio da Prata. Francisco Fernando Monteoliva Doratioto, Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p. 471.

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declamações dos visinhos, deixarão claramente ver que não tinham razão de

queixar-se.238

Além de historiador, Varnhagen era um homem de Estado, um funcionário público dos

quadros do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os seus atributos como pesquisador de documentos

relativos ao passado da nação em arquivos seriam ingredientes importantes nos projetos geopolíticos do

Estado imperial. Como observou Taíse Tatiana Quadros da Silva, na confluência de diversos papéis –

historiador, letrado, membro do IHGB e diplomata – emergiria, em conjunto com a sua obra, a identidade

intelectual e política do visconde de Porto Seguro.239

Finalizada a escrita da Historia geral do Brazil, Varnhagen se dedicaria à busca dos meios

de publicá-la e fazê-la conhecida e prestigiada na cidade letrada. E mais uma vez contaria com a proteção

das mãos do imperador. Em carta de 06 de maio de 1853, a novidade era anunciada a D. Pedro II com a

ressalva de que não teria conseguido fechá-la com o ano de 1825, compreendendo a promulgação da

Constituição e o reconhecimento do novo Império por parte de Portugal. Alegava que esses fatos, muito

recentes na memória dos personagens ainda vivos, não poderiam ser tratados naquele momento: Tão

espinhosa é por enquanto a tarefa da imparcial narração desse período, sobretudo para um nacional.

Daqui a poucos annos não o será. 240

A recusa de Varnhagen em abordar temas recentes da história política do Império,

seguindo a leitura de Lucia Maria Paschoal Guimarães, corroboraria uma prática recorrente dentro do

IHGB. Quanto à necessidade recordar e, conseqüentemente, aos perigos do que abordar nas páginas da

Revista, os sócios do grêmio tomaram decisões sobre a conveniência de tornar públicos determinados

documentos e memórias: Arquivar fontes cuja veiculação prejudicava a imagem de determinados sócios.

Censurar obras que apresentassem versões de episódios históricos incompatíveis com o projeto político

em curso. Instituir a arca do sigilo.241

Ao pedido feito nesta mesma carta para que a obra fosse impressa em Paris com o

patrocínio do imperador, Varnhagen teria uma resposta afirmativa. Em outras missivas ele acertaria as

238 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral Brazil, tomo II, Madrid, Imprensa da V. de Dominguez, 1857, p. 259. 239 Taíse Tatiana Quadros da Silva, A reescrita da tradição: a invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857), op. cit., p. 69. 240 Carta ao imperador D. Pedro II, de 06 de maio de 1853, Carta ao imperador D. Pedro II, de 07 de fevereiro de 1853, Carta ao imperador D. Pedro II, 02 de dezembro de 1852, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 201. 241 Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, op. cit., p. 516.

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questões necessárias para a edição da sua obra, oferecendo detalhes sobre a seleção das gravuras, a

revisão dos textos e os cuidados com a qualidade do papel.242

Na carta de 28 de fevereiro de 1854, ele encaminharia a D. Pedro II o índice da Historia

geral do Brazil já no prelo para a sua ciência e pediria, na medida do possível, que o mesmo fosse

apresentado aos consócios em sessão do IHGB.

Senhor! Mando a Vossa Magestade Imperial o adjuncto índice da minha Historia

Geral já no prelo. Ainda que durante a impressão ella será alguma vez alterado,

dá uma idéa do todo, e a ninguem antes que a V. M. I. devia eu communical-o,

quando a obra é tanto Sua.

Vossa Magestade Resolverá se convem fazel-o conhecido por meio da Revista:

Em todo caso creio que nada se perderia que fosse lido em Sessão do

Instituto.243

O desejo de ver o índice lido para os membros da associação carioca tinha a intenção de

criar a expectativa da publicação da obra e granjear o seu acolhimento como uma publicação oficial por

meio da chancela da casa da memória nacional. Além da tutela do monarca, Varnhagen contava com uma

recepção calorosa do IHGB. A sua aceitação entre os pares do grêmio era um trunfo para a sua

consagração intelectual. A Historia geral do Brazil, sob a sua proteção, poderia alcançar lugar de respeito

entre as instituições congêneres dentro e fora das fronteiras do Império. Segundo Taíse Tatiana Quadros

da Silva, a proteção monárquica, sinalizada na aceitação (..) por D. Pedro II, e, sua vinculação ao instituto

como obra oficial, configurariam uma espécie de autoria, que elevaria mais alto o estatuto da História

varnhageana.244

Por intermédio das missivas ao imperador e a alguns interlocutores do IHGB, o historiador-

diplomata travaria uma batalha para que a sua vontade se concretizasse. Não faltaram argumentos e

242 De acordo com Varnhagen, por exemplo, em carta de 28 de fevereiro de 1854: Ainda não me desvencilhei de todo das tareas da minha, até certo ponto, malfadada edição. Faltou algum papel igual e tive que encarregal-o; e agora espero as últimas gravuras que devem chegar de Paris. Depois virão ainda as difficuldades dos transportes daqui até um porto de mar, dahí para o rio; o embargo nas nossas alfândegas;... e por fim a crítica. Confesso que às vezes chego a esmorecer. Chego a crer que para o 2.º volume melhor me aproveitariam, senão alguns mezes de licença, que aliás não posso pedir sem desvantagens, ao menos várias semanas de estada no imperio, se viesse a caber-me acesso para alguma das Legações na América do Sul. Carta ao imperador D. Pedro II, 12 de janeiro de 1855, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 217. 243 Carta ao imperador D. Pedro II, 28 de fevereiro de 1854, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 214. O índice da Historia geral do Brazil foi feita na sessão de 07 de julho de 1854 pelo segundo secretário, conforme consta na respectiva ata – RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 27, 1854, p. 596. 244 Taíse Tatiana Quadros da Silva, A reescrita da tradição: a invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857), op. cit., p. 128.

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apelos nesta direção. Na missiva ao conselheiro e consócio José Maria Velho da Silva (1811-1901), por

exemplo, relatava a sua alegria em saber a aprovação positiva que a sua Historia geral do Brazil recebera

do sensor da agremiação:

Ilmo. Exmo. Sr. Tenho presente a carta de 13 de Agosto com que V. Exª me

honrou, e fico por ella sciente das ordens de Sua Magestade acerca da Historia

do Brazil.

Quanto ao pensamento do anonymo não era temor da responsabilidade que me

levava a adoptal-o; eram outras miras de abnegação, que serão devidamente

presentes a Sua Magestade, bem que, desde já, como disse, me dou por sciente

de quaes sejam Seus Augustos Desejos. (...)

Como entretanto a minha obra sáe, por assim dizer, do Instituto Histórico, de que

o Sr. Dr. Silva é tão abalizado censor, aproveitei de uma chegada que fiz a Haya

(com intento de verificar nos archivos certas passagens da obra do Sr. Netscher)

e ahí tive occasião, nos poucos dias que me demorei, de lhe fazer conhecer o

plano geral della, e até de lhe ler vários capítulos; principalmente àcerca do

domínio hollandez; e lisongeio-me de haver encontrado não só sua approvação,

como a maior franqueza, segundo, a todo o tempo, se verá nos logares da minha

obra, em que de seu nome faço honrosa menção pelos documentos por elle

buscados nos archivos de Haya durante sua residencia, que me proporcionou

tão generosamente como o paiz devia esperar de seu patriotismo e eu de sua

amizade.245

No esboço da dedicatória, que seria incluída no tomo I da História geral do Brazil, caso o

imperador aprovasse, Varnhagen já havia deixado claro a intenção de que o seu livro fosse uma obra

oficial do IHGB. Ele sabia que dependia da mão imperial de D. Pedro II para atingir tal finalidade e, por isso

mesmo, fez uso do texto em sua homenagem para convencê-lo:

Senhor! O Brasil todo sabe que ao generoso amparo de V. M. I. deve o seu

Instituto Histórico a existencia e que V. M. I. delle Immediato Protector de fato,

Chegou a Conceder-Lhe no proprio Paço Imperial a salla em que celebra suas

245 Carta ao conselheiro José Maria Velho da Silva, 23 de outubro de 1853, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 207-208.

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sessões, às quaes V. M. I. Se Digna Assistir, muitas vezes, no intuito de

fomentar o estudo da Historia Patria.

A presente obra que aspira à honra de ser considerada produção d’aquella

associação, a cujas publicações e estímulos, devido a V.M.I., confessa devedora

de suas melhores páginas, ufana-se de receber de V. M. I. pela acceitação desta

Dedicatória a não merecida concessão de ser tambem della Immediato Protector

e Protector Immediato do Instituto Histórico – O Augusto Defensor Perpetuo do

Brazil.

E a posteridade, a quem prazendo a Deus, chegará ella por emquanto resumida

“Historia do Brazil” – pela qual se vai alistar, bem que em último logar, e

anonymo, no Catalogo dos escriptores sobre a Terra de Sancta Cruz, o seu

auctor, infimo socio effectivo do Instituto Histórico, dirá, e dirá com verdade, que

não foi esta publicada por ambições de glorias que nunca recompensão tantos

afans que se passaram, tantos doestos que se recebem, sabendo que o mesmo

auctor foi impellido por sentimentos muito mais elevados: -- a escrevel-a pelo

mais puro amor da pátria; -- a publical-a em vida por inteira dedicação e

obediencia a sagrada pessoa de V. M. I., Cujo reinado (que offerece já assunpto

a brilhantes páginas dignas da Historia) imploramos todos os fieis subditos ao

Altíssimo que perpetue por dilatados annos para gloria sua, esplendor do Throno

americano e felicidade do Brazil.

As Imperiaes mãos de V.M.I.

[beija o mais humilde e leal súbdito F. A. de V.]246

Em outras cartas, o visconde de Porto Seguro retornaria ao assunto da necessidade da

sua Historia geral do Brazil ser publicada como uma obra oficial do IHGB e patrocinada pelo imperador.

Sugeria que o seu nome fosse suprimido e apenas aparecesse a informação de autoria de um sócio

anônimo do grêmio. A legitimidade do seu livro sempre passava pelo reconhecimento da casa da memória

nacional. Em carta ao monarca, de 05 de fevereiro de 1854, Varnhagen alegaria a peculiaridade do seu

nome como um perigo para que a obra fosse fruto de mãos estrangeiras. Para convencer o seu soberano

da confusão possível, recorreu ao episódio da primeira audiência com os familiares de D. Pedro II, na

246 Dedicatoria da Historia Geral do Brazil ao Imperador Dom Pedro II, anexa à carta ao imperador D. Pedro II, 06 de maio de 1853, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 202-203.

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Espanha, quando os Augustos Senhores imaginaram que o sobrenome Varnhagen seria de um holandês e

não de um brasileiro:

Confesso que por esta occasião se me justificou uma apprehensão que

sepultava no fundo d’alma e que não contava revelar a ninguem por escripto;

mas que agora me decido a transmittir a V. M. I., de cuja circunspecção e

reserva sou tão grande admirador. – Para V. M. I. o assumpto será de certo

grave e sério; ao mesmo tempo que tudo assim é neste mundo. Sabe agora V.

M. I. uma das razões por que eu queria omittir o meu nome na Historia Geral do

Brazil, deixando até de assignar a dedicatoria. Sem o meu nome a obra seria

apenas de um brazileiro ou do Instituto H. do Brazil; e, por conseguinte, de todo

o Brazil.247

Na mesma missiva, Varnhagen, como de praxe, sugeriria ao imperador que a polêmica

sobre seu nome poderia ser resolvida por meio de uma graça, ou melhor, de um título que o abrasileirasse.

Em tom de certa humildade, argumentava também que, uma vez traduzida a Historia geral do Brazil para

outras línguas, poderia surgir erros de identificação da nacionalidade da autoria por parte dos eruditos

estrangeiros:

Toda a modestia não é bastante para que eu não reconheça que a Historia do

Brazil, ao menos em muitos de seus períodos, fica com a minha obra de uma vez

escripta, e que ella viverá (a obra) eternamente, e fará eternamente honra, Deus

mediante, ao Brazil e ao reinado de Seu Excelso Protector. Mais: será

naturalmente traduzida, e já para o allemão se me offereceu a fazel-o o proprio

Martius. Afinal resultará que citarão, e como nem todos são eruditos, nem se

occupam de biographias, o meu nome (que Deus sabe se ainda no futuro algum

acto de graça expontanea de V. M. I. terá de brazilianizar com fez aos Brandts),

citado só por si, não se associará por muita gente logo ao Brazil; pois V. M. I.

sabe quanto o público, o universo todo se leva por nomes e outras imagens

externas.

247 Carta ao imperador D. Pedro II, 05 de fevereiro de 1854, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 213.

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Quisera possuir alguma arte magica com que pudesse fazer agora V. M. I. ler no

fundo do meu coração para bem se compenetrar de quanto digo e de quanto me

calo...248

O desejo de anonimato de autoria, manifesto na carta a D. Pedro II, teria sido feito ao

conselheiro José Maria Velho da Silva, da mordomia do palácio, alegando que não se tratava de um temor

da responsabilidade, mas de abnegação. No entanto, registrava que o seu intento só seria viável se fosse

dos Augustos Desejos do imperador.249 Neste sentido, Varnhagen parecia tentar buscar adesões dentro da

cidade letrada e de pessoas próximas ao monarca com a finalidade de trazer a chancela de oficialidade

para o livro.

Em não conseguindo atingir seus objetivos de ver sua obra como uma publicação do

IHGB, Varnhagen reescreveria sua dedicatória, amenizando o tom de autoproclamação de oficialidade,

embora não deixando de registrar que sua Historia geral do Brazil era fruto das mãos de um fiel súdito de

D. Pedro II, seu soberano e protetor. Ao contrário do que projetara, na capa do livro aparecia sua autoria, a

dedicatória ao monarca e nome casa editorial responsável pela publicação do livro. No lugar do seu nome

não se apresentou a marca do IHGB.250

Na carta de 20 de junho de 1855, Varnhagen (o escritor) ofertaria de fato a D. Pedro II (o

soberano) a Historia geral do Brasil (o monumento) com a dedicatória revisada e o pedido de acolhimento

para a sua circulação e aceitação na cidade letrada:

Senhor! Ao levar finalmente à Augusta Presença de Vossa Magestade o Primeiro

Tomo impresso da Historia Geral, começo por implorar toda a indulgencia de V.

M. I., e conto com ella como maior consolo Às criticas que possam sobrevir. E

reconhecendo em V. M. I. a illustração, o patriotismo e a imparcialidade reunidos

como em ninguem, imploro tambem agora a Sua Soberana Censura,

submettendo-me desde já a toda suppressão ou mudança que V. M. I. possa

julgar conveniente: Ouso entretanto rogar a V. M. I. a especial mercê de guardar

o possivel segredo àcerca da recepção deste exemplar, pois que podendo ainda

248 Carta ao imperador D. Pedro II, 05 de fevereiro de 1854, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 213-214. 249 Carta ao conselheiro José Maria Velho da Silva, 23 de outubro de 1853, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 207. 250 Para Roger Chartier, como nas páginas de rosto, cada obra é assim referida em três nomes próprios: o do autor, o de quem é dedicado e o do livreiro ou editor-impressor, redobrado por sua marca. Roger Chartier, A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII, Brasília, Ed. da UnB, 1999, p. 47.

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tardar no caminho o primeiro caixão em que vão remettidos os outros à caza de

Laemmert (que os não distribuirá sem receber primeiro o consentimento de V. M.

I) destinados para o publico, convem não impacientar a este com o que possa

crer uma falta de deferencia, nem tão pouco prival-o da illusão benéfica da

novidade. (...)

Não hesitei em responsabilizar-me por todos os gastos adiantados. E a obra já

está cara; e ainda seu preço tem de augmentar para o público com o accrescimo

do transporte; e por fim do tributo de cada exemplar de entrada na alfândega, se,

por influxo de V. M. I., o Seu illustrado governo não tomar a este respeito algum

arbítrio protector, dispensando a obra nesta edição dos direitos de entrada.251

Publicado o tomo I, Varnhagen daria continuidade aos trabalhos de finalização do tomo II

da Historia geral do Brazil. Este processo seria marcado pela ansiedade diante da recepção da primeira

parte da sua obra no meio letrado nacional e internacional. A sua correspondência ativa seria permeada

pelos cuidados necessários à revisão do próximo tomo e às reações dos leitores.

Na mesma missiva em que anunciara a publicação do tomo I, o visconde de Porto Seguro

solicitava o auxílio do monarca para a fazer pesquisas em Lisboa com a finalidade de corrigir informações

do tomo II. Ao pedir a transferência momentânea da legação de Madrid para a de Lisboa, ele novamente

lembraria ao monarca que todo o seu tempo era dedicado ao Brasil e que escrevia aquela obra como uma

missão patriótica.

Neste sentido, não haveria interesses de lazer nas suas viagens. A repetição destes

argumentos era a sua estratégia para conseguir as graças desejadas:

Pelo que respeita ao 2º Vol. estou resolvido a entregal-o aqui ao prelo, pois com

isso bem ou mal ficará a coberto de extraviar-se. Só me convinha antes dar por

uns dias uma chegada a Lisboa a consultar alguns mss. da Bibliotheca Publica e

da d’Ajuda. Não me atrevendo a pedir autorização de V. M. I., ousaria lembrar

que agora me poderia V. M. I. favorecer (e ao meu livro) Ordenando-me de

passar a concorrer com a nossa Legação em Lisboa à acclamação do Sr. D.

Pedro 5.º se houvesse ainda tempo chegarem para isso as ordens, o que duvido.

Em todo o caso com o trabalho que ora appresento creio provo que me occupo

251 Carta ao imperador D. Pedro II, 20 de junho de 1855, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 228-229.

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deveras no nosso paiz, e que não peço licenças para dar passeios. V. M. I.

Ordenará a tal respeito, o que fôr mais de Seu Agrado; eu limito-me a ponderar

que o 2.º volume sairá menos imperfeito se eu conseguir por qualquer modo

effectuar essa pequena digressão, obrigando-me a não estar daqui ausente mais

de trez semanas.252

A sua obra, portanto, emergia em meio a estas tensões e imposições do lugar social de

um historiador que optara pela nacionalidade brasileira, acreditava na monarquia constitucional liderada

por D. Pedro II, assumia a função de funcionário do Estado por meio do serviço diplomático e

fundamentava seu projeto historiográfico a partir do IHGB.

Para Taíse Tatiana Quadros da Silva – tomando como referência os escritos de José

Murilo de Carvalho – o historiador sorocabano havia atuado de forma ativa no processo de

homogeneização ideológica e de treinamento, durante o período imperial, que iria reduzir os conflitos no

interior das elites e forneceria a concepção e a capacidade de instaurar um determinado de modelo de

dominação política. Essa homogeneidade era fornecida sobretudo pela socialização da elite pela

educação, ocupação e carreira política. Varnhagen teria sido educado como parte da elite brasileira,

herdeira do período colonial, na Real Academia de Marinha e no Colégio de Nobres, em Portugal, seguido

a carreira militar e, posteriormente a diplomática – desempenhando funções políticas e administrativas e

estaria articulado com um grupo mais coeso dentro da boa sociedade do Brasil Império.253

Entretanto, tais particularidades não implicava na sua aceitação automática como um

historiador oficial do Estado e do grêmio. A Historia geral do Brazil não possuía um sentido estável,

universal e imóvel, por vezes, imaginado pelo seu autor. Ela, amparando-se nas afirmações de Roger

Chartier, era investida de significações plurais e móveis, construídas na negociação entre uma proposição

e uma recepção, no encontro entre as formas e os motivos que lhes dão sua estrutura e as competências

ou as expectativas dos públicos que delas se apropriam.254

Embora Varnhagen, em sua escrita epistolar e outros textos, tivesse tentado fixar um

sentido para a sua narrativa e enunciar a interpretação correta que deveria determinar regras à leitura, a

252 Carta ao imperador D. Pedro II, 20 de junho de 1855, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 229. 253 Taíse Tatiana Quadros da Silva, A reescrita da tradição: a invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857), op. cit., p. 109-110. Conferir: José Murilo de Carvalho, A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das sombras: política imperial, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, capítulo I. 254 Roger Chartier, À beira da falésia: a história entre incerteza e inquietudes, op. cit., p. 93.

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recepção a Historia geral do Brazil seria inventiva, deslocada e distorcida, o que geraria reações

intempestivas do autor diante das críticas e dos silêncios.

Em relação ao IHGB, Varnhagen não demoraria a dar vazão à sua agonia e

desencantamento por conta do silêncio dos consócios. Entre a 1855 e 1857, as cartas endereçadas ao

imperador teriam espaço dedicado à indiferença da agremiação. O tomo I da Historia Geral do Brazil,

encaminhado à agremiação em uma carta para o secretário Joaquim Manuel de Macedo, não teria o fim

sonhado pelo seu autor.255

Na carta ao imperador, de 24 de setembro de 1856, Varnhagen lamentava a indiferença

oficial, em especial do IHGB, que nem se quer havia acusado o recebimento do ofício acerca do tomo I,

nem da oferta que havia feito de um exemplar. Essa atitude do grêmio era vista como um fator de seu

esmorecimento e, conseqüentemente, do atraso da continuação da publicação do tomo II da Historia geral

do Brazil. Não aceitava a idéia de ter suas finezas retribuídas com misérias,

talvez só porque não adulo servilmente, como outros, certo perigoso

brasileirismo caboclo, como lhe chama com tanta razão o Timon, escripto

importante que eu antes desconhecia, como conhecia este estimavel autor, com

quem hoje estou em correspondencia e perfeita harmonia, até na maior parte

das ideais, em que, sem sabermos um do outro, nos encontramos. Em 1851

houve gente que esteve contra mim, só porque eu não quis publicar uma

biographia do Ottoni, com redação inadequada para entrar na Revista do

Instituto, que só vivia pelos favores de V. M. –

Que exemplos, Senhor, “aos futuros escriptores”, quer dar esse Instituto, que

escolhi para pedestal do nome de V. M. I. na portada da minha obra! --- Triste e

esmorecido com tanta indifferença, ou talvez antes opposição e miséria, sigo

entretanto agora com a impressão, mas creio que V. M. I. não se Oporá a que eu

255 Ilmo. Sr. Ao apresentar ao Instituto Histórico o 1.º volume da Historia do Brazil que me abalancei a escrever, e da qual já ao receber desta haverá V. S. sido, por via do Sr. E. Laemmert, entregue de um exemplar, faltaria a um dever imperioso e à satisfação de um anhelo nascido do fundo d’alma, se eu não me dirigisse a V. Sª rogando-lhe o favor de pedir da minha parte ao mesmo Instituto toda a indulgencia eu merece, creio eu, quem tomou a si, embora medindo as forças mais pela intensidade dos desejos que dos proprios recursos, à empreza de satisfazer o que já era uma necessidade nacional. – Confio n’essa indulgencia ao lembrar-me que outras vezes, quer por meio da censura, quer dos seus valiosos suffragios, a teve commigo essa illustre corporação, e que tal indulgencia contribuiu sem dúvida a argumentar minhas poucas forças para emprehender esta obra, cujos alicerces se encontram pela maior parte nos preciosos Annaes do Instituto, que cito sempre que posso. Submettendo-o em todo caso à illustrada censura dessa corporação, a que me associei tão do coração, me daria por feliz se ella se dignasse protegel-a, perfilhando-a, como de um dedicado filho seu que é, declarando embora não se responsabilizar por tanto quanto diz o autor, como se procede geralmente Àcerca de todas as obras ou memórias acadêmicas. Por esta occasião rogo a V. Exª o favor de renovar ao Instituto os protestos do meu profundo respeito, e de acceitar os protestos de toda a minha consideração e estima. Carta ao Dr. Joaquim Manuel de Macedo, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sem data no original, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 230-231.

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não o lance à fogueira inquisitorial do juizo publico, enquanto não receber, senão

a censura do Instituto ao 1.º, ao menos algumas palavras authenticadas delle,

por onde me conste se não levou na consideração que eu lhe quiz dar o título

com que me apresento no frontispicio, para que no 2.º volume eu possa

apresentar-me assim ou de outro modo: v. gr. Com as desonras de “Ex-socio

&c”. A última Revista que vi (na Academia de Historia) é a n.º 15 do 3º trimestre

de 54; porem consta-me que no Relatorio apresentado há pouco, nem se

mencionou o meu nome, e só numa das recentes revistas vem um escripto em

que sou “beliscado com unhas mui duras”, bem que felizmente “com uma

iniquidade clamorosa”. Não sei a que se alude com estas expressões de uma

carta que recebi; mas creio que se tiver razão me hei de queixar de que a

Redacção do Instituto, protegido por V. M. I., deixe passar taes ataques

clamorosamente iníquos contra quem alguns serviços tem prestado ao mesmo

Instituto, desde o seu principio.256

Para Lucia Maria Paschoal Guimarães, entre o pedido de Varnhagen de acolhimento da

obra e a sua concretização de fato por parte do IHGB havia uma longa distância,

tão grande quanto o mar-oceano, que se interpunha entre o Reino da Espanha,

onde Varnhagen exercia a função de encarregado da Legação Brasileiro, e o

Paço, no Rio de Janeiro, ponto em que se encontravam os seus censores em

potencial. Obstáculo que nem mesmo o augusto apadrinhamento, que lhe

custeara o livro, numa “edição digna do século em que vivemos”, conseguiria

superar.257

A sua obra chegou a ser encaminhada à Comissão de História do IHGB, para apresentar

parecer, em 07 de dezembro de 1855, mas foi condenado ao esquecimento.258 Entre esta data e a carta de

lamentação ao imperador havia se passado quase dez meses de silêncio ensurdecedor para a paciência

intolerante e a vaidade ferida de Varnhagen. Na missiva de 14 de julho de 1857, o segundo tomo da

256 Carta ao imperador D. Pedro II, 24 de setembro de 1856, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 235-236. 257 Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, op. cit., p. 560. 258 Extractos da 15ª sessão em 07 de dezembro de 1855, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 28, 1855, p. 467.

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Historia geral do Brazil seria apresentado a D. Pedro II por Varnhagen em um clima de desamparo e de

ressentimento com o não reconhecimento dos seus méritos por parte do IHGB.

Chegou a hora de poder humildemente comparecer ate o Throno de V. M. I. com

o 2.º volume concluido da Historia Geral do Brazil, depois de haver trabalhado às

vinte horas por dia, de forma que quasi que estes ultimos seis annos da vida me

correram tão largos como os trinta e tantos anteriores. – Ao ver a final concluida

a obra, não exclamei, Senhor, cheio de orgulho, “Eregi monumentu aere

perennius” a minha triste peregrinação pela terra. Porém cahí de joelhos, dando

graças a Deus não só por me haver inspirado a idéa de tal grande serviço à

nação e às demais nações, e concedido saúde e vida para realizar (sustentando-

me a indispensável perseverança para convergir sobre a obra desde os annos

juvenis, directa e indirectamente, todos os meus pensamentos), como por haver

permittido que a podesse escrever e ultimar no reinado de V. M. I., Cujo Excelso

Nome a posteridade glorificará, como já o universo todo glorifica a sua sabedoria

e justiça.259

Na mesma carta, ele tentaria mais uma vez conseguir o apoio do monarca na oficialização

da Historia geral do Brazil pelo Império e IHGB. Ele clamava à sabedoria e justiça do seu soberano para

que o socorresse da penumbra do esquecimento na cidade das letras. O resultado desta última carta não

foi o desejado pelo historiador sorocabano, que abertamente a partir daquele momento iniciaria uma série

de ataques aos invejosos, assim taxava os consócios, que povoavam espaços como IHGB:

Enlevado em tão lisongeiros pensamentos, ia eu, quiçá, a desvanecer-me com a

idéa de que também a Historia Geral, por um subdito seu, amparado por V. M. I.,

viria a ajudar ao universal applauso, quando não sei por que máu, cahé no

presente; puz-me a pensar na dádiva que ter honras, nem deveres de chronista

mór, ia, depois de tantos soffrimentos, de tantos suores, de tanto duvidar, de

tanto errar e corrigir, de tanto arrepender, de tanto cortar e riscar, de tanto

collocar e deslocar, ia, digo, fazer as turbas invejosas e geralmente daninhas... e

então, Senhor, sem vergonha o digo, desatei a chorar como uma criança, apezar

259 Carta ao imperador D. Pedro II, 14 de julho de 1857, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 242.

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das cans que já apparecem... E falo só de trabalhos, porque ao lado delles são

nada mais de cinco contos de réis pela impressão e gravuras, dos quaes não

espero cobrar nem metade, ainda quando V. M. a mande adoptar nas escolas de

direito e militares e nos colegios, que será a melhor maneira de fazer que no seu

imperio não só todos leiam e conheçam a patria historia, como lhe dêem mais

importancia e haja maior numero de applicados a esclarecel-a, ainda quando,

dado uma vez o impulso, o soberano deixe de assistir às sessões do Instituto.260

Apesar de apresentar apreciações elogiosas à sua obra por parte de alguns consócios

como o naturalista bávaro von Martius e o historiador francês Ferdinand Denis, Varnhagen não recebera

manifestação formal alguma do IHGB. A Historia geral do Brazil ficaria sem o parecer da Comissão de

História, formada pelo Dr. Miguel Calmon do Pin e Almeida (1796-1865), o marquês de Abrantes, jornalista

maranhense João Francisco Lisboa (1812-1863), o Timon, e Dr. Caetano Maria Lopes Gama (1795-1864),

o visconde de Maranguape.261 O império do silêncio seria a resposta dos pares na casa da memória

nacional. Segundo Lucia Maria Paschoal Guimarães, essa atitude desalentadora significava que autor e

obra não tinham agradado aos intelectuais consócios, apesar da pesquisa minuciosa e do trabalho colossal

realizados, que teriam merecido elogios de autoridades em assuntos brasileiros: em parte, a recepção

pouco calorosa era decorrente das idéias que o historiador defendia acerca da religiosidade e da

organização social dos primitivos habitantes da Terra de Santa Cruz.262

O silêncio institucional do IHGB, as primeiras críticas e juízos emitidos por figuras do

mundo das letras como o cônego Joaquim Fernandes Pinheiro (1826-1876) e o poeta Domingos José

Gonçalves de Magalhães, o futuro visconde do Araguaia (1811-1882), no Brasil,263 e o historiador francês

Marie-Armand d’Avezac-Macaya (1800-1875), na Europa,264 e a demora na concessão de títulos

nobiliárquicos por parte do monarca como forma de reconhecimento do seu trabalho seriam os

260 Ibidem, p. 242-243. 261 O envio da Historia geral do Brazil, de Varnhagen, para a Comissão de História seria registrada na ata da primeira sessão, de 18 de abril de 1856. Extractos da Primeira Sessão, de 18 de abril de 1856, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 19, (Supplemento), 1856, p. 02. 262 Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, op. cit., p. 560. 263 Conferir: Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, Breves reflexões sobre o systema de catechese seguido pelos jesuitas no Brazil, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 19, 1856, p. 379-397; Domingos José Gonçalves de Magalhães, Os indigenas do Brasil perante a Historia, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 23, 1860, p. 03-66; Marie-Armand d’Avezac-Macaya, Considérations géographiques sur l’histoire du Brésil: examen critique d’une nouvelle histoire générale du Brésil récemment publiée em portugais à Madrid par M. François Adolphe de Varnhagen... Rapport fait à la Socieété de geographie de Paris (...), Paris, L. Martinet, 1857. 264 A reação de Varnhagen às criticas de Marie-Armand d’Avezac-Macaya podem ser observadas na correspondência ativa de Varnhagen: Carta a Manuel Araújo Porto Alegre, primeiro secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 20 de novembro de 1857, e Carta ao imperador D. Pedro II, 21 de novembro de 1857, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 248-256. Para uma análise desta polêmica entre Varnhagen e D’Avezac, conferir: Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., capítulo V.

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ingredientes que preparariam o caldo do ressentimento de Varnhagen cada vez mais presente em suas

missivas. Humilhado pelo desprezo e indiferença da casa da memória nacional e ofendido pelos ataques

dos críticos, ele tentaria encontrar entre os pares e no próprio imperador proteção e defesa, ou seja, uma

oposição ao tratamento dado à sua obra. 265

Varnhagen, de forma diferente, experimentaria o gosto amargo da recusa experimentado

pelo general José Inácio de Abreu e Lima, quando apresentou o seu compêndio de História do Brasil para

apreciação do IHGB. O general de Bolívar receberia o peso da negação pelo juízo, emitido pelo próprio

historiador sorocabano, acusando o seu livro de plágio. Já Varnhagen teria de conviver com o silêncio da

associação, ou melhor, uma recusa “oficial” silenciosa e dolorosa, impregnada pelas marcas de uma

experiência de humilhação e medo.266

Articulação dos sentimentos de humilhação e medo, somado aos de ciúmes, rancor e

inveja, constituiria a imagem de um homem ressentido. No caso da experiência da humilhação, como a

vivenciado por Varnhagen com a negativa por parte dos pares do grêmio, adotando as afirmações de

Pierre Ansart, não estaria restrita apenas de uma inferioridade, mas também do amor-próprio ferido,

experiência de negação de si e da auto-estima suscitando o desejo de vingança.267 A revanche

varnhageniana, em última instância, seria a imposição da sua vontade por meio da intervenção da mão

protetora do monarca, fazendo o IHGB acatar sua obra como a verdade do Império brasileiro. O medo de

ser posto à margem movia as engrenagens da sua máquina de guerra intelectual: as missivas, as

memórias e as réplicas.268

265 Para Pierre Ansart, inspirado nos escritos de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), se somos vítimas de indivíduos que nos prejudicam e ferem nossas liberdades, experimentamos e estimamos que estes indivíduos sejam malévolos, enquanto nós seríamos os bons. As forças me são hostis são nefastas e perversas, enquanto eu próprio sou justo e inocente do mal que me é feito. Portanto, os ressentimentos, os sentimentos compartilhados de hostilidade, são um fator eminente de cumplicidade e solidariedade no interior de um grupo, e suas expressões, as manifestações podem ser gratificantes. O ódio recalcado e depois manifestado cria uma solidariedade afetiva que, extrapolando as rivalidades internas, permite a reconstituição de uma coesão, de uma forte identificação de cada um de seu grupo. Pierre Ansart, História e memória dos ressentimentos, in: Maria Stella Martins Bresciani e Márcia Naxara (orgs.), Memória e (Res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível, op. cit., p. 21-22. 266 Em outro texto, Pierre Ansart observou que ser humilhado é ser atacado em sua interioridade, ferido em seu amor próprio, desvalorizado em sua auto-imagem, é não ser respeitado. O humilhado se vê e se sente diminuído, espoliado de seu autonomia, na impossibilidade de elaborar uma resposta, atingindo em seu orgulho e identidade, dilacerado entre a imagem que faz de si e a imagem desvalorizada ou difamente que os outros lhe infligem. Pierre Ansart, As humilhações políticas, in: Izabel Andrade Marson e Márcia Naxara (orgs.), Sobre a humilhação: sentimentos, gestos, palavras, Uberlândia, EDUFU, 2005, p. 15. 267 Pierre Ansart, História e memória dos ressentimentos, in: Maria Stella Martins Bresciani e Márcia Naxara (orgs.), Memória e (Res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível, op. cit., p. 22. 268 As polêmicas acadêmicas dentro e fora do IHGB podem ser consultadas na biografia de Clado Ribeiro de Lessa, em especial no capítulo V. Clado Ribeiro de Lessa, Vida e obra de Varnhagen, RIHGB, Rio de Janeiro, volume 226, jan./mar. 1955.

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2.7. O crime e o castigo de Varnhagen: memória e ressentimento______________________________

Na carta em que anunciou a conclusão e publicação do segundo tomo da Historia geral do

Brazil, de 14 de julho de 1857, após agradecer a proteção concedida à sua empreitada historiográfica,

Varnhagen abriria seu coração ressentido ao seu monarca, lamentando as iniqüidades praticadas contra

sua biografia intelectual dedicada à defesa da memória nacional. Havia nesta escrita epistolar uma

constante rememoração dolorosa, difícil de esquecer. Ela o dominava e mostrava um homem ferido.269

Em tom de confidência, ele faria uma espécie de memorial apresentando os seus serviços

prestados ao Brasil e à monarquia. As tramas desta missiva trazem elementos ricos para se compreender

o peso da memória dos anos dedicados a um projeto intelectual diante da frustração pela ausência da

glória sonhada e tida como justa, ou seja, a constituição de uma imagem de si como um homem tomado

pelo ressentimento:

Senhor! Permitta-me V. M. I. Que, aproveitando-me entretanto dos méritos que

devo haver contrahido perante o Seu espírito justiceiro com a conclusão da

Historia Geral da civilização da Sua e minha pátria, eu lhe abra de todo o meu

coração, e Lhe descubra até os mínimos refolhos e rugas (boas e más) que nelle

se achem. Com V. M. I., de Cuja alta discrição e bondade tenho provas, nem

necessito guardar essas modestias de fórma, que principalmente se

recommendam para com o vulgo, afim de não despertar neste sentimentos de

inveja e de ciúme, que V. M. I., pela muita elevação do seu caracter e de

posição, nem sequer conhece quanto são rasteiríssimos paixões. Porém antes

de abrir-me com V. M. I. Lhe rogo encarecidamente pela alma de Seu honrado

Avô, e pelas de Seu heroico Pai e chorados Filhinhos, desditosamente

mallogrados, que não revele a ninguem as minhas expansões, rasgando pelo

contrario esta, quando se haja inteirado de quanto vou expor-Lhe.270

269 De acordo com Paul Zawadzki, a baixeza do homem do ressentimento, a sua maldade de “ruminante da memória”, revelá-o como um homem ferido. Devorado pelo rancor, ele extrapola, mas é sobretudo extrapolado por uma memória intestina que o invade mesmo a contragosto. Bm que ele gostaria de esquecer, mas a lembrança o domina. Contra sua vontade, incessantemente sua memória lhe apresenta o passado. Paulo Zawadzki, O ressentimento e a igualdade: contribuição para uma antropologia filosófica da democracia, in: Maria Stella Martins Bresciani e Márcia Naxara (orgs.), Memória e (Res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível, op. cit., p. 375. 270 Carta ao imperador D. Pedro II, 14 de julho de 1857, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 243.

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As lamúrias de Varnhagen endereçadas ao imperador implicavam na percepção do seu

não reconhecimento como um historiador comprometido com a sua pátria e as letras por parte dos pares.

Significava de forma silenciosa a não aceitação da sua obra como a primeira história geral da jovem nação,

aquela que tanto clamava Januário da Cunha Barboza, no seu relatório de 1842, pedindo que juntassem as

peças necessárias à construção de um grande edifício.271 O seu temor estava estampado no receio de ser

recusado ou esquecido como um homem ilustre pelas letras – da sua nobreza como historiador.272

Neste sentido, a sua carta ao monarca seria uma carta de defesa contra esses males,

oferecendo um breve relato dos seus serviços e a reclamação da morosidade das honrarias. Lembrava

novamente ao soberano que seus feitos foram resultado de tantos annos de aturados estudos, de

frequentes vigílias de horas e horas roubadas o descanço e aos divertimentos, de que outros em idênticas

circunstancias tem gosado. Embora elevado com o modesto tratamento de Vossa Mercê do cargo de

encarregado e do hábito de Cristo, cobrava justiça do seu soberano na concessão de títulos:

creio que se enganam; ou muito a mim me engana a consciencia, que me diz

que tenho prestado mais relevantes serviços que outros contemporaneos meus

que se acham muito mais elevados... Estas considerações dão-me por vezes

horas de grande tristeza... E confesso, Senhor, que sobretudo quando haverá

pouco mais de dous annos se publicaram umas grandes listas de despachos, e

vi nellas generosamente contemplados com títulos de conselho, com crachás,

com fidalguias a tantos que eu cria terem feito pelo paiz e por V. M. I. menos do

que eu, gemi e calei; lamentando a quem não quizera entre tantos nomes propôr

tambem a V. M. I. o meu, e pedindo a Deus que me não fizesse succumbir e

alquebrar o espírito, ao menos até haver ultimado, no reino de V. M. I., a grande

obra a que principalmente sacrificara a minha tranquilidade passada, presente

(então) e futura, se V. M. I. me não valer...273

271 Januário da Cunha Barboza, Relatorio dos trabalhos do Instituto durante o quarto anno social, RIHGB, op. cit., p. 06. 272 Segundo Taíse Tatiana Quadros da Silva, a nobreza do historiador adviria do comprometimento pátrio, mas também da solidez simbólica de uma narrativa em que a poética de sua forma livresca e textual estabeleceria as possibilidades da escrita histórica instituindo, pelo tratamento aos temas e às fontes da tradição de que se valeria, a posição de seu autor diante do debate literário de seu tempo. Tornar-se o artífice simbólico do Brasil império fora o grande objetivo que motivara Varnhagen a buscar o caminho até o método e escrita da inédita história. Taíse Tatiana Quadros da Silva, A reescrita da tradição: a invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857), op. cit., p. 72. 273 Carta ao imperador D. Pedro II, 14 de julho de 1857, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 244-245.

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Além dos serviços dedicados à história pátria, Varnhagen reivindicava os devidos créditos

pela sua atuação na diplomacia com a definição do desenho das fronteiras terrestres do Brasil, na

elaboração de propostas visando a maior segurança possível da unidade e integridade do Império e na

literatura por meio da publicação do florilégio e de biografias de brasileiros ilustres. Não se conformava

com a atitude do IHGB, o que deixava seu espírito em estado de prostração. Numa tentativa derradeira,

fazia o pedido de ajuda ao monarca: Em sua Mão tem V. M. I. o decidir da minha sorte, e de levantar-me o

espírito, ou deixal-o succumbir; amargurado até pelos desfavores do próprio Instituto... Do Instituto!...274

A escrita da Historia geral do Brazil, uma vez não aclamada pelos consócios do IHGB,

constituir-se-ia no seu crime e a demora do reconhecimento esperado e cobrado o seu castigo. Na

condição de sujeito humilhado, Varnhagen se sente, nas palavras de Pierre Ansart,

como tendo sua afirmação vital negativa, rejeitada, destruída, se sente excluído

da relação de reciprocidade, experimentando vergonha de si mesmo (...) seu

sofrimento aumenta ao sentir que o outro, o agente ativo de sua humilhação, não

percebe sua dor ou tem satisfação com ela.275

O silencio do grêmio e os ataques dos consócios Joaquim Fernandes Pinheiro e

Domingos José Gonçalves de Magalhães nas páginas da Revista, criticando a sua visão negativa dos

povos indigenas e a sua negação deste elemento como importante na formação da nacionalidade

brasileira, iriam torturá-lo de forma intensa.276

Os autores destas memórias registraram o seu repúdio ao historiador sorocabano por

conta da maneira como ele abordou os indígenas, rotulados com as piores adjetivações possíveis em sua

Historia geral do Brazil. Além disso, criticaram Varnhagen por minimizar o papel dos jesuítas no processo

274 Ibidem, p. 247. 275 Pierre Ansart, As humilhações políticas, in: Izabel Andrade Marson e Márcia Naxara (orgs.), Sobre a humilhação: sentimentos, gestos, palavras, op. cit., p. 15-16. 276 O não reconhecimento da obra implicava, adotando as reflexões de Claudine Haroche sobre as proposições de Norbert Elias, numa dupla perda de status: de um lado, a perda de poder como autoridade historiadora, de outro, a perda de sentido e de valor, uma vez que os anos dedicados à pesquisa e à escrita resultaram num fracasso da empreitada: fazer a glória da pátria e sua própria. Claudine Haroche, Elementos para uma antropologia política do ressentimento: laços emocionais e processos políticos, in: Maria Stella Martins Bresciani e Márcia Naxara (orgs.), Memória e (Res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível, op. cit., p. 344. Conferir também: Norbert Elias, Os Alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1997; Norbert Elias por ele mesmo, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2001.

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de colonização da América. A acusação de pseudofilantropia presente na política de catequese dos nativos

iria irritar profundamente os religiosos. 277

O cônego Joaquim Fernandes Pinheiro partiria em defesa da Igreja contra os juízos do

historiador-diplomata. Diante da denúncia de mal entendida filantropia por parte dos religiosos,

apresentada na seção XIII, do tomo I da Historia geral do Brazil, assim responderia o consócio:

Em verdade sorprehende-me que uma pessoa tam illustrada como o Sr.

Varnhagen denomine de mal entendida philanthropia a sincera defesa que

faziam os primitivos jesuitas da liberdade dos indigenas, e que prefira o emprego

de meios violentos aos da doçura e persuasão que rejeita por serem

demorados!! Consequente com os seus principios chega até a desejar que se

tivesse adoptado para com os selvagens a servidão israelita, esquecendo que

seria isto o mais monstruoso de todos os anachronismos!278

O poeta Gonçalves de Magalhães, conhecido pelo épico A Confederação dos Tamoyos,

não pouparia flechas envenenadas em direção à narrativa varnhageniana, desferindo críticas à sua

imagem nada lírica dos povos indigenas. Na memória oferecida ao IHGB, o visconde de Araguaia desejou

atender os seguintes fins:

1. sugerir que os documentos escritos sobre os indigenas do Brasil devessem ser

julgados pela crítica, e não aceitos cegamente;

2. promover a reabilitação do elemento indígena como parte da população da nação;

3. refutar os argumentos do Varnhagen acerca dos indígenas nas páginas da Historia

geral do Brazil.

Em relação ao último ponto, ele afirmaria em tom de ataque voraz que Varnhagen,

incansavel pesquisador e antigos documentos, e que quasi sempre viveo longe

da patria em serviço d’ella, transportando-se com a imaginação aos tempos

277 Embora tenha tido uma fase de entusiasmo com o indianismo na juventude, Varnhagen romperia com o movimento durante uma viagem ao interior da província de São Paulo, em 1840. De acordo com Pedro Puntoni, quando descolava de São Paulo para uma viagem às fazendas no interior, na região de Sorocaba, ao passar pela fazenda Morungaba, na divisa com Paraná, foi avisado que índios estavam próximos e poderiam atacá-los na estrada. Diante da ameaça de um confronto na beira do mato, Varnhagen ficou horrorizado com a idéia de que tal fato se passava na estrada real. Desde esta data, resolveu assumir seu lado antiindianista, denunciando suas ilusões românticas sobre os nativos. Pedro Puntoni, O Sr. Varnhagen e o patriotismo caboclo: o indígena e o indianismo perante a historiografia brasileira, in: István Jancsó, Brasil: Formação do Estado e da Nação, op. cit., p. 641-642. 278 Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, Breves reflexões sobre o systema de catechese seguido pelos jesuitas no Brazil, RIHGB, op. cit., p. 388.

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coloniaes, constituiu-se o mais completo historiador da conquista do Brasil pelos

portuguezes, e o panegyrista da civilisação, mesmo a ferro e fogo, pelo

captiveiro dos povos brasileiros, com quem não sympathisa, talvez por não

conhecel-os; e a quem ás vezes tudo nega, até o titulo de indigenas, chamando-

lhes vindiços alienigenas como para dever-lhes caridade alguma.279

Gonçalves de Magalhães, de fato, parecia reagir não somente contra a imagem

desfavorável dos nativos, mas também às críticas encaminhadas por Varnhagen, em carta ao monarca, de

24 de setembro de 1856, sobre A Confederação dos Tamoyos. Varnhagen, além de fazer troça do poema,

diminuiria os seus méritos como uma epopéia nacional do reinado de D. Pedro II.280

Esta polêmica literária renderia ao autor da Historia geral do Brazil outros reveses dentro e

fora do IHGB, na sua luta pelo reconhecimento intelectual. Era um risco assumido conscientemente por

Varnhagen, mesmo tendo conhecimento das simpatias de D. Pedro II pelos indianistas, em especial,

Gonçalves de Magalhães. 281

Os títulos de barão e visconde, como os quais fora agraciado em 1874 e 1876

respectivamente, por exemplo, chegariam já na fase final de sua vida, depois longa espera.282

279 Domingos José Gonçalves de Magalhães, Os indigenas do Brasil perante a Historia, RIHGB, op. cit., p. 09. 280 Segundo Varnhagen, nem o assumpto da tal confederação bestial é verdadeiramente épico; nem foi della chefe Aimbire, mas sim Quoniambebe; nem o auctor, excepto na parte descriptiva, tem ao gênero épico tendência, nem tem o saber, nem a robustez de principios, nem a generosidade e grandeza d’alma, que o gênero requer pois é muitas vezes homem, e homem de paixões pequeninas. Carta ao imperador D. Pedro, 24 de setembro de 1856, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 237. 281 Os acalorados debates entre Varnhagen e os românticos indianistas quanto ao tema do índio como portador de nacionalidade não apareceram de forma muito marcante na sua correspondência ativa, sendo apenas abordada pontualmente. As réplicas de Varnhagen aos críticos pelo seu antiindianismo podem ser encontradas no seu prefácio e discurso preliminar no tomo II da Historia geral do Brazil e em outras memórias publicadas na Revista do IHGB e outros periódicos. Para acompanhar as polêmicas de Varnhagen com os indianistas românticas no IHGB, conferir: Laura Nogueira Oliveira, Os índios bravos e Sr. Visconde: Os indígenas brasileiros na obra de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit.; Lúcio Menezes Ferreira, Vestígios de Civilização: A Arqueologia no Brasil Imperial (1838-1877), op. cit.; Marcelo de Mello Rangel, Reflexão e diálogo. Liberdade e responsabilidade em Gonçalves de Magalhães e a construção da Nação brasileira, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005;Temístocles Américo Cezar, A retórica da nacionalidade de Varnhagen e o mundo antigo: o caso da origem dos tupis, in: in: Manoel Luiz Salgado Guimarães (org.), Ensaios sobre a escrita da história, op. cit., p. 29-41; César Augusto Doriguello Júnior, Os indígenas nas páginas da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1873), dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2008. 282 De acordo como Lucia Maria Paschoal Guimarães, diante dos conflitos dentro do IHGB sobre as raízes da nacionalidade entre os que defendiam suas origens européias (portuguesa), liderados por Varnhagen, e os que buscavam nos autóctones as matrizes do Império brasileiro, como era o caso de Gonçalves de Magalhães, o próprio monarca entrava como incentivador do debate, uma vez que agraciou o primeiro com o título nobiliárquico de barão e posteriormente visconde de Porto Seguro, em uma referência clara ao primeiro ponto do litoral brasileiro onde os portugueses desembarcaram em 1500, enquanto Gonçalves de Magalhães recebeu o de barão e depois visconde de Araguaia, em virtude de suas posições indianistas apaixonadas. Entre os navegadores portugueses e os homens mergulhados nas brenhas das florestas, no âmbito da casa da memória nacional sairia vitoriosa uma interpretação romântica indianista para a formação da identidade brasileira. Lucia Maria Paschoal Guimarães, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,in: Ronaldo Vainfas (org.), Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889), Rio de Janeiro, Objetiva, 2002, p. 380-381.

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Provavelmente a concessão do titulo de barão de Araguaia, em 1872, ao seu voraz crítico Gonçalves de

Magalhães tenha provocado os sentimentos mais latentes de injustiça e revolta por parte de Varnhagen.283

A supressão do nome pelo título de visconde de Porto Seguro, como desejava em 1854,

na Historia geral do Brazil só seria realidade com a publicação da 2ª edição, em 1877. Nesta oportunidade,

Varnhagen agradeceria ao seu soberano pela concessão dos títulos de nobreza com uma dedicatória

reformulada:

A aceitação por Vossa Magestade Imperial desta dedicatoria e os decretos de 14

de agosto de 1872 e 16 de maio de 1874, associando-me ao ponto de partida da

historia da civilização do Brazil, são actos de Sua Magestade Imperial

Magnanimidade, que por si sós acusarão aos leitores futuros o reinado fecundo

que produziu a obra, bem que ainda com defeitos, filha de aturado trabalho de

uma vida sempre votada ao estudo e á investigação da verdade.284

A demora no reconhecimento por parte do IHGB e mesmo do próprio monarca em relação

a sua Historia geral do Brazil mostra as dificuldades de se pensar uma escrita de uma narrativa da nação

no Brasil oitocentista que constituísse numa referência padrão ou atendesse os anseios da cidade letrada.

Neste sentido, a tarefa árdua de produção de uma história geral não se restringia apenas à sua escritura,

mas implicava a batalha da publicação, divulgação e aceitação por parte da comunidade dos leitores.285 A

obstinada busca pela glória intelectual de Varnhagen autoriza reflexões, inspiradas nas afirmações de

Maria Stella Bresciani e Márcia Naxara, sobre questão sensível das memórias presas aos ressentimentos,

recorrente nas histórias da escrita da história do Brasil ao longo do século XIX e também do XX,

envolvendo as guerras das narrativas em nome da fabricação do autêntico caráter nacional brasileiro.286

283 Conferir: Pedro Puntoni, A Confederação dos Tamoyos de Gonçalves de Magalhães: a poética da história e a historiografia do Império, Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 45, jul. 1996, p. 119-130. 284 Visconde de Porto Seguro, Historia geral do Brazil antes da sua separação e independencia de Portugal, tomo I, 2 ed., muito augmentada e melhorada, Rio de Janeiro, Casa de E. & H. Laemmmert, s.d. (1877), s. p. 285 Para Kelly Carvalho, Varnhagen buscaria seu reconhecimento intelectual por meio da sua idoneidade intelectual. Ela seria a brecha que permitiria ao historiador sorocabano tornar-se membro do IHGB, desempenhar as duas funções do grêmio que não exigia dote: primeiro secretário e orador e permaneceria por um tempo sem nenhum pronome de tratamento acrescentado ao seu nome. Kelly Carvalho, “O nascimento de uma nação”: Varnhagen e a construção do conhecimento histórico e da identidade nacional, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002, p. 39-40. 286 Para Maria Stella Martins Bresciani, esta era uma questão delicada, pois nos obriga a explorar regiões e temas a que somos resistentes, parte da história dos ódios, dos fantasmas da morte, das hostilidades recalcadas. Sem dúvida, lugar de humilhação, que, porém, com freqüência se apóia na linguagem da resistência passiva ou da aquiescência indecorosa, cúmplice da humilhação imposta por repor sempre uma mesma imagem degradada, tal como faz parcela significativa dos trabalhos acadêmicos, que, sediados na região privilegiada do saber competente, insistem em afirmar a condição menor de determinados grupos, etnias, nações. Maria Stella Martins Bresciani e Márcia Naxara, Apresentação, in: Memória e (Res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível, op. cit., p. 12.

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Não por acaso, Varnhagen reivindicaria o nome de uma autoridade para valorizar o feito

da sua obra e mostrar que se pagava sempre um preço caro por ser autêntico e verdadeiro com a tarefa

historiadora no prefácio do tomo II da Historia geral do Brazil:

“Uma das maiores emprezas do mundo (dizia o conde de Ericeira, D. Luiz de

Meneses) é a resolução de escrever uma historia; porque além de inumeravel

multidão de inconcenientes, que é necessario que vençam, de um trabalho

excessivo,... no mesmo tempo em que se pretende lograr o fructo de tantas

diligencias, tendo-se obtido formar o intento, vencer a lição, assentar o estylo,

colher as noticias, lançar os borradores, tiral-os em limpo, conferil-os e apural-os,

quando quem escreve se anima na empreza... – então começa a ser réo, e o réo

julgado com... excessiva tyrannia.”287

Ao fundamentar os percursos da sua obra, a partir das afirmações de D. Luiz de Meneses

(1632-1690), o conde Ericeira, Varnhagen recordava aos leitores e, principalmente, aos críticos que o

trabalho de uma história era uma tarefa longa e tortuosa, que muito exigia do historiador – da sua

individualidade como escritor, do seu estilo e da sua linguagem.

Era uma missão de um homem com conhecimentos eruditos, filosóficos, literários e

poéticos, como destacou na memória endereçada ao monarca, em 1852. Contudo, para além das

dificuldades e dos atributos necessários, havia o preço a se pagar por ter idéias próprias e não ter medo de

defendê-las:

o historiador soffrerá maiores injustiças, se dotado de convicções profundas e de

caracter firme e independente, em vez de adular vãos preconceitos vulgares,

teve o necessario valor para enunciar francamente o que pensava, em contra

destes.288

Se o presente não lhe dava os devidos louros e méritos, o tribunal do tempo iria, com o

passar dos anos, reconhecer o devido lugar da sua Historia geral do Brazil pelo seu trabalho de

287 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1857, Prefacio, p. V. 288 Ibidem, p. V-VI.

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esclarecimento e de orientação de juízo sobre o passado, o presente e o futuro da nação, sob o manto da

monarquia e a proteção de Deus.289

Este prefácio, assim como as cartas, ajudam a compreender a escrita da história não

apenas como uma atividade permeada pela lógica de uma certa assepsia racionalista, distante das paixões

políticas e intelectuais. As sensibilidades faziam parte do projeto historiográfico do historiador

sorocabano.290 Ao longo da escrita epistolar, expôs a satisfação de suas descobertas, o envolvimento com

a construção da sua Historia geral do Brazil e as expectativas diante da recepção da sua comunidade de

leitores. A sua atitude era apaixonada ao defender a sua obra, bem como seus posicionamentos políticos e

ideológicos. Para Laura Nogueira Oliveira,

a polêmica era para Varnhagen, assim como para seus contemporâneos, uma

disputa ou um combate travado no campo discursivo e que tinha como arma o

domínio da palavra. Quando delas participou, utilizou-se de várias estratégias

discursivas que visavam a destruir a argumentação construída por seu oponente,

buscando também minar a credibilidade moral e intelectual daqueles que se

levantavam contra suas opiniões e teorias.291

A história do Brasil, por ele forjada, embora tida por imparcial, trazia a sua crença na

nação como uma verdade, a monarquia como princípio e a lealdade a D. Pedro II como autêntica. Nesta

perspectiva, as tramas deste capítulo se aproximam das afirmações de Sandra Jatahy Pesavento acerca

das articulações entre as sensibilidades e os conceitos de história, memória e identidade:

as sensibilidades são formas pelas quais os indivíduos e os grupos se dão a

perceber, a si e ao mundo. A sensibilidade é, pois, capacidade humana, que

fundamenta a apreensão do real; é uma habilitação sensorial que marca a

289 Embora sua Historia geral do Brazil não tivesse recebido os devidos e esperados elogios, o IHGB não deixaria – ciente das contribuições de seu membro – de oferecer uma honraria à Varnhagen neste período. Na quarta sessão, de 1º de julho de 1859, o cônego Joaquim Fernandes Pinheiro ofereceria à mesa uma proposta assignada por todos os socios presentes para que se eleve á cathegoria de socio honorario o Sr. Francisco Adolpho de Varnhagen,, ministro residente do Brasil no Paraguay, em reconhecimento de sua illustração e de valiosos serviços prestados ao Instituto. Extractos da Quarta Sessão, de 1º de julho de 1859, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 22, (Supplemento), 1859, p. 645. Na segunda sessão, de 25 de maio de 1860, Varnhagen agradeceria a honra que lhe fizera o Instituto, elevando-o ao gráo de socio honorario. Extractos da Segunda Sessão, de 25 de maio de 1860, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo XXIII (Supplemento), 1960, p. 617. 290 Segundo Pierre Ansart e Maria Stella Martins Bresciani, toda identidade, individual ou coletiva, ganha espessura e sentido mais profundo por meio de um componente afetivo, e é transformada incessantemente pelas alterações das emoções, dos sentimentos e das paixões. Pierre Ansart e Maria Stella Martins Bresciani, Apresentação, in: Jacy Alves Seixas, Maria Stella Martins Bresciani e Marion Brepohl (orgs.), Razão e paixão na política, Brasília, Ed. da UnB, 2002, p. 08. 291 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 139.

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capacidade de ser afetada pelo mundo ou de reagir a estímulos físicos ou

psíquicos por meio das sensações. (...) a sensibilidade estaria na base do

próprio conhecimento sobre o mundo que o espírito é capaz de conduzir. (...) o

conhecimento sensível marca um assalto contra o pensamento cognitivo

racional. Porque opera na esfera das sensações e pertence à ordem da

intimidade, porque atua na esfera dos sentimentos e fundamenta a percepção,

interpretando e qualificando o mundo, o conhecimento sensível não segue

exatamente as regras da racionalidade, mas não deixa, com isso, de produzir

verdades, valores, ou seja, critérios de interpretação da realidade.292

Passadas as tempestades dos críticos e encaminhadas as suas réplicas, Varnhagen

vivenciaria uma nova página da sua história intelectual, dedicada à reescrita da sua Historia geral do Brazil,

bem como à publicação da Historia das lutas com os hollandezes no Brazil desde 1624 a 1654, em 1871, e

à preparação da Historia da Independencia do Brasil, até ao reconhecimento pela antiga metrópole,

comprehendendo, separadamente, a dos sucessos occorridos em algumas províncias até essa data,

editada postumamente. Ele não abandonaria a empresa historiográfica com as agruras sofridas com a má

recepção à sua obra primeira dentro do IHGB, por exemplo. O seu nome continuaria a ser recorrente nas

páginas da Revista do grêmio, oferecendo documentos, memórias, cartas e biografias.293

Em carta endereçada ao imperador, de 18 de abril de 1861, já envolvido com a sua missão

diplomática nos países da América do Sul, ele dava notícias das pesquisas que realizava para a

preparação da 2ª edição da Historia geral do Brazil.294 Mas esta é outra história para uma nova pesquisa.

Para os fins dos objetivos e recortes temporais definidos deste capítulo, a pausa provisória sobre as

escritas de si de Varnhagen será no crepúsculo dos anos 1850, às vésperas de sua partida para a cidade

de Montevidéu, na república paraguaia.

292 Sandra Jatahy Pesavento, Ressentimento e ufanismo: sensibilidade do Sul profundo, in: Maria Stella Martins Bresciani e Márcia Naxara (orgs.), Memória e (Res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível, op. cit., p. 224-225. Para uma reflexão sobre a sensibilidade na história, conferir: Marina Haizenreder Ertzogue e Temis Gomes Parente (orgs.), História e sensibilidade, Brasília, Paralelo 15, 2006. 293 A atuação de Varnhagen nas páginas da Revista do IHGB, entre os anos de 1840 e 1878, faz parte do projeto de pesquisa, vinculado ao grupo de pesquisa HISOCULT – História Regional: Sociedade e Cultura, intitulado As escritas de Francisco Adolfo de Varnhagen e a história da História do Brasil nas páginas da Revista do IHGB (1840-1878), aprovado pelo Colegiado do Departamento História e homologado pela Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), período: mar./2009 a fev./2011, número de registro: 050/CAP/2009. 294 Carta ao imperador D. Pedro II, 18 de abril de 1861, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 244-245. A correspondência ativa de Varnhagen, durante o período da Missão no Pacífico, constitui-se em fonte rica de pesquisa para se compreender a história diplomática e a geopolítica do Império brasileiros às vésperas da eclosão dos conflitos do Prata. Além das missivas publicadas pela coletânea de Clado Ribeiro de Lessa, pode-se consultar as cartas e ofícios encaminhados pelo historiador-diplomata ao Ministério dos Negócios Estrangeiros na coletânea organizada pelo historiador Arno Wehling e publicada pela Fundação Alexandre de Gusmão. Conferir: A missão Varnhagen nas Repúblicas do Pacífico: 1863 a 1867, 2 vols., op. cit.

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Além da escrita da história do Brasil, o visconde de Porto Seguro continuaria seu trabalho

de busca e coleta documental, seja em pesquisa nos arquivos, seja na constituição de um arquivo da

história pátria. Ele seria personagem atuante no processo de construção do templo dos documentos,

responsável pelo estabelecimento de um ato fundador na operação historiográfica. A sua prática de coligir,

organizar e publicizar fontes, assim como o fez outros colegas de ofício, definiria a condição de

possibilidade do que poderia ser ou não dito e escrito da história de um país. A constituição de um arquivo

configurava o retrato do Brasil que se queria definir como verdades documentadas.295

Com bases nestas considerações, precisa-se ter em mente que fazer a história intelectual

de Varnhagen implica enfrentar uma personagem com diferentes possibilidades de interpretação. Nesta

perspectiva, a volumosa biografia do visconde de Porto Seguro, de autoria de Clado Ribeiro de Lessa,

embora trabalhando com a noção universalista de sujeito, ofereceria alguns instigantes indicativos ao

propor o estudo das muitas dimensões da sua vida intelectual: o historiador, o literato, o diplomata, o

polemista, etc. Portanto, diante de inúmeras articulações possíveis de análise, torna-se cada vez distante,

como uma miragem, a vontade de fabricar a “grande” biografia do autor da Historia geral do Brazil.

Contudo, abre novas frentes para a emergência de diferentes narrativas e estudos sobre este velho

conhecido historiador do século XIX brasileiro.

No capítulo seguinte, procurar-se-á atrelar os enredos temáticos, forjados por Varnhagen

para sua história geral, à lógica da cultura e da identidade essencializadas e fixas,296 que buscam delimitar

a nação como uma entidade unívoca e hegemônica e, mais ainda, como uma necessidade para o futuro da

humanidade.297 Entender os mecanismos como os germens e alicerces da nação foram buscados no

passado colonial brasileiro será o norte da bússola da navegação pelas seções da Historia geral do Brazil.

A decifração deste discurso, da fabricação da nação como verdade, passa pela procura das relações de

poder e saber que a instituiu por meio da pena do Visconde de Porto Seguro.

295 Para Michel Foucault, o arquivo seria, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento de enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, (...) é o que, na própria raiz do enunciado-acontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o sistema de sua enunciabilidade. Michel Foucault, Arqueologia do saber, 7 ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2004, p. 147. 296 Conferir: Durval Muniz de Albuquerque Junior, A invenção do Nordeste e outras artes, 2 ed. Recife, FJN; Ed. Massangana; São Paulo, Cortez, 2001. 297 Segundo Helena Miranda Mollo, o tempo varnhageniano assumiria um aspecto moldável – mais importante que narrar fatos verdadeiros é narrar fatos que constroem a nação de acordo com determinados critérios. A periodização igualmente obedece a esse critério, Assim, as marcas no passado se fazem em um território pela ação de alguns protagonistas, deixando o autor de lado a incômoda tarefa de incluir neste espaço um corpo social ao qual tecia inúmeras críticas. Helena Miranda Mollo, História Geral do Brasil: entre o espaço e o tempo, in: Wilma Peres Costa e Cecília Helena de Salles Oliveira (orgs.), De um império a outro: estudos sobre a formação do Brasil, séculos XVIII e XIX, op. cit., p. 111.

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______________________________________TERCEIRO CAPÍTULO

INVENTANDO A COLÔNIA “COROADA”: OS ENREDOS TEMÁTICOS DA HISTORIA GERAL DO BRAZIL (1854/1857)

E O TEMPO SAQUAREMA

Levantar a questão de saber se essas verdades são verdades a serem

enunciadas é ser forçado a encarar de frente a verdadeira questão política: a

questão, tão velha quanto a filosofia política, de quando devemos endossar a

mentira enobrecedora. No mundo real da prática política, das alianças cotidianas

e das mobilizações populares, uma rejeição das raças e nações, na teoria, só

pode fazer parte do projeto de uma prática política coerente se pudermos

mostrar (...) não que a raça e a história nacional são falsidades, mas que elas

são, na melhor das hipóteses, falsidades inúteis, ou – na pior, perigosas.

[Kwame Anthony Appiah, Na Casa de Meu Pai].

A nação acata nos filhos, e ainda mais nos netos, os nomes e a sombra,

digamos assim, dos individuos que lhe deram illustração e glória, como nós em

sociedade veneramos até as suas reliquias; e não só o cadaver, como a espada

do heroe que morreu pela independencia da patria; a penna do escriptor que a

illustrou pelas lettras; o annel do prelado que foi modelo de saber e virtudes.

[Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil].

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3.1. A história geral da nação: cultura, história e identidade___________________________________

A invocação do passado, nas palavras de Edward Wadie Said, é uma das estratégias

políticas recorrentes nas interpretações das questões do presente. O que fundamenta esses apelos não é

apenas os embates quanto ao que ocorreu no passado e o que teria sido esse passado, mas também as

incertezas se o passado é de fato passado, morto e enterrado, ou se persiste teimosamente, mesmo que

encoberto por outras formas. Esse dilema suscita discussões de todo tipo sobre as influências,

responsabilidades e julgamentos, o que envolve lidar com as realidades presentes e prioridades futuras.1

O passado é por excelência um território de disputas do presente. Difícil isolá-lo das

vivências do mundo que o interpreta, mesmo com a pretensão ilusória de narrá-lo como realmente

aconteceu. Para o crítico literário palestino, mesmo que se deva compreender inteiramente aquilo no

passado que de fato já passou, não há nenhuma maneira de isolar o passado do presente.2

As disputas pelo passado vinculam-se ao projeto de construção e legitimação da noção de

nação e de identidade nacional. A História, a partir do século XIX, emergiu como instrumento importante de

uma pedagogia do cidadão, daquele que iria habitar o território da nação e traria no corpo e na alma as

suas marcas.3 Para constituir este sentimento de pertencimento haveria a necessidade de forjar uma

narrativa que determinasse a origem comum do todo que constituiria a nação, definindo o desenho de seu

território, suas belezas naturais, seu povo e seus feitos.

A narrativa permitiria estabelecer a conexão por intermédio da lembrança com os

antepassados, com os pais fundadores. A história da nação seria, a partir da lógica essencialista, a busca

da herança, do testamento. Como enfatizou Edward Wadie Said, as próprias nações seriam narrativas. O

poder de narrar, ou de evitar que se formem e surjam outras narrativas, seria muito importante no processo

de construção do projeto de nação e na colonização do outro. A arte da narrativa, por exemplo, seria uma

poderosa arma da cultura e do imperialismo, legitimando as conquistas, a posse da terra, das gentes e das

riquezas. As grandiosas e eloqüentes narrativas de emancipação e esclarecimento também mobilizariam

os espíritos dos povos do mundo colonial para que se erguessem e acabassem com a sujeição imperial.4

Ao narrar a nação, o seu artífice tem associado, ao longo do tempo, seus enredos e

tramas pelas determinações do conceito de cultura e identidade. A cultura serviria para diferenciar um nós

1 Edward Wadie Said, Cultura e Imperialismo, São Paulo, Companhia das Letras, 2005, p. 33. 2 Ibidem, p. 34. 3 Conferir: François Furet, A oficina da História, Lisboa, Gradiva, s.d. 4 Edward Wadie Said, Cultura e Imperialismo, op. cit., p. 13.

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de dos outros, quase sempre marcada por discursos com fortes e agressivos tons etnocêntricos e

xenofóbicos. Os outros internos e externos seriam os invasores, a impureza, a ruína da cultura nacional:

A cultura, neste sentido, é uma fonte de identidade, e aliás bastante combativa,

como vemos em recentes “retornos” à cultura e à tradição. Esses “retornos”

acompanham códigos rigorosos de conduta intelectual e moral, que se opõem à

permissividade associada a filosofias relativamente liberais como o

multiculturalismo. No antigo mundo colonial, esses “retornos” geraram vários

fundamentalismos religiosos e nacionalistas.5

A busca de uma cultura e identidade nacional sempre esteve impregnada da maldição da

obsessão pela pureza, em nome da essência perdida. Narrar o passado seria uma forma de restituir o

caráter verdadeiro de seu povo. Narrar a nação seria uma maneira de definir a sua identidade. Na

linguagem política, a identidade tem ocupado seu lugar de primazia, reequilibrando as distinções entre as

conexões escolhidas e as particularidades dadas.6

A palavra identidade, segundo Paul Gilroy, congregaria elementos significativos no

processo de eclosão de conflitos envolvendo diferenças culturais, étnicas, religiosas, “raciais” e nacionais.

Ao estabelecer o sentimento de pertencimento, forjando a hegemonia e soterrando ou hierarquizando as

diferenças, a máquina de guerra da identidade – representada pelas suas narrativas fundacionais –

emergiria a partir da eclosão dos conflitos, das resistências, da reação daqueles rotulados de outros, o que

não seriam o mesmo desejado e fabricado. Em outras palavras,

Quando as identidades nacionais e étnicas são representadas e projetadas como

puras, o contato com a diferença as ameaça com a diluição e compromete suas

purezas sobrevalorizadas com possibilidade crônica de contaminação. O

cruzamento como mistura e movimento deve ser assim resistido a todo custo.7

5 Ibidem, ibidem. 6 Segundo Pierre Ansart e Maria Stella Martins Bresciani, uma afirmaçãa identitária pode tanto favorecer a confiança em si como a agressividade em relação ao outro. Os sentimentos de superioridade, por sua vez, podem colaborar na legitimação da violência assim como os de inferioridade favorecem o desencorajamento. Não se pode negar, ainda, que os conflitos de identidade sustentam a dinâmica das hostilidades e, eventualmente, a dominação. Pierre Ansart e Maria Stella Martins Bresciani, Apresentação, in: Jacy Alves Seixas, Maria Stella Martins Bresciani e Marion Brepohl (orgs.), Razão e paixão na política, op. cit., p. 09. 7 Paul Gilroy, Entre campos: nações, culturas e fascínio da raça, São Paulo, Annablume, 2007, p. 132.

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Narrar o passado da nação, determinando sua herança cultural e biológico-racial,

implicaria o exercício de purificação. A segurança do presente estaria na construção da idéia de similitude,

da igualdade desde os tempos imemoriais, da origem primeira. Os outros, tidos como selvagens ou

anormais, os não-cidadãos, por esta lógica, precisariam ser no processo narrativo extirpados seja pela

separação, seja pelo massacre. Em alguns casos como o brasileiro, a exclusão estaria traduzida na

incorporação via mestiçagem, o que levaria à dissolução, ao desaparecimento no imenso rio caudaloso da

matriz primordial. Narrar seria também o processo de evidenciar e identificar o outro, o que não se quer

ser, para em seguida escondê-lo, enterrá-lo com a terra e o discurso. Para Paul Gilroy, mesmo a mistura

constituiria a prova de uma grande traição. A meta da narrativa em longo prazo sempre seria a busca da

pureza, do mesmo, do verdadeiro sujeito nacional europeu, branco, cristão e masculino.

Essa lógica essencialista e estática da identidade no processo de invocação do passado

tem convocado o estatuto da raça para se desenhar o retrato do sujeito nacional. Ela ajudaria a

estabelecer o padrão almejado no jogo da diferença, determinando a régua de medida civilizacional para

se inventariar o nós e os outros. A raça evidenciaria as lacunas, ausências e fragilidades inatas daqueles

que não seriam o povo da nação.8

Cabe destacar que as epopéias nacionais estão sempre carregadas de relatos que

exaltam a luta do povo contra os invasores, aqueles bárbaros que destroem a cultura e a civilização

legítima. A invasão está sempre associada à destruição, decadência e morte.9 Essas histórias de guerras

pela supremacia nacional estariam amparadas pela mentalidade de campo, constituída pelo apelo de

“raça”, nação e diferença étnica, pelos saberes de sangue, de corpos e pelas fantasias de identidade

cultural absoluta. Segundo Paul Gilroy, essas mentalidades trariam uma série de propriedades diversas

adicionais:

Elas agem por meio de apelos ao valor da pureza étnica e nacional. De imediato,

a sua potência biopolítica levanta questões de profilaxia e higiene, “como se o

corpo (social) tivesse de se assegurar de sua própria identidade expelindo

detritos”. Elas incitam a regulamentação da fertilidade mais prontamente do que

comandam a força de trabalho de seus afiliados. Onde a nação é um grupo

parental supostamente composto de grupos familiares uniformes e

8 Conferir: Stephen Jay Goud, A falsa medida do homem, 2ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 1999. 9 Para entender a temática das origens, invasões e decadência dos povos, conferir: Adilton Luis Martins, O agenciamento das Origens, a Antigüidade e o Anti-absolutismo no século XVIII, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual Paulista, Franca, 2007; Michel Foucault, Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France [Aula de 11 de fevereiro de 1976], São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 135-166.

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intercambiáveis, os corpos das mulheres proporcionam as bases prediletas para

se testar os princípios da obrigação, da deferência e do dever exigidos pelo

campo/nação.10

Os discursos de apologia de um passado comum, trazendo como motor gerador os

centrismos, revelam o peso da ideologia nacionalista. Conceitos duros de cultura e identidade, nas

palavras de Patrícia de Santana Pinho, que pregariam insistentemente a celebração da homogeneidade,

da pureza e da unanimidade, denunciariam a mentalidade de campo descrita por Paul Gilroy. A cultura

estaria petrificada e estéril, condenada a servir como prisioneira da obrigatoriedade nacional. Estes

pensamentos unicentrados operariam com base em uma lógica maniqueísta que contrapõe tradição à

modernidade, negro ao branco, pureza à mistura, genuinidade à ilegitimidade.11

Nessa perspectiva, a reflexão acerca da proposta de escrita de uma história geral não

pode prescindir da articulação dos conceitos de cultura, raça e identidade. A leitura crítica de textos

fundadores da nação só consegue desmontar os andaimes da construção da narrativa a partir da

problematização dessas noções geradoras. A identidade, articulada com a cultura e raça, precisa ser

dessacralizada, o que não significa ser ignorada ou menosprezada. O exercício genealogista sobre as

identidades, na sua variante nacional, implica assumir a tarefa de compreender os modos de fabricação do

discurso que a inventa e legitima.12 É um processo de dessacralização das verdades estabelecidas sobre a

formação do caráter da nação.13

Aqui os argumentos de Kwame Appiah são esclarecedores e provocativos no desenrolar

desse exercício desconstrucionista dos discursos fundadores da nacionalidade brasileira, a partir da leitura

que se propõe aqui fazer da 1ª edição da Historia geral do Brazil, de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-

1878):

Levantar a questão de saber se essas verdades são verdades a serem

enunciadas é ser forçado a encarar de frente a verdadeira questão política: a

questão, tão velha quanto a filosofia política, de quando devemos endossar a

10 Paul Gilroy, Entre campos: nações, culturas e fascínio da raça, op. cit., p. 109. 11 Patrícia de Santana Pinho, Reinvenções da África na Bahia, São Paulo, Annablume, 2004, p. 106. 12 Segundo Michel Foucault, a este exercício ele chamaria de genealogia, isto é, uma forma de história que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios do objeto, etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história. Michel Foucault, Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979, p. 07. 13 Para uma análise da obsessão dos interpretes do Brasil pelo estabelecimento das origens formadoras do Brasil, conferir: Margareth Rago, Sexualidade e identidade na historiografia brasileira, Revista Aulas, Dossiê Identidades Nacionais, Campinas, n. 02, out./nov. 2006, p. 01-36.

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mentira enobrecedora. No mundo real da prática política, das alianças cotidianas

e das mobilizações populares, uma rejeição das raças e nações, na teoria, só

pode fazer parte do projeto de uma prática política coerente se pudermos

mostrar (...) não que a raça e a história nacional são falsidades, mas que elas

são, na melhor das hipóteses, falsidades inúteis, ou – na pior, perigosas.14

As palavras de Kwame Appiah são um convite à necessidade de se adotar uma atitude

cética quanto às crenças de que a nação, o nacionalismo e a solidariedade racial possam significar a boa

nova, capazes de trazer a prosperidade no território da pátria, purificada dos males do racismo e dos

conflitos entre as nações.

Não se busca neste capítulo acerca dos enredos temáticos da Historia geral do Brazil a

definição da verdadeira identidade do Brasil e do ser brasileiro pela sua celebração ou contestação. Não se

deseja vislumbrar a identidade autêntica da nação nas entrelinhas da obra-monumento do visconde de

Porto Seguro. Denunciar os estereótipos e preconceitos presentes em suas páginas seria limitar o debate

ao campo do jogo das identidades, reafirmando rótulos e juízos de valores consagrados pela chamada

história das idéias no Brasil sobre o historiador sorocabano.

As tramas deste capítulo procuram atrelar os enredos temáticos, forjados por Varnhagen

para sua história geral, à lógica da cultura e da identidade essencializadas e fixas, que buscam delimitar a

nação como uma entidade unívoca e hegemônica e, mais ainda, como uma necessidade para o futuro da

humanidade. Entender os mecanismos como os germens e alicerces da nação foram buscados no

passado colonial brasileiro constitui o norte da bússola da navegação pelas seções da Historia geral do

Brazil. Tentar decifrar este discurso, da fabricação da nação como verdade, passa pela procura das

relações de poder e saber que a instituiu por meio da pena do visconde de Porto Seguro.15

14 Kwame Anthony Appiah, Na Casa de Meu Pai – A África na filosofia da cultura, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p. 244. 15 De acordo com Michel Foucault, a vontade de verdade, como outros sistemas de exclusão, presente na ordem dos discursos, apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedade de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas ela é também reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído. Recordemos aqui, apenas a título simbólico, o velho princípio grego: que a aritmética pode bem ser o assunto das cidades democráticas, pois ela ensina as relações de igualdade, mas somente a geometria deve ser ensinada nas oligarquias, pois demonstra as proporções na desigualdade. Enfim, creio que essa vontade de verdade assim apontada sobre um suporte e uma distribuição tende a exercer sobre os outros discursos – estou sempre falando de nossa sociedade – uma espécie de pressão e como que um poder de coerção. Penso na maneira como a literatura ocidental teve de buscar apoio, durante séculos, no natural, no verossímil, na sinceridade, na ciência também – em suma, no discurso verdadeiro. Michel Foucault, A ordem do discurso, 8 ed., São Paulo, Edições Loyola, 2002, p. 17-8.

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Na esteira do que propôs Durval Muniz de Albuquerque Júnior,16 o que se quer estudar é

como se constituiu um arquivo de imagens e enunciados, um estoque de fontes de verdades sobre o Brasil

do tempo de Varnhagen a partir da evocação, ou melhor, invenção discursiva do seu passado colonial.17

Em síntese, far-se-á a história da emergência de um objeto de saber – de um tempo e de

um espaço de poder: o passado colonial brasileiro. O passado definiria o campo de atuação de um saber –

a história; o colonial marcaria uma temporalidade; e o adjetivo brasileiro desenharia um território – o corpo

da nação. Na confluência destes elementos o povo e seus feitos entrariam em cena na trajetória linear

rumo à nação independente, aquela do presente do seu artífice.

Embora o próprio Varnhagen tenha feito ainda em vida revisões e anotações na sua

Historia geral do Brazil, publicando a 2ª edição em 1877, e posteriormente João Capistrano de Abreu

(1853-1927) e Rodolfo Garcia (1873-1949) tenham anotado e publicado outras edições,18, optou-se por

fazer a análise apenas da 1ª edição publicada em dois tomos respectivamente em 1854 e 1857.19

A intenção não foi buscar o texto mais autêntico de Varnhagen, mas estabelecer um

diálogo com o livro à luz das questões da definição do projeto da escrita de história do Brasil presentes nos

debates entre os letrados do período saquarema20 do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)

entre 1838, ano da sua fundação, e 1857, momento da publicação da Historia geral do Brazil.

16 Durval Muniz de Albuquerque Junior, A invenção do Nordeste e outras artes, 2 ed. Recife, FJN; Ed. Massangana; São Paulo, Cortez, 2001, p. 22. 17 Segundo Durval Muniz de Albuquerque Junior, como chama atenção Derrida em seu texto Mal de arquivo, nada do que ficou arquivado do passado o foi inocentemente. O arquivo, seja de textos, seja de objetos, é fruto de operações políticas de sentido. Mesmo aquele documento ou vestígio do passado que possa ter chegado até nós por puro acaso foi produzido no seu tempo obedecendo a intencionalidades, ou seja, as evidências em seu próprio tempo são fabricadas. (...) as evidências não são encontradas nos arquivos, são fabricadas pelos próprios procedimentos, aparatos e pressupostos teóricos e metodológicos do historiador. Durval Muniz de Albuquerque Junior, História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história, Bauru, EDUSC, 2007, p. 25-26. Conferir também: Jacques Derrida, Mal de arquivo: uma impressão freudiana, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001. 18 A 3ª edição da Historia geral do Brazil, publicada em 1906, revista por Capistrano de Abreu, corresponde apenas à parte da obra original, uma vez que um incêndio consumiu a oficina impressora. As edições seguintes foram revistas e anotadas por Rodolfo Garcia, que também incorporou ao texto as notas de Capistrano e do próprio visconde de Porto Seguro. 19 Para saber a história das edições da Historia geral do Brazil, conferir: Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007; Fernando José Amed, Atravessar o oceano para verificar uma vírgula: Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) lido por João Capistrano de Abreu (1853-1857), tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008 20 Como sugere Manoel Luiz Salgado Guimarães, cada época reinventa o legado que deseja assumir como seu legado presente, e essa tarefa cria a necessidade de repensar a história, especialmente para aqueles que a tomaram como o exercício de um oficio, de uma profissão e de um magistério. Nesse mesmo movimento, repensam as regras de seu ofício, redefinem as práticas que viabilizam o conhecimento do passado, reinventando a própria operação histórica num cenário de tensões e conflitos, a partir do qual a disputa pelo passado remete às disputas pela significação do presente. Manoel Luiz Salgado Guimarães, Apresentação – Um historiador à margem: Fustel de Coulanges e a escrita da história francesa no século XIX, in: François Hartog, O século XIX e a história: o caso Fustel de Coulanges, Rio de Janeiro, Ed. da UFRJ, 2003, p. 09.

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226

Para esses homens, na formulação de um discurso sobre a nacionalidade brasileira21

estaria a idéia do tempo da nação, formulada por Ilmar Rohloff de Mattos, que além de uma delimitação

cronológica – entre os últimos anos do período regencial e o renascer liberal da década de 1860 –

significaria uma lógica de ordenação do passado nacional comprometida de corpo e alma com a

construção do Estado imperial e a manutenção da sociedade senhorial:

Se é possível falar de um Tempo Saquarema é porque ele é a expressão, antes

de mais nada, das relações que os homens – as pessoas e coisas – mantinham

em seu existir cotidiano no Império do Brasil, em meados do século passado,

relações essas que, sob determinadas circunstâncias, tornavam essa sociedade

surgida da cunhagem da moeda colonial uma sociedade propriamente histórica,

isto é, uma sociedade onde os que tinham intenção de não apenas dominá-la,

mas sobretudo dirigi-la, erigiram como questões a origem e a instituição da

própria sociedade, seu evolver como uma possibilidade de conservação ou

transformação.22

Os construtores do Império, tendo em suas fileiras Varnhagen como seu operoso

historiador, não entendiam este tempo como algo diferente, nem o consideram como um produto da vida

dos homens em sociedade, quer em sua dimensão real quer em sua dimensão imaginária. Para eles, o

tempo era pensado e concebido, portanto, como um agente organizador:

De um lado, unindo o passado ao presente. De outro, possibilitando a passagem

de um momento anterior, sempre compreendido como desorganizado e bárbaro,

não obstante os aspectos positivos que o passado colonial encerrava, a um outro

momento, entendido como superior porque o lugar da Ordem e da Civilização.

Quer se tome um aspecto, quer se tome outro, esta ligação entre o passado e o

presente, construída pela linha do tempo e anunciadora de uma continuidade

futura, acabava por eleger um elemento de passagem, um ponto de união entre

21 Temístocles Américo Cezar definiu essa formulação como retórica da nacionalidade: penso que uma das características da cultura historiográfica oitocentista foi a produção de um discurso destinado a convencer, a persuadir, os brasileiros de que partilhavam um passado comum, bem como de um presente com a mesma identidade. Uma retórica da nacionalidade parece ser uma expressão cômoda para definir esse discurso, cuja característica é a dispersão de seus elementos constituintes. Temístocles Américo Cezar, A retórica da nacionalidade de Varnhagen e o mundo antigo: o caso da origem dos tupis, in: Manoel Luiz Salgado Guimarães (org.), Estudos sobre a escrita da história, Rio de Janeiro, 7Letras, 2006, p. 29. Conferir também: Temístocles Américo Cezar, L’écriture de l’histoire ao Brésil ao XIXe siècle. Essai sur une rhétorique de la nationalité. Le cas Varnhagen, tese de doutorado, EHESS, Paris, 2002. 22 Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema: a formação do Estado imperial, 5 ed. São Paulo, Hucitec, 2004, p. 296.

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dois momentos que, até então, para muitos eram considerados como

radicalmente diversos. Para os que teciam o que estamos denominando de

Tempo Saquarema, este ponto de união residia no ato de transferência da Corte

portuguesa do Velho para o Novo Mundo. E eles cuidaram de sublinhar a

imagem deste elemento de união, recuperando um termo incomum e revelador:

Transmigração.23

O interesse deste capítulo é enfocar ao máximo possível a obra individual,24 lê-la

inicialmente como importante fruto da imaginação criativa e interpretativa de Varnhagen, e em seguida

mostrá-la como parte da relação entre o projeto de escrita do IHGB e do Império brasileiro. Como advertiu

Edward Wadie Said, não se acredita

que os escritores sejam mecanicamente determinados pela ideologia, pela

classe ou pela história econômica, mas [defende-se] que estão profundamente

ligados à história de suas sociedades, moldando e moldados por essa história e

suas experiências sociais em diferentes graus. A cultura e suas formas estéticas

derivam da experiência histórica (...).25

Com base nessas premissas, abre-se o caminho para o processo de desmontagem dos

enredos temáticos criados por Varnhagen na construção da arquitetura da sua Historia geral do Brazil,

definida por Lucia Maria Paschoal Guimarães, como uma contribuição rara, que contrastava com a

escassa historiografia nacional da época, período em que poucos autores conseguiram ultrapassar os

limites da crônica.26

23 Ibidem, p. 297. 24 Embora Varnhagen produzisse uma narrativa fundada na construção do ser brasileiro a partir do homem universal, não se pretende neste capítulo forjá-lo como uma universalidade, uma chave para entender toda a totalidade do pensamento historiográfico do século XIX, pois este é também um universo multifacetado e permeado por diferentes leituras e interpretações. Como apontou Michel Foucault, não se pode conceber o individuo como uma espécie de núcleo elementar, átomo primitivo, matéria múltipla e muda na qual viria aplicar-se, contra a qual viria bater o poder, que submeteria os indivíduos ou os quebrantaria. Na realidade, o que faz que um corpo, gestos, discursos, desejos sejam identificados e constituídos como indivíduos, é precisamente isso um dos efeitos do poder. (...) O individuo é um efeito do poder e é, ao mesmo tempo, na medida em que é um efeito seu, seu intermediário: o poder transita pelo individuo que ele constituiu. Michel Foucault, Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France [Aula de 14 de janeiro de 1976], op. cit., p. 34. Para reflexões sobre a constituição de Varnhagen como sujeito do discurso pelo IHGB e por ele mesmo, conferir respectivamente os capítulos I e II. 25 Edward Wadie Said, Cultura e Imperialismo, op. cit., p. 23. 26 Lucia Maria Paschoal Guimarães, Francisco Adolfo de Varnhagen – História geral do Brasil, in: Lourenço Dantas Mota (org.), Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, 2, 2 ed., São Paulo, Ed. SENAC São Paulo, 2002, p. 77.

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3.2. Os enredos temáticos da Historia geral do Brazil: a narrativa da nação______________________

Ao compor as 54 seções ou capítulos, num total de mais de mil páginas, cujos conteúdos

se intercalavam com base na ordem cronológica dos fatos, Varnhagen tinha bem claro qual seria a sua

missão como historiador. Traçar as tramas do passado colonial era o caminho para explicar e legitimar as

ações do tempo presente. A determinação da origem nacional constituía-se para a sua geração

simultaneamente um problema teórico e uma aporia. Para Temístocles Américo Cezar, era um problema

teórico porque se precisava das duas questões ao mesmo tempo: quem somos e de onde viemos; uma

aporia pois uma e outra deslizavam constantemente para o início da cadeia cognitiva que deveria

estabelecer as condições e os limites do debate. Enquanto a questão quem somos era

vazada por polêmicas filosóficas, literárias e pretensamente científicas, que

inviabilizam a efetivação de uma proposição definitiva (ou “uma aquisição para

sempre”, de acordo com a máxima de Tucídides, modelo de historiador da maior

parte desses artesãos da nacionalidade, e mesmo do imperador); a segunda, “de

onde viemos”, implicava em procedimentos que justificassem as especulações e

mostrassem os caminhos “verdadeiros” da formação do “ser brasileiro”. Em

meados do século XIX, parecia difícil aos homens de letras negar a natureza

compósita do que viam: uma sociedade efeito da presença e cruzamento do

europeu, do africano e do indígena.27

Diante destes dilemas, Varnhagen se posicionou em defesa da matriz européia – a

portuguesa – como motor civilizador no processo de formação do Brasil e na construção interpretativa de

uma história geral como uma continuidade da história da metrópole. Nas primeiras seções da primeira

edição da Historia geral do Brazil este posicionamento fica evidente quando inicia sua narrativa com o tema

do descobrimento da América central, destacando os feitos do descobridor Cristóvão Colombo (1337/1448-

1506). O nascimento do Brasil estava umbilicalmente ligado à sua mãe-pátria portuguesa, a sua metrópole.

Os índios, como parte da flora e fauna da nova terra, apareceriam somente na oitava seção. Para o

27 Temístocles Américo Cezar, A retórica da nacionalidade da Varnhagen e o mundo antigo: o caso da origem dos tupis, in: Manoel Luiz Salgado Guimarães (org.), Estudos sobre a escrita da história, op. cit., p. 29-31.

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visconde de Porto Seguro, num primeiro momento, a disposição deste enredo temático e cronológico seria

a proposta mais correta para se entender a integração do Brasil na história da humanidade (européia):

A secção 7.ª, bem como as tres seguintes poderiam passar ao principio da obra

sem prejudicar o arranjo total della. Pareceu-nos porem que com o methodo que

nesta edição, pelo menos, adoptamos, a ligamos melhor á historia da

humanidade em geral, na qual a do nosso paiz há-de um dia vir a figurar.28

A proposta de Varnhagen se diferenciava neste ponto da monografia premiada pelo IHGB

sobre como deveria ser escrita a história do Brasil, de autoria do naturalista bávaro Karl Friedrich Philipp

von Martius (1794-1868). O seu plano definia a pesquisa da história da nação recém-independente em

quatro grandes temas: 1. Idéas gerais sobre a historia do Brasil; 2. Os indios (a raça côr de cobre) e sua

historia como parte da Historia do Brasil; 3. Os portugueses e a sua parte na Historia do Brasil; 4. A raça

Africana em suas relações para com a historia do Brasil.29 Pela ordem estabelecida por von Martius, os

índios teriam chegado antes das embarcações portuguesas aportarem nessas terras tropicais:

Qualquer que se encarregar de escrever a Historia do Brasil, paiz que tanto

promette, jamais deverá perder de vista quaes os elementos que ahi concorrerão

para o desenvolvimento do homem.

São porém estes elementos de natureza muito diversa, tendo para formação do

homem convergido de um modo particular tres raças: a de côr de cobre ou

americana, a branca ou caucasiana, e emfim a preta ou ethiopica. Do encontro,

da mescla, das ralações mutuas e mudanças d’essas tres raças, formou-se a

actual população, cuja historia por isso mesmo tem um cunho muito particular.

Póde-se dizer que a cada uma das raças humanas compete, segundo a sua

índole innata, segundo as circumstancias debaixo das quaes ella vive e se

desenvolve, um movimento histórico característico e particular. Portanto, vendo

nós um povo novo nascer e desenvolver-se da reunião e contacto de tão

28 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral Brazil, tomo I, Madrid, Imprensa da V. de Dominguez, 1854, nota no fim, nº 44, p. 446. 29 Para saber sobre a proposta de von Martius e sua trajetória intelectual, conferir: Kaori Kodama, Os filhos das brenhas e o Império do Brasil: A etnografia no Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (1840-1860), tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura, Pontifícia Universidade Católica do Rio Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.

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differentes raças humanas, podemos avançar que a sua historia se deverá

desenvolver segundo uma lei particular das forças diagonais.30

Embora dialogasse com a proposta do naturalista, Varnhagen fez uma opção cronológica

ao invés de temática para o desenvolvimento da sua narrativa e apresentou os indígenas somente a partir

da oitava seção. Num aspecto em particular dentre outros, von Martius e Varnhagen apresentavam uma

posição de consenso, era quanto ao papel do português no processo de formação da sociedade brasileira:

Cada uma das particularidades physicas e moraes, que destinguem as diversas

raças, offerece a este respeito um motor especial; e tanto maior será a sua

influencia para o desenvolvimento comum, quanto maior fôr a energia, numero e

dignidade da sociedade de cada uma d’essas raças. D’isso necessariamente se

segue o portuguez, que, como descobridor, conquistador e senhor,

poderosamente influiu n’aquelle desenvolvimento; o portuguez, que deu as

condições e garantias moraes e physicas para um reino independente; que o

portuguez se apresenta como o mais poderoso e essencial motor. (...)

Jámais nos será permittido duvidar que a vontade da providencia predestinou ao

Brasil esta mescla. O sangue portuguez, em um poderoso rio deverá absorver os

pequenos confluentes das raças India e Ethiopica.31

Claro está que, se o elemento europeo é o que essencialmente constitue a

nacionalidade actual, e com mais razão (pela vinda de novos colonos da Europa)

constituirá futura, é com esse elemento cristão e civilisador que principalmente

devem andar abraçadas as antigas glorias da patria, e por conseguinte a historia

nacional. Abrace embora exclusivamente os Africanos e a sua causa o

historiador do captiveiro, impiamente importado, desses infelizes; abrace ainda

mais ternamente os Indios, e defenda, com o hallucinado P. Las Casas, a

resistencia que opposeram e opõem a libertar-se da escravidão da

anthropophagia selvagem, em que jaziam e jazem, o historiador dos Indios; -- a

historia da actual nação, -- a historia geral da civilização do Brasil, deixaria de ser

30 Karl Friedrich Philipp von Martius, Como se deve escrever a história do Brasil, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 06, 1844, p. 389-390. 31 Ibidem, p. 390-391.

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logica com o seu proprio titulo, desde que aberrasse de symphatisar mais com o

elemento principalmente civilisador.32

Definida sua rota de viagem, tomando Portugal como ponto de partida para a história do

Brasil, Varnhagen lançou as velas ao mar para forjar a sua epopéia, fazendo a invocação do passado

glorioso da pátria que escolhera para se abrigar. De acordo com Arno Wehling, Varnhagen foi sem sombra

de dúvidas um coerente lusófilo no quadro geral do processo civilizador,

uma vez que a obra portuguesa fora responsável pela extensão territorial do país

e pela sua unidade política. As situações e fatos que favoreceriam ou

prejudicavam essas características – as quais viabilizariam o Brasil independente

do século XIX – foram devidamente avaliados e apresentados quando da

narração dos acontecimentos.33

Escrever a história do Império do Brasil era imortalizar o reinado de seu soberano D. Pedro

II, a quem dedicou sua Historia geral do Brazil. Ele cumpria, por este raciocínio, a missão do IHGB e do

Império – fomentar o estudo da Patria Historia, tão importante ao esplendor da Nação, á instrucção comum

e ao bom governo do paiz.34

Sob o majestoso manto do imperador, Varnhagen desejava encontrar a proteção e o

reconhecimento da casa da memória nacional, bem como do Estado imperial do qual fazia parte como

diplomata:

O autor do presente ensaio de uma compendiosa HISTORIA GERAL DO

BRAZIL, votada áquella associação, de que faz parte, e a cujas publicações e

impulso tanto deve, beija pois reverentemente com o mais espontaneo fervor a

Mão do Sabio Imperante, que protegeu tambem esta obra, não só Protegendo o

mesmo Instituto, senão Favorecendo e Estimulando o autor della com Regia

Munificencia.

SENHOR! Ao alistar-me em último logar entre os chronistas da Terra de Santa

Cruz, afanei-me por estremar patrioticamente os factos mais importantes, e por

32 Francisco Adolfo de Varnhagen, Discurso Preliminar: Os indios perante a nacionalidade brazileira, in: História geral do Brazil, Madrid, Imprensa da V. de Dominguez, 1857, p. XXV. 33 Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, p. 187. 34 Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral do Brazil, op. cit., 1854, dedicatória.

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os referir com a maior imparcialidade; e a tal respeito a voz da consciencia não

me accusa mínimo escrupulo. E Dignando-se Vossa Magestade Imperial acolher

benignamente este trabalho, que, apezar das suas irregularidades e rudeza que

a lima do tempo irá afeiçoando, ousei dedicar a Vossa Magestade Imperial,

desvaneço-me a publicar que ao Seu Glorioso Reinado, eminentemente

organisador como a seu tempo dirá friamente a Historia, devi todos os elementos

para ele.35

Antes de apresentar os eixos conceituais que balizarão a análise dos enredos temáticos

da Historia geral do Brazil, a dedicatória de Varnhagen carece de algumas ponderações acerca da forte

marca do tempo saquarema na sua construção.

Primeiro ponto: o historiador sorocabano apresentou a sua obra máxima dentro da

cronologia do Brasil após as turbulências do período regencial, responsável pela fragilidade do Império

nascente. A Historia geral do Brazil seria o fruto dos anos de estabilidade e paz promovidos pelo reinado

de D. Pedro II, assim como o discurso ordenador que estabeleceria a ordem da marcha temporal desde os

tempos coloniais até aquele momento tido como sublime da história da nação. Havia de imediato um

comprometimento da ordenação do passado com o próprio tempo do historiador, o da sua experiência

vivida e compartilhada.

Segundo ponto: por ser um dos instrumentos ordenadores do tempo e da ordem, a Historia

geral do Brazil como definidora das origens e da instituição da sociedade apresentava o compromisso de

relatar seu desenvolvimento como uma possibilidade de conservação ou transformação. Ela seria

conservação na medida em que pregava a continuidade da herança portuguesa (a metrópole) no presente

da nação brasileira (antiga colônia), manifesta na própria sucessão do trono; transformação a partir do

momento que rompia com as fissuras latentes dos tempos das rebeliões regenciais.

Para Varnhagen, as turbulências dos farrapos e cabanos, a semelhança dos movimentos

de emancipação abomináveis dos mineiros, baianos e pernambucanos que ocorreram nas vésperas da

independência, só poderiam constituir narrativas de períodos de crise, sujeitos à censura, ao silêncio ou ao

esquecimento. Estes movimentos de fragmentação só poderiam ser, pela lógica do tempo saquarema, do

qual o visconde de Porto Seguro influenciara e era influenciado, um entrave à ordem e à centralização do

Estado imperial. Segundo Ilmar Rohloff de Mattos, para os saquaremas, a preservação da ordem e a

difusão de uma civilização emergiam como objetivos fundamentais:

35 Ibidem, ibidem.

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eram também os meios pelos quais empreendiam a construção de um Estado e

possibilitavam a constituição de uma classe. Por sua vez, e de modo

necessariamente complementar, a construção do Estado imperial e a

constituição da classe senhorial tornavam-se não apenas os resultados de uma

intenção traduzida em ação, mas também os requisitos que asseguravam a

ordem e difundiam a civilização. 36

Nesse contexto, a manutenção de uma ordem para os saquaremas não significava apenas

prevenir ou conter os diferentes crimes, reprimir os levantes urbanos, silenciar as lutas pela posse da terra,

combater as revoltas escravas ou destruir quilombos, mas também procurava conhecer a população do

Império, sua distribuição e ocupação, vigiando aqueles que eram sempre vistos como vadios e

desordeiros. A tarefa de preservar a ordem

significava, efetivamente, garantir a continuidade das relações entre senhores e

escravos, da casa-grande e da senzala, dos sobrados e dos mocambos; do

monopólio da terra pela minoria privilegiada que deitava suas raízes na Colônia e

no tempo da corte portuguesa no Rio de Janeiro; das condições que geravam a

massa de homens livres e pobres, reforçadores do monopólio da violência pelos

senhores rurais ou agregados às famílias urbanas. Significava ainda garantir a

reprodução das relações com o mundo exterior, capitalista e civilizado, por meio

da prevalência da coroa, propiciadora da associação estreita entre negócios e

política e da dominância do capital mercantil. Significava ainda mais: o

monopólio da responsabilidade pelo soberano, exercido por meio dos políticos

imperiais. Significava também preservar a integridade territorial do Império,

embora preservando as diversas regiões e a preponderância da região de

agricultura mercantil-escravista, e dentro desta a prevalência do "Sul", polarizado

pela corte, depositária dos olhos vigilantes do soberano. Significava, no fundo e

no essencial, reproduzir os “três mundos” do Império do Brasil, a hierarquia entre

eles e no interior de cada qual, timbrando não só a diferença entre pessoas e

coisas - isto é, os escravos -, mas também entre as próprias pessoas - o povo e

a plebe -, de tal forma que o “lugar” de cada um se definia pelos nexos pessoais

36 Ilmar Ruhloff de Mattos, Do Império à República, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 02, n. 04, 1989, p. 166.

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que conseguia construir e ter, tanto com aqueles que se situavam imediatamente

“acima” quanto com os que vinham “abaixo”.37

Por esta razão, a escrita da sua história geral só seria possível à luz das benesses do

reinado de D. Pedro II – pelo estabelecimento da ordem e do poder centralizador, elementos fundamentais

para o processo civilizador do Brasil. Na dedicatória, Varnhagen evidencia tal interpretação quando

formulou que na narrativa do passado colonial encontraria as bases para a explicação do presente, da

verdade do Segundo Reinado, pois para o mais humilde e leal súdito o Império era uma realidade

inquestionável e inevitável. O futuro da nação coroada estava definido pelo seu passado e presente.

Numa articulação semelhante à elaborada até aqui, Arno Wehling observou que no

diagnóstico do visconde de Porto Seguro, assim como dos letrados reunidos no IHGB, nos anos 1840 e

1850,

parecia evidente que a consciência nacional não era algo solidamente

estabelecido. A secessão provincial nas regências, o afastamento geográfico, a

existência de indígenas e escravos eram fatores intranqüilizadores para este

ponto de vista. Cabia, assim, à intelectualidade promover, por meio dos estudos

históricos, o desenvolvimento desta consciência, tornando-se um acelerador da

história.38

Essas considerações a partir da dedicatória à figura de D. Pedro II na Historia geral do

Brazil permitem traçar com maior clareza os contornos da arquitetura cronológica e temática da sua

narrativa, amparados nas articulações entre os conceitos fixos e essencializantes de cultura e identidade.39

Traçar os enredos da escrita da história nacional, forjadas pela pena de Varnhagen, nesse

exercício desconstrucionista permite que se reconheçam os significados políticos presentes na forma como

são inventadas as tradições e se invoca o passado. Segundo Stuart Hall, o passado continua a falar com o

mundo contemporâneo, mas já não o faz como um mero passado factual que se dirige aos leitores nos

manuais e compêndios, pois a relação com ele, como a relação de um filho com a mãe, é sempre já

37 Ibidem, ibidem. 38 Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 112. 39 Segundo Paul Gilroy, ao se considerar o poder das raízes e do enraizamento como base da identidade, deparava-se com invocações de organicidade que forjaram uma conexão incômoda entre os domínios conflitantes da natureza e da cultura. Elas fizeram com que a nação e a cidadania parecessem ser fenômenos naturais em vez de sociais – como que expressões espontâneas de uma distinção palpável numa harmonia interna profunda entre o povo e seus lugares de moradia. Paul Gilroy, Entre campos: nações, culturas e o fascínio da raça, op. cit., p. 154.

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“depois da separação”. O passado, embora encoberto pelo discurso da imparcialidade e da verdade, como

defendeu Varnhagen na sua dedicatória ao monarca,

é construído sempre por intermédio de memória, fantasia, narrativa e mito. As

identidades culturais são pontos de identificação, os pontos instáveis de

identificação e sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e da história.

Não uma essência, mas um posicionamento. Donde haver sempre uma política

de identidade, uma política de posição, que não conta com nenhuma garantia

absoluta numa ‘lei de origem’ sem problemas, transcendental.40

A partir desta afirmação, pode-se deduzir que identidade plenamente unificada, completa,

segura e coerente como se configura nas páginas da Historia geral do Brazil, bem como em outras obras

dos intérpretes do Brasil ao longo da primeira metade do século XX, seria uma fantasia ou invenção.

Embora acreditasse que estivesse realmente descrevendo o passado nacional como de fato aconteceu,

Varnhagen estava o inventando discursivamente com base no arranjo das fontes e na concepção almejada

de história e de nação.41

O visconde de Porto Seguro como um indivíduo da modernidade, em pleno século da

História, acreditava no ideal nacional. Não conseguia conceber o mundo sem o Estado nacional. Sem este

sentimento de identificação nacional, assim como seus contemporâneos, vivenciaria um profundo

sentimento de perda subjetiva – de deslocamento.42 Era um sujeito essencialmente territorializado,

marcado pela sina da quimera da origem e da tradição. Essas marcas podem ser vislumbradas no seu

apego às tradições aristocráticas, base para a consolidação de uma nação:

Entretanto por mais que correm os seculos, não ha paiz, embora blazone de mui

republicano, que não aprecie sua aristocracia; isto é a nobreza hereditaria; --

sendo que a tradição das famílias vem com o andar do tempo a constituir a

40 Stuart Hall, Identidade Cultural e Diáspora, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 24, 1996, p. 70. 41 De acordo com Stuart Hall, as culturas nacionais no mundo moderno se constituíram em uma das fontes primordiais da identidade cultural. As identidades não estariam inscritas nos genes, embora se pensasse que se fossem parte da natureza essencial. Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, 11 ed., Rio de Janeiro, DP&A, 2006, p. 47. 42 Ao abordar esta obsessão pela identidade nacional por parte da modernidade, Ernest Gellner teceu as seguintes considerações: A ideia de um homem sem uma nação parece impor uma grande tensão à imaginação moderna. (...) Um homem sem nação desafia as categorias reconhecidas e provoca repulsa (...) Um homem tem de ter uma nacionalidade, tal como tem de ter um nariz e duas orelhas. (...) Tudo isto parece óbvio, mas infelizmente não é verdade. Contudo, o facto de ter acabado por parecer tão obviamente verdadeiro constitui realmente um aspecto – talvez a essência – do problema do nacionalismo. Ter uma nacionalidade não é uma característica inata do ser humano, mas chega realmente a parece-lol. Ernest Gellner, Nações e nacionalismo, Lisboa, Gradiva, 1993, p. 19.

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historia da pátria. A nação acata nos filhos, e ainda mais nos netos, os nomes e

a sombra, digamos assim, dos individuos que lhe deram illustração e glória,

como nós em sociedade veneramos até as suas reliquias; e não só o cadaver,

como a espada do heroe que morreu pela independencia da patria; a penna do

escriptor que a illustrou pelas lettras; o annel do prelado que foi modelo de saber

e virtudes. A Alêm de quê, a experiencia prova que as aristocracias,

sustentáculos dos thronos, são ao mesmo tempo a mais segura barreira contra

as invasões e despotismos do poder, e contra os transbordamentos tyranicos e

intolerantes das democracias.43

Afirmações com estas ao longo da Historia geral do Brazil e também em outros escritos

têm apontado para o fato de que a consolidação estatal da nação era a sua obsessão. O Estado-nação era

prioridade e o povo era secundário:

O Estado forte, maior do que a sociedade, criador da nação e aperfeiçoador

pedagógico e étnico do povo – eis o ideal de Varnhagen. Tudo o mais –

representação, funções estatais, relações internacionais, formas de governo –

cede o passo ao objetivo maior de um Estado regenerador. Tudo o que destoa

deste padrão unitário, ou que o ameaça, é condenado: os indígenas que, no

interior, não se submetem à lei do Estado; o tráfico, porque introduz uma

população estranha à comunidade luso-brasileira (a condenação não se faz em

nome de direitos civis, filantropia ou do protagonismo dos economistas); o poder

político da grande propriedade, aqueles a que se referia como os “mandões” do

interior, porque diluíam a autoridade central; a liberdade da Igreja, porque

comprometia o regalismo.44

Na análise da justificativa de sua Historia geral do Brazil, bem como da própria narrativa,

pode-se identificar indícios de uma história jupiteriana, ou seja, uma história da soberania, uma história que

se desenvolveria na dimensão e na função da soberania. Segundo Michel Foucault,

43 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 79-80. 44 Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 91.

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O discurso histórico, o discurso dos historiadores, essa prática que consiste em

narrar a história permaneceu por muito tempo o que ela era de certo na

Antiguidade e o que era ainda na Idade Média: ela permaneceu por muito tempo

aparentada com os rituais de poder. Parece-me que se pode compreender o

discurso do historiador como uma espécie de cerimônia, falada ou escrita, que

deve produzir na realidade uma justificação do poder e, ao mesmo tempo, um

fortalecimento desse poder. Parece-me também que a função tradicional da

história, desde os primeiros analistas romanos até tarde na Idade Média, e talvez

no século XVII e mais tardiamente ainda, foi a de expressar o direito do poder e

de intensificar seu brilho. Duplo papel: de uma parte, ao narrar a história, a

história dos reis, dos poderosos, dos soberanos e de suas vitórias (ou,

eventualmente, de suas derrotas provisórias, trata-se de vincular juridicamente

os homens ao poder mediante a continuidade da lei, que se faz aparecer no

interior desse poder e em seu funcionamento; de vincular, pois, juridicamente os

homens à continuidade do poder e mediante a continuidade do poder. De outra

parte, trata-se também de fasciná-lo pela intensidade, apenas suportável, da

glória, de seus exemplos e de suas façanhas.45

A presença desta tradição de escrita da história em Varnhagen, que remontaria aos

pensadores romanos, pode ser vislumbrada a partir da presença de recursos retóricos na sua construção

discursiva da história da nação. Dentre as prescrições estabelecidas pelo visconde de Porto Seguro para o

oficio do historiador estavam três identidades: o erudito, o filósofo e o literato.46

Ao analisar a identidade do historiador como filósofo sob a perspectiva varnhageniana, a

Laura Nogueira Oliveira mostraria a influência dos pensadores da Antigüidade na sua concepção de

história. Como historiador-filósofo, ele defenderia que se buscasse no passado as dignas de louvadas e

eternizadas; ao mesmo tempo, a historia castigaria os maus, eternizando a desonra.47

Neste sentido, a história seria a magistra vitae por oferecer lições de virtude e incentivar

sua imitação e emolução. Em suas cartas, memórias, prefácios e livros, Varnhagen reforçava a idéia da

história como luz, pois, ao iluminar o passado e clarear o caminho percorrido pelos homens, era capaz de

45 Michel Foucault, Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France [Aula de 28 de janeiro de 1976], op. cit., p. 76-77. 46 Francisco Adolfo de Varnhagen, Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil (1852), Anuário do Museu Imperial, Petrópolis, Ministério de Educaçõ e da Saúde, vol. 09, 1948, p. 229-236. 47 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 20.

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apontar rumos e guiar os homens no presente.48 Neste sentido, Varnhagen abordava temáticas caras aos

antigos:

a função moral da história e o incentivo à imitação e à emulação, a convicção de

ser necessário escrever uma história imparcial, capaz de premiar e de

vilipendiar, a certeza de que escrevia a verdade histórica e a esperança de se

alcançar a eternidade graças à obra que se edificava. Esses pressupostos, por

sua vez, recebiam o aval de contemporâneos que reconheciam nele a

competência para escrever uma história segundo aquelas finalidades. A relação

com o pensamento clássico também pode ser constatada em várias passagens

da HGB [Historia geral do Brazil], nas quais Varnhagen faz referência a autores

como Cícero, Heródoto, Strabo, Tácito, ou em que o autor recomendava que se

buscassem informações na Ilíada.49

Por acreditar nesta concepção de história, Varnhagen esperava que sua Historia geral do

Brazil fosse útil não somente para os da sua época, mas também para a preservação da memória do

legado da monarquia brasileira – da história dos reis, da soberania, como diria Michel Foucault, e do

legado de seu oficio como historiador para a posteridade.

Para se compreender as representações da formação da nacionalidade brasileira,

produzidas por Varnhagen na sua Historia geral do Brazil, perseguir-se-á a seguinte questão: Como é

contada a narrativa da nação ou da cultura nacional?50

Diante das possíveis respostas a esta pergunta-problema, optou-se pela apropriação de

cinco elementos principais constituidores da narrativa da nação ou da cultura nacional eleitas por Stuart

Hall para se pensar o caso Varnhagen e a escrita da história do Brasil: 1. Origens – O Descobrimento do

Brasil; 2. Povo – Índios, Negros e Portugueses; 3. Mito fundacional – Invasões Holandesas; 4.

Continuidades – Independência do Brasil; 5. Invenção da tradição – o fardo do legado de uma história

geral.51

48 Ibidem, p. 57. 49 Ibidem, p. 67. 50 Para Homi K. Bhabha, as nações, assim como as narrativas, perdem suas origens nos mitos do tempo e efetivam plenamente seus horizontes apenas nos olhos da mente. Tal imagem da nação - ou narração - pode parecer excessivamente metafórica e impossivelmente romântico, mas é a partir dessas tradições do pensamento político e da língua literária que a nação surge como uma poderosa idéia histórica no ocidente. Homi K. Bhabha, Introduction: narrating the nation, in: Homi K. Bhabha (org.), Nation and narration, Londres, Routledge, 1990, p. 01 (tradução livre). 51 Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, op. cit., p. 52-56.

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Essas temáticas varnhagenianas se articularão conceitualmente com os elementos

formadores da narrativa da nação, servindo de ferramenta analítica para o desenvolvimento dos

argumentos deste capítulo. A intenção será como no processo da escrita Varnhagen manipulou esses

elementos mediado pelo impulso de unificação, existente no cerne das culturas nacionais. 52

Para Stuart Hall, o discurso da cultura nacional seria responsável pela construção de

identidades que seriam colocadas, de maneira ambígua, entre o passado e o futuro. Ele se equilibraria

entre a tentação por retornar a glórias passadas e o impulso por avançar ainda

mais em direção à modernidade. As culturas nacionais são tentadas, algumas

vezes, a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele “tempo

perdido”, quando a nação era “grande”, são tentadas a restaurar identidades

passadas. Este constitui o elemento regressivo, anacrônico, da estória da cultura

nacional. Mas freqüentemente esse mesmo retorno ao passado oculta uma luta

para mobilizar as “pessoas” para que purifiquem suas fileiras, para que expulsem

os “outros” que ameaçam sua identidade e para que se preparem para uma nova

marcha para a frente.53

Feita a eleição dos enredos temáticos, os próximos movimentos se concentrarão no

entendimento de como o visconde de Porto Seguro os agenciou na escritura da sua Historia geral do

Brazil, tendo em vista o projeto do IHGB e do Império de construção do passado desejado – aquele que

forjasse os sentimentos de lealdade, unidade e identificação simbólica. O Brasil Colônia como lugar do

discurso representaria o cenário ideal para a elaboração de uma nova experiência do tempo.54

Esse era o desafio-limite da geração saquarema, escrever uma história que organizasse o

tempo da nação a partir do evento da Independência, seja como ruptura, seja como continuidade. Era a

sina dos homens do tempo de Varnhagen erguer à glória um monumento que lhe faltava, e do qual

52 Segundo Ernest Gellner, a cultura deixou de ser apenas o adorno, a confirmação e a legitimação de um sistema social mantido também por constrangimentos mais drásticos e coercivos. A cultura é agora o meio necessário de comunicação comum, o elemento mais importante ou talvez, melhor ainda, a atmosfera comum mínima, no seio da qual os membros da sociedade podem, sozinhos, respirar, sobreviver e produzir. Para cada sociedade, tal sistema tem de ser aquele em que todos possam respirar, falar e produzir, tem de ser a mesma cultura. Ernest Gellner, Nações e nacionalismo, op. cit., p. 63. 53 Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, op. cit., p. 56. 54 Para Valdei Lopes de Araujo, a experiência do tempo não foi sempre a mesma, cada época forjou modos peculiares de relacionamento com essa dimensão central da existência humana. A formação do conceito moderno de história no Brasil teve seu começo a partir do processo geral de historicização da realidade que havia eclodido com os eventos que culminaram na Independência política em 1822: A Independência do Brasil enquanto Império separado do Reino de Portugal – e sua constituição como Estado nacional moderno – representou o desafio-limite para o quadro conceitual herdado do século XVIII luso-brasileiro. A constituição de um novo corpo político exigiu operações conceituais que dimensionassem o tipo de relacionamento com o tempo que a criação de uma individualidade histórica requeria. Valdei Lopes de Araújo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), São Paulo, Hucitec, 2008, p. 20.

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emanaria elevada honra aos que reunidos no IHGB oferecessem às vistas da nação como opífices do

majestoso edifício da nossa história.55

No encerramento da primeira seção da sua Historia geral do Brazil, Varnhagen arrogava

para si a missão patriótica de elevação da obra-monumento, uma nova certidão de nascimento para o

Brasil, nação-filha da mãe-pátria Portugal:

De mui tenros annos levantámos a essa ardua tarefa nosso pensamento,

desejosos de prestar este serviço ao paiz em que nascemos. Começamos por

colligir notas e documentos; trabalho ímprobo que nos consummiu muitos annos;

mas que era indispensavel para se apurar a verdade em muitos factos,

desconhecidos uns, outros transtornados ou offuscados pelo tempo. A’ medida

que avançavam proficuamente nossas pesquizas, que encontravamos novos

materiais para o projectado edifício, cobravamos maiores receios, ao conhecer

que o mesmo edifício reclamava de dia para dia mais habil architecto; pois que,

sem alargar as proporções nem perder de vista a indispensavel condição da

unidade, convinha aproveitar bem a crescente profusão dos materiaes, e

sobretudo ligal-os com não inadequado cimento. Ao antigo projecto cheio de fé e

de esperanças, como todos os projectos da mocidade, seguia-se o desanimo e o

abandono de tudo, quando impulso mais poderoso veiu suster nossas

locubrações.....56

Erigido o livro-monumento, cabe a tarefa de vasculhar seus alicerces e armações,

identificando seus traçados e contornos. Aqui não há a preocupação de se fazer o esforço de separar

afirmações sobre a realidade das asserções sobre como deveria ser a realidade. Tal dispensa de se

pensar dentro desta lógica foi explicitada da seguinte maneira por Tomaz Tadeu da Silva:

Da perspectiva da noção de discurso, estamos dispensados dessa operação, na

medida em que tanto supostas asserções sobre a realidade quanto asserções

55 Januário da Cunha Barboza, Discurso, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 01, 1839, p. 15. Cabe lembrar que a aceleração do tempo e a consciência do tempo presente têm como conseqüência direta uma aguda percepção da finitude, seja individual, geracional ou coletiva. Essa percepção explicaria a obsessão pelas ruínas e pelos monumentos do passado como um dos efeitos dessa consciência da finitude. Por isso, ao lado das demandas por sentido e direção, de maneira complementar, a preocupação com a história também assumia a função de registro monumental do presente, ou seja, de memória. O projeto da História Geral do Brasil, tal como debatido no IHGB, culminava estas duas demandas: sentido e monumentalização. Valdei Lopes de Araujo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), op. cit., p. 187-88. 56 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 10-11.

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sobre como a realidade deveria ser têm ‘efeitos de verdade’ similares. Para dizer

de outra forma, supostas asserções sobre a realidade acabam funcionando

como se fossem asserções sobre como a realidade deveria ser. Eles têm o

mesmo efeito: o de fazer com que a realidade se torne o que elas dizem que é

ou deveria ser. 57

3.3. Origens: O Descobrimento do Brasil___________________________________________________

Para o visconde de Porto Seguro, a história do Brasil era a narrativa da conquista do

território e de sua colonização pelo português. As origens58 da futura nação estavam na sua vinculação

maternal com o Império Português. A história do Brasil teria seu começo em terras lusitanas, do outro lado

do Atlântico. A pátria dos grandes navegadores seria a responsável pela integração do Brasil na rota da

grande história, livre da barbárie e do isolamento.

O Brasil, como observou Lucia Maria Paschoal Guimarães, na perspectiva de Varnhagen,

era percebido como uma criação do Império ultramarino português, desde o desembarque da esquadra de

Pedro Álvares Cabral (c. 1467-1520) até à emancipação da condição de colônia, em virtude da

transmigração da família real em 1808 e o fim do monopólio comercial.59 Por esta razão, ele dedicaria as

duas primeiras seções do tomo I da sua Historia geral do Brazil ao tema dos descobrimentos.

A descoberta do Brasil, na sua leitura, seria obra da maestria e do gênio do povo lusitano,

da história do progresso do espírito humano, cuja idéas mais fecundas necessitam de muito tempo para

germinarem e fructificarem.60 A partir da inspiração dos gregos e dos fenícios, grandes navegadores,

Varnhagen relatou a saga de Portugal na busca de novos caminhos para o Oriente pelo enfrentamento do

temível e desconhecido oceano Atlântico. Este projeto encontraria na dinastia de Avis os seus grandes

empreendedores, traduzidos nas figuras de D. João I (1357-1433) e do infante D. Henrique (1394-1460):

57 Tomaz Tadeu da Silva, Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo, 2 ed., Belo Horizonte, Autêntica, 2001, p. 13. 58 A ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade, segundo Stuart Hall, seria uma das marcas do processo de constituição da identidade nacional. Ela seria representada como primordial – “está lá, na verdadeira natureza das coisas”, mas algumas vezes adormecida, mas sempre pronta para ser “acordada” de sua longa, persistente e misteriosa sonolência”, para reassumir sua inquebrantável existência. Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, op. cit., p. 53. Para Michel Foucault, a origem está sempre antes da queda, antes do corpo, antes do mundo e do tempo; ela está do lado dos deuses, e para narrá-la se canta sempre uma teogonia. Michel Foucault, Microfísica do Poder, op. cit., p. 18. 59 Lucia Maria Paschoal Guimarães, Francisco Adolfo de Varnhagen – História geral do Brasil, in: Lourenço Dantas Mota (org.), Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, 2, op. cit., p. 80. 60 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 03.

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D. João I de Portugal, o chefe da illustrada dynastia d’Aviz, desejoso de estender

mais o seu pequeno reino, por meio de conquistas sobe os infieis, passou a

desalojal-os de Ceuta; e seus herdeiros prosseguiram n’esse grande

pensamento, apoderando-se de outras terras dos Algarves d’Africa.

O infante D. Henrique,filho d’aquelle rei, propoz-se a diminuir a riqueza e por

consequencia a importancia do Egyto, bloqueando-lhe o seu rendoso

commercio da especiaria, não do lado do Mediterraneo, mas com muito maior

ousadia, pelos mares do Oriente, que tratou de buscar, emprehendendo chegar

á India por meio da circumnavegação d’Africa.61

Nesta citação pode-se identificar as motivações que alimentaram o projeto de expansão

marítima português: o comércio com o Oriente e o espírito evangelizador. Para Varnhagen, era uma guerra

comercial e santa que se travava naquele momento.62

Navegar e conquistar era o destino, a missão do povo português, pela ótica

varnhageniana. Era uma empresa tão ousada, segundo o historiador sorocabano, que não podia ser obra

de uma só geração de monarcas.

O infante D. Henrique morreu antes de ver realisado seus planos; mas com elle

não morreu o ardor avante. E em quanto D. João II se esmerava em perseguil-

os, enviando todos os esforços, e quando suas expedições haviam ja descoberto

o promontorio mais austral das terras d’Africa (que o mesmo rei, por elle bem

esperançado, denominou, apezar de tormentoso, Cabo da Boa Esperança),

apresentou-se na sua corte outro projecto mais audaz para chegar ás plagas

orientaes da Ásia e aos paizes d’onde vinha a especiaria, por um rumo

inteiramente opposto ao que se estava tenteando havia maio seculo.63

Para Varnhagen, o êxito desta empresa era o resultado de uma liderança forte e

centralizadora. A existência de um Estado unido, centralizador e marcado pelos traços da civilização e da

fé cristã seria o meio para realização de grandes feitos – expansão, conquista e colonização. Não é sem

61 Ibidem, p. 02. 62 De acordo com José Carlos Reis, com base na leitura da Historia geral do Brazil, a descoberta do Brasil se deu no contexto destas duas guerras, que tinham criado duas controvérsias na Europa. A primeira controvérsia referia-se à estratégia de tomada da Terra Santa e segunda à estratégia para se atingir diretamente as Índia, evitando-se os intermediários muçulmanos e outros europeus da rota terrestre tradicional. José Carlos Reis, As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, 2 ed. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 1999, p. 37-38. 63 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 04.

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justificativa que nas primeiras páginas da sua Historia geral do Brazil nota-se a presença marcante de reis

e príncipes como símbolos da unidade e poder do Estado desejado, aquele que se sai vitorioso. A origem

do Brasil estaria no motor do sangue e da tradição dos portugueses, liderados por uma monarquia forte.

Ela seria o legado dos feitos dos monarcas.

Evidencia-se nestas afirmações de Varnhagen sobre a legitimidade da origem portuguesa

e monárquica do Brasil as marcas da teoria da soberania, descrita por Michel Foucault, que constitui o

sujeito:

ela visa fundamentar a unidade essencial do poder e se desenvolve sempre no

elemento preliminar da lei:. Tríplice “primitivismo”, pois: o do sujeito que deve ser

sujeitado, o da unidade do poder que deve ser fundamentada e o da legitimidade

que deve ser respeitada. Sujeito, unidade do poder e lei: ai estão, creio eu, os

elementos entre os quais atua a teoria da soberania que, a um só tempo, os

confere a si e procura fundamentá-los.64

Com base em profícua pesquisa documental, o visconde de Porto Seguro procurou

explicar, à luz da verdade dos fatos, a emergência do Brasil no novo continente recém-descoberto pelo

navegador genovês Cristóvão Colombo, tendo como referência o Tratado de Tordesilhas. A questão que

norteava sua escrita se traduzia na seguinte formulação:

Como e quando se inteirou Portugal da existencia do legado, a que com poucos

annos de antecipação dera herdeiro o tratado testamentario de Tordesilhas,

como o descuidou a principio, e o beneficiou e aproveitou depois; e finalmente

como, atravez de muitas vicissitudes (incluindo acomettimentos e guerras por

parte de gentes de quatro nações, que alem de Portugal, mas se occuparam de

colonias do seculo dezeseis para cá, isto é, da Hespanha, França, Inglaterra e

Hollanda), veiu a surgir, na extensão do território que o mesmo legado abarcava,

um novo Imperio a figurar no Orbe entre as nações civilisadas, regido por uma

das primeiras dynastias de nossos tempos..... tal é o assumpto da Historia Geral

do Brazil que nos propomos escrever, se as forças não nos faltarem para levar

ávante nosso empenho.65

64 Michel Foucault, Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France [Aula de 21 de janeiro de 1976], op. cit., p. 50. 65 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 10-11.

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Nesta formulação introdutória, Varnhagen anunciou aos seus leitores a que veio. Ditava de

forma clara o fio condutor de sua narrativa, determinando o roteiro de sua epopéia da nação brasileira. No

Tratado de Tordesilhas identificou a carta testamentária que legava ao reino português aquela extensão de

terra ao sul do Atlântico.

O tratado seria a prova do direito de posse. O Brasil não seria o resultado meramente de

um milagre ou uma corrida para se saber quem chegou primeiro, mas sim de um acordo diplomático:

Nesta conformidade a linha divisória imaginaria, deveria passar 370 leguas, isto

é 23 gráos, 14 minutos e 51 segundos para o poente da Ponta do Tarrafal, na

Ilha de Santo Antão, que é a paragem mais ocidental do archipelago; vindo

assim o meridiano de demarcação a cair um pouco a loeste do Pará e da

Laguna.

As terras pois que se encontrasse, d’esse meridiano para leste deveriam logo ser

adjudicadas a Portugal; e neste caso, em virtude das anteriores bullas, tinham de

ser administradas pela insigne ordem de Christo, da qual era grão-mestre, não já

o Infante D. Henrique, fallecido trinta e tres annos antes, mas sim seu primo o

Duque de Viseu D. Manoel, que depois herdou a corôa portugueza, reunindo em

si a administração e padroado da dita ordem, e que, em tudo venturoso,

recebêra em Tordesilhas um legado que se póde dizer se continha em um

testamento, cujos sellos só em devido tempo se deveriam romper.

Assim este legado, que abrangia grande parte das terras do actual Imperio do

Brazil, ainda desconhecidas aos Europeus, veiu a pertencer a Portugal, não em

virtude do chamado direito de conquista, ou do de descobrimento, equivalente ao

do primeiro occupante; mas sim em virtude de um tratado solemne, feito com a

nação que descobrira as Indias Occidentaes, e sancionado pelo Summo

Pontifice, que então, perante as potencias christãs da Europa, ainda não

dissidentes por scismas ou heresias, e formando todas uma especie de

confederação de que era chefe o mesmo Pontifice, tinha para as mesmas a força

e prestigio de um direito a que ellas proprias se haviam sujeitado. Os que

criticam a ingerencia da Santa Sé neste negócio esquecem-se de que não vivem

no seculo em que ella teve logar.66

66 Ibidem, p. 09-10.

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Por esta razão, munido de notas e documentos coligidos, traçou os antecedentes da

convenção da diplomacia ibérica, que sob as bênçãos da Santa Sé dividiu o Novo Mundo, entre as coroas

portuguesa e espanhola.67

A partir do tratado-testamento, Varnhagen desvendou os caminhos que iriam conduzir a

história do Brasil da sua condição de colônia até a sua constituição como uma nação. Nesta origem

evidenciada e comprovada pelos documentos oficiais estariam as tramas que desenhariam as páginas das

lutas da conquista, da colonização e do domínio português na América. A preservação desta origem da

nação brasileira estaria sempre presente nos conflitos contra as gentes de quatro nações – Espanha,

França, Inglaterra e Holanda.

As sucessivas tentativas de invasão da colônia portuguesa no Novo Mundo, perpetradas

por essas nações, seriam as marcas da queda, das ameaças de divisão e fragmentação do território que

formaria a planta do futuro Império do Brasil. A superação destas invasões, por meio de lutas e guerras, e

o restabelecimento da ordem e da unidade significaria a redenção ou a restauração da origem primeira.

Nas páginas da Historia geral do Brazil, Varnhagen narraria com eloqüência esses episódios de luta contra

o invasor – o inimigo interno ou externo – responsável pela queda da colônia e sua conseqüente

degeneração e pelo fim da sua unidade. Na defesa da unidade estaria também a conservação do mito de

origem do Brasil, ou seja, da sua matriz portuguesa no sangue, na cultura e no governo.68

Em síntese, nas suas páginas encontram-se sucessivas histórias das lutas dos

portugueses (fundadores) e brasileiros (herdeiros) pela preservação da origem, sempre restaurada a cada

expulsão ou domínio do outro invasor.

Para o visconde de Porto Seguro, o Brasil encontrou-se com a história no contexto das

viagens e grandes navegações. O anúncio da sua descoberta seria evidência de sua existência. Embora

Varnhagen reconhecesse, amparado em minuciosa pesquisa, que a costa setentrional do continente

americano tivesse sido visitada por navegantes nórdicos, quatro séculos antes da viagem de Cristóvão

Colombo, e os navegantes castelhanos Alonso de Hojeda (c. 1468-1515) e Vicente Yanez Pinzón (1462-

1514) houvessem visitado o litoral Norte e Nordeste brasileiro antes da chegada da esquadra de Cabral em

67 Para Lucia Maria Paschoal Guimarães, Varnhagen identificou nos interesses do comércio das especiarias do Oriente o grande motor que impulsionou o movimento das navegações do início da era moderna e que culminou com o descobrimento do Novo Continente. Lucia Maria Paschoal Guimarães, Francisco Adolfo de Varnhagen – História geral do Brasil, in: Lourenço Dantas Mota (org.), Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, 2, op. cit., p. 81. 68 Para uma reflexão acerca da presença do legado cristão da origem, queda e restauração no discurso histórico no mundo ocidental, conferir: Adilton Luis Martins, O agenciamento das Origens, a Antigüidade e o Anti-absolutismo no século XVIII, op. cit., 2007, capítulo I.

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1500, a verdadeira descoberta e posse da terra era de Portugal por uma questão de diplomacia.69 Daí,

como afirmou Lucia Maria Paschoal Guimarães, a tranqüilidade com que o historiador-diplomata

reconheceu os testemunhos anteriores à viagem de Cabral:

Do ponto de vista do historiador, reconhece a autenticidade e veracidade das

fontes que demonstram a precedência daqueles pilotos. Porém, como homem de

chancelaria, reflete que tais empreendimentos constituíam ações sigilosas, cujos

resultados teriam sido sonegados pela Casa de Castela. Portanto, conclui que a

passagem daqueles precursores pela costa brasileira não poderia ferir o direito

dos portugueses às terras encontradas por Cabral.70

Contudo, Varnhagen não deixou de registrar a descoberta do Brasil como tributária da

necessidade da Coroa portuguesa de buscar uma nova rota para o comércio das especiarias do Oriente.

Os êxitos da viagem de Vasco de Gama (c. 1468-1524) às Índias Orientais pelo périplo africano seriam o

testemunho do gênio do povo português como navegador e comerciante. No interesse pelo comércio com

o Oriente estaria o descobrimento do Brasil.71 Nas Instrucções de viagem da esquadra de Cabral,

Varnhagen teria a prova de seu argumento. Este documento, segundo o autor, atestaria que a esquadra de

Cabral tinha a missão de fundar feitorias nas Índias:

Nas instrucções escriptas que recebeu, e das quaes chegaram a nossas mãos

alguns fragmentos da maior importancia, foi-lhe recommendado que na altura de

Guiné se afastasse quando pudesse d’Africa, para evitar suas morosas e

doentias calmas. Obediente a essas instrucções, que haviam sido redigidas

pelas insinuações do Gama. Cabral se foi amarando d’Africa, e naturalmente 69 A temática do descobrimento casual ou não do Brasil e do modelo de colonização adotado pelos portugueses gerou polêmicas entre os letrados do IHGB, sendo motivo de artigos, réplicas e tréplicas. Conferir: Heloisa Maria Bertol Domingues, Viagens científicas: descobrimento e colonização no Brasil no século XIX, in: Alda Heizer e Antonio Augusto Passos Videira, Ciência, civilização e império nos trópicos, Rio de Janeiro, Access Ed., 2001, p. 55-75. 70 Lucia Maria Paschoal Guimarães, Francisco Adolfo de Varnhagen – História geral do Brasil, in: Lourenço Dantas Mota (org.), Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, 2, op. cit., p. 81-82. Os fragmentos das Instrucções dadas por El-Rei D. Manoel a Pedr’Alvares Cabral, quando chefe da armada, que vindo á Índia descobriu casualmente o Brasil em 1500 foi coligida e copiada dos arquivos da Torre do Tombo por Varnhagen e publicadas nas páginas da Revista do IHGB, em 1846. Conferir: Revista do IHGB, Rio de Janeiro, tomo VIII, n. 01, 1846, p. 99-115. 71 Nas palavras do historiador-diplomata, a Vasco da Gama, que dirigiu o rumo dos pilotos de Cabral, é que se deve verdadeiramente i feliz achamento do Brasil, – achamento, que , se não se effectuara por esta primeira expedição que o seguiu, não podia deixar de ter logar n’um dos annos immediatos, desde que a navegação da India se tornou frequente. Aberta uma vez aos navios europeos tal navegação, o cabo de Santo Agostinho, promontorio mui occidental desta região, não poderia subtrahir-se por muitos annos aos cruzadores da parte meridional do Atlantico; e o descobrimento desta terra maravilhosa houvera seguramente de realizar-se por qualquer outro capitão, durante o reinado do venturoso D. Manoel, que ainda viveu de elle ter logar mais de vinte annos. Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 17-18.

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ajudado a levar pelas correntes oceanas ou pelagicas, quando se achava com

mais de quarenta dias de viagem, ao 22 d’Abril, avistou a loeste terra

desconhecida. O que desta se apresentou primeiro distinctamente aos olhos

curiosos da gente d’essa armada, agora constante de só de doze embarcações,

por se haver se desgarrado dias antes uma dellas, foi um alto monte, que, em

attenção á festa da paschoa que se acabava de solemnisar a bordo, foi chamado

de Paschoal; nome que ainda conserva este monte mui conhecido dos

maritimos, que o consideravam entre as melhores balizas para a conhecença

dessa parte do litoral.72

Feita a explicação do processo da descoberta do Brasil dentro da história da expansão

marítima portuguesa no século XV, Varnhagen trouxe para o leitor outro testemunho do afortunado achado

dos portugueses: a carta de Pero Vaz de Caminha (1450-1500). A referida carta, ao lado das Instrucções,

auxiliaria na reconstituição fidedigna da narrativa da viagem de Cabral e, por conseqüência, da origem do

Brasil.73

A carta de Pero Vaz de Caminha, como é usualmente conhecida, foi restituída como

importante fonte para o conhecimento do marco fundador da nação durante o processo de redescoberta do

Brasil, forjado durante o século XIX, principalmente após a emancipação política em 1822. Segundo Lilia

Moritz Schwarcz,

a chegada das naves ao Brasil é descrita por um documento de grande valor, um

relato que narrava passo a passo, do dia 21 de abril ao 1º de maio de 1500, o

desembarque dos portugueses nas novas terras. O texto, redigido com notável

capacidade de observação, estabelecia de imediato o elo com a idéia de um

paraíso primordial da Bíblia. (...) Publicada pela primeira vez em 1817 – na

Corografia Brasílica de Aires Casal –, o documento se projeta nesse novo

imaginário histórico do século XIX, ganhando lugar especial, como demonstra

Capistrano de Abreu em O descobrimento do Brasil: “a carta de Pero Vaz de

72 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 13-14. 73 Com a finalidade de divulgar a carta de Caminha, Varnhagen produziu um romance tomando-a como referência. A Crônica do Descobrimento do Brasil foi publicada originalmente na revista O Panorama, de 1840, e, em seguida, foi reimpressa no Rio de Janeiro, em uma edição revista e corrigida pelo jovem Varnhagen. Francisco Adolfo de Varnhagen, O Descobrimento do Brasil, crônica do fim do décimo-quinto século, 2 ed., Rio de Janeiro, Tipografia Imp. e Const. de J. Villeneuve e Cia, 1840.

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Caminha, diploma natalício lavrado à beira do berço de uma nacionalidade

futura...”.74

Dentro do projeto de construção nacional, ensejado pelo Estado Imperial em associação

com as cores da bandeira do movimento romântico, Varnhagen, na sua Historia geral do Brazil, assim

como o pintor Victor Meirelles de Lima (1832-1803), em seu famoso quadro A primeira missa no Brasil

(1860),75 adotaria a carta como relato primordial na construção de suas representações sobre a origem da

nação.76

Segundo Jorge Coli, o quadro de Victor Meirelles dialogaria com as questões históricas do

século XIX presentes em obras como a de Varnhagen. A construção de uma imagem da nação perpassava

não apenas o IHGB, mas também a própria Academia Imperial de Belas Artes:

A descoberta do Brasil foi uma invenção do século XIX. Ela resultou das

solicitações feitas pelo romantismo nascente e pelo projeto de construção

nacional que se combinavam então. Como ato fundador, instaurou uma

continuidade necessária inscrita num vetor dos acontecimentos. Os responsáveis

essenciais encontravam-se, de um lado, no trabalho dos historiadores, que

fundamentavam cientificamente uma “verdade” desejada, e, de outro, na

atividade dos artistas, criadora de crenças que se encarnavam num corpo de

convicções coletivas. A ciência e a arte, dentro de um processo intrincado,

fabricavam “realidades” mitológicas que tiveram, e ainda têm, vida prolongada e

persistente. O quadro de Victor Meirelles, retratando a Primeira Missa no Brasil,

tal como descrita na carta de Pero Vaz de Caminha, é um episódio muito

expressivo dentro desses processos.77

No caso do historiador sorocabano, a carta ajudaria a compor o cenário natural do Brasil e

a produzir os símbolos da posse. Ela também pouparia Varnhagen de registrar passo a passo as acções

74 Lilia Moritz Schwarcz, Estado sem nação: a criação de uma memória oficial no Brasil do Segundo Reinado, in: Adauto Novaes (org.), A crise do Estado-nação, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p. 373-74. 75 Conferir Anexos: Figura 01 – Victor Meirelles de Lima, Primeira missa no Brasil (1860), Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes. 76 Conferir: Jorge Coli Junior, A pintura e o olhar sobre si: Victor Meirelles e a invenção de uma História visual no século XIX brasileiro, in: Marcos Cezar de Freitas (org.), Historiografia Brasileira em Perspectiva, São Paulo, Contexto; Bragança Paulista, EDUSF, 1998, p. 375-404; Eduardo Victorio Morettin, Produção e formas de circulação do tema do Descobrimento do Brasil: uma análise de seu percurso e do filme Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro, Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 20, n. 39, 2000, p. 135-165. 77 Jorge Coli, A Primeira Missa e a invenção da descoberta, in: Adauto Novaes, A descoberta do homem e do mundo, São Paulo, Companhia das Letras; Brasília, FUNARTE, 1998, p. 107.

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do capitão mor e dos mais da armada, nem as dos n’esta occasião hospitaleiros d’esta terra nos oito dias

que se demoraram os navegantes, até seguir sua rota para o Oriente.78

Do documento, o visconde de Porto Seguro transcreveria a narração do modo como se

deu o contato entre portugueses e índios:

do modo como o capitão mór tratou dois individuos da terra trazidos a bordo,

como os mandou sentar no chão em uma alcatifa, á maneira dos orientaes, e

como finalmente os agasalhou, até que no dia seguinte os devolveu á terra ricos

de insignificantes presentes.79

Varnhagen adotou como verdadeiras as descrições que Caminha, em sua narrativa

epistolar, dirigida ao rei, apresentou dos primeiros encontros entre os tripulantes da esquadra e os nativos,

das suas descrições físicas, dos seus costumes.80 As palavras do escrivão português eram tidas como

peças que se encaixavam perfeitamente do quebra-cabeça que desenharia o retrato perfeito do

descobrimento do Brasil. Ao adotar tal procedimento em relação à carta de Caminha, parecia seguir o

mesmo conselho dado tempos depois por Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879) a Victor Meirelles,

quando este pintava o quadro d’A primeira missa no Brasil: Leia cinco vezes o Caminha que fará uma

cousa digna do país ou então Lê Caminha, pinta e então caminha.81

A descrição da cerimônia de posse – a primeira missa – feita por Varnhagen seguia a da

pena do escrivão, procurando desta forma mostrar a legitimidade do domínio da Coroa portuguesa. A

primeira missa cumpriria na tradição literária, histórica e imagética brasileira do século XIX a tarefa de

simbolizar o nascimento da nação – a sua origem:

No dia 26 do mencionado Abril, que era o domingo da Paschoela, foram todos os

da armada assistir á missa que foi celebrada em um ilheo ou restinga, que se

acha á entrada do dito Porto Seguro. Presencearam a solemnidade cheios de

espanto (que alguns dos nossos tomaram por devoção) muitos filhos da terra

78 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 14. 79 Ibidem, p. 14. 80 De acordo com Eduardo Victorio Morettin, nesta seção, bem como ao longo da Historia geral do Brazil, adotou como estratégia sempre de colocar em primeiro plano a fonte documental: A idéia é de deixar as “provas” do fato histórico “falarem” por si só. Eduardo Victorio Morettin, Produção e formas de circulação do tema do Descobrimento do Brasil: uma análise de seu percurso e do filme Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro, Revista Brasileira de História, op. cit., p. 142. 81 Trechos extraídos de Donato Melo Junior, Temas históricos, in: Angelo de Proença Rosa (org.), Victor Meirelles de Lima, Rio de Janeiro, Pinakotheke, 1982. Conferir: Jorge Coli Junior, A Primeira Missa e a invenção da descoberta, in: Adauto Novaes, A descoberta do homem e do mundo, op. cit., p. 107-127.

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que ali vieram. Tambem cumpre fazer menção de que, no ultimo dia do dito mez,

e no meio da solemnidade de outra missa se effectuou a cerimônia da toma

posse da nova região para a Corôa de Portugal, levantando-se num morro

visinho uma grande cruz de madeira com a divisa do venturoso rei D. Manuel. Do

alto desse morro se descobria o mar fornecendo no horizonte; e os que sobre a

superficie das aguas estendiam saudosos os olhos, e o pensamento na pátria,

mal podiam imaginar a importancia e a grandeza da terra, comprendida dentro

da demarcação ajustada em Tordesilhas, cuja existencia iam revelar ao mundo

civilisado. E menos por certo imaginariam que nessa terra, dentro de algumas

gerações, se havia de organizar uma nação mais rica e mais consideravel do

que a mãe patria.82

Para Varnhagen, ao contrário do que haviam sugerido posteriormente seus críticos como o

historiador francês Marie-Armand d’Avezac (1800-1875), a maneira como deveria ser escrita a história do

Brasil havia de tomar como marco de origem as grandes navegações portuguesas. Em carta enviada ao

consócio Araújo Porto Alegre respondendo às críticas do historiador francês, ele justificava esta opção por

seguir o exemplo do grande historiador norte americano Hubert Howe Bancroft (1832-1918), que afirmava

começar o 1º capítulo da sua historia bem americana com estas palavras: “A empreza de Colombo” (The

enterprise of Columbus etc.). Adotara o modelo, como justificou na nota 44 do tomo I da Historia geral do

Brazil, por crer não prejudicar o arranjo total della. Pareceu-nos, porém, que com o methodo que nesta

edição, pelo menos, adoptamos, a ligamos melhor a história da humanidade em geral, etc.83

Com base nesta justificativa, Varnhagen reafirmava a sua convicção de apenas com

Cabral começa verdadeiramente a nossa história da colonização e civilização.84 Na construção da sua

narrativa, o Brasil nação era concebido como descendente da colonização portuguesa e por esta razão

aquele era o começo a ser definido – 1500.85

82 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 16-17. 83 Carta a Manuel de Araújo Porto Alegre (depois Barão de Santo Ângelo), 1º secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 20 de novembro de 1857, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1961, p. 251. 84 Ibidem, ibidem. 85 Para Neuma Brilhante Rodrigues, durante esse processo de institucionalização do saber histórico (do qual Varnhagen era sujeito partícipe), a tarefa de ‘definição’ do Brasil se deu em um sentido contrário ao das demais nações americanas: os pensadores brasileiros defendiam a Nação como continuadora do processo civilizador iniciado pelos portugueses no movimento de expansão da civilização européia, enquanto as identidades dos demais países latino-americanos foram trabalhadas em oposição às antigas metrópoles, pois seus processos de Independência eram representados como ruptura diante do passado colonial. Neuma Brilhante Rodrigues, “O amor da pátria, o amor das letras”: as origens da nação na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839-1889), dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade de Brasília, Brasília, 2001, p. 70.

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A designação Brasil, segundo o historiador sorocabano, para a nova possessão suplantou

as outras nomenclaturas: Ilha da Vera Cruz e Terra de Santa Cruz. Uma vez desfeita pelo cosmógrafo

Américo Vespúcio (1454-1514) a idéia de descoberta de uma ilha – seja por Colombo, seja por Cabral, e

sim de um continente, coube encontrar o nome para batizar a quarta parte mundo e a colônia portuguesa.

O poder de nomear seria uma das estratégias no processo de conquista. Atribuir um nome

significaria determinar uma existência, colonizar o lugar, os objetos e as gentes. Faria parte do mecanismo

de produção de um saber sobre o outro, o desconhecido – numa retórica da alteridade. Para François

Hartog, essa retórica seria, no fundo, uma operação de tradução:

a transportar o outro ao mesmo (tradere) – constituindo portanto uma espécie de

transportador da diferença. (...) Entre o Antigo e o Novo Mundo a tradução é o

que mantém e reduz a distância oceânica, constituindo, ao mesmo tempo, a

marca sempre presente do corte entre ambos, bem como o signo, sempre

retomado, de sua sutura: corte-sutura, dois tempos de um mesmo movimento

que produz o texto. Para que se possa estabelecer teoricamente esse tipo de

economia da tradução, supõe-se que seja possível fazer referência a um

conjunto de problemas, distinguindo-se entre o ser e o aparecer.86

Ao analisar o diário de Cristóvão Colombo, Tzvetan Todorov evidenciou a prática da

colonização do espaço e dos indivíduos por meio da obsessão do navegador de nomear. Para Colombo, a

semelhança de muitos de seus contemporâneos, os nomes devem ser à imagem de seu ser.87 E ele tinha

conservado em si mesmo dois traços dignos de figurar em seu nome: o evangelizador e o colonizador.

Essa atividade de nominador se fez marcante nas suas viagens:

Como Adão no Éden, Colombo apaixona-se pela escolha dos nomes do mundo

virgem que está vendo; e, assim como para ele mesmo, os nomes devem ser

motivados. A motivação é estabelecida de várias maneiras. No início, há uma

espécie de diagrama: a ordem cronológica dos batismos corresponde à ordem

86 François Hartog, O espelho de Heródoto: ensaios sobre a representação do outro, Belo Horizonte, Ed. da UFMG, 1999, p. 251-252. 87 Segundo Tzvetan Todorov, a mesma atenção para com o nome, que beira o fetichismo, manifesta-se nos cuidados de que cerca sua assinatura; pois ele não assina, como qualquer um, seu nome, mas uma sigla particularmente elaborada – tão elaborada, aliás, que ainda não se pode penetrar seu segredo. E não se contenta em utilizá-la, impondo-a também a seus herdeiros. Tzvetan Todorov, A conquista da América: a questão do outro, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 26.

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de importância dos objetos associados aos nomes. A seqüência será: Deus, a

Virgem Maria, o rei de Espanha, a rainha, a herdeira real. (...)

Colombo sabe perfeitamente que as ilhas já têm nome, de uma certa forma,

nomes naturais (mas em outra acepção do termo); as palavras dos outros,

entretanto, não lhe interessam muito , ele quer rebatizar os lugares em função do

lugar que ocupam em sua descoberta, dar-lhes nomes justos; a nomeação, além

disso, equivale a tomar posse.88

Nesse gesto de nominação, comum a homens como Colombo, Cabral e Vespucío, estava

uma espécie de declaração segundo a qual as terras passariam a fazer parte do reino de seus respectivos

soberanos. Nomear seria a colonização no âmbito da linguagem, o estabelecimento de um domínio. Seria

também uma forma de marcar o lugar da memória dos seus próprios feitos e da grandeza da sua pátria.

Traduzir o outro como atividade de nomeação representaria neste prisma uma forma de falar de si mesmo

e de seu lugar (cultura). Segundo François Hartog,

Sabe-se, desde a narrativa do Gênesis, que a nomeação supõe domínio:

renomeando as criaturas de Deus, Adão proclama, ao mesmo tempo, sua

preeminência sobre elas. (...) Impor um nome ou conhecer os nomes implica,

pois, um certo poder: o nome é sempre mais que a simples proferição sonora.89

Ao apresentar a carta de Caminha, Varnhagen observou esse processo de nomeação do

que os olhos avistavam (montes, baias, rios, árvores, gentes) e nos rituais de posse como a primeira

missa, fixando num morro uma grande cruz de madeira com a divisa do venturoso rei D. Manoel,

lembrando que aquela terra pertencia a uma fé (cristã católica) e a um Estado (Portugal).

Ao explicar a origem da palavra Brasil para designar aquele lugar, Varnhagen narrou o

achado da madeira, objeto de cobiça dos conquistadores europeus:

O exame do litoral, não só o fez geographicamente conhecido, como deu

occasião a saber-se que havia elle, em grande abundancia, um produto que ja

estava dando grande lucro aos Castelhanos, em cujas conquistas tambem se

encontrára. Era um lenho do qual se aproveitou uma tinta analoga á de outro que

88 Ibidem, p. 26-27. 89 François Hartog, O espelho de Heródoto: ensaios sobre a representação do outro, op. cit., p. 256.

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que com o nome de brazil vinha do Oriente. Chamavam os do paiz ao tal lenho

ibirapitanga, o que que em sua lingua equivalia a dizer páo vermelho, e os

naturalistas classificaram depois a arvore no genero botanico Caesalpina,

admitindo a palavra Ibirapitanga, para designar uma das especies, entre as

várias que se tem encontrado.90

O nome que prevaleceria entre outros seria aquele que, segundo sua leitura, traduziria a

finalidade daquele território:

Em busca do rendoso lenho, que os Castelhanos e os Portuguezes começaram

a denominar tambem “brazil” trataram os navios dos especuladores de amiudar

suas viagens á Terra que d’ahi se começou logo a chamar do “brazil”, ou

somente Brazil, como d’ora avante lhe chamaremos. Os navios e gentes que se

ocupavam do trafico do páo-brazil começaram a ser chamados Brazileiros, do

mesmo modo que se dizem baleeiros os que vão á pesca das baleias. Tal foi, em

nosso entender, a origem de se haver adoptado este nome em portuguez, e de

não nos chamarmos Brazilenses ou Brazilienses, como parece mais natural, e

como a seu modo, e mais em regra, nos appellidam outras nações.91

Em síntese, sentenciou o visconde de Porto Seguro, o trato e o uso familiar fizeram pois

que o nome do lenho lucrativo supplantasse o do lenho sagrado. Era vitória do interesse comercial em

relação ao religioso, ao menos no nome da nova terra.

Para compor sua Historia geral do Brazil, Varnhagen incorporaria o papel de um novo

descobridor ou fundador da nação. Ele também seria um agente nomeador e organizador da narrativa

histórica, em especial do marco de origem. Na fabricação da sua narrativa nacional, o historiador

estabeleceu um começo (as viagens e navegações), determinou as personagens (reis e navegadores),

elegeu as tramas principais (a busca da rota para comércio com o Oriente), organizou o enredo em torno

de um desfecho (a formação da nação brasileira) e elegeu a motor da formação da cultura da nação (a

herança portuguesa).

A partir dessas escolhas, estabeleceu o percurso das seções de seu livro, procurando

forjar a identidade nacional no jovem Império do Brasil, herdeiro por sangue e história de Portugal. Neste

90 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 21. 91 Ibidem, p. 22.

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aspecto, a sua escrita estaria comprometida com a fidelidade à monarquia bragantina, a defesa do

colonialismo e uma interpretação histórica que unisse o Brasil a Portugal como filho e mãe.

Elogiar os descobridores e colonizadores do passado era legitimar as elites do seu

presente, os que assumiam para si a missão de construtores da nação. Relatar, por exemplo, os feitos do

tempo dos descobrimentos portugueses como uma obra de reis fortes, centralizadores e empreendedores

era uma forma de celebrar a figura do monarca D. Pedro II, herdeiro desse passado de glórias e

conquistas.

A opção pela valorização da origem portuguesa por parte do visconde de Porto Seguro

implicaria o enfrentamento com o modelo do genuinamente nacional desejado pelos letrados românticos do

IHGB, representados pelos sócios José Gonçalves de Magalhães (1811-1882), Gonçalves Dias (1820-

1891), Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), entre outros. Para os seus colegas, o elemento indígena

seria o símbolo nacional autêntico, contrariando a proposta de Varnhagen que percebia a história do Brasil

como uma epopéia dos colonizadores portugueses no processo de domínio e civilização da natureza e dos

naturais.92

De acordo com Lilia Moritz Schwarcz, esse grupo tendo Gonçalves de Magalhães como

um de seus nomes mais conhecidos, ao fazer da literatura um exercício de patriotismo, encontrou no

indígena o símbolo privilegiado e nos trópicos seu lugar natural para celebrar e valorizar o pitoresco da

paisagem e das gentes da nação:

Representando a imagem ideal, o indígena romântico encarnava não só o mais

autêntico, como o mais nobre, no sentido de se construir um passado honroso.

Por oposição ao negro, que lembrava nesse contexto uma situação humilhante

em função da escravidão, o indígena permitia prever uma origem mítica e

unificadora.

A natureza brasileira também cumpria função paralela. Se não tínhamos castelos

medievais, igrejas da antigüidade, ou batalhas heróicas a serem lembradas;

possuíamos o maior dos rios, a mais bela vegetação tropical.93

92 Conferir: Laura Nogueira Oliveira, Os índios bravos e Sr. Visconde: Os indígenas brasileiros na obra de Francisco Adolfo de Varnhagen, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Minas Gerias, Belo Horizonte, 2000. 93 Lilia Moritz Schwarcz, Estado sem nação: a criação de uma memória oficial no Brasil do Segundo Reinado, in: Adauto Novaes (org.), A crise do Estado-nação, op. cit., p. 367-368.

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Embora atacados de frente por Varnhagen, que os rotulava de patriotas cablocos,94 os

indigenistas brasileiros, presentes nos quadros do IHGB e tutelados pelo imperador, conquistaram

popularidade e obtiveram êxito na imposição da representação romântica do elemento natural como

símbolo da nação, envolto pela natureza exuberante local. Os indígenas seriam exaltados em prosa e

verso, assim como em imagens e monumentos.

A literatura romântica ofertaria heróis como Tibiriçá, Iracema, Peri entre outros, nomes que

não perfilavam física ou alegoricamente no panteão e na concepção de formação do povo nacional de

Varnhagen. O historiador sorocabano era adepto de uma concepção anti-romântica do indígena,

apresentando-o como selvagem, bárbaro, cruel e desprovido de crenças e costumes humanizados, o que

autorizaria as atitudes impiedosas dos colonizadores portugueses.95 Segundo Antonio Candido de Mello e

Souza,

O seu ponto de vista acentuadamente conservador discrepava, ainda, por

justificar sempre a política metropolitana, divergindo, por isso, do forte nativismo

do tempo. Tanto assim, que minimizou, ou mesmo desqualificou os movimentos

de inconformismo e rebeldia, tão caros à sensibilidade dos românticos liberais.96

De acordo com José Carlos Reis, o visconde de Porto Seguro defendia que esse passado

indígena do Brasil deveria ser esquecido ou não deveria influenciar na construção do futuro da nação

brasileira, se preservado. Aliás,

os capítulos dedicados ao indígena na história geral do Brasil teriam esta função:

mostrar que o futuro do Brasil não poderá ter nesse passado a sua raiz. O

presente-futuro do Brasil se assentaria em um outro passado, naquele que veio

do exterior para pôr fim a essa barbárie e selvageria interiores. Com a chegada

do cristianismo, do rei, da lei, da razão, da paz, da cultura, da civilização, com a

chegada dos europeus a este território, o Brasil surgiu e integrou-se no seio da

providência.97

94 Pedro Puntoni, Gonçalves de Magalhães e a historiografia do Império, Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 45, 1996, p. 129. 95 Conferir: Bernardo Ricupero, O Romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870), São Paulo, Martins Fontes, 2004. 96 Antonio Candido de Mello e Souza, O Romantismo no Brasil, São Paulo, Humanitas; FFLCH-USP, 2002, p. 37-38. 97 José Carlos Reis, As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, op. cit., p. 37.

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Definido o marco de origem da narrativa da nação de Varnhagen, far-se-á agora a reflexão

sobre a maneira como foi entendida a formação do povo brasileiro tendo como referência o contato entre

os elementos indígena, negro e português na monumentalidade da natureza tropical.98

3.4. Povo: Índios, Negros e Portugueses___________________________________________________

3.4.1. Varnhagen e a difícil lição de von Martius: os elementos formadores da nacionalidade

Embora se tenha estabelecido tradicionalmente uma linha cronológica e sucessória entre a

apresentação da proposta de escrita da história do Brasil, feita por von Martius, e a construção e

publicação da obra síntese do Brasil, de autoria de Varnhagen, como sua concretização em termos

práticos, é necessário se ter em mente que existem diferenças entre uma e outra.99

Ao tomar como referência o sonho de escrever uma nova história do Brasil em João

Capistrano de Abreu, Ronaldo Vainfas observou a sua obsessão em quebrar os quadros de ferro de

Varnhagen, introduzindo temas até então pouco estudados ou desconhecidos como as bandeiras, as

minas, as entradas e a criação de gado. Em suma, o historiador cearense tinha o projeto ambicioso de

fazer uma grande história do Brasil diferente da de Varnhagen.100

Capistrano de Abreu justificava a sua proposta a partir do seu incômodo com o estilo e a

cronologia rígida de Varnhagen. Ele reclamava do fato do texto ser uma leitura arisca e detestável, apesar

de reconhecer e admirar a sua erudição. Segundo Ronaldo Vainfas, a cronologia rígida de Varnhagen, a

história do Brasil começando em 1500 e acompanhando, pari passu, os fatos oficiais até a chegada da

“corte joanina” ao Brasil era fatigante e dava um caráter oficial à história para o historiador cearense. Era

98 Para uma reflexão sobre a noção de povo no século XIX, conferir: Claudine Haroche, O que é um povo? Os sentimentos coletivos e o patriotismo do final do século XIX, in: Jacy Alves Seixas, Maria Stella Martins Bresciani e Marion Brepohl (orgs.), Razão e paixão na política, op. cit., p. 81-94. 99 Afirmações como esta podem ser encontradas em José Carlos Reis, As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, op. cit., p 28. Esta unidade e coesão entre a proposta de von Martius e a obra-síntese de Varnhagen, em larga medida, faz parte também de uma memória produzida pelo próprio IHGB com a finalidade de estabelecer seu papel como centro da construção do saber histórico no século XIX. 100 Ronaldo Vainfas, Capistrano de Abreu – Capítulo de história colonial, in: Lourenço Dantas Mota (org.), Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, 1, 5 ed., São Paulo, Ed. SENAC, 2008, p. 174-175.

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uma história empenhada em sustentar a coerência do império desde as origens coloniais, sua unidade

territorial, a excelência da dinastia de Bragança.101

O ânimo de escrever uma nova história do Brasil presente em Capítulos de história

colonial seria a tentativa de ser um contraponto à Historia geral do Brazil, tida como uma história elitista,

laudatória dos “vencedores”, que despreza o índio, mal fala do negro, e desconfia sempre das rebeliões,

desqualificando-as.102 Para o comentador da obra de Capistrano de Abreu, contrariando a associação

mecânica entre von Martius e Varnhagen e restituindo os debates de época em torno das críticas quando

da publicação da 1ª edição da Historia geral do Brazil,103 a obra máxima do visconde de Porto Seguro seria

muito distinta, embora houvesse a influência, da proposta premiada de von Martius no concurso promovido

pelo IHGB sobre Como se deve escrever a história do Brasil.

A proposta do naturalista bávaro de se constituir uma história do Brasil com base na fusão

das três raças – o branco português, o índio e negro africano – ficaria limitada em Varnhagen somente ao

elemento português, deixando em segundo plano os demais.104

As ponderações de Ronaldo Vainfas sobre os limites da incorporação da proposta de von

Martius por parte de Varnhagen remetem-se à discussão da época acerca das dificuldades da

concretização de uma história do Brasil pautada pela mescla das três raças, como se pode verificar no

próprio parecer apresentado pela comissão julgadora do IHGB.

O parecer da comissão formada por Francisco Freire Allemão (1797-1874), monsenhor

Manoel Joaquim da Silveira (1807-1875) e Thomas Gomes dos Santos (1803-1874), além de tecer elogios

ao plano de von Martius, faria uma ressalva emblemática:

Se alguma cousa podia dizer contra elle, é que uma historia escripta segundo ahi

se prescreve talvez seja inexequivel na actualidade; o que vem a dizer que elle é

bom de mais. Porém não se trata aqui de uma questão de tempo; ahi está o

modelo para quando a cousa for realisavel. O Instituto pois tem preenchido um

101 Ibidem, p. 175. Estas considerações podem ser encontradas em José Honório Rodrigues, Explicação, in: João Capistrano de Abreu, Capítulos de história colonial, 1500-1800, 7 ed., Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Publifolha, 2000, p. 01-29., 102 Ibidem, ibidem. 103 Para saber acerca das polêmicas e críticas em torno da Historia geral do Brazil, conferir: Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007, capítulo V. 104 Segundo Ronaldo Vainfas, antes de tudo, é o caso de dizer que Capistrano [de Abreu], que tanto criticava Varnhagen por inúmeras imperfeições da História geral do Brasil, tampouco seguiu o plano de von Martius, para quem a história do Brasil devia ser escrita elegendo a “fusão das três raças” como problemática central. A bem da verdade, ele parece ter jamais se interessado por esse problema como núcleo de uma história do Brasil, e o Capítulos são muito acanhados no tratamento do tema da miscigenação, como veremos. Ronaldo Vainfas, Capistrano de Abreu – Capítulo de história colonial, in: Lourenço Dantas Mota (org.), Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, op. cit., p. 176-177.

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dos seus mais imperiosos deveres, e tem feito grande serviço a seu paiz

provocando o apparecimento d’esta memória. O mais é obra do tempo; todavia

sua utilidade se manifestará desde já na direcção que devem tomar as

investigações históricas.105

Para Lucia Maria Paschoal Guimarães, seria questionável o alcance da influência de von

Martius dentro da produção do IHGB no período posterior à publicação e premiação de seu plano. Com

base na consulta das páginas da Revista, a autora constatou que teria ficado no obscurantismo, não tendo

sido levada adiante por nenhum historiador a sua proposta, dentro e fora da agremiação, ao longo do

século XIX. Além disso, destacou a ausência de referências ao naturalista a partir da década de 1850, nem

sequer se tocou no seu nome, ou na existência do “programa” premiado de 1847, quando posteriormente,

houve a sugestão da criação de um novo concurso nos mesmos moldes do realizado na década de 1840:

Nesta época, a bem dizer, nem se falava mais do naturalista na “casa”,

notoriedade em assuntos brasileiros, cujas idéias até os anos 50 eram uma

lembrança recorrente, nas discussões, durante as reuniões ordinárias. Sua

memória, 20 anos depois, restringia-se à chamada “Biblioteca Americana”,

transferida para o IHGB após sua morte, comprada aos herdeiros, graças ao

patrocínio de D. Pedro II.106

A difícil lição de von Martius não era apenas um entrave na obra de Varnhagen, mas

também dos demais letrados do período envolvidos com a escritura da história da nação. O que tornava a

sua proposta agradável aos membros do IHGB era o fato ser um projeto centralizador, monarquista,

filosófico, pragmático, e, que embora tivesse como sua marca a questão da miscigenação racial, era

essencialmente branca. Em última instância, o português se apresentava como o mais poderoso e

essencial motor.107 Logo, era uma carta de intenções que traduzia de alguma forma naquele momento os

ideais presentes deste a fundação do IHGB. Segundo Neuma Brilhante Rodrigues,

Essa coincidência de perspectiva explica-se, ao meu ver, pelo contato que von

Martius estabelecera com o IHGB desde a sua fundação, e dos contatos

105 Extractos da 168ª Sessão em 10 de junho de 1847, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 09, 1847, p. 287. 106 Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, op. cit., p. 575. 107 Karl Friedrich Philipp von Martius, Como se deve escrever a história do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 390.

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freqüentes da instituição com as idéias européias. Além de ser leitor da Revista

desse Instituto, ele manteve correspondência com Januário da Cunha Barboza

estando, portanto, a par do posicionamento do Instituto em relação às suas

pretensões políticas e acadêmicas. (...)

Ao observar os primeiros números da Revista do IHGB, se percebe que muitas

das perspectivas apresentadas por Martius haviam sido anteriormente

vislumbradas pelos próprios membros do IHGB. Januário da Cunha Barboza e

José Silvestre Rebelo escreveram sobre as relações entre branco, negros e

índios no Programa: Se a introdução dos escravos africanos no Brasil embaraça

a civilização de nossos indígenas... O visconde de São Leopoldo desenvolveu,

no mesmo, a idéia da existência de uma tradição de letras no Brasil, fundada no

período colonial, à qual o IHGB estaria ligado. No tomo seguinte, Cunha Barboza

escreveria sobre a possibilidade de “civilização” do indígena por meio da

catequese, dando especial atenção à atuação dos jesuítas. Em 1841, por sua

vez, foi publicada uma carta de Varnhagen na qual defendia o estudo da língua

indígena e da organização de dicionários e gramáticas. A questão da construção

de uma nação brasileira a partir da amalgama das raças já era problematizada

por Bonifácio no contexto da Independência.108

Essas ponderações apontariam não apenas para a problematização da noção de

influência na construção do saber histórico no século XIX, mas também para a necessidade de se pensar

como, de acordo com suas leituras e concepção de mundo, Varnhagen criou suas verdades acerca da

formação do povo brasileiro, ingrediente fundamental na sua narrativa da nação. Não se trata de ignorar ou

deixar em segundo plano as possíveis articulações entre von Martius e Varnhagen, mas de procurar

romper com a vontade totalizante de se fixar um ponto de origem, uma primeira referência, que emergisse

quase que misticamente desarticulada de outras redes sociais e culturais.109

Se se pudesse eleger um aspecto em comum possível entre o naturalista alemão e o

historiador sorocabano seria, como já foi apontado, o fato de ambos terem em mente que o elemento

português constituiria a personagem principal no processo de formação da nacionalidade do Brasil

imperial, o que de certa maneira corrobora as afirmações de Neuma Brilhante Rodrigues. Contudo, a

108 Neuma Brilhante Rodrigues, “O amor da pátria, o amor das letras”: as origens da nação na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839-1889), op. cit., p. 86-87. 109 Para uma crítica a concepção de origem no pensamento histórico, conferir: Michel Foucault, Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France [Aula de 11 de fevereiro de 1976], op. cit., p. 135-166; Margareth Rago, O Historiador e o Tempo, in: Vera Lúcia S. de Rossi e Ernesta Zamboni (orgs). Quanto tempo o tempo tem! Campinas, Editora Alínea, 2003, p. 25-48.

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preocupação precisa seguir em outra direção: a partir da formulação como se deve escrever a história do

Brasil, saber as possíveis respostas oferecidas pela elite letrada do IHGB sobre a formação do povo, do

sujeito nacional. No caso em questão, analisar como Varnhagen tratou os três elementos raciais no

processo de constituição da sociedade colonial e, posteriormente, imperial, mesmo sabendo da sua

preferência pelo elemento português: europeu, branco, masculino, cristão católico, e monarquista. 110

É importante lembrar que no processo de criação do nós precisa-se determinar os outros

internos e externos, aqueles que não comungam das mesmas tradições, cultura e forma de governo. Na

composição do cadinho brasileiro, mesmo contra a vontade de Varnhagen, estavam presentes os outros

diluídos. A questão era saber como e quando esta mistura, ao invés de mostrar as impurezas, iria se

encarregar de dissolvê-las, como sugeriu a metáfora do grande rio e dos seus afluentes, feita por von

Martius.111

Talvez a estratégia eleita pelo visconde de Porto Seguro tenha sido o paulatino

apagamento ou secundarização desses outros – índios e negros – nos enredos da sua Historia geral do

Brazil, lembrando sempre que ainda seria a paisagem do grande rio (racial) português que encantaria os

olhos do observador. Os demais, como meros afluentes, seriam apenas coadjuvantes – importantes na

medida em que colaboraram positivamente aos intentos do protagonista. A potência que deveria emergir

naquela exuberância natural, herdada de Portugal,

viria a ser um grande um grande império; de território imenso, filho e todo

descendente – em religião, língua, costumes e até no sangue, de uma nação

pequena em extensão, mas grande em homens e generosa com quem um dia

viria a rivalizar, e depois emancipar-se para gozar das riquezas com que

nascera.112

110 Para Stuart Hall, a identidade nacional muitas vezes tem sido simbolicamente baseada na idéia de um povo ou folk puro, original. Todavia, raramente nas realidades do desenvolvimento nacional é esse povo (folk) primordial que persiste ou que exercita o poder. Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, op. cit., p. 55-56. O conceito de povo, segundo Homi K. Bhabha, não se referiria apenas a eventos históricos ou a componentes de um corpo político patriótico – ele é também uma complexa estratégia retórica de referência social: sua alegação de ser representativo provoca uma crise dentro do processo de significação e interpelação discursiva. Temos então um território conceitual disputado, onde o povo tem de ser pensado num tempo-duplo; o povo consiste em “objetos” históricos de uma pedagogia nacionalista, que atribui ao discurso uma autoridade que se baseia no preestabelecido ou na origem histórica constituída no passado; o povo consiste também em “sujeitos” de um processo de significação que deve obliterar qualquer presença anterior ou originária do povo-nação para demonstrar os princípios prodigiosos, vivos, do povo como contemporaneidade, como aquele signo do presente através do qual a vida nacional é redimida e reiterada como um processo reprodutivo. Homi K. Bhabha, O local da cultura, Belo Horizonte, Ed. da UFMG, 1998, p. 207. 111 Karl Friedrich Philipp von Martius, Como se deve escrever a história do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 391. 112 Francisco Adolfo de Varnhagen, O Descobrimento do Brasil, crônica do fim do décimo-quinto século, op. cit., p. 103.

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Se a narrativa varnhageniana – amparando-se aqui nas indicações de François Hartog,

desenvolveu-se entre um narrador (historiador) e um destinatário (leitor), a questão-problema é, portanto,

vislumbrar como ela “traduz” o outro e como faz com que o leitor acredite no outro que ela constrói,

principalmente quando se tem a pretensão de estabelecer o nós – o mesmo. Logo, trata-se de descobrir

uma retórica da alteridade em ação no texto, de capturar algumas de suas figuras e de desmontar alguns

de seus procedimentos – em resumo, de reunir as regras através das quais se opera a fabricação do

outro.113

Narrar os outros – índios e negros – seria no pensamento de Varnhagen enunciá-los como

os diferentes. Seria enunciar que há apenas dois termos, portugueses e descendentes (nós) e índios e

negros (outros), ou seja, existiriam os civilizados e os bárbaros. As diferenças precisariam ser identificadas

e classificadas a partir do momento em que estes dois pólos entraram num mesmo espaço, ordem ou

sistema. O narrador Varnhagen, pertencente ao grupo do nós – os civilizados, contaria os outros – os

bárbaros, às pessoas do nós: emergindo daí a formulação de François Hartog de que haveria o mundo em

que se conta e o mundo que se conta. E para realizar tal exercício ele assumiria o lugar de narrador-

tradutor, na qual não existiria mais o nós e os outros, mas somente o nós e o inverso de nós.114

Pela atividade comparativa e analógica, o narrador traduzia, nomeava e classificava o

outro, trazendo-o para o campo da linguagem e da cultura do nós. A diferença entre os portugueses e

índios e negros emergiria na demarcação das ausências e lacunas com base nas escalas de civilização.

Índios e negros seriam a imagem inversa do espelho de Varnhagen: sujeitos incompletos, fragmentados e

exóticos. Eram aqueles que não se enquadravam no seu modelo de povo, projetado pelos construtores da

nação como o ilustre visconde de Porto Seguro.115

O seu pensamento era circular, como sugeriu Tzvetan Todorov, porque logo de início – ao

falar do outro – definia os valores absolutos a partir de seus próprios valores pessoais.116 Os verdadeiros

valores e padrões civilizatórios seriam aqueles forjados no seu mundo, mas universalizados como a

metanarrativa existencial de todos os homens.

113 François Hartog, O espelho de Heródoto: ensaios sobre a representação do outro, op. cit., p. 228. 114 Ibidem, p. 229. 115 Ibidem, 229-271. De acordo com Tomaz Tadeu da Silva, a diferença é sempre uma relação: não se pode ser ‘diferente’ de forma absoluta; é-se diferente relativamente a alguma outra coisa, considerada precisamente como ‘não-diferente’. Mas essa ‘outra coisa’ não é nenhum referencial absoluto, que exista fora do processo discursivo de significação: essa ‘outra coisa’, o ‘não-diferente’, também só faz sentido, só existe, na ‘relação de diferença’ que a opõe ao ‘diferente’. Na medida em que é uma relação social, o processo social, o processo de significação que produz a ‘diferença’ se dá em conexão com relações de poder. São as relações de poder que fazem com que a ‘diferença’ seja avaliado negativamente relativamente ao ‘não-diferente’. Inversamente, se há sinal, sem dos termos da diferença é avaliado positivamente (o ‘não-diferente’) e o outro, negativamente (o ‘diferente’), é porque há poder. Tomaz Tadeu da Silva, Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo, op. cit., p. 87. 116 Tzvetan Todorov, Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana, vol. I, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1993, p. 24.

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Neste sentido, com base nas afirmações de Michel Foucault, pode se perceber no

pensamento varnhageniano a articulação entre o racismo e o Estado, sendo este visto como um

instrumento protetor da integridade, da superioridade e da pureza da raça.117

Embora reconheça a presença dos outros internos (índios e negros), eles deveriam ser

assimilados e mesclados visando o seu futuro desaparecimento cultural e racial, ficando apenas o legado

da raça branca (portuguesa). Pela miscigenação e civilização dos outros dóceis ou extermínio dos outros

bravos far-se-ia a purificação da sociedade brasileira no futuro.118

3.4.2. Índios

No tomo I da 1ª edição da Historia geral do Brazil, as três seções dedicadas aos povos

indígenas eram a oitava, a nona e a décima.119 Os índios entrariam nas páginas da sua narrativa dentro do

contexto do descobrimento do Brasil promovido pelos navegadores portugueses do final do século XV.

Ao fazer uma apresentação geral da natureza brasileira na sétima seção, o cenário do

desenvolvimento de sua narrativa, Varnhagen fez uma descrição muito próxima da feita por alguém que a

descobria, a via pela primeira vez. Descreveu a flora e a fauna monumental da nova terra como se

estivesse olhando do mar, a partir da embarcação de Cabral.120 Diante da originalidade da natureza

descoberta, o historiador sorocabano apontou a missão histórica dos portugueses – dominá-la e civilizá-la:

Mas animo! que tudo doma a industria humana! Cumpre á civilização aproveitar

e ainda aperfeiçoar o bom, e prevenir ou destruir o mau. (...)

117 Michel Foucault, Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France [Aula de 28 de janeiro de 1976], op. cit., p. 95. 118 Enfim, segundo Michel Foucault, a soberania do Estado transformou-o assim no imperativo da proteção da raça, como uma alternativa e uma barragem para o apelo revolucionário, que derivava, ele próprio, desse velho discurso das lutas, das decifrações, das reivindicações e das promessas. Ibidem, p. 96. 119 Na 2ª edição da Historia geral do Brazil, como resposta às críticas de d’Avezac entre outros, essas seções passaram a ser apresentadas como a segunda, a terceira e a quarta. O historiador francês acusava Varnhagen de fazer sua narrativa a partir de Portugal, deixando a terra e seus primeiros habitantes em segundo plano. Além de antecipar as seções referentes aos índios, o visconde de Porto Seguro promoveu mudanças significativas no teor do seu texto. Conferir: Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., capítulos V e VI. 120 Para Janaina Zito Losada, a experiência humana de refletir, registrar e observar a natureza tornou-se uma intensa paixão para homens e mulheres do científico século XIX. Janaina Zito Losada, A paixão, a natureza e os ritmos da história: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no século XIX, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007, p. 10.

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Para em tudo o paiz ser de contrastes no estado selvagem achava-se elle, com

toda a riqueza do seu solo, e a magnificência, tão prestantes ao commercio,

possuído pelas gentes que passamos a conhecer.121

E nesta paisagem fantástica, desconhecida e assustadora a ser colonizada, ele visualizou

os indígenas. Era como se estas personagens fossem mais um elemento pertencente à natureza que se

procurava decifrar.

Em seu livro, Varnhagen descreveu esses homens exóticos, habitantes duma natureza

exuberante, com interesse; contudo, sem muita afeição. Para ele, os indígenas não passavam de uma

gente nômade que vivia em cabildas, morava em aldeias transitórias, pouco numerosa em relação à

extensão do território:

Por toda a extensão que deixamos descripta não havia povoações fixas e que

descobrissem em seus habitantes visos de civilisação permanente; nem ainda

nas serras do sertão, onde se encontrou mais alguma cultura; sendo as cazas de

terra, como as dos Africanos menos civilisados, e os moradores idolatras.

Quasi geralmente porêm as aldêas se construiam de modo que apenas duravam

uns quatro anos. No fim delles, os esteios estavam podres, a palma dos tectos,

de ordinario de bussú ou pindoba, ja os não cobria, a caça dos contornos estava

espantada; e se a tribu ou cabilda era agricultora, as terras em grande distancia

pelo arredor estavam todas rateadas e cancadas. Tais aldêas não eram em

grande número; e muitas cabildas, nem se quer em povoações provisorias se

juntavam; pelo que o paiz vinha a estar mui pouco povoado.122

O visconde de Porto Seguro pintou os índios nos seus escritos como violentos, pois

mantinham guerras de extermínio entre si; bárbaros, os indígenas não nutriam sentimentos de patriotismo.

Nos selvagens, segundo ele, não habitava nem mesmo o sentimento de apego a um pedaço de terra ou

bairrismo:

As guerras de exterminio, que mantinham entre si, eram causa de que as tribus

ou cabildas se debilitassem cada vez mais em número, em vez de crescerem.

121 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 96. 122 Ibidem, p. 97.

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Alêm de quê: essas mesmas pequenas cabildas que existiam mantinham-se por

laços sociaes tam frouxos que tendiam a fraccionar-se cada vez mais e a

guerrear, ficando inimigos acerrimos os que antes combatiam juntos.123

Por conta desta ausência de amor à pátria, segundo o historiador sorocabano, essas

gentes se limitavam a tão curtos horizontes as idéias de sociabilidade, que geralmente a não prolongavam

para além das divisas de sua tribo ou maloca, a qual não dominava mais território que os dos contornos do

distrito que temporariamente ocupavam.124

Sem amor à pátria, sentimento muito caro a Varnhagen, medida de régua para o seu

conceito de civilização, essas gentes vagabundas, em constante estado de beligerância, povoavam o

terreno que era do Brasil (imperial), e constituindo, no entanto, uma só raça ou grande nação; isto é, eram

procedentes de uma raiz comum e falavam dialetos da mesma língua – a geral ou tupi.

Na visão de mundo do autor de Historia geral do Brazil, essa unidade de raça e língua iria,

por um lado, desde Pernambuco até o porto dos Patos, e pelo outro lado quase até as cabeceiras do rio

Amazonas e, de outro, desde São Vicente até os mais distantes sertões, onde nasciam vários afluentes do

rio da Prata, poderia tê-los levado à formação de uma única nação, mas serviu de elementos facilitadores

do progresso das conquistas feitas pelos colonos do Brasil.125

Para Guilherme Amaral Luz, a análise filológica realizada por Varnhagen era utilizada para

que o autor conseguisse fundamentar sua teoria de que os indígenas falantes da língua geral eram todos

de uma só nação ou raça, os tupis, sendo todas as denominações para as tribos diferentes, não mais do

que insultos, não podendo considerá-las nomes de etnias diferentes:

é interessante como Varnhagen, a partir, de uma análise dos vocábulos

tupinambá, tupinaem e tupiniquim chega à conclusão de que a primeira seria a

união de tupi com aba, significando tupi ilustre, sendo utilizada para chamar

iguais. A segunda seria utilizada para denominar os tupis inimigos, porque seria

a união do tupi com aem (malvado) e a terceira seria para denominar os tupis

aliados ou amigos, pois seria a união do tupi com ikis (vizinhos). Deste modo,

Varnhagen sugere que aqueles que se autodenominam tupinambás, podem ser

123 Ibidem, p. 98. 124 Para Eduardo Viveiro de Castro, a imagem do selvagem inconstante na historiografia brasileira tem sido um lugar comum desde a obra do eminente e reacionário Varnhagen. Conferir: Eduardo Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia, São Paulo, Cosac & Naif, 2002, p. 187. 125 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 99.

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denominados tupiniquins ou tupinaem por outros grupos que consideram

tupiniquins ou tupinaem, mas que se auto-proclamam tupinambás. Assim

tupinambá, tupinaem e tupiniquim não seriam nações ou raças, mas maneiras

que tinham os tupis de se referirem aos diversos grupos existentes. O mesmo

tipo de análise é também feita com outros vocábulos como guainases, anacés,

tamoio, etc.126

Divididos, como estavam os indígenas, apenas poderiam acudir aos interesses ditados

pelo instinto vital. Varnhagen parecia impressionado com o fato de não ter aparecido um só chefe que

estabelecesse um centro poderoso e unificasse estas tribos numa única nação, como houve no Peru:

cuja aristocracia, livre de cuidar só em resguardar-se das intemperies e em

adquirir diariamente, o necessario alimento, podesse pensar no bem dos seus

semelhantes, apaziguando suas contendas, e civilisando-os como o exemplo, e

servindo-lhes de estímulo, para se distinguirem e procurarem elevar-se.127

Nesse trecho, Varnhagen parecia justificar diante de seus leitores a necessidade da obra

civilizadora realizada pelos colonos portugueses no Brasil, berço do Brasil Império, uma vez que os

habitantes da terra não tinham capacidade mental para constituírem a noção de unidade territorial, racial e

lingüística, alicerces fundamentais para a formação de um Estado-nação.

Na sua leitura, se a intervenção da Providência Divina não tivesse acudido estas pobres

almas com a bandeira da fé, da lei e do governo, trazida pelas embarcações portuguesas, eles

perpetuariam no abençoado solo a anarchia selvagem, ou viriam a deixal-o sem população.128

O nomadismo era um mal para Varnhagen, sinônimo de atraso e barbárie. A permanência

num território, povoando-o e construindo sentimentos de pertencimento, era fundamental para a construção

de uma nação. De acordo com as convicções do visconde de Porto Seguro,

A satisfação de contarmos maior número de individuos por compatriotas, de

pertencermos a uma família mais crescida, e de gloriarmo-nos com as acções

126 Guilherme Amaral Luz, As Cores do Cobre: o indígena na produção historiográfica e literária brasileira no século XIX, BADAPH – Banco de Dados de Pesquisadores e Publicações na Área de História, endereço: URL http:www.bandaph.hpg.ig.com.br/cobre.doc, acessado em 10 de março de 2009. 127 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 107. 128 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, ibidem.

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illustres de maior número de individuos por quem nos imaginamos

representados, não pode ser apreciada senão pelos povos que ja chegaram a

certo gráo de civilisação.129

Para fundamentar seu argumento, o visconde de Porto Seguro apresentou notícias mais

específicas da situação em que foram encontradas as gentes que habitavam o Brasil em termos de

organização social e política. Ele definiu que de tais povos na infância não havia história, apenas

etnografia.130 E, dentro desta perspectiva, ele alertou aos leitores que

Nem chronica de seu passado, se houvesse meio de nos ser transmittida,

mereceria nossa attenção mais do que tratando-se da biographia de qualquer

varão, ao depois afamado por seus feitos, os contos de meninice e primitiva

ignorancia do ao depois heroe ou sábio. A infancia da humanidade na ordem

moral, como a do individuo na ordem physica, é sempre acompanhada de

pequenhez e de miserias. – E sirva esta prevenção para qualquer leitor

estrangeiro que por si, ou pela infancia de sua nação, pense de ensoberbecer-

se, ao ler as poucas lisongeiras paginas que vão seguir-se.131

E era através desta etnografia que o historiador do Império de Dom Pedro II apresentava

as imagens dos indígenas,132 vistos como um outro interno incômodo.

Os laços de família dessa gente, primeiro elemento da organização social da visão de

mundo representada por Varnhagen, com base nos escritos dos cronistas e jesuítas, eram muito frouxos.

Os filhos não respeitavam a figura materna e só temiam os pais e tios. Em matéria de amor, não havia

129 Ibidem, p. 103. 130 De acordo com Maria Regina Celestino de Almeida, a sugestão de Varnhagen parece ter sido bem incorporada pela historiografia brasileira, na qual os indígenas têm tido inexpressiva participação: aparecem, grosso modo, como atores coadjuvantes, agindo sempre em função dos interesses alheios. Aliás, não agiam, apenas reagiam a estímulos externos sempre colocados pelos europeus. Tem-se quase a impressão de que estavam no Brasil à disposição desses últimos, que se serviam deles à vontade, descartando-os quando não mais necessários: teriam sido úteis para determinadas atividades e inúteis para outras, aliados ou inimigos, bons ou maus, sempre de acordo com os interesses e objetivos dos colonizadores. Maria Regina Celestino de Almeida, Identidades étnicas e culturais: novas perspectivas para a história indígena, in: Martha Abreu e Rachel Soihet (orgs.), Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologia, Rio de Janeiro, Casa da Palavra; FAPERJ, 2003, p. 27. 131 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 108. 132 Segundo Arno Wehling, Varnhagen separava os objetos de estudo: os povos históricos, civilizados e com escrita eram estudados pela história; os povos não históricos, selvagens ou bárbaros e ágrafos cabiam à etnografia. (...) Nestes povos, existiria apenas a repetição de experiências elementares, destinadas a atender às necessidades mais imediatas da sobrevivência, estavam, assim, longe de acumular uma cultura mais elevada e de refletir sobre ela: as fontes para seu estudo eram de natureza inteiramente diversa daquelas dos povos históricos, porque radicalmente diversas eram as suas culturas. Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, p. 149.

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sentimentos morais. As delícias da verdadeira felicidade doméstica, na sua leitura cristã e moralista, quase

não podiam ser apreciadas e saboreadas pelo homem selvagem.

Por viverem rodeados de feras e homens-fera, segundo Varnhagen, não poderia

desenvolver-se neles a parte afetuosa da natureza humana: a amizade, a gratidão, a dedicação. Eram

beneficiados somente nos dotes do corpo e nos sentidos, mas o mesmo não acontecia com o espírito do

selvagem. Eram taxados de falsos e infiéis, inconstantes e ingratos, e bastante desconfiados,133

impiedosos, despudorados, imorais, insensíveis, indecorosos. Brutais, passavam a vida habitual de forma

monótona e triste, entrecortada pelos sobressaltos da guerra, festas e pajelanças. Neste aspecto, o juízo

varnhageniano era sempre implacável e nitidamente respaldado por uma veia etnocêntrica.

Aos trinta anos, o selvagem apresentava uma expressão melancólica ou feroz.

Congregava num único ser os piores vícios: a hostilidade, a antropofagia, a sodomia, a vingança, o hábito

de comer terra e barro. Varnhagen, embora negasse, não poupou tinta para fazer uma pintura pouco

lisonjeira dessas gentes:

que mais ou menos errantes desfructavam, sem os beneficios da paz nem da

cultura do espirito, do fertil e formoso solo do Brasil, – antes que outras mais

civilisadas as viessem substituir, conquistando-as e cruzando-as com ellas, e

com outras trazidas d’alêm dos mares pela cobiça.134

Varnhagen, assim como o próprio von Martius,135 havia feito um longo estudo sobre os

indígenas: línguas, usos, armas, indústria, idéias religiosas, organização social, trabalho, guerra e

medicina, etc. Com base nas informações colhidas, o visconde de Porto Seguro se surpreendeu que

houvesse ainda poetas e filósofos que encontrassem no estado selvagem a maior felicidade do homem.136

Para o historiador, o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o Philosopho de Genebra, guiado

pelo seu genio, e pelas suas philantropicas intenções, ideou, não conheceu o selvagem!137

133 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 132-133. 134 Ibidem, p. 133. 135 Conferir: Karl Friedrich P. von Martius, O Estado do Direito entre os Autóctones do Brasil [1832], Revista do IHGSP, São Paulo, tomo XI, 1907, p. 20-82; Etnografia Americana: o Passado e o Futuro do Homem Americano [1838], Revista do IHGSP, São Paulo, tomo IX, 1905, p. 534-562; Natureza, doenças, medicina e remédio dos índios brasileiros [1844], São Paulo, Editora Nacional, 1979. 136 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 133. 137 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 133. Segundo Arno Wehling, Varnhagen admitia basicamente dois estágios, o barbarismo e a civilização, os primeiros tinham os defeitos inerentes à infância primitiva e deseducada da humanidade: eram volúveis, a “proverbial volubilidade dos bárbaros”; “audazes e cruéis”; “cercados de inimigos e perigos, “ficavam desconfiados de caráter”; tinham “essa fidelidade flutuante comum a todo povo bárbaro, segundo já reconhecida antigüidade”. Os outros, por sua vez, tinham “hábitos de civilização, polícia e pudor que só as grandes povoações proporcionam”. Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 124-125.

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Para o autor da Historia geral do Brazil, os indígenas passavam por privações, fome, não

tinham lei, religião, viviam na selvageria, na ferocidade. Divididos os tupis em cabildas insignificantes, que

se evitavam e guerreavam, apenas atendiam aos interesses ditados pelo instinto vital. A sorte da mulher

era julgada tão inferior à do homem que muitas mães matavam as filhas ao nascerem. As mulheres eram

pouco mais do que escravas. As descrições dos rituais de sacrifícios humanos, a antropofagia, feitas por

Varnhagen, davam bem ao seu leitor o nível de barbárie dos nativos. Ao escrever sobre os horrores

praticados por essa gente, ele teceu as seguintes considerações num tom nitidamente moralista:

Desgraçadamente o estudo profundo da barbarie humana em todos os paizes,

prova que sem os vinculos das leis e da religião, o triste mortal propende tanto á

ferocidade que quase se metamorphosea em fera...

As leis a que o homem quis voluntariamente sujeitar-se, depois de mui tristes

soffrimentos do mesquinho gênero-humano antes de as possuir, não tem outro

fim senão o fazel-o mais livre e mais feliz do que seria sem ellas.138

Para curar a alma selvagem, prescrevia os raios de luz da civilização e do evangelho. Sem

os vínculos da lei e da religião, sentenciava o autor, o ser humano tenderia à ferocidade. As leis tornavam

feliz o homem que se sujeitava a elas. O direito, a justiça e a razão eram melhores do que o instinto, o

apetite e o capricho. O índio selvagem, rodeado de perigos, não sabia o que era tranqüilidade d’alma

porque receava e temia a tudo. Ele era inábil para concorrer para a melhoria da situação da humanidade,

necessitando, portanto, de tutela. Com base nos primeiros escritos sobre os indígenas, Varnhagen

observou que a sua língua documentava sua inferioridade: Como em todas linguas americanas,

escaceavam na nossa brazilica as labiaes e eram desconhecidas as articulações f, l, e r forte. A linguagem

accusava, como se devia esperar, o estado de atrazo intellectual.139

Para Arno Wehling, ao associar cultura, ordem pública, religião, o estabelecimento de

valores morais e vida urbana, o visconde de Porto Seguro indicava o que seria uma mudança ontológica no

homem civilizado. Apenas o sujeito civilizado, por ter os atributos básicos da historicidade como a escrita, o

direito e o Estado, seria capaz de construir instituições que o protegessem dos perigos mais elementares

da natureza e dos outros homens.

138 Ibidem, p. 133. 139 Ibidem, p. 110.

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Os indígenas, neste aspecto, seriam incompletos e atrasados, uma vez que desconheciam

as letras civilizadoras – F de fé, L de lei e R de rei. Este tipo de leitura estereotipada do comportamento

indígena a partir dos padrões europeus remontava, em larga medida, as interpretações dos cronistas

portugueses e espanhóis do século XVI, especialmente a documentação produzida por missionários

religiosos como os jesuítas.140

No que concerne à fé, a sociedade selvagem estaria longe dos sentimentos nobres do

cristianismo. A vingança, sentenciava Varnhagen, era a sua religião:

Podemos dizer que a unica crença forte e radicada que tinham era a da

obrigação de se vingarem dos estranhos que offendiam a qualquer de sua

alcateia. Este espirito de vingança levado ao excesso era a sua verdadeira fé. –

Ao ver um tal extremo de degradação do homem em sua religião (a custo

empregamos este nome para taes horrores) não haverá plilosopho-politico que

não reconheça que o tolerantismo religioso deve ter limites, por livres que sejam

as instituições de um estado, a menos de alguns allucinados ou malévolos.

O canibalismo e anthropofagia não eram gula, senão algumas vezes por

aberração do orgulho do prazer que sentiam na desaffronta, cujos effeitos

faziam extensivos a todas as gerações. O instincto de se vingarem era tão

excessivo que se julgavam obrigados a trincar todo o animal que antes os

molestára, ainda que fosse sevandija. E se não o podiam conseguir ás claras, o

obteriam por meio da traição e dos venenos.141

Quanto à origem dos tupis, Varnhagen notou que provavelmente eles tivessem como

berço os densos matos das margens do rio Amazonas; e que nas aguas deste poderoso rio e dos seus

braços até ás do Orinoco (que todas se communicam) depois de ser agricultora, se fizesse navegadora.

Esses homens teriam migrado do norte, graças a sua superioridade na navegação, vencendo pouco a

140 Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 125. Segundo Guilhermo Giucci, a partir da leitura dos cronistas usados por Varnhagen, a ausência de fé, lei e rei compromete, por diversos ângulos, os nativos brasileiros. Os cronistas que apelam para esta fórmula definidora desembocam na barbárie dos naturais. Consolida-se, assim, a imagem de um mundo próprio, exclusivo, autônomo, independente da cosmovisão do narrador e da intervenção dos portugueses. O mito se apodera das relações entre as culturas e se instala poderosamente no espaço dos preconceitos. Um mosaico de palavras se confunde com uma realidade indócil, determinada pela animalidade. Gabriel Soares de Sousa nota a ausência das letras F, L e R entre os tupinambás da Bahia e reitera a falta de fé, lei e rei. Tal princípio anárquico é coerente com a atribuição de qualidades degradantes, que completam o quadro da animalidade americana. O desconhecimento dos benefícios do cristianismo e da utilidade dos decretos e figuras repressivas leva à obrigação de domesticar, uma tarefa missionária e civilizadora. Belicosidade, vingança, luxúria, poligamia, canibalismo, desamor e homossexualismo são as características negativas que o cronista pretende eliminar pela integração dos bárbaros na divisão do trabalho. Guilhermo Giucci, Sem fé, lei ou rei: Brasil 1500-1532, Rio de Janeiro, Rocco, 1993, p. 208-209. 141 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 121.

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pouco as correntes e as ondas d’agua doce, passando depois nas mesmas canoas a afrontar o mar,

chegando ás ilhas mais afastadas, e aos ultimos confins do Brazil.142

Para o visconde de Porto Seguro, os tupis seriam os Jazões da nossa mythologia, os

Fenícios da nossa história antiga, os nossos invasores normandos em tempos bárbaros, pois

a conquista, que effectuaram de toda a costa do Brazil, a deveram seguramente,

como levamos dito, á superioridade da sua marinha, ou canoas de guerra de que

faziam uso talvez os bárbaros que anteriormente aqui residiam; -- embora haja

quem sustente que a navegação precedeu ao trato por terra, que os rios foram

as primeiras vias de communicação dos povos não civilisados, e que a canoa

existiu antes da rede ou serpentina, e o navio antes do carro.143

Dentro destas conjecturas, haveria a possibilidade da origem das antigas civilisações

americanas estar em povos oriundos de outros continentes porque, segundo Varnhagen, haveria

fortes inducções que ha para crer-se que em remotas eras estaria a America em

communicação poderia ter existido por meio de uma navegação, perdida ou

interrompida por seculos de barbárie, como succedeu com a que o Mediterraneo

tivera outr’ora com as Ilhas Canarias, a qual no fim da idade média se renovou

para a Europa por quase descobrimento, como o d’América.144

Essas hipóteses aventadas na Historia geral do Brazil, em sendo comprovadas, teriam a

finalidade de defender a idéia de que os tupis eram um povo invasor e conquistador de território. A solução

para esta questão estaria nos estudos da língua dessas gentes, pois seria a única fonte pura disponível

sobre os indígenas. Assim como von Martius, Varnhagen acreditava que só o estudo da filologia desses

142 Ibidem, p. 105-106. 143 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 106. Em 1851, nos Comentários à obra de Gabriel Soares de Sousa, Varnhagen aventou a hipótese de os tupis terem algum tipo de parentesco com os antigos egípcios. Conferir: Francisco Adolfo de Varnhagen, Breves commentarios á precedente obra de Gabriel Soares, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 14, 1851, pp. 367-415. A temática da origem dos indígenas foi recorrente nos debates dentro do IHGB desde a sua criação, sendo objeto de intensos conflitos e polêmicas. Conferir: Lúcio Menezes Ferreira, Vestígios de Civilização: A Arqueologia no Brasil Imperial (1838-1877), dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002. 144 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 137.

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povos ajudaria a decifrar quem seriam os tupis, bem como eles haviam invadido e ocupado o território que

corresponderia ao Império do Brasil. 145

Ao contrário das civilizações que habitaram o México, a América Central e o Peru, os

indígenas brasileiros não dispunham de monumentos grandiosos. As características de suas habitações,

segundo Varnhagen, em larga medida confirmariam a imagem de povos em ruínas, inferiores – uma

espécie de incas decaídos:

A abundancia da terra, em caça ou pesca, contribuía, mais que nenhum outro

motivo, para que uma cabilda se decidisse a assentar povoação e a levantar sua

taba, -- ordinariamente de grandes casarões ou abarracamentos (ocas) de páos

e algum barro, cobertos em fórma convexa de folha de pindoba. Eram estes de

uns cento e cincoenta pés de comprido, quatorze de largura e doze de altura.

Junto ao tecto tinha cada oca ou grande casarão, giráos ou juráos, isto é,

alpendradas, onde se guardavam os utensilios e recolhiam os comestíveis. A’s

vezes toda a povoação construía para si um rancho em que cabiam duzentas

pessoas. Dentro não havia repartições feitas de tabiques, nem de esteiras, nem

de nada, e somente esteios para as redes. No meio da oca ou casarão sem

chaminés, accendiam a fogueira para cosinhar e para os illuminar de noite,

aquecel-os e livral-os dos morcegos.146

Para o visconde de Porto Seguro, a ausência de monumentalidade entre os indígenas

confirmava que estes estavam intelectualmente distantes das civilizações gregas e romanas, ricas em

cidades, construções e monumentos.147 Eles seriam decaídos perto das criações arquitetônicas dos

astecas, maias e incas. Para além da língua, essas raças limítrofes não teriam outros vestígios

145 Diante da ausência de fontes documentais que comprovassem as suas hipóteses, Varnhagen teceu as seguintes considerações: No estado actual dos conhecimentos, seria irrisorio lembrar-nos de entrar em investigações sobre a procedência dos povos que viviam neste continente, e cançarmo-nos, com os escriptores dos seculos passados, em conjecturas sobre o modo como poderiam haver passado aqui estes descendentes de Noé. Ibidem, p. 134. Para uma reflexão sobre a temática da origem dos índios na obra de Varnhagen, conferir: Laura Nogueira Oliveira, Os índios bravos e Sr. Visconde: Os indígenas brasileiros na obra de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., capítulo II. 146 Ibidem, p. 116. 147 Para uma crítica contemporânea a esta concepção de ausência de monumentalidade nas sociedades indígenas, conferir: Pedro Paulo Abreu Funari e Francisco Noelli, A Pré-História do Brasil, São Paulo, Contexto, 2002. De acordo com Glaydson José da Silva, os modelos da Antigüidade teriam um papel significativo na construção das mitologias políticas nacionais, tendo como base a concepção da superioridade ocidental: presentes na formação das identidades étnicas dos mais diferentes países, os mitos de origem dos países europeus vão guardar a especificidade de terem tomado forma e se difundido em torno dos estados nacionais, lançando mão de velhas estruturas abstratas, já perpetuadas desde a Antiguidade, em uma dinâmica que lida, a um só tempo, com instâncias do mito, da memória e da História. Glaydson José da Silva, História Antiga e usos do passado: um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944), São Paulo, Annablume; FAPESP, 2007, p. 34.

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significativos que registrassem seu legado, o que confirmava de longe que não poderiam ser o símbolo da

nacionalidade, apregoado pelos românticos em versos.

Ao longo da Historia geral do Brazil, os indígenas seriam apontados como entraves à

colonização do Brasil, atacando e destruindo povoações. Eles seriam responsáveis pelo pânico e

desordem da sociedade que se instaurava em terras tropicais. Outra imagem recorrente seria a de

traidores e corruptores dos hábitos e costumes dos primeiros colonizadores:

Estes primeiros colonos meios afeitos ja aos hábitos dos Bárbaros, enlaçados

com suas familias, e sem prestigio algum perante elles, foram a peor praga que

podia cair sobre a recente colonia (...) A mesma facilidade de trato que, por

intermedio desses chirstãos gentilisados, tinham os novos colonos para se

derramarem pela terra, não só os pevertia, como os expunha a serem

innocentemente sacrificados ás mãos dos gentios, quando se arredavam um

pouco mais. A par destes males resultava outro maior. A colonia se dissolvia; os

acostumados a obedecer perdiam o habito da disciplina; e o chefe começava a

não ter fôrça para fazer-se temer e respeitar.148

Para Varnhagen, os indígenas seriam inconstantes e, portanto, não confiáveis como

aliados no processo de colonização do Brasil. Eram sempre anotados, ao longo de sua narrativa, como um

dos grandes obstáculos na superação dos limites do litoral, rumo ao interior. Neste sentido, ele elogiava e

saudava os feitos dos bandeirantes paulistas, no seu aprisionamento e uso como mão-de-obra. As

bandeiras, em última análise, seriam a civilização dessas gentes perdidas nas brenhas destas terras.

Em síntese, o visconde de Porto Seguro definia as gentes que viviam no Brasil como

desgraçadas que, em vez de habitarem tão bello solo, apenas o possuíam, em quanto não se

exterminavam umas ás outras em guerras que eram miseraveis a pôder de ferozes.149

Os indígenas eram reabilitados, por sua escrita, na medida em que se rendessem à

grande obra colonial promovida pelos portugueses, aceitando suas leis, sua fé e seu rei.150 Em outras

148 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 166. 149 Ibidem, p. 88. 150 Segundo Rodrigo Turin, Varnhagen, embora buscasse as origens dos selvagens entre os povos egípcios e cários, não deixava de afirmar sua exclusão definitiva da civilização, considerando-os como povo invariavelmente sem história e incapazes de cultivar laços sociais. Esta posição se confrontava diretamente com as afirmações de letrados como Gonçalves de Magalhães, que observava que o selvagem brasileiro não seria um ser tão estúpido como pregava o historiador sorocabano. Rodrigo Turin, A “obscura história” indígena. O discurso etnográfico no IHGB (1840-1870), in: Manoel Luiz Salgado Guimarães (org.), Estudos sobre a escrita da história, op. cit., p. 96,100.

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palavras, na medida em que aceitassem a bandeira do cristianismo e da Coroa portuguesa, abandonando

a condição de selvagens, canibais e antropófagos.

Para Varnhagen, a solução para esta pintura dessas gentes pouco lisongeira, invasores

decaídos de tempos remotos, estaria na sua substituição por outras mais civilizadas, conquistando-as e

cruzando-se com ellas, e com outras trazidas d’alêm dos mares pela cobiça.151

3.4.3. Negros

Ao tratar da raça africana ou etíope em suas relações com a História do Brasil, von Martius

teceu breves considerações, ao contrário do que havia feito em relação ao indígena na sua premiada

monografia. Em relação ao negro africano, ele ofereceu poucos dados e propôs algumas questões. Os

questionamentos lançados pelo naturalista bávaro concentravam-se praticamente em torno do tráfico de

escravos, os seus hábitos e costumes, os defeitos e virtudes próprios da sua raça e suas influências no

caráter do português, o elemento colonizador:

Sendo a Africa visitada pelos portuguezes antes da descuberta do Brazil, e

tirando elles deste paiz grandes vantagens commerciaes, é fóra de duvida que já

naquelle periodo influía nos costumes o desenvolvimento politico de Portugal.

Por este motivo devemos analisar as circumstancias das colonias portuguezas

na África, de todas as quaes se trafica em escravatura para o Brasil, dever-se-ha

mostrar que movimento imprimiam na industria, agricultura e o commercio das

colonias africanas para com as do Brazil, e vice-versa. De summo interesse são

as questões sobre o estado primitivo das feitorais portuguezas, tanto no littoral

como no interior da Africa, e da organisação do trafico de negros. Estas

circumstancias são quasi inteiramente desconhecidas na Europa. Só

ultimamente foram publicadas noticias sobre este assumpto pelos Inglezes; com

tudo parecem representadas em grande parte de um só lado, nem fornecem

esclarecimentos sufficientes, sobre o manejo e procedimento do trafico dos

escravos no interior do paiz. E se observarmos pela outra parte que a litteratura

151 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 133.

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portugueza oferece muito pouco, o que se refere a historia universal do trafico da

escravatura, o autor prestaria um serviço muito relevante se na historia do Brazil

tratasse cabal e extensamente este assumpto. De si mesmo offerecem-se então

muitas comparações sobre a indole, os costumes e usos entre os negros e os

índios, que sem duvida contribuirão para o augmento do interesse que nos

offerecerá a obra. Emfim será conveniente indicar qual a influencia exercida pelo

trafico de negros e suas differentes phases sobre o caracter portuguez no

proprio Portugal.152

Em Historia geral do Brazil, Varnhagen dedicou aos negros poucas páginas, assim como

von Martius em sua monografia. Para o visconde de Porto Seguro, os traficantes negreiros fizeram uma má

ação ao Brasil entulhando as suas cidades do litoral e engenhos de negrarias.

Na sua leitura, como a colonização africana teve uma grande entrada no Brasil, podendo

ser considerada um dos elementos da sua população, julgou seu dever consagrar algumas linhas neste

logar a tratar da origem desta gente, a cujo vigoroso braço deve o Brazil principalmente os trabalhos do

fabrico do assucar, e modernamente os da cultura do café.153 Entretanto, rogando aos céus, o historiador-

diplomata fez

votos para que chegue um dia em que as côres de tal modo se combinem que

venham desaparecer totalmente no nosso povo os caracteristicos da origem

africana, e por conseguinte a accusação da procedencia de uma geração, cujos

troncos no Brazil vieram conduzidos em ferros do continente fronteiro, e

soffreram os grilhões da escravidão, embora talvez com mais suavidade do que

em nenhum outro paiz da America (...)154

Para Varnhagen, ao passar tais gentes ao Brasil, como escravizados, na verdade estes

melhoraram de sorte. Na sua leitura, embora a escravidão fosse injusta, por não ser filantrópica, e fosse

uma ofensa à humanidade, por ser um ataque ao indivíduo, à família e ao Estado de onde foram

arrancados, os negros melhoraram de sorte ao entrar em contato com gente mais polida, com a bandeira

152 Karl Friedrich P. von Martius, Como se deve escrever a Historia do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 405-406. 153 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 182-183. 154 Ibidem, p. 183.

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da civilização e a cruz do cristianismo. Por esse motivo, os negros da América eram melhores do que os

africanos. A África, na sua leitura, seria uma terra selvagem, povoada de gente incivilizada.155

Como desdobramento desta lógica, Varnhagen afirmou que a raça africana teria na

América produzido mais homens prestimosos e até notáveis, do que no continente donde era oriunda:

assim ainda passando taes gentes ao Brazil, com as condições da escravidão romana; isto é, de serem

coisa venal ou bem móvel, melhoravam ellas a sorte.156 Eles se destacavam pela força física, pelo gênio

alegre para suportar a sua sina e pela capacidade de trabalho:

Estes povos pertencentes em geral á região que os geographos antigos

chamavam de Nigricia, distinguiam-se sobretudo pela facilidade com que

supportavam o trabalho no littoral do Brazil, facilidade proveniente da sua fôrça

physica, da semelhança dos climas, e não menos de seu genio alegre, talvez o

maior dom com que a Providencia os dotou para supportar a sorte que os

esperava; pois que com seu canto monotono, mas sempre afinado e melodioso,

disfarçam as maiores penas.157

Quanto à origem dos cativos trazidos para o Brasil, Varnhagen avisou que havia poucos

dados para montar um catálogo extenso das diferentes nações de raça negra, que os colonos preferiram

nesta ou naquela época, e para esta ou aquela região. Mesmo assim, podia-se afirmar

que a importação dos colonos negros para o Brazil, feita pelos traficantes, teve

logar de todas as nações, não só do littoral d’Africa que decorre desde o Cabo-

Verde para o sul, e ainda alêm do Cabo da Boa Esperança, nos territorios e

costas de Moçambique; como tambem não menos de outras dos sertões que

com ellas estavam em guerra, e ás quaes faziam muitos prisioneiros, sem os

matarem.158

155 Varnhagen, assim como seus contemporâneos, não possuía uma visão nada positiva do continente africano. Aliás, a africanização era um problema para o futuro da nacionalidade brasileira. Segundo Celia Maria Marinho de Azevedo, se a África porventura viesse à mente, era sempre em termos de miséria, ignorância e feiúra. A África era irremediavelmente a terra das trevas. (...) A ‘africanização’ do Brasil era, portanto uma herança que ‘a mãe-pátria’, Portugal, havia impresso como ‘uma nódoa’ em todos os aspectos possíveis da sociedade brasileira, incluindo-se aqui a língua, as maneiras sociais, a educação. A africanização era, portanto o conjunto dos vícios africanos que circulavam, juntamente com os escravos, no Brasil. Celia Maria Marinho de Azevedo, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX), São Paulo, Annablume, 2003, p. 136-137. 156 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 184. 157 Ibidem, ibidem. 158 Ibidem, p. 183.

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Nessas nações, segundo o historiador, a idéia de liberdade individual não estava

assegurada, uma vez que os mais fortes vendiam os mais fracos, os pais os filhos e os vencedores os

inimigos submetidos e, por esta razão, a escravidão no Brasil tornou-se um alento para os africanos. Ela

seria, por este raciocínio, reabilitadora dessas gentes.159

A visão do Brasil como lugar de prática de escravidão amena por parte dos senhores

ocuparia o imaginário de intelectuais abolicionistas, tanto brasileiros como estrangeiros, em especial norte-

americanos, ao longo do século XIX.160 O desdobramento desta visão far-se-ia presente na obra do

sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987), a partir da década de 1930, com a publicação de

seu clássico Casa Grande & Senzala.161

A idéia de escravidão amena, suave e humana no Brasil colonial esteve tão presente no

seu discurso que, em Novo mundo nos trópicos, chegou a ponto de fazer a seguinte consideração entre o

cotidiano dos escravos no Brasil e os trabalhadores livres nas fábricas na Europa:

159 Argumento semelhante ao de Varnhagen seria identificado, por exemplo, no manual escolar de João Ribeiro (1860-1934), publicado em 1900, no contexto das comemorações do IV Centenário do Descobrimento do Brasil e profundamente adotado pelas escolas secundárias e faculdades até os anos 1960: Mas a escravidão no Brasil foi para os negros a reabilitação deles próprios e trouxe para a descendência deles uma pátria, a paz e a liberdade e outros bens que pais e filhos jamais lograriam gozar, ou sequer entrever no seio bárbaro da África. João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), 17 ed. revista e completada por Joaquim Ribeiro, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1960, p. 210. 160 Para uma reflexão cuidadosa sobre a visão da escravidão amena e de paraíso racial em relação ao Brasil no imaginário dos abolicionistas brasileiros e norte-americanos, conferir: Celia Maria Marinho de Azevedo, Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX, Rio de Janeiro, Paz & Terra, 1987; Celia Maria Marinho de Azevedo, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XX), op. cit., 2003; Celia Maria Marinho de Azevedo, Quem precisa de São Nabuco?, Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, ano 23, n. 01, 2001, p. 87-97. 161 Conferir: Gilberto Freyre, Casa grande & senzala: Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1, 46a ed., Rio de Janeiro, Record, 2002. Esta linha interpretativa da história da escravidão dentro da formação da sociedade brasileira, representada por Gilberto Freyre, exerceu forte influência na historiografia brasileira e na produção didática até o final dos anos 1970 e início dos 1980. Em diversos livros, em especial o clássico Casa Grande & Senzala [1933] e artigos publicados entre os anos 1930 e 1970, Gilberto Freyre, ao estudar o desenvolvimento da temática de um novo mundo nos trópicos, construiu a visão de um Brasil como uma terra [quase] livre de preconceito racial, e que poderia servir de espelho para o restante do mundo resolver seus problemas raciais. Para Gilberto Freyre, a formação da sociedade brasileira era um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura européia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a indígena. Porém, sobrepondo-se a todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo. Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala: Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1, 46 d., Rio de Janeiro, Record, 2002, p. 125. Gilberto Freyre encontrou as origens desse novo mundo, segundo George Andrews, na experiência colonial brasileira, e, em especial, na sua experiência supostamente benigna com a escravidão. Ao enfatizar os níveis relativamente baixos de preconceito racial entre os colonos portugueses no Brasil, e a escassez de mulheres européias na colônia, Freyre argumentou que o Brasil proporcionou o ambiente ideal para a mistura racial entre os senhores europeus e as escravas africanas. A ampla miscigenação ‘dissolveu’ qualquer vestígio de preconceito racial que os portugueses poderiam ter trazido da Europa, ao mesmo tempo produzindo uma grande população de raça miscigenada. O produto final desta interpretação do passado colonial brasileiro elaborada pelo sociólogo de Apicucos foi a constituição de uma das mais harmoniosas junções da cultura com a natureza e uma cultura com a outra que a América jamais vira. Para Gilberto Freyre, na leitura de George Reid Andrews, quando o Brasil passou para o século XIX e XX, esta ‘ união harmoniosa’ de negros com brancos formou a base da ‘democratização ampla’ da sociedade brasileira, e sua inexorável ‘marcha para a democracia social’. George Reid Andrews, Negros e Brancos em São Paulo (1888-1988), Bauru, EDUSC, 1998, p. 28. Para uma análise da obra de Gilberto Freyre, conferir: Maria Lúcia Pallares-Burke, Gilberto Freyre, um vitoriano nos trópicos, São Paulo, Ed. da UNESP, 2005.

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À vista de todas essas evidências não há como duvidar de quanto o escravo nos

engenhos do Brasil era, de modo geral, bem tratado, e a sua sorte realmente

menos miserável do que a dos trabalhadores europeus que, na Europa ocidental

da primeira metade do século XIX, não tinham o nome de escravos.162

Quanto às práticas religiosas dos povos negros, Varnhagen comentou que havia em

alguns idéias de islamismo, e até já de cristianismo, em virtude da vizinhança dos estabelecimentos e

feitorias dos europeus. Todavia, a maioria não passava de gentios ou idolatras porque andavam nús,

lavavam-se a miúdo, e, muito delles em pequenos golpeavam a cara por distinctivo de nação. Eles

adoravam ídolos, outros animais, depositavam sua fé em calundus, quigilas e feitiços, realizavam

sacrifícios e oferendas aos que possuíam muito charlatanismo para se inculcarem por seus sacerdotes.163

Tais costumes horrorizavam Varnhagen, criado dentro dos preceitos da civilização européia e da fé cristã

católica.

Ao Brasil, acusou taxativamente o historiador sorocabano, essa gente fez mal com seus

costumes pervertidos, seus hábitos menos decorosos e despudorados. Os escravos apresentavam o

coração endurecido, pois viviam alheios à ternura da família. A escravidão, nesta perspectiva, trouxe sérios

inconvenientes: abusos, crueldades quanto ao vestuário, à alimentação e à bebida.

Para Varnhagen, o desenvolvimento do Brasil teria sido outro sem a presença dessa

gente. A presença africana na colônia constituiu um erro. No país, havia perpetuado um regime de trabalho

servil que ele nem conseguia qualificar, mas de que não se podia abrir mão, sem causar grandes males

para a nação:

Parece que ninguem se lembrou de fazer no Brazil, onde a natureza é tão

fecunda que permitte conseguir talvez resultados iguaes aos de outros paizes

com metade do trabalho, que ninguem se lembrou, dizemos, de que bastava que

os colonos ou os Indios trabalhassem nas lavouras no verão desde as cinco até

ás oito ou nove da manhã, e desde as quatro ou cinco até ás seis e meia da

tarde, descansando assim, ou empregando-se em casa, durante as sete horas

mais calorosas do dia.164

162 Gilberto Freyre, O novo mundo nos trópicos, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1971, p. 68. 163 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 184. 164 Ibidem, p. 182.

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Para o visconde de Porto Seguro, o índio deveria ter sido usado como mão-de-obra nas

lavouras e engenhos. Neste aspecto, o autor da Historia geral do Brazil teceu severas críticas e ataques

aos jesuítas e defendeu a ação dos bandeirantes. Varnhagen acusou a falsa filantropia dos missionários da

Companhia de Jesus de impedir a escravidão indígena. Os bandeirantes paulistas, na sua opinião, que

caçavam os gentios pelo sertão teriam sido menos nocivos ao Brasil do que os traficantes de escravos

negros e os jesuítas:

Organisaram-se em bandeiras, e começaram a ir prender Indios bravos mui

longe, e fora da jurisdicção dos Padres. Fizeram bem? Afirmal-o fôra tão pouco

humano como defender menos nobremente qualquer outra escravidão. O certo é

porêm que os interesses do Estado, não estão em certos casos

(temporariamente) de accordo com os sentimentos da mais generosa

philantropia, que alias desde seculos prega e prega louvavelmente a Igreja... E’

assumpto melindroso sobre que mais vale discorrer menos. Não se nos leve

porêm a mal se ousamos pedir que se deixe em paz a memoria dos primeiros

filhos e netos de christãos nascidos na terra sobre que foi embalado o nosso

berço; -- quando os audazes aventureiros, a quem o Imperio deve a vastidão de

suas fronteiras, tão accusados andam já por esse mundo, não só de salteadores,

como tambem, abuzando-se da significação dupla de uma palavra, de infieis

mestiços e descrentes mamelucos.165

A filantropia dos jesuítas, segundo Varnhagen, em relação ao indígena era mais discurso

(pregação) do que exemplo; eles próprios fizeram uso do índio como escravo em suas reduções. E

concluiu, de maneira irritada, que a sua proteção ao elemento da terra tinha deixado a colônia à míngua de

braços para o trabalho, forçando a importação de africanos:

As exaggeradas pseudo-philantropias em favor dos Indios serviram a fomentar o

trafico africano; assim a pretexto de se aliviarem sevicias (que d’outra forma se

poderam ter combinado) contra as gentes de um paiz que se pretendia civilizar,

começaram os particulares a enviar navios alêm do Atlantico a inquietar povos

alheios, de igual barbaridade, e a prendel-os e a trazel-os em cadêas, e a fazer

165 Ibidem, p. 322.

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que muitos fallecessem nos navios, e a que importassem com males de lepra,

em nosso paiz, a ainda maior da escravidão hereditária.166

Ainda quanto à introdução do escravo africano no Brasil colonial, Varnhagen destacou dois

motivos:

em primeiro logar como fica dito, de se haver promulgado como illegal a

escravatura india, com raras excepções, das quaes se os poderosos abusavam

outros se arreceavam, só para não virem a achar-se no caso de ter que pleitear

o seu direito. Em segundo logar proveiu de se haver ja nas Antilhas conhecido

por experiencia que os Africanos eram mais fortes e resistiam mais ao trabalho

aturado do sol que os indios.167

Varnhagen apresentou outra referência elogiosa à atuação dos bandeirantes quando

tratou da luta contra Palmares, um foco de quilombolas na região da serra da Barriga, em Alagoas no

século XVII. A obra de conquista e sujeição dos Palmares foi atividade de largos annos, e de não poucos

trabalhos e fadigas.168

Para o visconde de Porto Seguro, um fiel súdito da monarquia de Dom Pedro II, se os

mocambos e quilombolas dos Palmares vieram a formar seriamente um ou mais Estados não era digno de

se pôr em dúvida, mas havia exageros aos que

os apresentam como organisados em republica constituida com leis especiaes, e

subordinados a um chefe que denominavam Zombi, expressão equivalente á

com que se designa Deus. Sobre o verdadeiro districto dos palmares, que

occupavam os sublevados ha varias opiniões.169

O bandeirante paulista Domingos Jorge Velho foi retratado por Varnhagen como mui

conhecedor das artes e ardis das guerras do matto no Brazil170, pelas campanhas que realizou nos sertões

da colônia contra os índios. Para ele, a campanha contra Palmares realizada por este bandeirante era

166 Ibidem, p. 261. 167 Ibidem, p. 182. 168 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral Brazil, tomo II, Madrid, Imprensa da V. de Dominguez, 1857, p. 96. 169 Ibidem, p. 96-97. 170 Ibidem, p. 97.

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abordada como um feito heróico paulista digno de nota e lamentava o fato de não ter havido um chronista,

que perpetuasse mais estes heroicos feitos dos Paulistas.171 Além de integrar a colônia, os bandeirantes

tiveram a missão de conter rebeliões escravas como a do Quilombo dos Palmares.

Portanto, pode-se perceber que Varnhagen não considerava que a presença da raça

negra tivesse sido boa ou favorável à colonização portuguesa no Brasil. Talvez, segundo o autor, esta

poderia ter sido evitada, ou com o abandono da cultura do açúcar, ou então com o trabalho de brancos e

índios. Um projeto colonial (e nacional) sem negros seria o ideal para o autor da Historia geral do Brazil, o

que demonstrava um sentimento de profundo teor racista quanto a este elemento formador na

nacionalidade brasileira.172 Para ele, os negros africanos estavam muito longe dos padrões de civilidade

desejados para a nova nação.

Contudo, ressaltou Varnhagen, se fosse inevitável tal opção de força de trabalho, que

estes viessem não na condição de escravos romanos, como objeto venal, bens móveis, e sim na condição

de servos, fixando-se o negro com sua família e dando-se o primeiro passo para a sua emancipação. De

acordo com José Carlos Reis, Varnhagen acreditava que essa atitude teria

evitado o embotamento, no escravo, dos sentimentos mais ternos da

humanidade, ao separar pais e filhos, maridos e esposas, amigos de infância.

Nessa condição, não haveria como esperar deles nobres sentimentos, sobretudo

em relação à pátria.173

Na ótica do visconde de Porto Seguro, bem como dos seus contemporâneos, as noções de

civilização, nacionalidade, cultura estariam ligadas a uma identidade européia e branca. A Europa seria o

modelo de normalidade, de humanidade, a régua de medida para o resto (negros, índios, orientais etc.), visto

como o outro da narrativa.174

171 Ibidem, p. 98. 172 De acordo com Arno Wehling, além da miscigenação, que via como caminho para o predomínio branco, Varnhagen atribuiu a decadência da língua portuguesa ao seu quase exclusivamente oral pelos escravos, á influência destes sobre os filhos dos colonos e também ao emprego generalizado de utensílios e objetos fabricados pelos indígenas. Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 166. 173 José Carlos Reis, As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, p. 44. 174 Na cultura ocidental, segundo Jurandir Freire Costa, a brancura transcende o branco. Eles [os brancos] indivíduos, povo, nação ou Estado brancos podem ‘enegrecer-se’. Ela, a brancura, permanece branca. Nada pode macular esta brancura que, a ferro e fogo cravou-se na consciência negra como sinônimo de pureza artística, nobreza estética, majestade moral, sabedoria científica etc. O belo, o bom, o justo, e o verdadeiro são brancos. O branco é, foi e continua sendo a manifestação do Espírito, da Idéia, da Razão. O branco, a brancura, são os únicos artífices e legítimos herdeiros do progresso e desenvolvimento do homem. Eles são a cultura, a civilização, em uma palavra, ‘a humanidade. Jurandir Freire Costa, Violência e Psicanálise, 2 ed., Rio de Janeiro, Edições Graal, 1986, p. 106.

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Segundo Gislene dos Santos, o ser negro tem sido, de longa data, investigado, especulado,

demonstrando que formava um fenômeno diferente – um outro ou exótico:

Quer por obra da natureza, quer por obra divina, havia se produzido um ser que

mereceria explicação, um ser anormal. Essa explicação tornava-se quase sempre

justificativa de sua inferioridade natural.

A África seria uma terra de pecado e imoralidade, gerando homens corrompidos;

povos de clima tórridos com sangue quente e paixões anormais que só sabiam

fornicar e beber.

A cultura diferente desse povo era encarada como signo de barbárie. A vida

sexual, política, social dos povos africanos foi sendo devassada e diminuída diante

da vida dos europeus. A invisibilidade das diferenças entre os vários povos da

África fazia com que todos fossem vistos de uma única e mesma forma: todos são

negros.

A Europa ‘civilizada’, branca, era tomada como paradigma para a ‘compreensão’

da cultura do novo mundo, como se fosse possível fazer um transplante de

valores. A biologia será a chave mestra para esta compreensão e, como já foi dito,

fornecerá os elementos pelos quais a idéia de raça se transformará em racismo

científico.175

Ao abordar o concurso dos negros para a obra colonial e nacional, procurando trazer as

contribuições da raça afluente para o grande rio civilizacional (o português colonizador) – metáfora criada por

von Martius, Varnhagen apenas se limitaria a registrar que a oferenda do povo africano seria os pés e braços

para o trabalho na colônia, repetindo a máxima conhecida do missionário jesuíta André João Antonil, em

Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas: Os escravos são as mãos e os pés do senhor de

engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho

corrente.176

175 Gislene Aparecida dos Santos, A invenção do “ser negro”: um percurso das idéias que naturalizaram a inferioridade dos negros, op. cit., p 55. 176 André João Antonil [João Antônio Andreoni], Cultura e opulência do Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, EDUSP, 1982, p. 89.

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3.4.4. Portugueses

Para Varnhagen, a questão da unidade territorial e da centralização do poder era

fundamental para a consolidação da jovem nação. Unidade e ordem seriam os princípios norteadores da

escrita da sua Historia geral do Brazil. No projeto de colonização português encontraria as bases para a

formação do Estado nacional brasileiro. 177

Ao abordar os elementos formadores da nacionalidade brasileira, Varnhagen atribuiu ao

elemento português papel preponderante, sobressaindo-se aos índios e negros africanos. Assim como von

Martius, ele tributava aos colonizadores a imagem de motor da civilização nos trópicos.

A narrativa da sua história, como já foi observado, configurar-se-ia como a epopéia dos

portugueses na conquista e defesa do território e no estabelecimento do poder real na colônia. O Brasil-

nação seria o herdeiro do território do Brasil-Colônia e da forma de governo – a monarquia, realizações da

antiga metrópole. Nesta trama, índios e negros seriam meros coadjuvantes, quando não um empecilho, um

elemento de desordem ou desagregador, para a obra colonial.

Em nome deste passado almejado, Varnhagen definiu as tramas da sua escrita,

procurando mostrar como se deu o processo de consolidação da colonização portuguesa nos trópicos

desde o desembarque de Pedro Álvares Cabral, em 1500, até a proclamação da Independência do Brasil

pelo príncipe regente D. Pedro, em 1822. Os seus objetivos e enredos temáticos dentro da perspectiva

colonizadora estavam anunciados no próprio título do livro: História Geral do Brazil: do seu descobrimento,

colonisação, legislação, desenvolvimento, e da declaração da independencia e do imperio, escripta em

presença de muitos documentos ineditos recolhidos nos archivos do Brazil, de Portugal, da Hespanha e da

Hollanda. De acordo com Arno Wehling,

Na obra de Varnhagen, os atores e dinâmica social convergem para um ponto

teleológico que é formação da sociedade brasileira, entendida, sobretudo mas

não exclusivamente, como a constituição da base territorial e da etnia. (...)

Para Varnhagen, o processo de colonização entre os séculos XVI e XIX foi (...) a

implementação de uma política desejada, planejada e executada pelo Estado 177 Segundo Arno Wehling, o Estado é associado à noção de lei. Parece claro para Varnhagen que as leis, a escrita e o Estado são indicadores básicos da existência de uma sociedade civilizada (...) A onipresença do Estado é inquestionável para Varnhagen, convicto desta evidência. Ele a defendeu em vários momentos de sua obra, encarando-a não como fruto de determinada tradição sociopolitica, muito menos como tão-somente uma interpretação hobbesiana-hegeliana, mas como realidade fática e necessidade “natural”, permanente e intemporal, do gênero humano. Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 167.

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português, forjando as ações sociais. Pouco ou nada existiria de socialmente

espontâneo e, quando ocorria – como no caso dos bandeirantes ou na

insurreição pernambucana –, os comportamentos deveriam se coadunar aos

objetivos e expectativas do Estado português para serem positivamente

avaliados.178

Nas páginas da Historia geral do Brazil estaria relatada a história dos varões ilustres

construtores da obra colonial e, posteriormente, nacional – homens em sua totalidade que, ao longo dos

mais de três séculos de presença da Coroa portuguesa na colônia, constituíram as bases necessárias para

a fundação do Império do Brasil no século XIX.

Em larga medida, como observou Nilo Odália, sua obra principal seria uma tentativa de

construção de um panteão de heróis, composto majoritariamente por brancos portugueses ou

descendentes, a parte integrante desse processo de definição da nação.179 Eles de fato seriam os

detentores da história.180

Embora Varnhagen consagrasse sua obra, nas palavras de José Honório Rodrigues, à

memória dos produtos dos grandes homens (...) de pensamento,181 não se pode esquecer que ele não fez

uma mera escolha com base em suas opções ideológicas, filosóficas e científicas. Para Arno Wehling, o

historiador sorocabano não compusera apenas uma história dos grandes homens, a sua narrativa da saga

dos heróis era caldeada com outras personagens, ou seja, as entidades coletivas:

sua historiografia não é uma “galeria de brasileiros” à Carlyle ou mesmo

Plutarco. Entendê-lo assim seria fazer equivaler sua obra à Sisson, Impõe-se, a

nosso ver, um revisão deste julgamento, procurando identificar os principais

atores que, para Varnhagen, constituem os elementos fundamentais da dinâmica

social. Estes poderiam ser agrupados em alguns setores, a saber: os agentes

mesológicos; as etnias e sua miscigenação; as instituições sociais e políticas; os

grandes personagens e o próprio reino português.182

178 Ibidem, p. 186. 179 Nilo Odália, Introdução, in: Varnhagen, Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo, Ática, 1979, p. 12. 180 Segundo Maria da Glória de Oliveira, a constituição de um panteão nacional seria uma preocupação recorrente dos letrados em torno do IHGB, produzindo biografias, memórias, necrológios e notas biográficas nas páginas da sua Revista entre outros impressos. Conferir: Maria da Glória de Oliveira, Traçando vidas de brasileiros distintos com escrupulosa exatidão: biografia, erudição e escrita da história na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839-1850), História, São Paulo, vol. 26, n. 1, 2007, p. 154-178. 181 José Honório Rodrigues, História da história do Brasil, vol. II, tomo I, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1988, p. 17. 182 Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 158.

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No quadro classificatório das personalidades históricas presentes na sua Historia geral do

Brazil, Arno Wehling elaborou duas entradas: de um lado os homens brancos, cristãos, estadistas e

lusófilos portadores de qualificativos positivos, de outro, os elementos indígenas, africanos, estrangeiros e

não-lusófinos, enfim, os outros – rotulados por marcas negativas. Varnhagen definiria o lugar destas

personalidades a partir das adjetivações.183

Por intermédio de uma escala de qualificativos, estabelecia quem era quem nos enredos

da formação da sociedade brasileira. A régua de medida de Varnhagen era pautada pelo posicionamento

que cada um assumia em relação à colonização portuguesa no Brasil. Sujeitos virtuosos ou não, todos

habitavam o universo da sua obra.184

Indígenas, negros e estrangeiros, anotados pelo visconde de Porto Seguro como

detentores de atributos negativos, apresentavam esse julgamento porque eram contrários ao mundo

civilizado branco, cristão (católico) e europeu.185 Eles seriam uma ameaça à viabilidade da colonização,

processo necessário para a emergência da nação independente. Anunciá-los na sua narrativa era uma

forma de ressaltar a grandiosidade dos desafios enfrentados pelos colonizadores vitoriosos.186

Segundo Laura Nogueira Oliveira, os personagens com aspectos negativos presentes na

obra de Varnhagen eram retratados sempre como derrotados ou destruídos:

os indígenas e os inimigos da colonização portuguesa, fossem internos ou

externos – revoltosos regionalistas ou invasores – terminam sempre vencidos

pelas mãos dos homens virtuosos que, não é demais reafirmar, eram quase

sempre brancos colonizadores ou lusófilos. Tais homens acabam, na perspectiva

histórica de Varnhagen, por concentrar em suas mãos os rumos da história,

contando inúmeras vezes inclusive com a intervenção da Providência divina. (...)

183 Ao longo das seções da Historia geral do Brazil, pode-se identificar a presença constante de adjetivações para qualificar positivamente os colonizadores: o bom juízo de Martim Affonso de Souza (p. 44); o valente capitão Duarte Coelho (p. 66); o valente marítimo Ayres da Cunha (p. 67); o activo e empreendedor Braz Cubas (p. 140); o prudente, esforçado e mui entendido nas cousas do mar donatário Pero de Campo (p. 153); a expedição regeneradora do Brasil feita por Thomé de Souza (p. 196); o activo, entendido e honesto governador Men de Sá (p. 253); o bravo primeiro capitão mor do Rio de Janeiro Estácio de Sá (p. 254); entre outros. Conferir: Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854. 184 Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 174-175. 185 A preocupação com os tidos outros internos (indígenas) e externos (negros e estrangeiros) era uma preocupação recorrente das produções dos membros do IHGB em seus textos presentes na Revista. Conferir: Manoel Luiz Salgado Guimarães, Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 01, 1988, p. 05-27. 186 Esse outro perigoso a ser vencido foi amplamente mencionado por Varnhagen, principalmente quando relatava os desafios enfrentados, por exemplo, pelos primeiros governadores gerais como Tomé de Souza, D. Duarte da Costa e Men de Sá. Era recorrente a acusação dos malefícios provocados por indígenas ferozes, invasores estrangeiros e o carma do tráfico negreiro. No caso do governo de Men de Sá, o historiador sorocabano destacou que foi um dos que historia deve considerar como dos mais profícuos para o Brazil, o qual se pode dizer ter sido elle alvo, -- principalmente das invasões francezas, das dos Indios. Conferir: Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 267.

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Os outros não passavam de vencidos que, caso não fossem destruídos – tanto

no passado quanto no presente –, condenariam a nação a permanecer na

selvageria ou a cair sob o domínio de estrangeiros ou a sofrer o esfacelamento

de seu território pelas mãos dos revoltosos regionais. Nesse sentido, a história

também era uma “mestra”, por fornecer exemplos de vidas a serem imitadas

pelos homens no presente. Eram os homens que haviam derrotado aqueles que

puseram em risco a possibilidade de a nação se constituir como uma unidade

que se constituíam, na perspectiva varnhageniana, como seus heróis. Eram eles

que detinham, para Varnhagen, as forças viris necessárias à construção e

manutenção da nacionalidade.187

Nos argumentos de Arno Wehling e Laura Nogueira Oliveira identifica-se que Varnhagen

construiu a sua narrativa histórica a partir do olhar português, numa perspectiva masculina. As mulheres

eram personagens ausentes ou secundárias na Historia geral do Brazil. O seu herói, além de branco,

cristão, europeu, lusófilo, era essencialmente masculino. A sua história era a epopéia de homens, figuras

viris e fortes. As mulheres, como no caso das índias, apareciam como meras figuras de atração para os

colonizadores pelas suas belezas e dotes corporais. Atendiam apenas ao principio da reprodução, quando

não eram associadas à luxuria e traição. As personagens femininas ocupavam uma posição de

inferioridade ou de coadjuvante nos feitos de seus companheiros, filhos e netos – os grandes homens.188

De acordo com Stephen Jay Gould, mulheres, índios e negros eram tratados pelo discurso

do racismo cientifico do século XIX como figuras infantis, submissas e de pouco intelecto, dignas de tutela

por serem incapazes. Por esta razão não poderiam ocupar a esfera pública e se constituírem em cidadãos

plenos.189

Em síntese, o enredo cronológico e temático proposto por Varnhagen para a história do

Brasil era o da saga dos portugueses e de seus feitos no processo de colonização das terras descobertas

pelo navegador Cabral. E foi sobre este plano que a Historia geral do Brazil teve seu começo,

desenvolvimento e desfecho.

Neste aspecto, Varnhagen aproximou-se das afirmações de von Martius, quando este

sentenciou que o português era o descobridor, conquistador e senhor da colônia. Em sua monografia, o

187 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 219-220. 188 Para uma crítica do discurso essencialmente masculino e misógino na historiografia brasileira, conferir: Margareth Rago, Sexualidade e identidade na historiografia brasileira, Revista Aulas, Dossiê Identidades Nacionais, Campinas, n. 02, out./nov. 2006, p. 01-36. 189 Conferir: Stephen Jay Gould. A falsa medida do homem, op. cit.

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naturalista bávaro enfatizou as peculiaridades da colonização instaurada pelos descobridores do Brasil,

sublinhando a organização do sistema de milícias, pois estas fortaleciam e conservavam o espírito das

empresas aventureiras, viagens de descobrimento e extensão do domínio português, assim como

favoreciam o desenvolvimento de instituições municipais livres e a atuação das ordens religiosas,

principalmente pelo fato de que diversas vezes elas eram os unicos motores de civilisação e instrucção

para um povo inquieto e turbulento. Outras vezes nós vemos ellas proteger os opprimidos contra os mais

fortes.190 Na descrição desses homens que aportaram no Brasil, ele encontrou elementos emblemáticos

para construir as características da colonização portuguesa e da formação da sociedade brasileira.

Na busca do legado dos portugueses para a jovem nação, Varnhagen procurou destacar

personagens e fatos marcantes na história do Brasil colonial. Dentre os diversos episódios narrados pelo

visconde de Porto Seguro, elegeram-se alguns emblemáticos para se compreender as suas

representações produzidas sobre os colonizadores, a saber: a expedição de Martin Afonso de Souza (c.

1490/1500-1564 ou 1571) entre 1530 e 1532 e a administração do primeiro governador geral do Brasil

Tomé de Souza (1503-1579).

Ao tomar estes ilustres varões como objeto de análise, tem-se a preocupação de entender

como ele construiu os modelos ideais de sujeitos civilizadores da colônia pela introdução dos elementos

básicos do Estado: o poder e a ordem. A história de seus feitos seria uma forma de perpetuar os nomes

daqueles que seriam os primeiros construtores do Brasil. Heróis, de origem branca e européia, a quem

Varnhagen proporia a elevação de monumentos em sua memória. Celebrá-los, enfim, seria uma estratégia

discursiva para se cultuar valores e sentimentos do seu tempo: a unidade territorial, a centralização do

poder, a defesa contra os inimigos internos e externos e o elogio da herança portuguesa.191 Seria também

uma forma de notabilizar si mesmo (o seu eu racial), uma vez que se falava de iguais, daqueles que

tiveram a mesma origem e comungavam das mesmas verdades. Estas figuras seriam os elementos com

os quais o Brasil deveria se vincular, se identificar.192

Apresentar personagens como Martin Afonso e Tomé de Souza era uma forma de marcar

a verdade racial da supremacia dos portugueses. Para o visconde de Porto Seguro, esta era a herança a

190 Karl Friedrich Philipp von Martius, Como se deve escrever a história do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 402. 191 Segundo Laura Nogueira Oliveira, embora a Historia geral do Brazil não se limitasse a uma galeria de homens ilustres, seria apropriado afirmar que Varnhagen pretendeu construir um panteão nacional. Afinal, as ações vitoriosas, aquelas que a seu ver haviam levado à edificação do Estado Nacional brasileiro, foram realizadas por homens que se constituíam, esses sim, na exemplaridade a ser imitada no presente. Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 219. 192 Para Paul Gilroy, compartilhar uma identidade seria o mesmo que estar vinculado nos níveis mas fundamentais: nacional, racial, étnico, regional e local. Em síntese, a identidade é sempre delimitada e particular. Ela circunscreve as divisões e os subconjuntos em nossas vidas sociais e ajuda a definir as fronteiras entre nossas tentativas locais e irregulares de dar sentido ao mundo. Nunca se fala de uma identidade humana. Paul Gilroy, Entre campos: nações, culturas e o fascínio da raça, op. cit., p. 124.

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ser restituída no ethos da nação brasileira, e não aquela reivindicada pelo caboclismo romântico de um

Gonçalves de Magalhães. Martin Afonso e Tomé de Souza seriam os pais fundadores da epopéia da

colonização do Brasil. Eles seriam os sujeitos completos e ideais do seu panteão, ao contrário dos índios e

negros sempre tidos como incompletos e lacunares.193

Ao descrever os feitos de Martin Afonso, o visconde de Porto Seguro procurou destacar

sua capacidade empreendedora no início do processo de colonização do Brasil. A Coroa portuguesa,

forçada pela necessidade de defender e preservar as novas possessões, iria enviar as expedições

comandadas por Martin Afonso. A descrição da sua viagem ao Brasil, apontada como o primeiro

movimento de caráter colonizador realizado por Portugal, tomaria duas longas e minuciosas seções da sua

Historia geral do Brazil. Para a sua elaboração, fez uso do Diário de Pero Lopes de Souza, documento

descoberto por Varnhagen em suas peregrinações pelos arquivos europeus.194

Para o visconde de Porto Seguro, Martin Afonso de Souza era um homem de prodigios de

valor. A sua presença nas terras brasílicas significaria a instauração do poder e da ordem. De suas ações

daria a colônia os primeiros passos. Se Cabral era o descobridor, Martin Afonso seria o colonizador por

excelência. Ele traduziria na escrita varnhageniana os elementos necessários para a implantação do

Estado português na colônia, uma vez que tinha a missão de organizá-la e administrá-la:

Vinha Martim Affonso munido de poderes extraordinarios, tanto para o mar,

como para reger a colônia que fundasse; e até autorisado com alçada e com

mero e mixto imperio no cível e no crime, até morte natural inclusive; excepto

quanto aos fidalgos, que, se delinqüissem, deveria enviar para Portugal. Trazia

autorisação para tomar posse de todo o territorio situado até á linha meridiana

demarcadora; para fazer lavrar autos, e pôr os marcos necessarios; para dar

terras de sesmariaa quem as pedisse, e até para criar tabelliães, officiaes de

justiça e outros encargos. As sesmarias deviam ser dadas em uma só vida, o

que não parece coherente com o pensamento de ligar a terra á geração

perpetuada de pais e filhos.195

193 Segundo Neuma Brilhante Rodrigues, a história do Brasil era entendida pela sua elite dirigente como diretamente vinculada à história européia, sendo a colonização das suas terras por Portugal responsável pela inclusão da ex-colônia no seleto grupo das nações civilizadas. Entre os elementos brasileiros atribuídos a Portugal, estavam a hegemonia da língua portuguesa, a difusão do cristianismo, o sistema de governo, a legislação, entre outros. Neuma Brilhante Rodrigues, “O amor da pátria, o amor das letras”: as origens da nação na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839-1889), op. cit., p. 91. 194 O Diário de Pero Lopes de Sousa foi publicado com as anotações de Varnhagen em Lisboa, em 1839, e reimpresso no Rio de Janeiro pelas páginas da Revista do IHGB, em 1861. Conferir: Carta do Sr. F. A. de Varnhagen á redacção, acerca da reimpressão do Diario de Pero Lopes que lhe servirá de prólogo, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 24, 1861, p. 03-08. 195 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 44-45.

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Nas atribuições de Martin Afonso pode-se identificar três preocupações básicas para a

consolidação do domínio português no Brasil: primeiro, a questão do estabelecimento da ordem e da

disciplina; segundo, a delimitação dos limites da colônia; terceiro, a posse da terra, bem como sua

distribuição em forma de sesmarias. O êxito da obra a ser realizada pelo colonizador dependeria do

cumprimento destes pontos. Além de um agente de governo, Martin Afonso seria para Varnhagen um

modelo de civilizador. Ele era o fundador da primeira vila, sinônimo de povoamento, ordem e civilidade. Na

fundação de São Vicente e outras vilas estaria a origem européia da província de São Paulo, o lugar de

nascimento do historiador. Era este o ethos a ser valorizado e celebrado como motor da formação da

nacionalidade brasileira. Do êxito da sua empresa seria possível a implantação das capitanias

hereditárias.196

Por conta de seus feitos, Martin Afonso seria eleito como um dos ilustres varões da história

do Brasil pelo visconde de Porto Seguro. Na descrição da sua conduta no Brasil, Varnhagen procurou

destacar os adjetivos necessários àqueles que deveriam governar a nação de seu tempo.

Para homens como Martin Afonso, os índios seriam um dos grandes empecilhos ao

processo de ocupação e domínio do Brasil. Reforçando sua imagem negativa dos indígenas e alfinetando

os adeptos do indianismo romântico do IHGB, Varnhagen mostrou ao longo da descrição dos êxitos e

fracassos das capitânias o quanto a sua selvageria e violência teriam ceifado vidas e obstruido o projeto

colonial português.

Com base na repetição exaustiva dos ataques dos índios, deixando em boa parte a terra

despovoada de colonos, e em nome de uma solução final e civilizadora, Varnhagen propunha abertamente

como um ato de heroísmo dos colonizadores, como Martin Afonso e outros senhores ou donatários, o seu

extermínio. A ação seria justa, uma vez que essas gentes seriam um elemento de desordem. Nestas

passagens ficavam evidentes e latentes o seu etnocentrismo e sua proposta de trato dos nativos: a adesão

à civilização ou a morte. Segundo Arno Wehling, na avaliação de Varnhagen

sentimentos e atitudes como gratidão, a fidelidade e o respeito mútuo dependiam

basicamente de um contexto civilizacional; por isso os índios eram traiçoeiros,

infiéis e respeitavam apenas as manifestações de força. O amor de Peri por Ceci

196 Em relação à divisão do Brasil em capitanias hereditárias, Varnhagen teceria severas críticas por ser uma ameaça à unidade e ordem da colônia, havendo pois a necessidade da constituição de um governo centralizador e forte. Conferir: Ibidem, seções XI e XII.

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não era apenas, para Varnhagen, um devaneio romântico: era uma

impossibilidade histórica.197

Em suma, para o visconde de Porto Seguro, o protagonismo de personagens como Martin

Afonso estava no fato de carregarem no sangue europeu o desejo de ordem, uma das bases fundantes do

Estado.

O primeiro governador geral Tomé de Souza, outro herói estimado na Historia geral do

Brazil, congregaria no pensamento de Varnhagen outra característica importante para a legitimação da

presença e da herança portuguesa na América: a centralização do poder.

Diante de uma colônia viciosa pela promiscuidade dos índios com os colonos e

fragmentada pelo fracasso ou mau governo das capitânias hereditárias, Varnhagen apontou a existência

de uma liderança como uma forma de moralização e unificação do povo.198 Foi neste cenário que emergiu

a figura de Tomé de Souza, assumindo essa missão civilzadora. Em outras palavras, para o historiador

sorocabano, ele seria o responsável pela regeneração do Brasil.

A descentralização promovida pelas capitanias hereditárias e a proliferação de christãos

gentilisados, além da presença de expedições invasoras francesas, seriam corrigidas com a formação do

primeiro Governo Geral, de Tomé de Souza, assim explicada por Varnhagen:

Resolvido o governo da metropole a delegar parte da sua autoridade em todo o

Estado do Brazil n’um governador geral, que pudesse cohibir os abusos e

desmandes dos capitães móres donatarios ou de seus loco-tenentes-ouvidores,

que accudisse ás capitanias apartadas em caso de guerras dos inimigos ou de

quaesquer arbitrios das autoridades, que fiscalisasse em fim os direitos da corôa,

conciliando ao mesmo tempo os dos capitães e os dos colonos, determinou fixar

a séde de tal governo geral na Bahia, por ser porto mais central, com respeito a

todas as capitanias, Assim o declara expressamente a carta régia de 7 de

Janeiro de 1549. (...)

Deste modo a centralisação administrativa, propriamente dita, era acompanhada

da dos negocios da Justiça e da dos da Fazenda, sujeitos aos cargos de ouvidor

geral e de provedor mór, que pela mesma occasião se instituiram. Igualmente foi

197 Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 164. 198 Não se pode perder de vista que para o historiador do tempo saquarema era vital trazer do passado exemplos de centralização de poder e preservação da unidade territorial. Conferir: Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema: a formação do Estado imperial, op. cit.

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nomeado para defender o littoral um capitão mór da costa como havia na India.

Mais ao diante, para mandar as armas na capital, se criou tambem o cargo de

alcaide mór della.199

A formação do Governo Geral, segundo Varnhagen, significaria o estabelecimento da

ordem e do poder centralizador na colônia, elementos necessários para o seu desenvolvimento moral e

econômico. O visconde de Porto Seguro encontraria em Tomé de Souza o símbolo para traduzir esta

página da história do Brasil. Em eventos como estes estariam as bases de formação da nação brasileira,

que emergiria somente em 1822, depois de um longo processo de preparação e amadurecimento. A

colônia, por esta lógica teleológica e linear, seria a incubadora para o projeto do Brasil nação, nela

estariam as suas origens. 200

Tomé de Souza, outro exemplar nobre do sangue português, seria mais um ilustre varão a

ser celebrado por Varnhagen, que assim o descreveu: filho natural d’uma das primeiras casas do reino,

distincto por seus grandes dotes governativos, e pelo valor e prudencia que provára em muitas occasiões

difficeis na África e na Ásia.201 Trazer para a sua narrativa os feitos do primeiro governador geral, de certa

maneira, era forma de mostrar que o reinado de D. Pedro II justificava-se num passado que prezava pela

construção da unidade e estabelecimento de um governo central, que sufocasse qualquer proposta de

fragmentação ou desmoralização.

Na descrição de como Tomé de Souza estabeleceu o governo na Bahia, Varnhagen

permitia traçar paralelos com os acontecimentos vivenciados no tempo da escrita da sua Historia geral do

Brazil, como por exemplo, a necessidade de organização de um Estado centralizado e forte, que evitasse a

repetição das ameaças separatistas do período regencial.202 É interessante perceber como Varnhagen

mostrava-se muito fascinado por figuras do Estado que congregavam características fortes como pulso

firme, rigor, sobriedade e comando. Tomé de Souza o fascinava justamente por ter estes atributos.

199 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 192. 200 De acordo com Varnhagen, além da desmoralização e da irreligiosidade, outro perigo crescente punha em risco a ruína e a perda do Brasil – as invasões estrangeiras: Eram as naós francezas; as quaes não passando anteriormente do Cabo de Santo Agostinho, ou quando muito da Bahia, desde que estas terras tiveram donatários, se avezaram ao Cabo Frio e Rio de Janeiro, Ilha Grande e Ubatuba, de modo que ja por estes portos não ousavam mostrar vela os navios portuguezes. A Bretanha e a Normandia consideravam as terras do Brazil tão suas como o proprio Portugal. Até a França levavam Indios, e em vez de torneio chegaram a representar em Ruão um combate e festim de nossos selvagens., Ibidem, p. 189. 201 Ibidem, p. 193. 202 Segundo Nilo Odália, a unidade territorial é, assim, algo que se faz, primeiramente, de maneira histórica e, depois, se apresenta como um fato natural. Pressupõe não somente a existência de um núcleo inicial do qual se erradia a ação colonizadora e aglutinante, mas ser corporifica também na existência de uma rede física de ligações que permitem aos seus centros iniciais estenderem sua ação centrípeta. Nilo Odália, As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna, São Paulo, Ed. da UNESP, 1997, p. 51.

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Ao longo das seções XV e XVI, Varnhagen esmerou-se em detalhar cada medida tomada

por Tomé de Souza, mostrando o sistema de terror que impôs sobre os índios, o uso dos serviços dos

jesuítas na conversão desses e moralização dos costumes dos colonos, a constituição de um aparato

administrativo e de proteção do território e das fronteiras e a instituição da ordem.203 Para ele, Tomé de

Souza havia cumprido a sua missão, o Brasil estava constituído: a autoridade e a lei haviam feito sentir

suas fôrças beneficas: e a moral publica ganhára muito.204

Assim como Martin Afonso, Tomé de Souza era eleito como um dos construtores do Brasil.

Estava no panteão daqueles que no período colonial contribuíram de maneira operosa na constituição da

futura nação. Nas páginas da sua Historia geral do Brazil, ao contrário dos indígenas e africanos que

tinham lugares pré-determinados nas seções, biografias de proeminentes portugueses ou descendentes

apareciam, entremeando o relato dos eventos, mostrando que estes eram os legítimos sujeitos da história:

em sua maioria homens de Estado – governadores, militares, religiosos, senhores entre outros.205

Diante de exemplos de liderança com Tomé de Souza, Varnhagen também não poupou

críticas e juízos desfavoráveis aos maus homens de governo, responsáveis pela ruína e decadência da

colônia, abrindo flancos para o ataque dos estrangeiros. Neste sentido, ele não economizou adjetivações

negativas ao sucessor do primeiro governador geral, D. Duarte da Costa (?-1560), a ponto de intitular a

seção XVII, que versava sobre sua administração, como triste governo. Varnhagen o acusou de ser

influenciado pela ira e mesquinhas intrigas de aduladores no trato das questões de governo, o que levou à

desunião entre um chefe de administração e o da diocese.206 Duarte da Costa era retratado como figura de

pequena representatividade diante da monumentalidade da figura de seu antecessor ou mesmo de Mem

de Sá (1500-1572), que veio substituí-lo quando da invasão dos franceses na baia da Guanabara. Mem de

Sá seria outra personagem a ser cultuada como modelo de governo por Varnhagen, aproximando muitas

das suas ações ao legado de Tomé de Souza, uma vez que também seria um regenerador do Brasil na

luta contra franceses e indígenas:

A situação critica em que se via o Brazil pedia um governador activo, entendido,

e sobretudo honesto. Todos estes dotes reunia o dezembargador Men de Sá,

203 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 193-207, p. 208-216. 204 Ibidem, p. 216. 205 Em relação à supremacia do masculino na formação da identidade nacional, Paul Gilroy teceu as seguintes afirmações: A integridade da nação se torna a integridade da sua masculinidade. De fato, ela só pode ser uma nação se a versão correta da hierarquia de gênero tiver sido estabelecida e reproduzida. Paul Gilroy, Entre campos: nações, culturas e o fascínio da raça, op. cit., p. 156. 206 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 217.

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irmão do conhecido poeta Francisco de Sá de Miranda, e que no cargo e chefe

da administração geral do Brazil sustentou os creditos de que já gosava.207

Na mesma direção encaminhou suas flechas venenosas aos jesuítas. Embora apologista

da sua atuação no que concerne à sua colaboração no reerguimento moral da colônia, não deixou de

repudiar a sua proteção tutelar em relação aos indígenas.

Para ele, a campanha jesuítica contra a escravização do elemento indígena foi

responsável por dois grandes males para a colônia e a futura nação: primeiro, permitiu a importação de

escravos de origem africana, o que degenerou ainda mais os costumes e a cultura; segundo, os colonos,

carentes da mão-de-obra, foram conduzidos à desobediência da lei e da autoridade, criando focos de

rebelião e anarquia, colocando em estado de perigo a estabilidade do governo e da colônia.208

Ao destacar a história de homens como Martin Afonso, Tomé de Souza, Mem de Sá, entre

outros, o visconde de Porto Seguro deixava evidente que a obra colonial era fruto do motor civilizacional da

matriz portuguesa. A história do Brasil era o resultado da ação de homens brancos, de origem européia,

cristãos e defensores do Estado como forma legítima de governo.

* * *

Não cabia na sua narrativa espaço para o protagonismo dos outros internos e externos.

Neste caso, negros e índios ficariam em segundo plano, ora tidos como entraves para a civilização, ora

como personagens coadjuvantes – liderados pelos brancos – nos grandes eventos como a luta contra a

invasão dos holandeses no Nordeste. Personagens indígenas ou africanos ganhavam alguma notoriedade

na medida em que se aproximavam ou aderiam ao projeto do colonizador – assumindo sua fé, sua lei e

seu rei, saindo da condição de sujeitos incompletos ou lacunares. Segundo Arno Wehling,

Tanto negros como indios aculturados, isto é, cristãos que falavam português e

haviam aderido aos valores da sociedade portuguesa, foram objeto de elogio em

toda a obra historiográfica de Varnhagen. Não mais fazia que endossar as

atitudes e juízos oficias que recolhia da documentação.209

207 Ibidem, p. 233. 208 Ibidem, p. 181-191. 209 Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 167.

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Na perspectiva varnhageniana, indígenas e negros deixariam sua condição de outro para

ser povo apenas quando renunciavam à sua condição de selvagem e aceitavam a bandeira da civilização

trazida pelos colonizadores portugueses. Eles seriam povo a partir do momento em que assumissem o

Estado como essência, verdade. Fora destes parâmetros, ele recusava atribuir a eles a base da

nacionalidade.

De acordo com Nilo Odália, o Estado brasileiro, como foi concebido no século XIX por

intelectuais como Varnhagen,

é menos a expressão do povo do que o instrumento de formação de um povo; é

um Estado que não decorre da vontade, consciente ou inconsciente, de um

povo, mas, ao contrário, é um Estado que busca sua legitimação na sempre

reiterada missão de constituir o povo que o deveria sustentar. (...)

Estado e Nação foram sempre concebidos como tarefa de uma minoria culta e

esclarecida que deveria reger os destinos de ambos, orientando, corrigindo, pela

educação, pela força, a massa considerada incapaz e incompetente de se

reconhecer, no projeto idealizado pela camada dirigente, seu destino.210

Nesta perspectiva, a história do Brasil escrita por Varnhagen seria a confluência de

biografias de varões ilustres que, em diferentes momentos, lutaram em nome de um Estado forte e

centralizado, capaz de forjar uma nação soberana. No entrelaçamento destas biografias individuais

emergiria a grande biografia da nação, aquela que buscava suas raízes no solo português. A sua Historia

geral do Brazil seria uma narrativa digna do pensamento conservador e aristocrata, pregando a unidade a

todo custo, a continuidade do legado português, a defesa da monarquia da casa dos Bragança e a

exclusão dos outros – índios e negros – destoantes da identidade racial e nacional desejada. Para a

concretização deste último ponto, Varnhagen acreditava que a miscigenação cumpriria o papel de diluir as

cores do sangue e faria sobressair a força da raça branca, constituindo uma pátria de iguais, de

mesmos.211

210 Nilo Odália, As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna, op. cit., p. 32-33; 211 Para uma reflexão sobre igualdade como idêntico ou mesmidade, conferir: Wendy Brown, States of Injury: power and freedom in Late Modernity, Princeton, Princeton University Press, 1995.

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Logo, compreender a igualdade como mesmidade seria uma formulação discursiva que

autorizaria que o branco fosse o padrão neutro contra o qual o negro e o índio defeririam, ou mesmo que o

homem fosse o padrão neutro contra o qual a mulher seria a diferente.212

Neste sentido, Nilo Odália observou que a história da colônia, assim interpretada por

autores como o visconde de Porto Seguro, não seria somente a história de uma conquista, mas ela

também, prioritariamente, a constatação discursiva da dita superioridade de uma cultura, de uma

civilização, de um modo de vida e de um pensamento, sobre outras formas rotuladas de primitivas que

acabam por ser interpretadas como um estado de barbárie.

O conflito que se estabelece e que opõe os brancos aos índios, ou aos negros é

de natureza não apenas racial, mas basicamente um conflito de civilização

contra a barbárie, da ordem contra a desordem, da unidade contra a dispersão,

da lei contra o desregramento.

A escolha do que deverá ser a nova Nação acaba por parecer como a natural

decorrência de uma situação histórica em que a oposição entre culturas e

civilizações diferentes acaba por impor um vencedor – a cultura e a civilização

dos brancos, que traz em seu arsenal de armas não só as de natureza guerreira,

como também outras, mais efetivas e sofisticadas, vistas como os atributos de

uma civilização superior. Elas se expressam naqueles traços que são

interpretados como os valores máximos da civilização superior: lei, ordem,

autoridade e religião. Cada um desses elementos baliza e consubstancia o

processo de colonização e tornam-se os parâmetros da nova experiência

histórica, a construção da Nação. Tais parâmetros devem nascer de nossa

história colonial e nela se explicitam, porque se suas origens não estão aqui,

mas na longínqua Europa, que permanecerá sempre como o paradigma a ser

imitado; o historiador não pode esquecer que o que legitima a opção feita é a

experiência histórica vivida desses valores no interior da colônia.213

A professada crença na existência das raças e na superioridade de algumas sobre as

outras é perceptível na maquinaria do pensamento de Varnhagen. No entanto, ela não era invenção

exclusiva do historiador sorocabano. Como sugeriu Patrícia de Santana Pinho, a força do discurso da raça

212 Conferir: Patrícia de Santana Pinho, Reinvenções da África na Bahia, op. cit., p. 199. 213 Nilo Odália, As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna, op. cit., p. 45-46.

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seria o resultado de processos históricos cujas raízes se encontram na história européia de colonização e

subjugação de outros povos – americanos, africanos e asiáticos.214

Na colônia raciológica do visconde de Porto Seguro não haveria espaço para a celebração

dos indígenas como sinônimo de nacionalidade, a aceitação inconteste da escravidão africana e dos seus

maus costumes, a condescendência para com o mau governo, a presença perturbadora de estrangeiros e

a possibilidade de qualquer forma de fragmentação. A sua colônia teria de ser o espelho daquilo que se

almejava construir durante o Segundo Reinado. Ao menos o Império sonhado por Varnhagen, uma vez que

suas propostas políticas e narrativas instituintes não eram uma unanimidade entre os pares dentro e fora

do IHGB.

As noções cruas de identidade e cultura, como as presentes no pensamento de

Varnhagen ao definir a formação do povo, que têm persistido na veneração da homogeneidade, da pureza

e da unanimidade, apontam para uma mentalidade de campo, um padrão comum nas ideologias

nacionalistas, que requerem que a cultura assuma uma organização artificial e uma consistência

homogênea. Segundo Paul Gilroy,

O campo nacional acaba com qualquer sentido de desenvolvimento cultural. A

cultura como processo é interrompida. Petrificada e estéril, ela é empobrecida

pela obrigação nacional de não mudar, mas sim de estar sempre a reciclar o

passado numa forma mítica essencialmente inalterada. A tradição é reduzida a

simples repetição.215

Para o visconde de Porto Seguro, foi nos momentos de crise que o povo ofereceu sua

resposta aos clamores de nacionalidade, tendo a unidade como marca de resistência ao inimigo – aquele

elemento desagregador. Neste aspecto, a história das lutas contra os holandeses seria um capítulo

determinante na construção do sentimento de amor à terra do Brasil pelo seu povo, ou seja, quando as

partes se perceberam como formadora de um todo: o brasileiro.

214 Patrícia de Santana Pinho, Reinvenções da África na Bahia, op. cit., p. 177. 215 Paul Gilroy, Entre campos: nações, culturas e fascínio da raça, op. cit., p. 110.

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3.5. Mito fundacional: Invasões Holandesas________________________________________________

Ao ponderar sobre as possíveis articulações entre história e mito, o antropólogo Claude

Lévi-Strauss observou que não seria falsa a percepção de que, nas sociedades contemporâneas, a

História havia substituído a mitologia e desempenharia o mesmo papel, uma vez que nas sociedades sem

escrita e sem arquivos a Mitologia tem por finalidade assegurar, com um alto grau de certeza – a certeza

completa é obviamente impossível –, que o futuro permanecerá fiel ao presente e ao passado.216

Há de se entender que esta associação é possível quando se pensa numa noção de

história fundada na memorização e reprodução dos grandes fatos e na celebração de seus agentes, em

muitos aspectos transformados em lideranças mitológicas. Por esta lógica, a criação de mitos fundacionais

seria um dos elementos presentes neste processo designado de invenção de tradições. Para Eric

Hobsbawm e Terence Ranger,

tradições que parecem ou alegam ser antigas são muitas vezes de origem

bastante recente e algumas vezes inventadas (...). Tradição inventada significa

um conjunto de práticas (...), de natureza ritual ou simbólica, que buscam

inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, a qual,

automaticamente, implica continuidade com um passado adequado.217

De fato, como explicou Lilia Moritz Schwarcz, ela seria uma operação que implicaria a

definição de uma narrativa que amarraria o presente a um certo passado histórico apropriado,

na medida em que situações novas ora assumem referências a contextos

anteriores, ora retomam um passado, a essas alturas, mitificado. Assim, pela

repetição mecânica de passagens, eventos e fatos conforma-se um determinada

memória e um certo encadeamento que apaga suas pistas, enquanto estabelece

uma ponte imediata com momentos retirados de uma certa história, ou

216 Claude Lévi-Strauss, Mito e significado, Lisboa, Edições 70, 1981, p. 62-63. 217 Eric Jay Hobsbawm e Terence Ranger (org.), A invenção das tradições, Rio de Janeiro, Paz & Terra, 1984, p. 09.

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características sociais que deixam de serem datadas para fazer sentido de forma

essencial e quase ontológica.218

Para Stuart Hall, o mito fundacional constituiria um dos traços constituintes da narrativa da

cultura nacional. Ele seria uma fábula ou estória que demarcaria a origem da nação, do povo e de seu

caráter nacional num passado tão distante que eles se perdem nas brumas do tempo, não do tempo “real”,

mas de um tempo “mítico”.219

Se as nações se constituem como narrativas, como afirmou Edward Wadie Said,220 estas

congregam nas suas tramas a dimensão mítica, procurando fabricar um começo sublime para o povo,

especialmente no momento em que se toma consciência de que os seus diferentes sujeitos raciais formam

uma suposta unidade.

Esta concepção de história, articulada com as tradições inventadas e o mito fundador,

autorizaria por exemplo que na definição de von Martius, Varnhagen e outros letrados do IHGB, o Brasil

pudesse ser interpretado com um só corpo territorial, étnico e político, ou que suas instituições

marcadamente plurais encontrassem uma unidade quase natural, quando pensadas à luz do passado

(colonial).

Na escritura da sua Historia geral do Brazil, Varnhagen elegeu como um dos principais

mitos fundacionais da nacionalidade brasileira os eventos ocorridos no Nordeste da primeira metade do

século XVII, quando da chamada invasão holandesa. Em sua narrativa, os olhos do império estavam

sempre voltados para os perigos internos e externos que poderiam contaminar a unidade nata da colônia –

planta da futura nação. Além das ameaças dos outros internos, representados pelos índios e, depois,

africanos, havia os estrangeiros – ingleses, franceses, holandeses entre outros – que sempre rondavam as

costas do Brasil desejando arrebatar para si as conquistas da Coroa portuguesa nas Américas. Ao longo

das seções do livro-monumento, Varnhagen sempre lembrava seus leitores das dificuldades dos

colonizadores em defender o território da ameaça fragmentária da presença dos invasores estrangeiros.

Em alguns momentos, indignava-se com as alianças nefastas entre os indígenas e estrangeiros contra o

218 Lilia Moritz Schwarcz, De volta ao passado com as lentes focadas no presente, in: Lana Mara de Castro Siman e Thaís Nívia de Lima e Fonseca (orgs.), Inaugurando a História e construindo a nação; discursos e imagens no ensino de História, Belo Horizonte, Autêntica, 2001, p. 13. 219 Stuart Hall, A identidade cultural nas pós-modernidade, op. cit., p. 54-55. 220 Edward Wadie Said, Cultura e imperialismo, op. cit., p. 13.

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domínio português, como por exemplo, o que aconteceu no Rio de Janeiro entre os franceses e essas

gentes, durante o governo fracassado de D. Duarte da Costa.221

A história do Brasil, na sua leitura, seria a permanente guerra pela conquista e domínio do

território e de suas gentes. O mal parecia cercar a colônia de todos os lados – inclusve internamente –,

sempre testando a soberania portuguesa – os inimigos surgiam das brenhas ou eram trazidos pelo oceano.

Os holandeses seriam o mal que teria sido trazido pelo oceano para purgar os pecados da colônia corrupta

e degenerada.

Em um tom moralista, Varnhagen sempre denunciava as mazelas dos colonos tomados

pelos vícios e pela corrupção. Embora defensor da colonização portuguesa, não se ausentava de fazer

acusações e julgamentos aos maus administradores e à população promíscua, praticamente gentilisada.

Estes desvios de conduta, no tribunal de Varnhagen, eram imperdoáveis pois degeneravam a colônia e

ameaçavam a sua unidade. Como se fosse possível corrigir os erros do passado, ele cobrava sempre

prudência, zelo e virtude daqueles que governavam o Brasil.

Ao fazer estes alertas à moda de um padre Antonio Vieira (1608-1697), Varnhagen parecia

querer ensinar ao governo do seu tempo sobre a necessidade de se aprender moralmente com as lições

do passado. A história era uma pedagogia para o presente, o lugar de discurso para definir a nação que se

desejava forjar. Narrar as tragédias era uma forma de condenar o mau governo e mostrar que a purificação

era dolorosa, mas necessária.

Nesta atividade judiciosa do passado, feita pela pena de Varnhagen, pode-se vislumbrar

que o processo de criação não se restringe em dar, abstratamente, realidade a uma nação. Segundo Nilo

Odália, o que anima vivamente o historiador a trabalhar o passado é nele encontrar matéria viva e

incandescente que permite manipular experiências e elementos históricos, para moldar o futuro da

Nação.222 E Varnhagen não hesitou em fazer suas apropriações dos eventos do passado colonial do Brasil

para legitimar a nação do seu presente, ao menos aquela idealizada em seus escritos.

O episódio dos holandeses no Brasil seria o momento do turning point da sua narrativa.

Ele era o sinal da queda da colônia, depois uma origem retumbante com os descobrimentos, mas também

constituía o momento da restauração, da constituição do sentimento de pertencimento à terra pelos seus

habitantes, fracionados em etnias e classes. Ali estava o mito fundador ideal para a restituição da colônia,

preparando-a para um futuro de glórias. As seções dedicadas à presença holandesa no Brasil eram

tomadas de monumentalidades, seja na descrição da decadência dos colonos, seja no relato do avanço

221 Conferir: Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, seção XVII. 222 Nilo Odália, As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna, op. cit., p. 38.

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das tropas inimigas estrangeiras, seja na observação do clima de desordem daqueles tempos, seja na

narrativa da resistência dos brasileiros.

O leitor acompanharia com Varnhagen passo a passo o desenrolar das tramas que

ensejavam o domínio holandês no Brasil setecentista. O visconde de Porto Seguro seria o cronista

daqueles anos de purificação da colônia, um narrador que a todo instante dava conselhos de estratégia,

avaliava ações, celebrava conquistas e amargava as derrotas. A dita imparcialidade do historiador se

rendia à gana de quem sabia o lado que estava na batalha.223

Nos eventos das invasões holandesas, Varnhagen poderia estabelecer paralelos com

outros episódios de perigo vividos pelo Brasil como as rebeliões regenciais (1835-1845), ainda frescas na

sua memória quando da escrita da Historia geral do Brazil, ou ainda a guerra contra o Paraguai (1864-

1870), que o motivou a retornar ao tema dos holandeses em outro livro.224

As invasões francesas, no Rio de Janeiro, e holandesas, na Bahia e Pernambuco, eram

momentos de crise, mas que revelavam para Varnhagen os indícios do nascimento da idéia de uma pátria

comum, superando os isolamentos e rivalidades criados pelo sistema das capitanias hereditárias. No caso

do episódio da ocupação francesa no Rio de Janeiro, ele encontrou de forma evidente as marcas da

unidade, quando o capitão mór Estácio de Sá (1520-1567) buscou o apoio de outras capitanias como São

Vicente na defesa daquela porção do império colonial português. Ao narrar a atuação do povo da capitania

de São Vicente do lado de Estácio de Sá contra os franceses e índios aliados, Varnhagen transformou

aquela batalha numa questão protonacional, pois a vitória dos colonos era a possibilidade futura de

concretização do Brasil como Estado-nação:

Pela segunda vez a capitania de S. Vicente se prestou talvez mais do que lhe

permittiam suas fôrças para o bem de todos, -- para o Brazil não ser dilacerado.

Todas as canoas em estado de se armarem em guerra, todo o mantimento que

se pode juntar para dois ou tres mezes de sustento aos trezentos homens da

expedição, retendo só o indispensavel para não morrerem de fome os que

ficavam guardando a terra, toda a gente, emfim, que podia combater, casados e

solteiros, anciãos e adolescentes, muitos escravos de Guiné, e até os Indios em

223 Se José Carlos Reis, em sua análise da obra de Varnhagen, conseguiu observá-lo como aquele narrador dos descobrimentos que olhava da caravela de Cabral para a praia, e via uma terra exótica povoada por alienígenas, pode-se encontrá-lo nas seções dedicadas à luta contra os holandeses no Brasil arregimentado do lado das forças de resistências coloniais, uma vez que o historiador-diplomata não percebia os portugueses também como invasores, mas sim como os legítimos donos daquela terra. José Carlos Reis, As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, op. cit., p. 98. 224 Conferir: Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia das lutas com os hollandezes no Brazil desde 1624 a 1654, Nova edição melhorada e acrescentada, Lisboa, Typographia de Castro Irmão, 1872.

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quem depositavam maior confiança, tudo esta capitania, sem excepção da nova

colonia de Piratininga, tão exposta ás agressões do gentio do sertão, -- tudo

sacrificou a boa gente para o bem da nova patria comum. Qual fenix que

succumbe por dar vida á sua prole, assim a colonia mais antiga do Brazil se

axahure agora de fôrças, e não cura mesquinhosamente se isso prejudicará um

tanto seu futuro desenvolvimento, e concorre quanto pode a dar existencia a um

emporio mais poderoso.225

Cabe destacar na sua descrição do apoio de São Vicente a preocupação de marcar a

presença dos três elementos raciais – portugueses, negros e índios, mostrando que se esboçava ali uma

unidade étnico-racial, tema que seria amplamente retomado no relato da luta contra os holandeses. Nestes

eventos, Varnhagen, embora preso a uma visão etnocêntrica, faria um abrandamento de sua avaliação das

raças inferiores na medida em que estas aderiam às bandeiras da colonização portuguesa e da defesa do

Brasil contra o estrangeiro invasor. No contexto da guerra, do conflito purificador, salvava-se a colônia

corrompida e os povos selvagens. No caso dos negros e índios a salvação seria a assimilação. De acordo

com Nilo Odália,

Nenhum país, nenhuma Nação, é apenas o resultado de uma etnia; os países e

nações são, também, a expressão de uma conquista guerreira. O fato étnico se

sublima na conquista guerreira, esta o consolida na negação, em que a etnia do

vencedor se impõe à vencida, não apenas pela força mas pela possibilidade que

a este oferece de redimir-se pela assimilação ao povo vencedor. A etnia se

purifica pela conquista que a legitima.Os senhores da terra são também os

senhores que podem impor sua etnia. A Nação assim se define por uma etnia –

a do grupo vencedor. O grupo vencido participa da história pela única porta que

lhes se deixa aberta, a miscigenação.

A assimilação – via miscigenação – tem um único sentido, a preservação da raça

superior no campo de batalha. A Nação se esboça, portanto, como a realização

de uma etnia em que as outras serão lenta e deliberadamente absorvidas, de

maneira que o futuro da Nação se confunde com essa etnia e seus valores.226

225 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 245. 226 Nilo Odália, As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna, op. cit., p. 39.

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Pela ótica raciológica do pensamento de Varnhagen, a saída para as raças inferiores

estaria em duas frentes: uma cultural e outra racial. A saída cultural seria pela adesão na linha de frente

dos colonizadores, lutando pela legitimação do domínio português na América e expulsão do invasor

estrangeiro desagregador – no caso o holandês protestante. A saída racial estaria na miscigenação, ou

seja, na fusão da sua raça com a superior, herdeira do sangue europeu dominador. A crueldade desta

adesão estaria na morte do outro, da diferença, uma vez que ambas implicavam a destruição do seu

legado cultural e racial, seja pela renúncia ou pela diluição. O resultado desta soma, sempre desigual, seria

a vitória do povo vencedor – o português, que se desdobraria posteriormente no brasileiro. A guerra seria,

portanto, purificadora na medida em que iria expurgando as diferenças internas e externas, fazendo

emergir a identidade única, a mesmidade.227

Ao contrário do que pensam os discursos celebrativos da democracia ou do paraíso racial,

no mito fundador forjado por Varnhagen, a partir do episódio da expulsão dos holandeses, não estava a

semente da construção de uma pátria multiétnica, mas sim o estabelecimento de uma narrativa que

justificasse a miscigenação como uma arma de purificação, de branqueamento do Brasil. A mistura ali não

era a possibilidade da existência da diversidade. Era a adesão ou rendição ao projeto colonial europeu –

branco, cristão católico, masculino. Significava, enfim, a aceitação da legitimidade da força e autoridade do

povo conquistador.

A validade deste discurso pode ser sentida no remédio proposto pelo visconde de Porto

Seguro aos outros – índios e negros – que não reverenciavam as bandeiras civilizadoras trazidas pelo

poder colonial e, depois, imperial: o extermínio.228 Um exemplo do desejo da máquina destruidora contra o

outro foi a maneira como Varnhagen narrou, em clima de júbilo, a destruição do quilombo de Palmares

pelos bandeirantes paulistas.

O estabelecimento de um corte entre o que deve viver e o que deve morrer – com base

numa espécie de proposta de um racismo de Estado, permeiam esses posicionamentos de Varnhagen na

forma como defendia o trato dos outros raciais incômodos na formação do sujeito nacional.229 Há nestas

práticas de dominação indícios de um discurso raciológico que celebraria a separação dos puros e não-

puros:

227 Conferir: Paul Gilroy, Entre campos: nações, culturas e fascínio da raça, op. cit., p. 110; Michel Foucault, Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976) [Aula de 28 de janeiro de 1976], op. cit., p. 94-95. 228 Para uma análise, por exemplo, sobre as posições de Varnhagen em relação aos índios bravos, conferir: Pedro Puntoni, O Sr. Varnhagen e o patriotismo caboclo: o indígena e o indianismo perante a historiografia brasileira, in: István Jancsó, Brasil: Formação do Estado e da Nação, São Paulo, Hucitec; FAPESP; Ijuí, Ed. UNIJUÍ, 2003, p. 633-675. 229 Não se pretende enquadrar os textos de Varnhagen dentro um padrão discursivo, seja o do discurso da soberania, seja o do discurso do racismo de Estado, e sim mostrar em determinados momentos da sua escrita a coexistência destes discursos de fabricação dos sujeitos e dominação.

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No continuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção

das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de

outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de

fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira

de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros.230

Este tipo de projeto de Estado-nação congregaria, nas palavras de Zygmunt Bauman, um

sonho de pureza:

A pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes do que elas

ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para outro, impulsionadas,

arrastadas ou incitadas; e é uma visão da ordem – isto é, de uma situação em

que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro. Não há nenhum

meio de pensar sobre a pureza sem ter uma imagem da “ordem”, sem atribuir às

coisas seus lugares “justos” e “convenientes” – que ocorre serem aqueles

lugares elas não preencheriam “naturalmente”, por sua livre vontade. O oposto

da “pureza” – o sujo, o imundo, os “agentes poluidores” – são coisas “fora do

lugar”. Não são as características intrínsecas das coisas que as transformam em

“sujas”, mas tão somente sua localização e, mais precisamente, sua localização

na ordem das coisas idealizada pelos que procuram a pureza.231

A união das partes proposta por Varnhagen significava única e exclusivamente a criação

da Nação, descendente do império colonial que a descobriu, dominou e colonizou:

E aqui nos cumpre notar que os esforços simultaneos que ora faziam, não só

esta como outras capitanias contra o inimigo commum, -- o inimigo até pela

religião, eram novos elementos que iam estreitar, pelos laços do coração, a

futura união brazileira, que os Hollandezes contribuiram depois a fazer apertar

muito; e a Deus praza que para todo o sempre, afim de que esta nação possa

continuar a ser a primeira deste grande continente antartico, e algum dia se

230 Michel Foucault, Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976) [Aula de 17 de março de 1976], op. cit., p. 304. 231 Zygmunt Baumann, O mal-estar da pós-modernidade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998, p. 14.

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chegue a contar entre as mais consideradas no universo, o que sem muita união

nunca poderá succeder.232

Vanhagen, ciente das mazelas provocadas pela ausência de um poder centralizador e

unificador pelas lembranças atordoantes das revoltas regenciais, sabia que era necessário cuidar do

Império brasileiro, fabricando uma narrativa histórica que o legitimasse dentro e fora de suas fronteiras.

Para Nilo Odália, o historiador sorocabano poderia ser definido como um jardineiro,

responsável por cuidar da árvore que era a nação brasileira:

Uma nova Nação, como uma árvore nova, necessita de escora e proteção. Ela

deve ser amparada, guiada e seu jardineiro deve estar atento a tudo que possa

afetar seu desenvolvimento, Cuidar para que as ervas daninhas não obstruam

seu caminho, não ofendam nem impeçam que busque seu alimento. Ele arranca

com suas próprias mãos as ervas daninhas, ele dá de suas mãos o carinho ao

amanhar a terra. A jardinagem, contudo, se apóia na ciência da botânica, o

carinho de que ela se reveste está solidamente alicerçado no bem e no mal que

ela própria não define. As mãos carinhosas do jardineiro são impessoais e não

são guiadas por outros interesses, explícitos ou implícitos, que não sejam ver a

árvore frutificar, tornar-se bela.

Não ocorre o mesmo com a jardinagem de uma nova Nação. Ela pode ser

comparada uma jovem árvore, mas quando há o gesto da poda – ele não é um

gesto de carinho – ele não é o gesto que precede o crescimento harmonioso.233

Na jardinagem de Varnhagen, a poda da tesoura da imparcialidade esconderia uma série

de exclusões de ramos e galhos indesejáveis ou das ervas daninhas parasitas. A árvore da nação

varnhageniana não comportaria os galhos apodrecidos (colonos corruptos) da imoralidade e as ervas

daninhas (índios e negros) dos maus costumes e, também, dos predadores invasores (espanhóis, ingleses,

franceses e holandeses). O visconde jardineiro seria o protetor das raízes (portuguesas) que deram origem

e sustentavam a árvore da nação (o Brasil Império).234

232 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 246. 233 Nilo Odália, As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna, op. cit., p. 40. 234 A metáfora do Estado-nação jardineiro foi também elaborada pelo sociólogo Zygmunt Baumann procurando mostrar como a noção de identidade estaria permeada pela eliminação das diferenças étnicas e raciais, derivando para experiências como a formação dos Estados nazi-fascistas e sua engenharia de extermínio na Europa na primeira metade do século XX. Conferir: Zygmunt Baumann, Modernidade e ambivalência, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1999, p. 25-61.

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Ao enveredar pelos campos de batalhas (discursivos) entre colonos e holandeses,

Varnhagen desenhou o cenário do teatro de suas emoções nacionais, procurando compreender motivos

pelos quais os sonhos de grandeza de um Império, do qual o Brasil seria parte e cabeça num futuro, ruíram

com a invasão. A divisão do Brasil pelo mau governo, a imoralidade da colônia corrompida pelos maus

costumes, a morte do rei D. Sebastião de Portugal (1554-1578) e a sujeição ao domínio de Felipe II de

Espanha (1527-1598), configurando a União Ibérica, os sucessivos conflitos com os índios, as tentativas de

ocupações estrangeiras foram alguns dos ingredientes que permitiram posteriormente a fratura imposta

pela presença dos holandeses no território da colônia. Era a implantação, acompanhada seção a seção da

Historia geral do Brazil, de um clima de desordem, de caos, que ameaçava o Brasil.235 O medo, segundo o

autor, era o sentimento que pairava entre todas as capitanias: Temiam-se Francezes, temiam-se Inglezes,

temiam-se Hollandezes e até se chegavam a temer Mouros e Turcos. (...) o certo era que o maior perigo

não estava em terra: estava no mar ou alêm delle como a todos os colonos lhes dizia certo presentimento

bem fundado.236

Se as guerras de conquista do território representaram no fio narrativo de Varnhagen um

componente importante no processo de formação da nacionalidade e também de predominância do

português sobre o indígena e o negro, as guerras de reconquista e de expansão emergiram no momento

de sedimentação de um espírito nacional, ou seja, de tomada de consciência de sua existência. Para o

visconde de Porto Seguro, este sentimento nacional se reconheceria de forma latente nas lutas contra o

invasor holandês.

As lutas contra o invasor holandês são particularmente realçadas por Varnhagen,

visto que nelas o sentimento nacional vai aflorar de maneira clara, porque será,

principalmente, uma luta de brasileiros, isto é, de colonos. São estes que

organizam a resistência contra o invasor holandês, sustentando-a quase

exclusivamente com seus próprios recursos, dada a quase impossibilidade da

metrópole – a Espanha, na ocasião – vir em socorro da colônia.237

235 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, seções XX, XXI, XXII ss. 236 Ibidem, p. 336-337. 237 Nilo Odália, As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna, op. cit., p. 55.

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Apesar de lamentar o desfecho a que chegara a colônia até aquele momento, Varnhagen

– conhecedor privilegiado do futuro que aguardava o Brasil238 – transformaria a guerra da reconquista na

restauração do Brasil, do projeto de nação em germinação.239 Esta interpretação dos eventos da invasão

holandesa foi anunciada no seu relato dos momentos próximos ao ataque:

Não somos, mercê de Deus, fatalista em assumptos de governo. – Cremos sim,

que uma guerra de tempos a tempos pode erguer um paiz do seu torpôr; cremos

que a estranha quando a costa brasilica acabava de ser occupada na totalidade

com as cidades de S. Luiz e de Belem, no Maranhão e no Pará, poderia

estabelecer, como estabeleceu, mais união e fraternidade, em toda familia já

brazileira; cremos que se estreitam muito nas mesmas fileiras os laços de que

resultam glorias communs, e que não ha vinculos mais firmes que os

sanccionados pelos soffrimentos; e tanto que ao estrangeiro que peleja ao nosso

lado e que derrama o seu sangue pela nossa causa lhe conferimos pelo

baptismo do sangue a mais valiosa carta de naturalidade... Porêm temos para

nós que quando o inimigo nos ameaça, ha que prepararmo-nos para o receber á

porta da casa, e não dentro della, depois de nol-a haver saqueado, para nos

matar com as nossas proprias armas, se não lhe pagamos os tributos que nos

impôe.240

Dando continuidade a sua justificativa para o papel da guerra como instrumento civilizador,

Varnhagen apresentaria uma descrição catastrófica sobre a situação imoral em que a colônia se

encontrava momentos antes da invasão. Diante de tamanhas práticas de corrupção, roubo e escândalo, o

historiador-juiz definia as razões do destino esperado pelos colonos do Brasil:

238 Para Varnhagen, a constituição do Brasil como nação era uma verdade inconteste e a história teria o papel de legitimar esta realidade. Conferir: Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit. 239 Na interpretação do episódio da invasão holandesa, a narrativa de Varnhagen estava marcada pela articulação dos preceitos do agenciamento das origens, traduzida pela presença no desenvolvimento das tramas dos conceitos de criação, queda e restauração. Segundo Adilton Luis Martins, foram os historiadores eruditos que, ordinariamente, poderiam ser considerados profetas-narradores. A força simbólica de seu discurso, sempre naturalizado socialmente, produziu poder segundo a adaptação dos elementos Origem, Queda e Restauração. O exercício do profeta-narrador era legitimado segundo a fidelidade ao discurso e à presença da graça divina, e, paralelamente, o exercício do historiador-narrador era legitimado com base na fidelidade às fontes que manifestavam a verdade antiga da origem. A graça divina do profeta antigo parecia ser substituída pela emergência da erudição. O erudito tinha o capital cultural da memória, sua força estava na naturalização do que dizia. Adilton Luis Martins, O agenciamento das Origens, a Antigüidade e o Anti-absolutismo no século XVIII, op. cit., p. 23. 240 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 337-338.

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Deixemos ao fatalismo embrutecedor a explicar-nos como o Brazil bradava aos

ceus, pelos seus costumes pervertidos, pedindo uma invasão, que chegou a ter

metade delle separada da outra metade por tantos annos, que mal se explica

como veiu a soldar-se. A pezar da nossa nimia tolerancia, que melhor conhecerá

o leitor para o diante; apezar de reconhecermos muitos bens que algumas

provincias brazileiras devem hoje aos Hollandezes, dos quaes bens trataremos

no seguinte volume, apezar de tudo, cremos que se cometteram faltas graves no

governo, e que o Conselho da India, alias tão illustre para administrar, não obrou

neste ponto como pedia o caso. Dirão que havia chegado, na Terra de Santa

Cruz, ao auge a corrupção, o roubo e o escandalo. Que os ministros da justiça

dobravam a rectidão de suas varas ao pezo de quatro caixas de assucar; que ja

se conjugava em todos os modos e tempos no Brazil o verbo rapio, para nos

servirmos da expressão empregada depois por Vieira, na famosa predica do

Bom Ladrão; que o habito de vestir pouco os escravos embotava os sentimentos

de pudor e delicadeza, pelo que eram communs os vicios da libertinagem; que

os assassinatos eram frequentes, e que muitas vezes a vingança da offensa era

covardemente confiada a um escravo, que recebia, a troco do seu crime dos

mais atrozes ante Deus e os homens, o premio da alforria; que.. em fim tudo

estava coberto do mormaço indicador da tempestade.241

Na Historia geral do Brazil, as seções sobre as lutas contra os holandeses assumiram um

lugar marcante, porque eram nelas que os coloniais revelariam de forma contundente sua consciência e

sentimento nacional em meio às derrotas e vitórias nos campos de batalha.242 A experiência da guerra

superaria o complexo de inferioridade em relação aos portugueses originários da metrópole e soterraria as

diferenças e clivagens entre coloniais e reinóis.243

Para o visconde de Porto Seguro, o que deveria se sobressair destas páginas da história

do Brasil eram os elementos que permitissem uma coesão interna da futura nação, especialmente pela

manutenção da unidade territorial e racial. O êxito nas guerras da reconquista era fruto da colaboração

entre as três raças formadoras, naquele momento irmanadas em defesa da colônia ocupada pelo inimigo

estrangeiro. Deste encontro emergiria o brasileiro. De acordo com Nilo Odália,

241 Ibidem, ibidem. 242 Segundo Arno Wehling, este modelo interpretativo das invasões holandesas criado por Varnhagen ganharia força e se manteria viva na historiografia e produção didática brasileira até boa parte do século XX. Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 184. 243 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, seções XXVII a XXXI.

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Dessemelhantes, no início da luta, elas se aproximam pela luta comum e pelo

fato de que as barreiras que antes existiam entre elas começam a desabar para

que possa surgir o homem brasileiro. Elas despertam na massa difusa e informe

os primeiros pruridos da nacionalidade e do sentimento nacional. São os

momentos de sacrifício em que as várias colônias (capitanias) se imolam em

favor da unidade da Nação que começa a surgir. São as dores do parto da

Nação que deve surgir, pelo esforço de todos, pela união e sentimento

comuns.244

Para além das narrativas épicas forjadas por Varnhagen sobre as lutas travadas entre

colonos e holandeses, quase que apresentando um diário detalhado de guerra, interessa aqui

compreender como ele a partir deste fato deu uma nova configuração para o panteão de heróis da nação.

Em outras palavras, como Varnhagen traduziu os preceitos da unidade e nacionalidade nas biografias de

determinados protagonistas. Na celebração dos feitos destes sujeitos estaria o mito fundador do Brasil.

Abordar esta questão justifica-se, como já foi apontado anteriormente, porque a idéia de

que a missão da história era preservar a memória das vidas e feitos dos grandes homens do passado

estava presente de forma marcante no pensamento dos historiadores da estirpe de Varnhagen dentro do

IHGB.245 A produção das biografias dos varões ilustres por letras, armas e virtudes fazia parte do programa

histórico do grêmio e era objeto de dedicação dos seus artífices nas páginas da Revista, livros e memórias.

E o visconde de Porto Seguro não fugiu a esta regra. A sua Historia geral do Brazil é povoada de

passagens ou momentos biográficos, procurando fixar os nomes daqueles que deveriam ser lembrados

pelos seus feitos.246 Basta lembrar de alguns nomes até o momento destacados de sua obra como Pedro

Álvares Cabral, Martim Afonso de Souza, Tomé de Souza, Mém de Sá, entre outros.

O processo de formação da nação brasileira para o pensamento varnhageniano era

resultado da ação de indivíduos, de heróis. Segundo Nilo Odália, em larga medida se aproximando das

considerações apresentadas por Arno Wehling,247 Varnhagen lançou mão do recurso altamente

244 Nilo Odália, As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna, op. cit., p. 57. 245 Para Maria da Glória de Oliveira, a necessidade de arrancar do esquecimento os nomes dos brasileiros ilustres afinava-se com o ambicioso empenho da agremiação em coligir documentos para a elaboração da história nacional, tendo em vista as demandas políticas peculiares à consolidação do Estado monárquico no Segundo Reinado. Maria da Glória de Oliveira, Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p. 10. 246 Para um estudo sobre o papel das biografias nos escritos de Varnhagen, conferir: Evandro dos Santos, Temp(l)os da pesquisa, temp(l)os da escrita. A biografia em Francisco Adolfo de Varnhagen, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. 247 Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 158.

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sensibilizante da criação de heróis como estratégia para sedimentar a unidade territorial e espiritual da

futura nação:

Em todas as fases da imposição dos valores europeus e brancos, vemos surgir a

marca de heróis que resumem em si as qualidades do cidadão e da Nação.

Contudo, as guerras de reconquista, quer sejam contra franceses ou holandeses,

representam o melhor momento e as condições mais adequadas para

demonstração de que os traços futuros da Nação e do homem brasileiro já

aprecem de maneira nítida e insofismável ainda no período colonial. É nelas que

as três raças que constituirão o povo futuro se aproximam e se sublimam,

reconhecendo-se como unas. O herói aqui desempenha um papel fundamental,

visto que é nele que se encontram e se reconhecem as três raças.248

A singularidade no trato da temática dos heróis nesta parte da Historia geral do Brazil está

justamente na apresentação do elemento étnico-racial de forma evidente, trazendo para o cenário das

ações sujeitos não apenas europeus, brancos e colonizadores, mas também um índio e um negro. As três

raças constituintes da nacionalidade brasileira, apontadas pela monografia de von Martius, se fizeram

presentes por meio das personagens André Vidal Negreiros (1606-1680) (branco), Antonio Filipe Camarão

(?-1648) (índio) e Henrique Dias (?-1662) (negro), embora representadas com marcas de desigualdade,

preservando uma hierarquia racial. Não se pode esquecer que as raças inferiores adentraram as portas

sagradas do panteão erigido por Varnhagen porque haviam reconhecido a superioridade cultural da raça

superior, chegando a ponto de pegar em armas para defendê-la.

Em suma, os heróis indígena e negro haviam aderido à causa colonial portuguesa. Não

havia neste panteão espaço para a diversidade ou a convivência com as diferenças. Elas se dissiparam a

partir do preço que se pagou para fazer jus a ocupar aquele lugar concedido – a renúncia de sua herança,

de suas raízes. Percebe-se a constituição de outras duas identidades para substituir as anteriores: colonial

e brasileiro. Colonial por aceitar e defender a posse da Coroa portuguesa. Brasileiro por estabelecer um

vínculo com o lugar, com o território e por ser parte constituinte da mescla que define esta nova categoria.

Uma mescla que não formaria um híbrido, mas que iria se diluir até que a força do sangue

europeu dissolvesse os fragmentos das outras raças dominadas. Esta é uma característica do panteão de

Varnhagen que não se pode esquecer para não incorrer no risco de se acreditar ilusoriamente que ele

248 Nilo Odália, As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna, op. cit., p. 57-58.

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seria o pai da democracia racial, discurso ideológico amplamente difundido pelo pensamento social e

político brasileiro ao longo do século XX. A associação desta imagem do panteão das três raças como

marco fundador da idéia do Brasil como paraíso racial, como se percebe, por exemplo, na produção

didática brasileira,249 repete a lógica da necessidade de sempre se buscar uma origem primeira, uma

mitologia e uma tradição no passado como forma de legitimação.250

Quando Varnhagen trouxe para as páginas da sua Historia geral do Brazil as figuras de

Camarão e Henrique Dias foi para que estes representassem de maneira contundente, enquanto heróis

das lutas contra os holandeses, a função de exemplo do que podem as bandeiras civilizadoras do homem

branco cristão na regeneração dos melhores das raças inferiores. Eles seriam a prova do êxito da obra

colonial portuguesa pela conquista, domínio e civilização dos povos selvagens. Camarão e Henrique Dias,

no discurso do visconde de Porto Seguro, eram o coroamento do projeto desejado para aquelas gentes: a

assimilação completa e incondicional.

Esta preocupação de Varnhagen ficou evidente nas passagens em que estas personagens

figuravam. Eles eram sempre destacados pela associação à causa da civilização, bravura e disciplina e

capacidade de seguir a liderança. Além disso, tinham importância pela forma como comandavam seus

homens na condição de militares e também de pedagogos, pois suas tropas eram formadas por suas

gentes. E, ao liderá-los no campo de batalha, também ensinavam qual era o caminho da civilização.

Na descrição do índio Camarão ficou bem perceptível a sua visão do que significava esta

adesão à cultura européia como uma saída para a condição de barbárie:

D. Antonio Filippe Camarão (traduzindo-se este appellido do de Poty que levava

como selvagem, e que significa o mesmo), unido á causa da civilisação desde o

estabelecimento da capitania do Ceará, não cessára jamais de prestar serviços

importantes, já contra os Francezes na costa do norte, já contra os Hollandezes

na Bahia e em Pernambuco, já contra os próprios selvagens. Ao vêl-o no fim da

vida tão bom christão, e tão differente do que fora, e do que haviam sido no mato

os seus pais, não ha que argumentar entre os homens com superioridade de

gerações; sim deve abysmar-nos a magia da educação, que, ministrada embora

á força, opera taes transformações que de um Barbaro prejudicial á sociedade,

249 Conferir: Renilson Rosa Ribeiro, Colônia(s) de Identidade(s): Discursos sobre a raça nos manuais escolares de História do Brasil, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História Cultural, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. 250 Neste sentido, discorda-se da correlação automática estabelecida entre Varnhagen e Gilberto Freyre desenvolvida por José Carlos Reis, em As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, op. cit., parte I – O “Descobrimento do Brasil”.

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se pode conseguir um cidadão util a si e á patria. – O illustre commendador

Camarão era mui bem inclinado, commedido e Cortez, e no falar mui grave e

formal; e consta que não só lia e escrevia bem, como que não era estranho ao

latim. – Era um typo do soldado modesto, que combate pela pátria na idéa de

não ter feito mais do o seu dever.251

Em relação ao negro Henrique Dias, Varnhagen não apresentou tantos dados biográficos,

mas seguiu a mesma linha de raciocínio, procurando mostrar seus valores como soldado e fiel seguidor

dos ideais coloniais. Mesmo ao elogiá-lo, o historiador sorocabano não deixou de registrar as marcas

herdadas da sua condição racial, que por vezes se manifestavam no guerreiro: Henrique Dias era bravo,

fogoso e ás vezes desabrido; e mais valente para obrar, que apto para conceber. Naturalmente loquaz,

desconhecia o valor do segredo e discrição nas emprezas; mas era dotado de coração benévolo e uma

alma bemfazeja.252 Varnhagen registraria ainda sobre Henrique Dias a justiça que se fez a sua memória

com a criação dos regimentos dos Henriques:

Em favor de Henrique Dias não encontramos registada graça ou mercê especial

alguma; nem de seu nome ha mais noticia desde que conclue a guerra. Acaso

acabaria com ella ou pouco depois, e sendo como os outros agraciado, não

chegaria a tirar suas cartas? Entretanto podemos dizer que os seus serviços

receberam no Brazil mais gloriosa e vividoura recompensa que os dos outros.

Foi feito mestre de campo de um terço de ordenanças de negros na Bahia, que

nunca se extinguiria e que para sempre se chamaria de Henrique Dias. Esta

providencia se fez depois extensiva nas demais capitanias a todos os regimentos

da mesma côr que por abbreviação se chamavam somente dos Henriques.253

Estes homens eram exaltados por Varnhagen porque haviam lutado com bravura – como

coadjuvantes – ao lado dos colonos e portugueses contra o inimigo estrangeiro. Ao longo da narrativa,

chefes militares como André Vidal de Negreiros ganhariam em quantidade de páginas e de elogios maior

destaque. Vidal de Negreiros, na sua leitura, era homem tão superior que necessitaria um Plutarcho para

aprecial-o. A sua biografia era também muito mais profícua em dados e fatos. Em relação a João

251 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1857, p. 22. 252 Ibidem, p. 30. 253 Ibidem, p. 35.

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Fernandes Vieira (1613-1681), outra conhecida figura militar das batalhas contra os holandeses, Vidal de

Negreiros teve de Varnhagen maior apreço e celebração:

Estudando bem os factos João Fernandes Vieira não aparece decididamente tão

grande homem, como em detrimento dos seus camaradas, nol-o quizeram

apresentar seus panegyristas. Era astuto, mas vão, e excessivamente

ambicioso, juntando a isto o chegar a ser escravo da cobiça; e bem que se

mostrasse desprendido de quanto possuia e muito smoller, parecia assim obrar

com o intuito de lograr mais.254

Para Varnhagen, a ganância de João Fernandes Vieira era inaceitável e digna de

represália. Havia nas referências a ele um tom sempre de desconfiança, especialmente quando comparado

às qualidades de Vidal Negreiros evidenciadas até por padre Antonio Vieira, em uma citação transcrita por

Varnhagen.255 Dentre os inúmeros elogios atribuídos ao filho da Paraíba estavam zelo e amor do Brazil,

caridade christã, abnegação, raro mérito de saber grangear amigos e sincero animo religioso.256 Ao definir

João Fernandes Vieira como ganancioso e Vidal de Negreiros como abnegado, Varnhagen deixava

esclarecido para os leitores qual era o modelo de herói a ser seguido. No caso, o eleito para o lugar de

destaque no seu panteão era Vidal Negreiros.

Para Nilo Odália, a eleição de Vidal Negreiros como modelo de herói branco na resistência

contra o invasor holandês tinha também um significado particular, o que justificava a razão daqueles

qualificativos pejorativos para João Fernandes Vieira. Ao levantar o problema de quem seria o coração e

cérebro da resistência, Varnhagen opôs à figura de Vieira, originário da Ilha da Madeira, a do brasileiro

Vidal de Negreiros pelo fato deste ter maior sentimento de pertencimento do que o outro. Esta não era uma

escolha ingênua dentro da arquitetura discursiva da Historia geral do Brazil, pois trazia no seu bojo uma

questão de identidade e de estratégia de guerra:

ela ganha um sentido mais profundo, pois, na verdade, a opção é feita em favor

de um brasileiro, isto é, de um colono nascido e criado no Brasil, que simboliza

em si a própria luta de guerrilha que se estabelece contra os invasores.

254 Ibidem, p. 29. 255 Ibidem, p. 30. 256 Ibidem, p. 29.

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As lutas de guerrilha minuciosamente relatadas por Varnhagen revelam que o

sistema de guerra adotado, pressupondo profundo conhecimento da terra,

surpresa e rapidez, armas ligeira, deslocamentos contínuos, sacrifícios (na

medida em que nativos, muitas vezes, têm de destruir tudo o que construíram),

está profundamente entranhado às condições iniciais da formação da nova

Nação, às características das três raças que formarão o homem brasileiro.

Nesse contexto, a opção por Vidal indica claramente o sentido da escolha de

Varnhagen: sem desprezar o papel desempenhado por Vieira, é a Vidal que ele

confere as maiores honras de comandante e estrategista da resistência, pois ele,

primordialmente, é um brasileiro.257

Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e Henrique Dias eram os guerrilheiros ideais para o

sucesso da empreitada militar contra o inimigo, bem como os varões ilustres que formariam a nação

brasileira. Estes eram os eleitos de Varnhagen para servirem a sua causa – a invenção de um mito

fundacional para o Brasil. Ao menos era a verdade que ele desejava acreditar ou fazer crível. A unidade

étnico-racial vislumbrada no episódio da invasão holandesa ajudaria no processo de consolidação da

unidade territorial.

Em oposição a estas figuras ilustres, Varnhagen apresentaria o anti-herói Domingos

Fernandes Calabar (c. 1600-1635), rotulado de traidor da causa da restauração da colônia. Em sua

narrativa, influenciada pelo Valoroso Lucideno (1648), de autoria de frei Manuel Calado do Salvador (1584-

1654), Calabar, suspeito de índole duvidosa, era condenado pelo fato dele oferecer ao inimigo holandês o

principal instrumento de resistência dos coloniais: o conhecimento da terra.

Pelos conselhos e direcção deste homem atrevido e emprehendedor, os

Hollandezes mudaram muito seu systema de guerra, amoldando-o mais o paiz, e

oppondo às ciladas das outras cidades. Pos insunuação foi de surpreza atacada

Olinda, em quanto os habitantes se achavam á missa; saqueada Igarassú; e

bravamente acomettido o forte de Formoso.258

257 Nilo Odália, As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna, op. cit., p. 59-60. Argumento semelhante sobre a opção de Varnhagen por Vidal Negreiros foi apresentado por Evaldo Cabral de Mello, em Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana, 3 ed. revista, São Paulo, Alameda, 2008, capítulo VI. 258 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, p. 367.

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A sua opção pelo invasor estrangeiro seria interpretada, a partir de um discurso pró-

português e nacionalista, como um golpe contra o futuro do Brasil, pois a sua ligação com a pátria

colonizadora era necessária para a sua gradual emancipação. A adesão de Calabar seria o ponto de virada

em favor dos holandeses no projeto de ocupação do Nordeste brasileiro, o que significaria para Varnhagen

um grande revês para os heróis da resistência.

No tribunal da história, comandado pelo historiador-juiz Varnhagen, o veredicto final

quanto à opção de Calabar pela obra do inimigo seria a maldição de carregar o rótulo por séculos de infiel,

desertor e traidor, repudiando as tentativas de reabilitação ou ponderação em torno da sua figura por

historiadores e literatos como o seu consócio cônego João Caetano Fernandes Pinheiro (1825-1876).

Em seu Estudos Históricos, publicado em 1860, Fernandes Pinheiro protestaria contra o

teor agressivo do julgamento de Varnhagen, dedicando à figura de Calabar uma leitura mais nuançada,

relativizando as opiniões tendenciosas de cronistas como Manuel Calado do Salvador. Segundo Evaldo

Cabral de Mello, a atitude de Calabar, na leitura de Fernandes Pinheiro, seria resultado das preterições

que, devido à sua condição mestiça, sofrera como soldado.259 Este tipo de afirmação provocou a ira de

Varnhagen, que a considerou uma mal entendida generosidade, pretender desculpar essa deserção,

origem de tantas lagrimas para a patria.260

Evaldo Cabral de Mello, ao analisar a constituição do panteão da restauração a partir do

episódio das duas batalhas vitoriosas do Guararapes, afirmou que embora contemplasse a presença das

três raças no seu templo não abriu espaço para a figura do mestiço, visto sempre com suspeita. Este era o

carma de Calabar: ser um mestiço. E que, de certa forma, partiu dos escritos dos cronistas nativistas e

projetou-se no discurso etnocêntrico de Varnhagen:

Não deixa de ser revelador que o imaginário restaurador não tenha consagrado

um mestiço. Camarão foi índio puro, Henrique Dias, negro retinto e se Fernandes

Vieira foi mulato, oficialmente sempre passou por branco, graças à sua qualidade

de reinol e de pró-homem; ainda há cinqüenta anos, a mera idéia da sua

condição mesclada indignava historiadores locais. Encarnando o elemento

português na invocação tetrárquica, ele estava condenado a ser caucasiano. (...)

259 Evaldo Cabral de Mello, Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana, op. cit., p. 350. 260 Em sua Historia das lutas com os hollandezes no Brazil desde 1624 a 1654, forjada no contexto da atmosfera patriótica da guerra do Paraguai, o visconde de Porto Seguro iria de forma indireta responder às críticas de Fernandes Pinheiro, reafirmando seu julgamento de Calabar. Para Varnhagen, tal atitude de condescendência em relação ao traidor era contra a veracidade das fontes existentes e as regras da crítica histórica: a rehabilitação do Calabar não seria mais justificavel do que a de qualquer official inferior que, por commetter alguma falta ou por mera ambição, desertasse para o inimigo paraguayo na ultima guerra. Conferir: Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia das lutas com os hollandezes no Brazil desde 1624 a 1654, op. cit., p. 84.

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Além de excluir o mestiço, o panteão nativista encarnou em um deles a figura do

vilão. São conhecidas as expressões Calabar e calabarismo como sinônimos de

traidor e de traição, mas seu uso generalizado só parece ter ocorrido em época

relativamente recente, datando das lutas políticas dos anos quarenta do século

XIX. Os cronistas da guerra holandesa haviam dado Calabar ora como mulato,

ora como mameluco, o que levou Loreto Couto a associar seu colaboracionismo

à sua origem racial.261

De acordo com Varnhagen, o Brasil colônia e, posteriormente, nação teria muito que pagar

tributo para a invasão purificadora. No saldo final das perdas e ganhos com a guerra, ele seria taxativo em

afirmar o seu resultado positivo:

Passemos a occupar-nos de qual era então o gráo de tolerancia no Brazil. Pelo

que respeita á civil, de uns individuos com outros, cumpre confessar que nas

capitanias do norte, a guerra estranha produziu resultados beneficos. O perigo

commum fez aproximar mais do escravo o senhor, e o soldado europeu do

brazileiro, ou do Indio amigo. Com as honras e condecorações concedidas,

mediante o beneplacito da curia romana, ao Camarão e a Henrique Dias, libertos

aquelle da barbarie, este da escravidão, se honraram todos os Indios e todos os

Africanos, na idéa de certo desfavor, em que se julgavam, não provinha de suas

côres, mas sim da falta de meritos para serem melhor atendidos. – Por outro

lado tambem o perigo commum augmentou muito a tolerancia dos povos de

umas capitanias para as outras, e estabeleceu maior fraternidade, de modo que

quase se pode assegurar que desta guerra data o espirito publico mais

generalisado por todo o Brazil.262

A guerra, para o visconde de Porto Seguro, era um mal necessário para o

amadurecimento da colônia. A invasão holandesa havia sido proveitosa. Na perspectiva de seu moralismo

conservador, ela tinha purificado das impurezas dos maus costumes e da desordem. De seu nascimento

com os descobrimentos até aquele momento o Brasil havia evoluído do seu estado infantil.263 Aquela era

261 Evaldo Cabral de Mello, Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana, op. cit., p. 204-205. 262 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1857, p. 42. 263 Para uma reflexão acerca das metáforas de infantilidade e tutela associadas às colônias pelo discurso colonizador, conferir: Edward Wadie Said, Orientalismo: a invenção do Oriente pelo Ocidente, São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

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uma experiência pedagógica para o seu povo, ali as contas tinham sido acertadas e a rota estava no rumo

correto, de volta à tutela da metrópole portuguesa – com base na bússola do historiador.264

O desfecho aclamado por Varnhagen para este episódio era o Brasil restaurado,

recolonizado por um Portugal também restaurado, governado por D. João VI (1604-1656), da dinastia dos

Bragança, da qual D. Pedro II era descendente. A linha continuum de evolução do Brasil colônia para Brasil

Império estava novamente atada pela narrativa da Historia geral do Brazil.265

A idealização do momento da restauração da colônia, narrada por Varnhagen, encontraria

novamente sua representação imagética na pintura de Victor Meirelles, em seu famoso quadro Batalha dos

Guararapes, de 1879.266 À semelhança do visconde de Porto Seguro, o pintor da Academia Imperial de

Belas Artes transformou a presença holandesa em invasão e a luta pela sua expulsão em guerra nacional:

A escolha dos temas possui intenções evidentes: mito fundador, Guararapes

opera uma síntese das raças na mesma luta e funda a primeira legitimação de

um país que se descobre senhor de seus destinos políticos. O feito guerreiro é

batismo de fogo dessa solidariedade entre brasileiros, e a garantia de um

sentimento inabalável.267

Neste quadro, além da presença das três raças na primeira batalha (1648) da virada da

guerra contra os holandeses, Victor Meirelles atribuiu proeminência à personagem de Vidal de Negreiros,

apresentando com o grande herói brasileiro. Nesta perspectiva, ele acompanhou as representações

forjadas por Varnhagen. A cena da batalha era síntese da vitória dos brasileiros sobre os holandeses. De

acordo com Jorge Coli, o quadro da batalha colocava ao centro o confronto de dois líderes:

O arremesso e a defesa não se concretizam em nenhuma imagem efetiva de

luta; o confronto entre os dois grupos é concentrado no afrontamento dos dois

chefes, opostos num notável efeito de tensão: Negreiros, empinando seu cavalo,

264 Segundo Varnhagen, infelizmente porém a civilisação humana semelha-se em tudo ao homem: nasce chorando, e chorando e sofrendo passa grande parte da infancia, até que se educa e se rebustece. – Se pois nos conformarmos com esta lei indeclinável, reconheceremos que o Brazil pagava então grande parte do seu tributo... E não ha duvida que, passados esses choros e esses sofrimentos, se apresentou mais crescido e mais respeitavel, -- havendo para isso concorrido poderosamente os grandes e continuados reforços de colonos activos e vigorosos da varios terços ou regimentos que vieram da Europa, e cujos individuos pela maior parte ficaram no Brazil, o que prefez um numero superior aos dos mortos nos campos de batalha. Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1857, p. 44. 265 Para uma análise da interpretação da colônia como um momento da história nacional a partir do discurso da continuidade, conferir: Rogério Forastieri da Silva, Colônia e Nativismo: A História como “biografia da nação”, São Paulo, Hucitec, 1997, capítulo I. 266 Conferir Anexos: Figura 03 – Victor Meirelles de Lima, Batalha dos Guararapes (1879), Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes. 267 Jorge Coli, A batalha de Guararapes de Victor Meirelles e suas relações com a pintura internacional, tese de livre-docência, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1994, p. 14.

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freia as oblíquas que avançam; Keeweer, desmoronado, forma uma espécie de

barricada, por trás da qual se levantam as lanças holandesas. E o retesamento

se cristaliza no espaço vazio entre as duas montarias, centro virtual de

oposições, habitado pela invisível trajetória dos olhares trocados por vencido e

vencedor.268

De acordo com Thais Nivia de Lima e Fonseca, o quadro de Victor Meirelles não apresenta

concorrentes ao procurar ilustrar o tema da guerra contra os holandeses nos manuais e livros didáticos de

História do Brasil, ao longo do século XX. Considerado um clássico da pintura histórica brasileira, o quadro

Batalha dos Guararapes procurou recriar a grandiosidade pretendida pela historiografia tradicional para a

primeira manifestação do espírito nacional.269

A narrativa textual (Historia geral do Brazil) e a visual (Batalha de Guararapes), em

consonância com o projeto de legitimação da monarquia brasileira na segunda metade do século XIX,

tendo o Rio de Janeiro como centro do poder, irmanaram-se na fabricação de uma interpretação épica do

passado brasileiro. No século XVII estavam, ao menos nestas representações discursivas e imagéticas, as

bases do nativismo da futura nação. O IHGB, de Varnhagen, e a Academia Imperial de Belas Artes, de

Victor Meirelles, seriam o locus privilegiado de invenção do ideal de nação que deveria povoar o imaginário

dos brasileiros para além dos limites temporais do Segundo Reinado e do século XIX.270

Na leitura de Evaldo Cabral de Mello, a interpretação fluminense e centralizadora

representada pela obra de Varnhagen seria uma deformação das narrativas nativistas locais produzidas

acerca da visão da experiência holandesa. Além disso, tal matriz interpretativa seria responsável pelo

soterramento das tramas regionais sobre a restauração que não necessariamente corroboravam as teses

nacionalistas e centralizadoras forjadas pelos letrados do IHGB. A partir da percepção do nativismo

pernambucano como herdeiro da restauração, a temática da invasão holandesa e, principalmente, das

lutas de resistência locais seria interpretada em diferentes contextos revolucionários pelos pernambucanos

como contestação da ordem colonial portuguesa.

As guerras holandesas, segundo o autor de Rubro Veio, foram a matriz ideológica do

discurso nativista local da segunda metade do século XVII até meados do longo século XIX, momento em

268 Jorge Coli, A pintura e o olhar sobre si: Victor Meirelles e a invenção de uma História visual no século XIX brasileiro, in: Marcos Cezar de Freitas (org.), Historiografia Brasileira em Perspectiva, op. cit., p. 385. 269 Thais Nivia de Lima e Fonseca, “Ver para compreender”: arte, livro didático e história da nação, in: Lana Mara de Castro Siman e Thais Nivia de Lima e Fonseca, Inaugurando a História e construindo a nação; discursos e imagens no ensino de História, op. cit., p. 98-99. 270 Conferir: Consuelo Alcioni Borba Duarte Schlichta, A pintura histórica e a elaboração de uma certidão visual para a nação, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006.

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que Pernambuco sofreu reveses como força política com o malogro da revolução praieira, encerrando o

ciclo dos movimentos anti-lusitanos. Ao longo desses duzentos anos,

no percurso do nativismo como fenômeno político e ideológico, distinguem-se

três fases, correspondendo a dois períodos alternados de radicalização anti-

lusitana, a montante e a jusante de uma fase de transação: a primeira, da

capitulação holandesa (1654) à derrota da ‘nobreza da terra’ na guerra dos

mascates e suas seqüelas (circa 1715); a segunda, que se prolongou até os

primeiros anos do século XIX, com o aparecimento dos sintomas (por exemplo, a

conspiração dos Suassunas, 1801) que anunciam as ‘revoluções libertárias’ do

verso de Manuel Bandeira; a terceira, que se estendeu até 1850, englobando a

revolução de 1817, o movimento de Goiana e as juntas provisórias (1821-1823),

a Confederação do Equador (1824) e rebelião praieira (1848-1849), para além de

cujo horizonte divisa-se a definitiva integração da província na ordem imperial e o

esgotamento do nativismo como força política, reduzido doravante a seu

significado histórico, como indica a fundação do Instituto Arqueológico e

Geográfico Pernambucano (1862).271

Este viés anticolonialista presente no discurso, que entendia Pernambuco como lugar de

emergência do sentimento de liberdade, entrava em confronto com a hegemonia narrativa da história do

passado brasileiro do século XIX. Este seria uma espécie de colonialismo interno narrativo que

seqüestraria experiências históricas, seja pela sua apropriação, seja pelo seu apagamento.272 Para Evaldo

Cabral de Mello, a criação do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, em 1862, seria a

institucionalização da necessidade da preservação de uma memória restauradora pernambucana. A visita

de D. Pedro II e, em seguida, a passagem de Varnhagen pela cidade de Recife, haviam atiçado os brios

provinciais, pondo em relevo o abandono e a ignorância a que havia sido relegado o nosso passado.273

O que transpareceria neste tipo de discurso fundador centralizado na invasão holandesa

no Brasil – representado por Varnhagen – era a recorrência de certos temas totalizantes e hegemônicos de

um colonialismo interno, como os vislumbrados por Edward Wadie Said ao abordar o orientalismo, ou seja,

271 Evaldo Cabral de Mello, Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana, op. cit., p. 16. 272 Para compreender as práticas de apropriações e silenciamentos dentro do IHGB, conferir, Lucia Maria P. Guimarães, O tribunal da posteridade, in: Maria Emilia Prado (org.), O Estado como vocação: idéias e práticas políticas no Brasil oitocentista, Rio de Janeiro, Access Ed., 1999, p. 33-58. 273 Evaldo Cabral de Mello, Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana, op. cit., p. 56.

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os pernambucanos seriam incapazes de representar a si mesmos e deveriam, logo, ser representados por

outros que conhecessem mais sobre o passado pernambucano. No caso, deveria ser um passado

pernambucano representado como essencialmente nacional, ou melhor, imperial. Não haveria nesta lógica

imperialista de usos do passado qualquer intercâmbio: nada de diálogo, discussão ou reconhecimento.274

A Restauração Pernambucana verdadeira, autêntica e valorizada por esta matriz

interpretativa seria a que projetasse o legado da colonização portuguesa para a construção do Brasil

imperial, governado pela casa dos Bragança; parafraseando Edward Wadie Said, este discurso seria uma

declaração de poder e uma reivindicação de autoridade absoluta.275 Como observou o jornalista e

historiador Maximiano Lopes Machado (1821-1895), membro do Instituto Arqueológico e Geográfico de

Pernambuco,

ficamos estacionários, à espera que nos mandassem da Corte uma história

completa do Brasil, e a história geral foi a de Varnhagen, na qual declina para os

historiadores parciais o exame dos fatos relativos a cada uma das partes do

todo. 276

Ao fazer esta afirmação, o historiador paraibano lançaria uma pergunta emblemática,

pondo em dúvida a força deste discurso instituinte do Brasil em comparação com o regional: Se é verdade,

senhores, que no estudo da História Nacional é que podem colher as melhores lições de patriotismo, de

quantas utilidades nos não será o da nossa?277

Na leitura de Luiz Felipe Vieira Ferrão, a compreensão do passado, elaborada pelos

historiadores do grêmio pernambucano, navegava contra as idéias do fazer histórico que partiam da Corte

por intermédio de autores como Varnhagen e Fernandes Pinheiro. Apesar de não negar a sua existência, a

memória provinciana, em especial no episódio da restauração de Pernambuco, se recusava a entender-se

com a história feita pelo Rio de Janeiro, uma vez que não se identificava plenamente com a memória

oficial, que da sede do governo imperial desejava escrever a História Nacional.278 Segundo Lucia Maria

Paschoal Guimarães,

274 Edward Wadie Said, O orientalismo reconsiderado, in: Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 69. 275 Ibidem, ibidem. 276 Maximiano Lopes Machado, História da província da Paraíba, Paraíba, 1912, p. III. 277 Ibidem, ibidem. 278 Conferir: Luiz Felipe Vieira Ferrão, O Instituto Arqueológico Geográfico Pernambucano: Um tributo a memória regional (1862 - 1911), dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

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A construção da Memória do Império foi um longo e seletivo empreendimento,

onde se procurou pinçar, no “vertiginoso repertório” do passado, os

esclarecimentos que pudessem auxiliar na definição do presente. A nortear a

organização do “estoque” das lembranças, estava a necessidade de levar

adiante o projeto político iniciado em 1822.279

A questão da centralização política e da unidade era tão evidente no trato das questões

relacionadas, por exemplo, à invasão holandesa, que havia por parte dos poderes instituídos a

preocupação de observar se determinadas interpretações não poderiam implicar em um questionamento

do Império. Essa atitude se justificava tendo em vista o forte clima de suspeita que pesava sobre

Pernambuco como uma província dissidente. De acordo com Evaldo Cabral de Mello, discursos políticos

tidos como subversivos geralmente eram tolhidos no Parlamento e na imprensa, em especial aqueles

carregados de interesse regional ou provincial ou que maculassem a imagem do imperador. Em outras

palavras, eram sumariamente excluídos do debate.280

Desde a publicação da Historia geral do Brazil, segundo o historiador pernambucano,

Varnhagen havia estabelecido os limites interpretativos do tema. Ao invés de prevalecer uma leitura

nativista, que entendia a guerra contra os holandeses como a base do que seria uma identidade regional, o

visconde de Porto Seguro a fixou no campo discursivo da construção do Estado imperial brasileiro. Mesmo

fascinado com os avanços e melhorias trazidas pelo governo de João Mauricio de Nassau (1604-1679), o

príncipe de Orange, a ponto de dedicar-lhe uma seção de sua obra,281 Varnhagen foi fiel à sua defesa da

colonização portuguesa:

O Império era o Estado sucessor de Portugal na América e somente a

colonização lusitana poderia ter garantido a unidade nacional, o que bastava à

historiografia imperial para desqualificar as outras experiências coloniais.282

Para o historiador sorocabano seria um incômodo ou uma mácula na história da nação a

permanência de um imaginário nativista local que apresentasse a restauração como o mito fundador de

279 Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, op. cit., p. 517. 280 Evaldo Cabral de Mello, O Norte agrário e o Império (1871-1889), 2 ed., Rio de Janeiro, Topbooks, 1999, p. 20-21. 281 Conferir: Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1854, seção XXIX. Segundo Evaldo Cabral de Mello, ao governo nassoviano, Varnhagen dedica três ou quatro páginas de síntese das realizações arquitetônicas, administrativas e culturais, referindo-se também à liberdade de comércio. Evaldo Cabral de Mello, Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana, op. cit., p. 325. 282 Ibidem, ibidem.

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uma tradição autonomista da província de Pernambuco – perpassando episódios como a expulsão dos

holandeses, a guerra dos mascates, a revolução de 1817, a Confederação do Equador e a Revolta

Praieira. Estes movimentos revoltosos, na sua opinião, significariam a fissura da unidade territorial e

política do Brasil colonial e imperial. Portanto, não deveriam ser lembrados e, muitos menos, celebrados.

Neste sentido, Varnhagen não fugiu aos juízos traçados acerca dos demais movimentos

políticos e sociais que eclodiram desde os tempos coloniais até o fim das rebeliões regenciais. Para estes

movimentos a sentença era a repressão e punição exemplar. Os levantes dos Mascates, dos Emboabas,

do Maneta na Bahia, e de certa forma a Conjuração Mineira, entre outros, indicavam tão somente

ambições pessoais e conflitos de interesses. Por temer o avanço das tendências socialistas e

principalmente a eclosão de cenas de horror como os ocorridos na ilha de São Domingos, Varnhagen

rogava aos céus o malogro da Conjuração Baiana.283

No caso da Conjuração Mineira, apesar de reconhecer seus méritos como uma causa

patriótica em seus propósitos, ele não deixaria de defender a manutenção da ordem colonial, punindo os

conjurados. O seu êxito poderia significar a contaminação pelos ideais republicanos dos norte-americanos

e a fragmentação da unidade política:

E suppondo ainda que no fim de uma encarniçada guerra civil, que ja por si só

seria um flagelo, nem que mandado pela Providencia por castigo, suppondo,

dizemos, que no fim dessa diuturna guerra, triumphasse a revolução, estaria hoje

o Brazil em melhor estado? Essa pequena republica, encravada no meio do

magestoso imperio de Santa Cruz não sido um mal? Não teria alguma nação

poderosa procurado um pretexto de guerra para buscar ter nesse territorio uma

Guiana? Não teria ainda nelle tambem outra Guiana o proprio Portugal?

Curvemos a cabeça ao decreto da Providencia, que á custa do proprio sangue

dos martyres do patriotismo, veiu a conduzir-nos á unica situação, em que

podemos, sem novos ensaios, procurar ser felizes, e fazer-nos respeitar, como

nação um pouco mais forte que todas essas, que, pelo engodo de se chamarem

republicas em vez de províncias, tem com isso, por pequenas, menos

283 De acordo com o quadro de atitudes de Varnhagen em relação a movimentos políticos e sociais elaborado por Arno Wehling, com exceção da revolta de Beckman (avaliação positiva) e da Conjuração Mineira (avaliação ambígua), Varnhagen apresentaria uma visão desfavorável das demais. Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 185.

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consideração entre os estranhos, e por fim menos liberdade, governadas de

ordinario por dictadores ou nullidades, ás vezes sem educação...284

O seu oficialismo, como observou Arno Wehling, era favorável a tudo aquilo que

representasse o status quo, entendido como equilíbrio do sistema colonial, manutenção da unidade e

controle sobre a “plebe desordeira e demagógica”.285 O que fugia a este enredo pré-estabelecido deveria

ser perseguido, preso, condenado e executado a serviço da viabilidade do Brasil nação, ao menos aquela

esboçada nas páginas da sua Historia geral do Brazil.

O destino do Brasil na trama desenhada por Varnhagen estava traçado pela ação dos

herdeiros da casa dos Bragança. A independência do Brasil seria fruto da decisão da família real e das

contingências de um Portugal invadido pelas tropas napoleônicas. 1822 seria a transmissão de um legado,

de uma herança e não necessariamente uma ruptura, embora significasse uma mudança do tempo da

colônia para o tempo da nação.286 Em nome deste novo fato – a independência – o passado deveria ser

reorganizado e interpretado não mais como parte do Império português, mas do nascimento político do

Brasil – um império nos trópicos, rodeados de pequenas repúblicas.287

3.6. Continuidades: A Independência do Brasil288____________________________________________

Ao entender o passado colonial como o lugar de nascimento da nação brasileira, o

visconde de Porto Seguro reordenou os seus enredos e sujeitos a partir da lógica de que a independência

seria um fim pré-estabelecido. O desfecho da história já era conhecido muito antes do início da escrita da

trama. A nação era a verdade esperada e projetada pela sua narrativa. Não haveria quebras ou

descontinuidades na linha interpretativa e temporal da Historia geral do Brazil. O processo de

284 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1857, p. 281. 285 Ibidem, p. 184. 286 Valdei Lopes de Araujo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), op.cit., p. 20. 287 Segundo Manuel Luiz Salgado Guimarães, na medida em que Estado, Monarquia e Nação configuram uma totalidade para a discussão do problema nacional brasileiro, externamente define-se o “outro” desta Nação a partir do critério político das diferenças quanto às formas de organização do Estado. Assim, os grandes inimigos externos do Brasil serão as repúblicas latino-americanas, corporificando a forma republicana de governo, ao mesmo tempo, a representação da barbárie. Manoel Luiz Salgado Guimarães, Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional, Estudos Históricos, op. cit., p. 07. 288 As seções finais da Historia geral do Brazil foram retiradas pelo autor quando da publicação da 2ª edição, em 1877, pois estes haviam sido incorporados a uma obra dedicada ao tema da história da independência, publicado postumamente em 1917.

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independência não era necessariamente um acidente de percurso, mas uma passagem ou uma ponte que

ligava o passado (colônia) com o presente (nação) do Brasil.

O passado colonial devia estar no presente nacional. Em nome deste princípio, desta

essência, Varnhagen inventou uma narrativa continuum para a história do Brasil. Para Rogério Forastieri

da Silva, na historiografia da nação criada pela geração do historiador sorocabano havia que se buscar no

passado o presente da nação. Assim, a história tenderia a se constituir como uma biografia da nação:

Na tentativa de construir esta biografia, procura-se juntar elementos, eventos,

sinais que sirvam de “testemunho” e justifiquem a nacionalidade nascente. A

constituição dessa biografia é uma tarefa de gerações, de tal forma que ao

passar o tempo, à força da constante repetição desde as primeiras letras até os

bancos da universidade, com graus variados de acuidade e sofisticação, forjam-

se determinados estereótipos, determinados temas que passam a ter um peso

suficientemente marcante para dar consistência a um corpo que há pouco não

existia.

Aos poucos passa-se de hipóteses, de hipóteses, de suposições a afirmações, e

a colônia é posta como um antecedente da nação. Constroem-se histórias

nacionais e uma “história geral” passa por um somatório dessas histórias

nacionais. A partir desta perspectiva a época colonial perde sua historicidade e

passa ser um “momento” da história nacional, e essa, por sua vez, pelo fato

mesmo de apresentar-se como “nacional”, unifica, homogeneíza, seleciona

eventos supondo sempre uma direção unívoca, em que, mais uma vez, em nome

da “história nacional” elide-se a própria história.289

Com o intuído de fazer o desvendamento do processo de gênese da nação,290 Varnhagen

e seus pares no IHGB atuaram de forma intensa na atividade de colligir, methodizar, publicar e archivar

documentos que ajudassem a construir uma história geral do Brasil, tomando o passado colonial como o

locus privilegiado para o nascimento da jovem nação. Segundo François Hartog, para os historiadores

franceses do século XIX, à semelhança de Varnhagen no Brasil,

289 Rogério Forastieri da Silva, Colônia e Nativismo. A História como “biografia da nação”, op. cit., p. 13-14. 290 Manoel Luiz Salgado Guimarães, Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional, Estudos Históricos, op. cit., p. 06.

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a nação é (...) ao mesmo tempo uma evidência, uma arma política, um esquema

cognitivo e um programa histórico. (...) Ao longo de todo o século, os

historiadores tentaram entender este momento fundador, e, portanto, inscrevê-lo

e dar-lhe sentido no longo percurso da história da França 291

A identidade ou caráter nacional seria para os artífices da história do Brasil no século XIX

entendida e representada como primordial. Os elementos essenciais da nacionalidade, como observou

Stuart Hall, seriam imutáveis para homens como Varnhagen. A essência do ser brasileiro estava lá – no

passado mítico – desde a sua origem primeira, unificado, continuo e eterno.292 Em todo lugar, tempo, fato e

sujeitos possíveis, era vislumbrada esta essência nacional em estado de latência sendo gestada, até seu

amadurecimento.

Neste sentido, 1822 seria o momento da árvore da nação de Varnhagen florescer e dar

seus frutos. O historiador-jardineiro Varnhagen elegeria aquela data como a melhor época para fazer a

colheita, depois de 322 anos de espera e preparação. Em outras palavras, o filho (D. Pedro ou a colônia)

estava preparado para se emancipar do pai (D. João VI ou a metrópole).

Para Varnahgen, a obra colonial estava completa e a nação emergia, saia do casulo. Era

um nascimento que trazia no seu corpo, sangue e espírito o legado de uma paternidade – a origem

portuguesa. O estabelecimento de uma monarquia constitucional nos trópicos, governada por um herdeiro

natural da casa dos Bragança, confirmava o discurso da continuidade – da emergência do Brasil como um

legado da Coroa portuguesa, de um processo iniciado pelo monarca pai D. João VI (1767-1826) e

concretizado pelo regente filho D. Pedro (1798-1834), o primeiro imperador do Brasil. 293

Esta monarquia constitucional seria a responsável – de acordo com a interpretação de

Varnhagen – pela promoção do progresso, a manutenção da ordem, a preservação da unidade territorial e

a defesa do projeto civilizacional europeu. Segundo Manoel Luiz Salgado Guimarães,

Num processo muito próprio ao caso brasileiro, a construção da idéia de Nação

não se assenta sobre uma oposição à antiga metrópole portuguesa; muito ao

291 François Hartog, O século XIX e a história: o caso Fustel de Coulanges, op. cit. p. 24. 292 Conferir: Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, op. cit., p. 53. 293 Segundo Michel Foucault, este tipo de narrativa histórica serviria para fortalecer o poder do soberano. Ela seria uma espécie de ritual do poder: mostra que o que os soberanos e os reis fazem jamais é vão, jamais inútil ou pequeno, jamais abaixo da dignidade da narrativa. Tudo quanto eles fazem pode e merece ser dito e é preciso guardar perpetuamente sua lembrança, o que significa que do menor feito e gesto de um rei se pode, e se deve, fazer uma ação brilhante e uma façanha; e, ao mesmo tempo, inscreve-se cada uma de suas decisões como uma espécie de lei para seus súditos e de obrigação para seus sucessores. Michel Foucault, Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976) [Aula de 28 de janeiro de 1976], op. cit., p. 77-78.

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contrário, a nova Nação brasileira se reconhece enquanto continuadora de uma

certa tarefa civilizadora iniciada pela colonização portuguesa. Nação, Estado e

Coroa aparecem enquanto uma unidade no interior da discussão historiográfica

relativa ao problema nacional.294

A defesa deste projeto de escrita da história do Brasil, apresentado nas páginas da

Historia geral do Brazil, foi explicitada pelo próprio visconde de Porto Seguro em correspondência ao

imperador D. Pedro II. Nesta carta, os fundamentos definidores da identidade da nação como um legado

da colonização européia no Brasil seriam apresentados de forma clara e direta:

Em geral busquei inspirações de patriotismo sem ser no ódio a Portuguezes, ou

à extrangeira Europa, que nos beneficia com illustração; tratei de pôr um dique a

tanta declamação e servilismo à democracia; e procurei ir disciplinando

productivamente certas idéas soltas de nacionalidade; préguei quanto pude, a

par da tolerancia, a unidade (...)295

Na mesma correspondência, Varnhagen confidenciava ao imperador o compromisso de

sua atividade intelectual com a construção de um projeto de unidade nacional dentro dos moldes propostos

pelos saquaremas. Esta obsessão de unidade não estava restrita apenas a sua Historia geral do Brazil,

mas também em escritos como o seu florilégio. Nesta obra, lembrava ao monarca,

escrevia biographias de Brazileiros de todas as provincias era para ir assim

enfeixando-as todas e fazendo bater os corações dos de umas provincias em

favor dos das outras, infiltrando a todos nobres sentimentos de patriotismo de

nação, único sentimento que é capaz de desterrar o provincialismo excessivo, do

mesmo modo que desterra o egoismo, levando-nos a morrer pela pátria ou pelo

soberano que personifica seus interesses, sua honra e sua glória.296

294 Manoel Luiz Salgado Guimarães, Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional, Estudos Históricos, op. cit., p. 06. 295 Carta ao imperador D. Pedro II, 14 de julho de 1857, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 247. 296 Ibidem, p. 246.

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Os propósitos de Varnhagen se coadunavam com as finalidades do IHGB expressas pelo

discurso do secretário Januário da Cunha Barboza, na medida em que ambos desejavam a consolidação

da unidade da nação por intermédio da tarefa historiadora de documentar e forjar uma memória para o

Império brasileiro, superando as mazelas dos tempos das regências. Esta tarefa só seria possível por meio

do acompanhamento da marcha da nossa gloriosa Independencia de monumentos historicos e

geograficos.297

Neste relatório de novembro 1840, Januário da Cunha Barboza, de certa forma, anunciava

o caminho que deveria ser seguido tempos depois por Varnhagen, ao escrever a sua Historia geral do

Brazil, traçando uma relação intrínseca entre 1500 e 1822:

A nossa Historia necessitava de uma luz que a fizesse sahir do obscuro cahos,

em que a lançarão os dyscolos, ou apaixonados inimigos da nossa gloria; e ella

foi accendida no dia 21 de Outubro de 1838. Esta luz, apparecendo nutrida pelos

desvelos de uma Associação de Litteratos, como os que já formão o respeitavel

corpo do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, deve projectar seus

reflexos não só á mais remota posteridade, como também sobre os factos, que

enchem o largo periodo de 322 annos, que começando da feliz descoberta de

Pedro Alvares Cabral, terminou com a proclamação da nossa gloriosa

Independencia, desprendida nas margens do Ypiranga dos labios do Senhor D.

Pedro I, Immortal Fundador do nosso Império, e acolhida com electrica

celeridade pr todos os filhos da Terra de Sancta Cruz, em cujos corações

Independencia, Throno, e Liberdade Constitucional são fibras indispensaveis ás

funcções de sua existencia política.298

A experiência do tempo transformada, sentida e vivida pela geração de Varnhagen, a partir

do episódio da independência, não se traduziu, em última análise, em ruptura, mas sim em fabricação de

uma história pautada pela idéia de unidade e continuidade,

explicitas na metáfora do fio, que constituem um campo de experiência diferente

da galeria de exemplos isolados. Paralelamente, as demandas por imitação do

297 Januário da Cunha Barboza, Relatório do Secretario Perpetuo na Segunda Sessão Publica Anniversaria, do dia 27 de novembro de 1840. RIHGB, , Rio de Janeiro, tomo 02 (Supplemento), 1840, p. 14. 298 Ibidem, ibidem.

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passado e dos efetivos virtuosos perdem o caráter de repetição para assumir a

dimensão da experiência. Esse conceito assume uma função central no

relacionamento dos homens com a história. Não se trata aqui de conhecer um

repertório limitado de situações e, a partir desse conhecimento, saber como se

comportar quando de seu retorno, mas de acrescentar e acumular experiências

produzidas no passado que devem garantir a superioridade do presente e do

futuro.299

O passado colonial pela experiência da independência tornava-se o lugar do tempo da

formação da nacionalidade brasileira.300 A história, para esta elite letrada em torno do IHGB, era um

importante instrumento político e sua escrita envolvia escolhas pautadas por jogos de interesses. A este

grupo de homens letrados e também, em sua maioria, funcionários do Estado era incumbida a tarefa de

fazer uma história que atendesse aos fins do reinado de D. Pedro II: o símbolo do presente do Brasil.301

O próprio Varnhagen deixou evidente a importância do conhecimento da história para o

governo ao analisar as escolhas feitas pelo regente D. João de seus ministros de Estado no contexto da

vinda da família real para o Brasil:

D. Rodrigo, logo conde de Linhares, seguiu com a pasta dos negocios da guerra

e estrangeiros. A da fazenda e interior (negocios do Brazil), foi confiada a D.

Fernando José de Portugal. logo marquez de Aguiar, que de todos os fidalgos

que estavam com elrei era o que melhor devia conhecer o Brazil, pelos annos

que fôra governador da Bahia e vice-rei do Rio de Janeiro. Esta escolha nos

evidencêa não só a intenção do regente de occupar-se principalmente do Brazil,

como a sua prudencia em querer mais conhecer o passado para corrigil-o e

melhoral-o, que impôr ao paiz uma subita importação de instituições estranhas a

elle, as quaes de ordinário radicam mal, se é que já em tempos anteriores não

revele a propria historia colonial que foram improficuamente ensaiadas. E’ assim

que os estudos acerca do passado de uma nação nunca são inuteis para o

governo della, como muitos politicos improvisados querem desdenhosamente

inculcar, para não dar importância ao que não aprenderam, e que alias devera

299 Valdei Lopes de Araujo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), op. cit., p. 154. 300 Ibidem, p. 155. 301 Manoel Luiz Salgado Guimarães, Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional, Estudos Históricos, op. cit., p. 10.

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nas universidades ensinar-se com o direito administrativo, até porque as glorias

communs da mesma historia suscitam mais sympathias mutuas e por

conseguinte das vicissitudes por que passou o paiz, quer como colonia

dependente, quer como estado sujeito, quer finalmente como nação livre, é

essencial ao estadista que pretende governar com prudencia e emprehender

reformas de boa fé. – Para edificar solidamente necessita o architecto conhecer

o terreno; se já alguma vez desabou, se ha nelle ruinas, cujas pedras e alicerces

possam aproveitar-se; se tem matos que se devam cortar, utilizando-se as

madeiras, etc.302

O período joanino no Brasil teria uma avaliação favorável por parte de Varnhagen. Na sua

Historia geral do Brazil, a atuação do rei D. João VI e de seus ministros criariam as condições para o

estabelecimento do Brasil como futura nação independente. D. João VI abriria uma nova página para um

império em processo de constituição. A abertura dos portos às nações amigas, as medidas de incentivo à

economia, a elevação do Brasil a Reino Unido, as obras urbanas e o estímulo à cultura foram os

ingredientes que, na sua leitura, habilitaram a colônia a ser uma nação independente. Além disso,

considerou eficiente estratégia de integração a eleição do Rio de Janeiro como capital e sede do governo.

A academia de marinha, a de artilheria e fortificação, o archivo militar, a

typographia regia, a fabrica da polvora, o jardim botanico (por meio do qual se

propagaram, entre outras plantas da Asia, as do chá, graças ás primeiras

remettidas de Macáu pelo dezambargador Arriaga), o novo theatro (antes só

existia o de S. Januario), a bibliotheca nacional, dada generosamente pelo

proprio principe, e aberta ao publico em 1814, e por fim a academia de bellas

artes, o banco e os estabelecimentos ferriferos do Ipanema são instituições mais

que sufficientes para que, para todo o sempre, o Brazil bemdiga a memória do

governo de D. João.303

Para o visconde de Porto Seguro, em razão de sua administração, o avô paterno de D.

Pedro II era, se não o primeiro imperador, ao menos o “verdadeiro fundador do imperio” do Brasil. Ele

lançaria os alicerces da obra em que seu filho e neto iriam depois levantar a casa da nação. A pretensão

302 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1857, p. 313-314. 303 Ibidem, p. 317. Conferir também as seções XLVIII, XLIX, L, LI, LII, LIII, LIV e LV.

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de construir o Império do Brasil era documentada por Varnhagen com o manifesto de guerra à França feito

por D. João, em 1º de maio de 1808. Nesta declaração teria o regente afirmado que no Brasil iria crear um

novo imperio.304

Entretanto, o governo de D. João VI não foi isento de críticas por parte de Varnhagen. Ele

fez severas restrições ao ministro dos negócios D. Fernando José de Portugal (1752-1817), o marquês de

Aguiar, por ter cometido erros inadmissíveis para a sua função, especialmente tendo conhecida

experiência administrativa como governador da Bahia e vice-rei do Rio de Janeiro:

Infelizmente porem o márquez de Aguiar, alias prudente, integro e sensato, com

todos os seus annos de mando no Brazil, desconhecia o paiz em geral, era

pouco instruido, e sobretudo nada tinha de grande pensador original, para ser o

estadista da fundação do novo imperio. Minguado de faculdades creadoras, para

sacar da propria mente e da meditação fecunda as providencias que as

necessidades do paiz fossem dictando, o marquez de Aguiar parece ter

começado por consultar o almanack de Lisboa, e á vista delle ter-se proposto a

satisfazer a grande commissão que o principe lhe delegára, (...)305

D. João era descrito como o Enéas do nosso império, assumindo o papel de protagonista

das tramas varnhagenianas para narrar a ante-sala da independência do Brasil. Ele era tido, pelo discurso

moralista do visconde de Porto Seguro, como bom filho, pai e rei por conta do seu fervor religioso. Era

apresentado como perfeito modelo de um soberano amante do povo:

D. João era naturalmente bom, religioso e justo. A historia de Portugal lhe

chama por antomasia o Clemente; e o carinho e delicadeza com que se occupou

da augusta-mãi enferma, e o não querer cingir-se a corôa real, pelo alias facil

meio de uma abdicação que podia insinuar, nos evidencêa como foi bom filho. –

Sua devoção e animo religioso eram tão reconhecidos que não faltou quem

chegasse a calumnial-o de supersticioso. (...) De seu espirito de justiça e

rectidão temos exemplos patentes no modo como recompensou tantos dos seus

bons servidores, e nós pessoalmente recolhemos outros dos papeis originaes de

muitos expedientes de negocios desse tempo no Brazil, que vimos, e em cujas

304 Ibidem, p. 315. 305 Ibidem, p. 316.

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329

margens encontrámos de sua propria lettra notas sufficientes para comprovar

que o principe tinha no coração gravado sentimento de que a verdadeira missão

dos reis e observar a lei e administrar justiça á grei.306

Ao construir o perfil de D. João VI, Varnhagen procurava por intermédio de um discurso

moralista e conservador estabelecer um modelo de governo e também uma interpretação sobre o processo

de emancipação. O bom governo de D. João VI não estava apenas no seu perfil de homem bom, mas sim

na sua capacidade de manter a unidade entre as partes constituintes do Brasil e de estabelecer a ordem

sufocando as insurreições locais. Para o visconde de Porto Seguro, a prova da habilidade de governar com

a ordem e o progresso de D. João VI foi a sua atuação no combate à Revolução Pernambucana de 1817.

No seu tribunal da história, o rei era ascendido à condição de herói no panteão nacional

por evitar a fragmentação da futura nação, enfrentando a insurreição. Os revoltosos, contaminados por

posições ultraliberais, ideais enciclopedistas e boataria sobre os excessos praticados no Rio de Janeiro,

seriam no mesmo tribunal varnhageniano condenados por cravarem entre as monumentais seções da sua

Historia geral Brazil, dedicadas aos feitos do benefico Sr. D. João, uma pouca simpática sobre a Revolução

Pernambucana de 1817.307 A partir da análise da sua postura judiciosa, Martha Victor Vieira observou que

O discurso da imparcialidade, condizendo com a cultura historiográfica do

período, ajudou a conferir legitimidade para a narrativa de Varnhagen que,

agindo como um árbitro, não raro, emitia o seu veredicto condenando a ambição

daqueles que movidos por interesses pessoais e vingança atentavam contra os

interesses da Pátria.

Sua intenção era escrever uma história nacional que primasse pela verdade. Seu

envolvimento com a Coroa, porém, parecia ser maior que seu compromisso com

a ciência, por isso censurou alguns episódios considerados descabidos e

injustos. Afinal, acreditava que tinha a responsabilidade de servir a ideais

civilizadores, a fim de colaborar para o desenvolvimento da nação emergente.308

No estabelecimento de uma narrativa condenatória dos eventos em Pernambuco,

corroborando o retrato desenhado acima, Varnhagen convidou o leitor a ajudá-lo na confirmação do seu

306 Ibidem, p. 314-315. 307 Ibidem, seção LIV. 308 Martha Victor Vieira, Varnhagen: um intelectual monarquista, Revista Intellectus, Rio de Janeiro, ano 05, vol. II, 2006, p. 02.

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juízo de que aquela revolução, assim como as outras dos tempos coloniais e as que eclodiriam no período

das regências, seria sem motivo. Por entender que o Brasil ali já seria uma totalidade, não caberiam

fissuras ou rivalidades entre as partes. Na sua leitura, a colônia, desfrutando da condição de Reino do

Brasil, seguiria o caminho natural e hereditário da emancipação, sem a necessidade daquela revolta.

Ao sensato leitor brazileiro que tenha reflectido no estado próspero do Brazil, que

se collige de quanto fica referido nas precedentes secções, deixamos que sinta e

decida em consciencia se lhe parece que haveria motivos para que, em alguma

extensão maior do Brazil, se intentasse uma revolução contra o benefico Sr. D.

João, e contra a integridade do seu predilecto reino de novo creado, -- então

verdadeiramente centro e cabeça de um grande imperio, maior que os dois

romanos, que estendia seu poder, na actual Oceania, ás ilhas de Solor e Timor;

na Ásia, aos estados de India portugueza e á feitoria de Macau; em Africa, aos

terrenos de Moçambique de dependencias, ao reino de Angola, e ás ilhas de S.

Thomé e de Cabo Verde, e na Europa, ao reino de Portugal, com ilhas

adjacentes de Madeira e Açores, -- se é que estas e sobre tudo aquella se

devem considerar como da Europa.309

O destino do Brasil como nação, segundo Varnhagen, não estava em datas como 1817 e

muito menos 1789. A integridade do Império era resultado de outra data: 1808, ano da vinda da família real

para o Brasil. A madureza da independencia procederia da carta regia sobre o franqueo dos portos, e por

conseguinte ao mez de janeiro de 1808, e que, portanto, com base na sua retórica da continuidade, com

mais glória para o Brazil, que dest’arte remonta a sua emancipação colonial da Europa a uma epoca

anterior á de todas as republicas continentaes hispano-americanas.310

A Revolução Pernambucana de 1817 seria uma tragédia para o monarquista Varnhagen,

pois significaria a emergência de uma república dentro do integro império luso-brasileiro. Como toda

ameaça republicana que pairava no ar no passado e no presente, ela era objeto do ataque voraz de sua

pena nas páginas da Historia geral do Brazil e de outros escritos, celebrando a retomada pelas tropas da

ordem real e os julgamentos dos revoltosos. Segundo Arno Wehling, em nome do discurso da

centralização política e da unidade territorial do Império, Varnhagen construiu sua narrativa do passado

309 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1857, p. 373. 310 Ibidem, p. 375.

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colonial e do processo da emancipação marcada pela celebração de determinados fatos e personagens e

silenciamento ou desvalorização de outros, que poderiam permitir o aparecimento de versões diversas.311

As revoltas com aspirações republicanas contra a ordem colonial seriam para o visconde

de Porto Seguro uma selvageria, recebendo adjetivações sempre negativas. Eram marcas de um

provincialismo interesseiro que se deveria deixar de lado, pois – repetia em tom de conselho e advertência:

todas as províncias tambem sabem que nos povos mui faceis são as

separações, ao passo que muito custam a effectuar-se novas uniões. E senão

que o digam os vãos esforços dos povos da Allemanha e da Italia para

reorganisar uma nova Germânia ou um só estado ítalo. (...) Ao provincialismo

associam-se apenas idêas de interesse provinciaes, quando principalmente as

da gloria andam annexas ao patriotismo, sentimento tão sublime que faz até

desaparecer no homem o egoismo, levando-o a expôr a propria vida pela patria,

ou pelo soberano que personifica o seu lustre e a sua glória.312

Na História geral do Brasil e na História da Independência do Brasil,313 a última só

publicada postumamente, Varnhagen traçaria os fios das tramas da independência a partir de três ações

decisivas de D. João VI para a formação de uma nação brasileira: 1) a vinda da família real em 1808,

transferindo a sede do imperio português para os trópicos; 2) a elevação da colônia à categoria de Reino,

em 1815, agregando as diferentes partes num único corpo político e territorial; 3) a opção do rei D. D. João

VI em regressar para Portugal, atendendo às pressões das Cortes, mas deixando D. Pedro como príncipe

regente. 314

Ao apresentar esta interpretação do processo de independência do Brasil, Varnhagen

descreveu os acontecimentos que conduziram ao episódio de 07 de setembro de 1822, às margens do

riacho do Ipiranga, como resultantes do protagonismo de personagens da família real, em especial o pai-

monarca D. João VI e o filho-regente D. Pedro. O fiel súdito da casa dos Bragança oferecia, portanto, ao

seu soberano uma narrativa da nação que legitimasse o governo monárquico e a sua sucessão. É nítido o

permanente uso por parte do historiador-diplomata, em diferentes situações, da idéia de legado ou herança

311 Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 34-35. 312 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1857, p. 392. 313 Conferir: Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia da Independencia do Brasil, até ao reconhecimento pela antiga metrópole, comprehendendo, separadamente, a dos sucessos occorridos em algumas províncias até essa data, RIHGB, Rio de Janeiro, n. 79, 1916. 314 Martha Victor Vieira, Varnhagen: um intelectual monarquista, Revista Intellectus, op. cit., 2006, p. 03.

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como importante estratégia discursiva de legitimidade do mundo que ele vivia e ajudava a transformar em

uma metanarrativa identitária inquestionável.315

Segundo Wilma Peres Costa, a interpretação elaborada por Varnhagen para a formação

do Brasil como corpo político autônomo, além de enfatizar as continuidades entre a colônia e a nação,

atribuiu a essas conotações marcadamente positivas:

valorizava-se com ela a obra civilizadora da monarquia portuguesa e seu papel

na construção da nação. O Brasil Independente, colônia que amadureceu para

se tornar nação sob a égide benevolente da mão pátria, expressava, em

Varnhagen, a vitória da civilização européia sobre a barbárie autóctone.

A obra máxima do engenho fora a apropriação e consolidação de um território,

legado intacto à nova nação.316

Dessa maneira, Varnhagen soterrou pelo discurso unificador e hegemônico do ser

brasileiro – daquele que aderia à causa do Brasil – diferentes identidades que tinham se forjado na colônia.

Para István Jancsó e João Paulo Garrido Pimenta, no final do século XVIII e início do XIX não existiam

brasileiros, nenhuma identidade política coletiva ultrapassando o regional, o que havia eram identidades

variadas que apresentavam três diferenças básicas – a regional, a americana e a portuguesa:

Na verdade, isso não é de surpreender. A força coesiva do conjunto luso-

americano era indiscutivelmente a Metrópole, e o continente do Brasil

representava, para os colonos, pouco mais que uma abstração, enquanto para a

Metrópole se tratava de algo muito concreto, a unidade cujo manejo impunha

esta percepção. É por isso que é correto afirmar que “a apreensão de conjunto

das partes a que ‘genericamente’ se chamou de Brasil” estava “no interior da

burocracia estatal portuguesa”. 317

315 Para uma crítica sobre as mitologias constituintes da identidade nacional brasileira, conferir: Edgar Salvadori de Decca, Cidadão, mostre-me a identidade!, Cadernos Cedes, Campinas, vol. 22, n. 58, dez. 2002, p. 07-20. 316 Wilma Peres Costa, A Independência na historiografia brasileira, in: István Jancsó (org.), Independência: história e historiografia, São Paulo, Hucitec; FAPESP, 2005, p. 58. 317 István Jancsó e João Paulo Garrido Pimenta, Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira), in: Carlos Guilherme Mota (org.), Viagem incompleta: a experiência brasileira, vol. I, São Paulo, Ed. SENAC; SESC, 2000, p. 140. Conferir: István Jancsó, Independência, independências, in: István Jancsó (org.), Independência: história e historiografia, op. cit., p. 17-48

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A idéia de totalidade desejada pelos escritos do visconde de Porto Seguro precisava cobrir

como se fosse o manto real o mosaico das identidades que coexistiam no Brasil. E seria a partir da

imagem da monarquia que inventaria uma identidade para a jovem nação. A exaltação de D. Pedro I seria

uma forma de lembrar o seu descendente, D. Pedro II. Nesta perspectiva, o historiador não fugia aos

compromissos do IHGB com o seu mecenas.318

A figura do regente D. Pedro, nas páginas da Historia geral do Brazil, emergiria como o

grande herói da independência, superando em espaço e elogios a personagem de José Bonifácio de

Andrade e Silva (1763-1838), conhecido como o Patriarca da Independência. Varnhagen seria o

representante de uma rede historiográfica anti-patriaca, apresentando José Bonifácio com ambigüidade e

reservas. A sua dessacralização era uma tarefa não apenas política e ideológica, mas também uma

questão de família, uma vez que José Bonifácio havia ofendido o pai de Varnhagen na época da fundição

de Ipanema, em Sorocaba. Não seria por mero acaso que a Historia geral do Brazil teria uma seção inteira

dedicada à reabilitação da memória do tenente-coronel Frederico Luiz Guilherme de Varnhagen (1783-

1842) – seu pai,319 enquanto o patriarca era lembrado em uma nota quase no fim do tomo II.320

As providencias das Cortes de Lisboa, após a revolução constitucional de 1820, desejando

submetter o Brazil ao antigo estado de colonia e a não submissão do próprio herdeiro da Coroa a esta

ordem foram alguns dos elementos apontados por Varnhagen que aceleram o processo natural de

emancipação. Tomado por sentimento de indignação, como se quisesse com suas próprias mãos fazer

justiça, o autor da Historia geral do Brazil teceu severos ataques às decisões das Cortes,

responsabilizadas pela forma como se deu a separação entre Brasil e Portugal:

Estava ja lançado o pomo da discordia; mas, como se as côrtes não quizessem

que de forma alguma se questionasse a todo o tempo a procedencia delle, não

parou nas suas providencias de oppressão. Para si haviam sido liberaes: haviam

abolido a inquizição, proclamado a imprensa livre, a negação do veto e dos

privilegios ecclesiasticos e seculares; e eis que começam, sem esperar ao

menos a reunião dos deputados do Brazil, a legislar contra este estado; isto

318 Conferir: Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, op. cit. 319 Conferir: Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1857, seção LIII. 320 Segundo Temístocles Américo Cezar, o pai e o patriarca são personagens em tramas urdidas pela pena de Varnhagen. Nos dois casos estão expressos os limites da imparcialidade de um historiador, questão, segundo Hannah Arendt, decisiva no século XIX para toda historiografia que procurava se afastar da poesia e da lenda, e que, no entanto, era difícil de se reconhecer. Temístocles Américo Cezar, Em nome do pai, mas não do patriarca: ensaio sobre os limites da imparcialidade na obra de Varnhagen, História, São Paulo, vol. 24, n. 02, 2005, p. 207.

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quando a provincia e côrte do Rio de Janeiro soffria dolorosamente pela falta de

subsidios e falencia do banco; e quando o principe regente escrevia do Rio a seu

augusto pae, lastimando sua situação e falta de meios, para accudir ás despesas

da sua côrte, sem outras mais rendas que as da provincia, e pedindo-lhe

inclusivamente que não compromettesse a dignidade de seu filho, que tambem

era a sua.321

De sua sentença condenatória, Varnhagen inocentaria a figura de D. João VI, visto que

elrei amava muito o Brazil, e via-se nelle bastante querido.322 Caberia na sua narrativa a D. Pedro, príncipe

herdeiro, concretizar a missão iniciada pelo pai monarca. A partir do regresso da família real e das

pressões das Cortes, D. Pedro seria o protagonista do processo de independência, sendo aclamado –

inclusive pelo próprio visconde de Porto Seguro – como aquele que evitaria o regresso do Brasil à condição

de colônia. O príncipe regente, como já foi observado, superaria o próprio patriarca José Bonifácio, que

para o historiador sorocabano não seria uma figura que estava acima da história. Ele não faria jus ao título

de patriarca e de herói.323

Diante das ameaças das Cortes, os levantes nas diferentes partes do Reino e os

confrontos entre brasileiros e realistas, o D. Pedro descrito por Varnhagen se sobressairia como liderança

e única via de se preservar a integridade do Brasil, evitando o caos vivenciado pelas ex-colônias

espanholas tomadas pela onda republicana.324 A opção por ficar no Brasil era tida como a mais acertada

para o bem da futura nação, uma vez que para o historiador monarquista, num tom providencialista,

significava a manutenção da casa reinante, da ordem e da unidade:

Não faltaram Portuguezes que vissem nesta resolução do principe

desobediencia, deslealdade e até traição; entre tanto é certo que elle não fez

mais que seguir os impulsos da prudencia, e a recommendação de seu proprio

pai antes de partir para a Europa. A agitação no Brazil não podia ser maior.

Abandonar nesta conjunctura aos furores das tempestades politicas a terra que o

321 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1857, p. 417. 322 Ibidem, p. 399. 323 Juízos mais severos à figura de José Bonifácio podem ser identificados na sua Historia da Independencia do Brasil, até ao reconhecimento pela antiga metrópole, comprehendendo, separadamente, a dos sucessos occorridos em algumas províncias até essa data, op. cit., p. 139-140. 324 Para Martha Victor Vieira, no discurso varnhageniano a política das Cortes teve uma positividade porque fez as provinciais se unirem em prol da separação, o que favoreceu a unidade. Esse aspecto da narrativa nos parece bastante pertinente, na medida em que ele argumenta que a união do “Brasil num só Estado”, congregando, de norte a sul, provinciais tão distantes entre si, foi beneficiada pela oposição às atitudes das Cortes. Martha Victor Vieira, Varnhagen: um intelectual monarquista, Revista Intellectus, op. cit., p. 07.

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hospedára e a seu pai, no momento do perigo, deixar entregue aos horrores da

anarchia a patria dos seus filhos, a joia mais preciosa da corôa que por direito de

successão lhe devia um dia caber, fôra mais que deslealdade a seu pai, fôra

ingratidão ao paiz acolhedor, fôra um crime ante a humanidade. O principe

seguiu o partido que devia seguir; mas esta generosa resolução era ja um

primeiro acto de rebeldia aos decretos das côrtes: tudo o mais que se segue foi

consequencia logica delle.

Toda a philosophia se abisma e calla onde factos tão contradictorios e como

sobrenaturaes, e o historiador confuso ao buscar a explicação das causas e dos

effeitos, se prosterna ante a sábia Providencia que nos havia destinado o

principe D. Pedro para personificar no acto da separação a integridade do

Brazil.325

Embora apresentasse uma diversidade de sujeitos e agentes envolvidos no processo de

independência do Brasil, Varnhagen encaminhou a trama em torno das ações e reações do príncipe

regente. O nascimento da nação era narrado, enfim, como fruto dos eventos políticos coordenados pelas

autoridades do Estado – os grandes personagens tradicionalmente presentes nas páginas dos manuais

escolares e memorizados há tempos pelas crianças e jovens nas aulas de História.326 O Brasil de

Varnhagen, bem como o novo Império nos trópicos, teria sido obra das mãos do D. Pedro I. A sua biografia

se confundiria com a própria história da fundação do Império do Brasil nas páginas da primeira edição da

História geral do Brazil e, posteriormente, da História da Independência do Brasil.327

Para o visconde de Porto Seguro, 7 de setembro era a coroação de um projeto de longa

data, remontando os feitos da dinastia dos Bragança, protetora do Brasil. A independência proclamada por

D. Pedro era o único caminho, pois se assim não procedesse, e elle se separa, por si só se retalha, e se

325 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1857, p. 426-427. 326 Para uma reflexão sobre o papel dos heróis nacionais no ensino da História como parte do projeto de fabricação da identidade nacional brasileira, conferir: Paulo Celso Miceli, O mito do herói nacional, 5 ed., São Paulo, Contexto, 1994; Thais Nivia de Lima e Fonseca, História e Ensino de História, Belo Horizonte, Autêntica, 2003. 327 Segundo Wilma Peres Costa, é relevante observar que “continuidade” enfatizada por Varnhagen decorreu de uma postura política e não do reconhecimento de algo “realmente existente”, pois ele próprio reconhecia que “na época da Independência, a unidade não existia: Bahia e Pernambuco algum tempo marchavam sobre si, e o Maranhão e o Pará obedeciam a Portugal, e a própria província de Minas chegou a estar por meses emancipada”. Wilma Peres Costa, A Independência na historiografia brasileira, in: István Jancsó (org.), Independência: história e historiografia, op. cit., p. 59.

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perde na anarchia.328 O príncipe regente, segundo as transcrições da correspondência com o pai D. João

VI, proclamava a emancipação como resposta a um conselho paterno.329

Esta data de celebração não significava a ruptura, mas a preservação da integridade de

um Brasil uno, ou melhor, que se desejava uno pelo ideal centralizador do qual Varnhagen era porta-voz e

artífice da sua história. A narrativa desta luta pela defesa da unidade territorial e política remontava aos

tempos coloniais em episódios como a fundação do governo geral de Tomé de Souza, as guerras contra os

holandeses, a criação do principado e a vinda da família real:

O Brazil conta ainda hoje, e contará eternamente, o dia 7 DE SETEMBRO, como

o primeiro do anno no kalendario das festividades nacionaes. E com fundamento.

Nesse dia nasceu a nação, renascendo são e salvo o reino que emancipára elrei

D. João VI, o principado que creára D. João IV, o estado que fundára D. João III.

-- Tambem por todas estas razões devêra Portugal festejar este dia, pois de

certo que, sem a resolução tomada em 7 de setembro de 1822, não podéra

regosijar-se de ver hoje tão próspero, e alimentando em grande parte o seu

commercio e marinha mercante, este seu filho, descançando á sombra do solio

brigantino, e seguro, esperamos em Deus, de correr a sorte de outros que... não

foram tão afortunados. O Brazil não deveu a D. Pedro a sua emancipação, que

essa consummada estava desde 1808, e era impossível retroceder, até em vista

do tratado celebrado em 1810 com Inglaterra: deveu-lhe porém a sua

integridade, e deveu-lhe a sua integridade, e deveu-lhe a monarchia, que foi

symbolo de ordem no interior, e de confiança no exterior; e por fim veiu até

dever-lhe a dynastia, pela sua abdicação feito muito a tempo para a poder

salvar.330

Na sua Historia geral do Brazil, o Brasil era um legado transferido entre dinastias. D. Pedro

I havia preservado a integridade da nação e cabia ao filho D. Pedro II consolidar o Império, mantendo a

328 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1857, p. 438. A preocupação em fazer justiça à memória de D. Pedro I era apresentada pelo próprio Varnhagen nas suas cartas ao Imperador D. Pedro II: Era necessário começar por não me constituir adulador, para melhor encaminhar commigo o leitor a crer o que logo depois digo em tópicos mais melindrosos e essenciais à heroicidade. Como chronista poderei ser mais adulador ou panegyrista, como historiador produziria effeitos negativos. Creio que faço justiça ao Sr. D. Pedro 1º. Carta ao imperador D. Pedro II, 14 de julho de 1857, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 247. 329 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1857, p. 433-434. 330 Ibidem, p. 438-439.

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ordem, a unidade e o progresso. Com o primeiro imperador a independência e o imperio ficam

proclamados; e este com bandeira, escudo d’armas, ordens de mérito, laço e hymno nacional.331

E foi a partir deste fato, a proclamação da independência, que Varnhagen encerrou a

historia geral dos primeiros anos do imperio e também o longo percurso trilhado pelo Brasil na sua

formação como nação. Para o autor, o poder esteve sempre com D. Pedro I. Ele havia nascido para

cumprir o destino de herói nacional. A regência, pelas lentes varnhagenianas, teria sido a preparação final

para que o príncipe, pronto para o exercício de governar, assumisse a liderança do Estado imperial

brasileiro.332

Na sua História geral do Brazil, bem como na sua correspondência ao imperador,

Varnhagen deixava transparecer sua preocupação em lidar com questões referentes à história política do

Brasil pós-Independência. Ele temia que era ainda muito cedo para se firmar juízos definitivos sobre fatos e

personagens. Logo, esta era uma tarefa para um futuro ainda indeterminado:

Desejava chegar com a redacção ao anno de 1825 e comprehender a

Constituição, e reconhecimento da Mãe Pátria e o nascimento de V. M. I., mas não

me foi possível. Tão espinhosa é por enquanto a tarefa da imparcial narração

desse período, sobretudo para um nacional. Daqui a poucos annos não o será.333

Ao transcrever na última página do livro-monumento a carta enviada de bordo por D.

Pedro I ao seu filho, Varnhagen a transformava em uma espécie de testamento que delegava ao filho o

futuro de um Império, cuja história ainda estava viva e latente, esperando que fosse escrita:

“Meu querido filho e meu Imperador: Muito lhe agradeço a carta que me

escreveu, eu mal a pude ler porque as lagrimas erão tantas que me impedião o

ver; agora que me acho, apezar de tudo, hum pouco mais descançado, faço esta

para lhe agradecer a sua, e para certificar-lhe que em quanto vida tiver as

saudades jamais se extinguirão em meu dilacerado coração.

Deixar filhos, patria e amigos, não pode haver maior sacrificio; mas levar honra

illibada, não pode haver maior glória. Lembre-se sempre de seu pae, ame a sua

331 Ibidem, p. 442. 332 Vera Lúcia Nagib Bittencourt, Da alteza Real ao Imperador: O Governo do Príncipe D. Pedro, de abril de 1821 a outubro de 1822, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 45. 333 Carta ao imperador D. Pedro II, 06 de maio de 1853, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 201.

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e minha patria, siga os conselhos que lhe derem aquelles que cuidarem na sua

educação, e conte que o mundo o ha de admirar, e que eu me dei de encher de

ufania por ter um filho digno da pátria. Eu me retiro para a Europa: assim he

necessario para que o Brazil socegue, o que Deus permitta, e possa para o

futuro chegar áquelle gráu de prosperidade de que he capaz. A Deus meu

amado filho, receba a benção de seu pae que se retira saudozo e sem mais

esperanças de o ver. – D. Pedro de Alcantara. Bordo da náu Warpite, 12 de abril

de 1831”.334

Para Varnhagen, o menino D. Pedro II não fora abandonado, e sim tinha herdado um

Império. Esta era a sua missão, ou melhor, a que Varnhagen fazia crer que era a de D. Pedro II. Em nome

deste presente – o do Segundo Reinado – o passado deveria ser documentado, organizado e escrito pelo

historiador sorocabano. A Historia geral do Brazil era a epopéia que interpretava e legitimava o Império

para o próprio Império, ou seja, para os diferentes sujeitos que constituíam esta comunidade imaginada.

No corpo do monarca traduzia-se o corpo político da nação. Em torno da construção da memória do

imperador-herói D. Pedro I se dedicariam os construtores do Império em discursos, biografias e

monumentos ao longo do Segundo Reinado.335

Se interrogarmos a obra de Varnhagen em busca do significado nela atribuído á

Independência na construção do Estado e da Nação, verificaremos que este

significado é diminuto, pois ambos (Nação e Estado) estavam já configurados na

colonização portuguesa. A ação colonizadora, semente européia lançada em

solo bárbaro, é entendida como ação civilizadora que se impõe sobre a barbárie,

cristianizando índios e escravos, estabelecendo e defendendo essa imensidão

territorial. A Independência, feita sob a égide da legitimidade monárquica, foi o

gesto pelo qual esse legado se transmitiu, cabendo aos herdeiros defendê-lo e

preservá-lo em sua integridade e soberania.336

A ressignificação da figura de D. Pedro I como o arauto da liberdade e da ordem, segundo

Zina Maria Valdetaro, fazia parte da experiência imperial brasileira fundada na premissa da expansão para

334 Francisco Adolfo de Varnhagen, Historia geral do Brazil, op. cit., 1857, p. 443. 335 Conferir: Iara Liz Carvalho S. Souza, Pátria Coroada: o Brasil como corpo político autônomo. 1780-1831, São Paulo, Ed. da UNESP, 1999. 336 Wilma Peres Costa, A Independência na historiografia brasileira, in: István Jancsó (org.), Independência: história e historiografia, op. cit., p. 59-60.

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339

dentro. Neste conjunto de elementos simbólicos, forjados pelos dirigentes do Estado imperial, trazia-se a

meta de inscrever o discurso da ordem nas almas dos súditos-cidadãos brasileiros espalhados pelo vasto

território.337

A presença simbólica de D. Pedro I, seja pela estátua eqüestre de autoria do escultor

francês Louis Rochet (1813-1878), seja pelo quadro monumental criado pelo pintor Pedro Américo (1843-

1905), atenderia a tarefa de inventar uma identidade nacional para os brasileiros. Em larga medida, esta

era também a meta dos letrados do IHGB e da produção historiográfica do visconde de Porto Seguro.338

A obra de Varnhagen, respaldada pelo discurso da continuidade, iria ajudar a definir uma

interpretação sobre o evento do 7 de setembro nas margens do riacho do Ipiranga, baseada no

depoimento do próprio D. Pedro I de 1823, em testemunhos de época e estudos históricos. A sua Historia

geral do Brazil, para Iara Lis Schiavinatto, reafirmaria a tríade grito, Ipiranga, figura de D. Pedro que

acabou por conformar um cenário, uma ação, um protagonista para o ato que inaugura a nação.339

Estas representações, produzidas neste tipo de escritos fundacionais, aos poucos

constituíram uma imagética do Grito do Ipiranga como o momento do nascimento da nação brasileira,

ocupando o imaginário coletivo nacional principalmente pelas obras artísticas. Imagens como o quadro

Proclamação da Independência [ou Independência ou Morte], de Pedro Américo,340 povoaram as páginas

dos livros e manuais escolares de História e as festas cívicas em diferentes momentos da história política

do Brasil.341

Segundo Iara Lis Schiavinatto, o referido quadro de Pedro Américo sobre a proclamação

da independência, valorizava a ação individual decisiva e militarizada:

O quadro tornou-se peça-chave do Museu Paulista e reitera, no presente, o

mesmo gesto fundador. Feito em 1888 e apresentado, primeiramente, para

337 Zina Maria de Teive e Argollo Valdetaro, “Lições da Ciência do Belo”: Os saquaremas e a conformação dos brasileiros, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. 338 De acordo Arno Wehling, as interpretações de Varnhagen sobre o processo de Independência mostraram-se paradigmáticas, transformando-se matrizes de uma versão que, no século XX, seria depreciativamente apodada de “oficial”. Embora contestadas num ou noutro ponto desde as obras de juventude de Capistrano de Abreu e por historiadores positivistas, as idéias de Varnhagen sobre o assunto continuaram dominando a historiografia, o conhecimento histórico vulgarizado pedagogicamente e a simbologia política até a década de 1930. Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 193. Para uma análise da temática da independência na historiografia brasileira, conferir: Wilma Peres Costa, A Independência na historiografia brasileira, in: István Jancsó (org.), Independência: história e historiografia, op. cit., p. 53-118. 339 Iara Lis Schiavinatto, A praça pública e a liturgia política, Caderno Cedes, op. cit., p. 82-83. 340 Conferir Anexos: Figura 03 – Pedro Américo, Proclamação da Independência (1887-1888), São Paulo, Museu Paulista da Universidade de São Paulo. 341 Conferir: Cecília Helena Salles de Oliveira, O Espetáculo do Ipiranga: reflexões preliminares sobre o imaginário da Independência, Anais do Museu Paulista, São Paulo, vol. 03, 1995, p. 195-208; Cecília Helena Salles de Oliveira, O Museu Paulista da USP e a memória da Independência, Cadernos Cedes, op. cit., p. 65-80

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340

majestades inglesas, italianas e brasileiras em Florença, o quadro definiu uma

cena primeira e única do fato histórico que funda a nação e foi elaborado por

meio de uma série de referências da pintura histórica e acadêmica oitocentista. A

força desse quadro, sua repercussão, contínua divulgação e repetida publicação

acabaram por erigi-lo na própria cena da independência ou na imagem do

próprio fato. Recentemente, na minissérie de TV O Quinto dos Infernos com o

enredo baseado mais numa versão literária, fabulosa, em tom carnavalesco e

caricatural, quando a narrativa exige que se mostre o ato da independência,

evoca-se a mesma formatação geral da cena de Pedro Américo, homens a

cavalo, no cume da colina, espada ao alto a fim de comunicar ao espectador que

ali D. Pedro estaria inventando um país, como dizia o personagem Chalaça. A

forte presença dessa imagem na memória nacional colocou numa espécie de

limbo, num lugar opaco, outras cenas e representações, marcadamente públicas,

em torno do processo de autonomização do Brasil.342

O relato do episódio do próprio D. Pedro I, a Historia geral do Brazil, de Varnhagen, e o

quadro da Proclamação da Independência, de Pedro Américo, constituíram-se em documento-monumento

da emergência do Brasil-nação, fabricados sob a ótica da continuidade e do culto ao poder monárquico,

responsável pela emancipação. Para a memória nacional desejada e imposta ficava a fonte, a narrativa-

ciência e o retrato.

O tipo de história do Brasil forjada por Varnhagen, logo, seria um operador, um

intensificador de poder – para usar uma expressão de Michel Foucault. A sua história assumiria esta

função legitimadora e dominadora, assim como os rituais, como as sagrações, como os funerais, como as

cerimônias, como os relatos legendários.343

3.7. A invenção da tradição: o fardo do legado da Historia geral do Brazil_______________________

A escolha da independência como marco organizador do tempo da nação, numa linha de

continuidade entre o passado colonial e o presente imperial, ajudava a inventar uma tradição que não

342 Iara Lis Schiavinatto, A praça pública e a liturgia política, Caderno Cedes, op. cit., p. 82. 343 Michel Foucault, Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976) [Aula de 28 de janeiro de 1976], op. cit., p. 77.

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apenas legitimava um modelo de Estado, governo e identidade, mas também afastava as sombras que

pairavam sobre a história portuguesa. Brasil e Portugal desfrutavam de um passado comum, mas viviam

um presente marcado pelo estabelecimento de suas respectivas singularidades. No caso do Império

brasileiro, havia a necessidade de se determinar as suas marcas como um Estado-nação independente.

Segundo Valdei Lopes de Araujo,

O estatuto desse passado muda, não há corresponder à experiência histórica

das últimas décadas. A relação entre portugueses e brasileiros passa a ser

referida ora como a de povos irmãos, ora como a relação entre mãe e filho. As

distintas individualidades eram assim garantidas, sem que fosse necessário um

movimento de ruptura mais radical. À medida que a década de 1840 avançava,

com D. Pedro II à frente do Império, o sentimento antilusitano da década anterior

perdia espaço, especialmente entre os grupos mais próximos do Paço, como era

certamente o caso dos fundadores do IHGB.344

Ao tomar como referência esta transformação da experiência do tempo, a partir do evento

de 7 de setembro de 1822, Varnhagen inventou a sua história geral para o Brasil. Ele coligiu e organizou os

fragmentos documentais do passado produzindo uma narrativa da nação que explicasse, ou melhor,

tornasse uma verdade seu presente: a de um Brasil independente, governado por uma Monarquia

Constitucional, sob o reinado de D. Pedro II, herdeiro legítimo do trono por parte da casa dos Bragança –

tendo como centro irradiador do poder e da civilização o Rio de Janeiro.

De acordo com José Murilo de Carvalho, o Brasil no século XIX era mais uma aspiração

do que uma realidade de fato e sua história foi produzida quase que exclusivamente a partir do centro

político localizado na Corte. A hegemonia política e econômica do Rio de Janeiro, bem como o monopólio

da produção intelectual do país, só perderia espaço a partir de 1930:

É fácil demonstrar por que a história foi escrita no século XIX a partir do Rio de

Janeiro. A capital nacionalizava a visão dos historiadores, não importando de

onde viessem. Ela atraía a si não só a elite política, mas também os que

ambicionassem uma carreira nas letras e nas artes. (...)

344 Valdei Lopes de Araujo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), op. cit., p. 156.

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Assim é que praticamente todos os que escreveram histórias nacionais o fizeram

na capital, dentro ou fora do IHGB, e valorizaram a unidade nacional. 345

Para legitimar uma identidade nacional unificada e centralizada, Varnhagen adotou na

construção da sua Historia geral do Brazil três elementos que, segundo Ernest Renan (1823-1892), em seu

famoso ensaio sobre o tema de 1882, constituiriam o principio espiritual da unidade da nação: 1) a

possessão em comum de um rico legado de lembranças; 2) o desejo de viver em conjunto; e 3) a vontade

de continuar a fazer valer a herança que receberam esses indivíduos.346

Neste sentido, ele transformou os fatos do passado – a herança da colonização

portuguesa na América –, forjou uma narrativa de conjunto que vislumbrasse neste lugar do tempo a

origem da nação e fez desta uma linha de continuidade entre a Colônia e o Império. A força desta herança

iria, pela lógica do seu discurso, legitimar o tempo saquarema. Ao buscar desde os remotos tempos

coloniais, o desejo pela ordem, unidade e centralização, confirmava as pretensões políticas de um governo

que se instituía no Segundo Reinado.

Na exaltação das memórias do passado, no desejo por uma vida em conjunto e na

perpetuação da herança estavam a base constitutiva da comunidade imaginada denominada Brasil

Imperial. Este era um processo em permanente escrita, invenção e embates de narrativas. Varnhagen

tinha consciência disso, mesmo sabendo da força da sua obra, e não poucas vezes refez os caminhos da

escrita e reescrita da sua História geral do Brazil, bem como na produção de outros escritos como a

Historia das lutas com os hollandezes no Brazil desde 1624 a 1654 e a Historia da Independencia do

Brasil, até ao reconhecimento pela antiga metrópole, comprehendendo, separadamente, a dos sucessos

occorridos em algumas províncias até essa data.

A preocupação com a (re)escrita de uma história geral para a jovem nação dominava as

suas memórias, biografias e notas nas páginas da Revista do IHGB e a sua correspondência ativa e

passiva com consócios, amigos de letras e o próprio imperador.347 Constituiriam um capítulo à parte nas

tramas e dilemas do autor, num intenso e doloroso embate com seus críticos e comentadores, no processo

de revisão e anotação da segunda edição da sua Historia geral do Brazil, publicada em 1877.348

345 José Murilo de Carvalho, D. João e as histórias dos Brasil, Revista de Brasileira de História, São Paulo, vol. 28, n. 56, p. 561-562. 346 Ernest Renan, O que é uma nação?, Revista Aulas, Dossiê Gênero, Subjetividades e Cultura Material, Campinas, vol. 01, n. 01, 2006, p. 18. 347 Conferir: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit. 348 Para saber alguns momentos deste processo de reescrita da Historia geral do Brazil e as diversas modificações efetuadas pelo autor, conferir: Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., capítulo VI.

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As lutas discursivas pela fabricação do passado significaram a convivência de Varnhagen

com a arena dos debates entre os letrados dentro e fora do IHGB, traduzidos em silêncios, indiferenças,

críticas, ataques, acusações, mas também em elogios, apoios, reconhecimento e consagração (mesmo

que tardiamente). Escrever a história do Brasil implicava, embora se apregoasse a bandeira da

imparcialidade, assumir e marcar posições políticas no cenário das disputas do Segundo Reinado. As

escolhas do que evidenciar ou esconder estavam profundamente influenciadas pelo lugar de discurso

ocupado pelo historiador sorocabano.

Na construção dos enredos temáticos da sua Historia geral do Brazil, buscando definir as

origens, o povo, o mito fundacional e os pontos de continuidade, Varnhagen inventou uma tradição

narrativa e interpretativa para se compreender o Brasil como nação. Esta tradição, como toda aquela que

se propõe ser sintética e totalizadora, desenhava uma cultura nacional que iria além do simples ponto de

lealdade, união e identificação simbólica. Ela significava o estabelecimento daquilo que Stuart Hall definiu

como uma estrutura de poder cultural, pautada pelos instrumentos da violência física e simbólica, de

unificação das classes sociais e diferentes grupos étnicos e de hegemonia cultural ou colonização.349

A guerra em suas diferentes formas era o meio de se construir a narrativa nacional

presente na escrita varnhageniana. A história do Brasil era a luta pelo estabelecimento da ordem e da

civilização européia na América portuguesa. Assim como no seu presente se firmava uma luta para a

legitimação do Império no território herdado do passado colonial. E nestas batalhas, pelo seu discurso

providencialista, a civilização haveria de vencer – soterrando as diferenças para se forjar identidade e

lealdade.

Na nação de Varnhagen não haveria espaço para índios, negros e republicanos todos

considerados selvagens. Aqueles que representassem alguma forma de fragmentação e caos à Colônia e

ao Império foram ou deveriam ser atacados e eliminados por intermédio de uma política de purificação –

assimilação/miscigenação ou morte – em defesa da integridade da nação. 350

A unificação ou apagamento das diferenças, presente nos seus escritos, estava traduzida

pela expressão da cultura de um único povo. Esta ilusão fundacional e identitária traria no seu bojo um

conjunto de sentimentos de intolerância, xenofobia, racismo e sexismo metamorfoseados por uma retórica

da ciência.

349 Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, op. cit., p. 59-61. 350 Cabe destacar que aqui não se corrobora com as afirmações de Nilo Odália que afastam da esfera do discurso etnocêntrico de Varnhagen o argumento racista: Não existe em Varnhagen um preconceito racial puro e simples; sua argumentação é muito sutil e especiosa; ele se coloca no nível do confronto de suas civilizações distantes e diferenciadas. Varnhagen jamais coloca as diferenças entre negros, índios e brancos em termos de incompatibilidades raciais, o que redundaria finalmente na impossibilidade na miscigenação. Nilo Odália, As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna, op. cit., p. 95.

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Em suma, era a verdade essencialista da nação movendo as engrenagens da máquina de

fabricação da IDENTIDADE.

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345

___________________________________CONSIDERAÇÕES FINAIS

O BRASIL INVENTADO PELO VISCONDE DE PORTO SEGURO: HISTÓRIA, HISTORIOGRAFIA E ENSINO DE HISTÓRIA

A história, como outras áreas do saber na área de Ciências Humanas, é muito sujeita

aos ventos que sopram de latitudes as mais diferentes.

[José Roberto do Amaral Lapa, História e Historiografia: Brasil pós-1964].

Quando, muito novo ainda, eu estudava paleographia na Torre do Tombo, de Lisboa,

tendo por mestre João Basto, um dos auxiliares de Herculano na obra grandiosa dos

Portugalice Monumenta Histórica, costumava ancioso esquadrinhar nos maços de

papéis bolorentos, de caracteres semi-apagados debaixo da poeira dos séculos, algum

documento que na minha prosapia juvenil julgava dever ser decisivo para a solução de

qualquer dos enigmas da nossa história, que os tem, comquanto date de hontem. Ora,

era com viva sorpresa e não menos vivo desapontamento que, em quase todos aquelles

papeis, se me deparava a marca discreta do lapis de um pachorrento investigador que

me precedera na faina, e que verifiquei não ser outro senão Francisco Adolpho de

Varnhagen, Attribuindo o seu nome ilustre á cadeira que a vossa benevolencia aqui me

concedeu, escolhendo-o, pois, para meu patrono – mais carecera de um padroeiro, para

usar da linguagem tradicional, que tão bem corresponde ao personagem e até ao

espirito começo de seculo – celebrando agora sua memória, faço mais do que

instinctivamente recorrer a um modelo, traduzo uma saudosa impressão de primeira

mocidade, além de prestar uma das mais merecidas homenagens que reclamão os

fundadores do nosso patrimonio intelectual.

[Manoel de Oliveira Lima, Francisco Adolpho Varnhagen, Visconde de Porto Seguro].

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A confidência de Manoel de Oliveira Lima, no seu discurso de posse na Academia

Brasileira de Letras, em 1903, é exemplar para ilustrar a contribuição e o peso de uma certa noção de

legado do visconde de Porto Seguro para a pesquisa histórica no Brasil. Ao elevá-lo à condição de patrono

ou santo padroeiro dos historiadores brasileiros, embora fosse uma forma de reconhecimento de

autoridade, era o anúncio de um desafio para as gerações posteriores: enfrentar a esfinge de Varnhagen.

Ao lado da celebração do pai da História do Brasil se fazia a constatação da necessidade de ir além,

completá-lo, preencher as lacunas documentais e temáticas presentes no livro-monumento: a Historia geral

do Brazil.1

Essa seria a obsessão da vida do próprio João Capistrano de Abreu, um dos anotadores

da 3ª edição da Historia geral do Brazil, ao lado de Rodolfo Garcia. O historiador cearense, em sua

correspondência, iria lembrar a necessidade de superar os quadros de ferro de Varnhagen presentes em

manuais escolares de história pátria como o de Joaquim Manuel de Macedo. Professor do Colégio do

Pedro II, Capistrano de Abreu sentia na pele o peso de uma tradição, não muito antiga, de narrativa do

passado nacional. Embora admirasse o historiador sorocabano, sendo um dos autores de seu necrológio,

ele indicaria os caminhos de um novo projeto historiográfico com grandes traços e largas malhas. A escrita

da História do Brasil, na sua percepção, era uma obra inconclusa, pois o espírito nacional ainda estava

ainda em formação na época de Varnhagen.2

Fosse para exaltar ou criticar, a Historia geral do Brazil se fazia presente nos escritos

biobibliográficos elaborados pelos consócios do IHGB e também pela própria historiografia brasileira como

um todo. José Honório Rodrigues, um dos pioneiros no estudo da historiografia brasileira, instituiria

Varnhagen e o IHGB como marcos fundadores de uma história da História do Brasil. 1838, ano da

fundação do grêmio, e 1854, data da publicação da 1ª edição da história geral do visconde de Porto

Seguro, seriam na linha do tempo da historiografia o ponto de origem. Repetindo o discurso fundacional

1 Manoel de Oliveira Lima, Francisco Adolpho Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, São Paulo, vol. XIII, 1908, p. 63-64. 2 Conferir: Daniel Mesquita Pereira, Descobrimentos de Capistrano: A História do Brasil “a grande traços e largas malhas”, tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002, capítulo I.

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forjado pelo próprio IHGB, o autor de Teoria da História do Brasil, ao lado dos textos biográficos,

enquadraria a memória de Varnhagen como um herói intelectual, o pioneiro da escrita da primeira narrativa

do país independente.3

Em Historiadores do Brasil, por exemplo, Francisco Iglésias reafirmaria como marco na

história da historiografia brasileira o ano de 1838, momento da criação do IHGB. Para o autor, o grêmio

havia criado uma maneira de fazer pesquisa no Brasil pautada no pragmatismo da história e no cuidado

com a documentação.4

Ao refletir sobre a produção historiográfica brasileira entre 1838 e 1931, Francisco Iglésias

percebeu que a maioria dos historiadores teve como referência de centro de pesquisa o IHGB, seja

auxiliando na tarefa de coleta, seleção e conservação de documentos, seja na produção de trabalhos

vinculados ao grêmio ou independentes. Para ilustrar sua afirmação, ele trouxe referências comentadas

sobre a produção de muitos autores que tiveram sua trajetória intelectual ligada ao IHGB, como o próprio

Francisco Adolfo Varnhagen, Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa, Joaquim Norberto de Souza Silva,

Joaquim Caetano da Silva, José Maria da Silva Paranhos Júnior – o barão do Rio Branco, entre outros.

Apesar da sua permanência como um dos pais fundadores da historiografia brasileira,

Varnhagen carrega a imagem de um historiador cobertos de adjetivações negativas. Suas posições

políticas e ideológicas, assim como seu método, seriam objeto de críticas e ataques por parte de seus

contemporâneos e pelas próximas gerações de intérpretes do Brasil. Hoje seu nome tem estado associado

aos rótulos de conservador, racista, pensador da direita, não digno de muito respeito por determinados

setores da historiografia. Ele seria, ao lado de Francisco de Oliveira Vianna, uma espécie de autor maldito.5

Sua narrativa estaria vinculada a uma pré-história da escrita da História do Brasil, sendo lembrado pelos

méritos como compilador de fontes e pela pouca plasticidade na produção de uma interpretação do

passado nacional. O visconde de Porto Seguro teria em torno da sua memória a formação de um

anedotário, ridicularizado por uma história que não seria mais a desejada pelo tempo presente.

Fazer um estudo sobre o pensamento de Varnhagen e as suas representações produzidas

sobre o Brasil implica dialogar também com este universo de recusa e também questioná-lo pelo seu viés

evolucionista e também excludente. Não significa uma escrita engajada com a meta de restituir o

monumento Varnhagen, trazendo o santo padroeira para o altar do panteão intelectual brasileiro. Ao

3 José Honório Rodrigues, A pesquisa histórica no Brasil. 3a ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1978, p. 44-49. 4 Francisco Iglésias, Historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira; Belo Horizonte, Ed. da UFMG; IPEA, 2000. 5 Para uma crítica das interpretações fechadas e dos rótulos negativos sobre Oliveira Lima, conferir: Maria Stella Martins Bresciani, O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre os interpretes do Brasil, São Paulo, Ed. da UNESP, 2005.

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contrário, traz consigo a preocupação, a partir das questões e pressupostos de seu tempo, de mostrar em

que medida ele se identificava com as práticas de um ofício num determinado espaço e tempo: o de

historiador brasileiro no século XIX. Implica trazer o historiador-diplomata para o interior dos debates

travados na sua época acerca do fazer histórico: objetivos, procedimentos e compromissos.

Neste sentido, é importante estabelecer um diálogo de Varnhagen com seus

contemporâneos e também como uma tradição instituída de pesquisa e escrita histórica. Ao propor esta

interação entre os diferentes sujeitos envolvidos no processo de fabricação não só de uma narrativa, mas

de uma forma de narrar, constata-se que o autor da Historia geral do Brazil não era uma unanimidade entre

os seus pares e que mesmo o seu pensamento não era o mesmo, formando uma constante coerente de

raciocínio. Por meio de Varnhagen não se pode querer pretensiosamente definir como o Brasil oitocentista

pensava o passado e o papel do historiador. Ele não seria uma janela aberta para toda uma época, mas a

sua história ajuda a compreender um dos possíveis ângulos do seu tempo – ao menos o seu olhar sobre a

cidade letrada, o IHGB, o seu lugar social e a escrita da história da nação. Por esta lógica, cabe falar aqui

de uma escrita da História do Brasil varnhageniana.

Este foi o norte da bússola dessa tese: o visconde de Porto Seguro, o IHGB e construção

da História do Brasil (Colonial) no Brasil Império, com ênfase para o contexto do projeto saquarema.

Varnhagen não seria um mero reflexo de um projeto político, e sim um agente partícipe, elaborando suas

leituras e interpretações do passado pelas vivências e limites de seu tempo. A sua narrativa da nação

estava permeada pelos termos de seu lugar social e das práticas de seu oficio,6 e neste espaço ele

interagiu e elaborou sua Historia geral do Brazil.

Com base nestas premissas, a construção da tese pautou-se em três movimentos: 1)

estudo da invenção biográfica de Varnhagen como o patrono da História do Brasil e historiador símbolo do

projeto historiográfico do IHGB, elaborada por escritos biobibliográficos entre 1878 e 1978; 2) análise das

representações de si, do IHGB e da escrita da História do Brasil no século XIX criadas pelo historiador

sorocabano, tomando como fonte a sua correspondência ativa, coligida e organizada por Clado Ribeiro de

Lessa; e 3) identificação e exame dos enredos temáticos eleitos por ele para produzir uma história do

Brasil marcada pela defesa da idéia do passado colonial como a semente ou origem da futura nação. Na

sua narrativa do tempo colonial estariam as origens (Descobrimento do Brasil), a formação do povo (Índios,

6 Para Michel de Certeau, estes discursos não são corpos flutuantes em um englobante que se chamaria a história (o contexto!). São históricos porque ligados a operações e definidos por funcionamento. Também não se pode entender o que dizem independentemente da prática de que resultam. Conferir: Michel de Certeau, A escrita da história, Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 2000, p. 32.

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Negros e Portugueses), o mito fundador (Invasão Holandesa) e os elos de continuidade (Independência do

Brasil) da nação que desabrocharia em 07 de setembro de 1822, às margens do riacho do Ipiranga.

Esses enredos temáticos, apresentados nas tramas da sua Historia geral do Brazil,

criticados ou não pelo que traziam no seu interior, constituíram uma constante, um modelo de cronologia,

presente nos manuais e livros didáticos de História do Brasil elaborados na segunda metade do século XIX

e ao longo do século XX. Se consultarmos, os manuais escolares clássicos de autores do naipe de João

Ribeiro, João Pandiá Calógeras, Pedro Calmon, Vicente Tapajós, Boris Fausto entre outros nomes,

embora com diferentes perspectivas teóricas, metodológicas e ideológicas, poder-se-á identificar a

presença da grade cronológica temática esboçada por Varnhagen, iniciando sua narrativa pela descoberta

do Brasil pelos portugueses, passando por temas como a formação étnico-racial do povo brasileiro, o

processo de conquista e domínio colonial, as invasões holandesas, e culminando com a proclamação da

Independência do Brasil. Em larga medida, digeriram a idéia da colônia como berço do Brasil

independente, ou melhor, da história como “biografia da nação”.7

Este enredo temático também encontraria seus simpatizantes por um tempo considerável

na produção didática, nas propostas curriculares e mesmo nos ementários das disciplinas de História do

Brasil nos cursos de graduação e pós-graduação. Questionava-se os conteúdos dos temas abordados pela

cronologia, mas não se desmontava a ordem discursiva que havia definido o começo, meio e fim da

apresentação dos temas. Isso explica de certa forma os embates criados em torno dos eventos

comemorativos dos 500 anos do Brasil, em 2000, pois se assumia a idéia de que a nação havia se

constituído em 1500 com o desembarque dos portugueses na região de Porto Seguro. Oficialmente se

celebrou a verdade de uma origem da nação que havia sido fabricada no século XIX por artífices como

Varnhagen.8

Nesta direção, segundo Genaro Vilanova de Oliveira, alguns dos livros didáticos de

História do Brasil adotados no final do século XX e início do XXI estariam amparados em uma matriz

narrativa elaborada pela historiografia do século XIX. Ao comparar a estrutura da Historia geral do Brazil,

de Varnhagen, e os livros didáticos recomendados pelo Ministério da Educação (MEC), no Programa

Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2006, o autor identificaria a presença hegemônica de uma estrutura

7 Para uma análise da idéia de história como “biografia da nação”, conferir: Rogério Forastieri da Silva, Colônia e Nativismo: A História como “biografia da nação”, São Paulo, Hucitec, 1997. 8 Conferir: Lucia Lippi Oliveira, Imaginário histórico e poder cultural: as comemorações do descobrimento, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 26, 2000, p. 183-202;

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narrativa oitocentista, apresentada sem qualquer forma de questionamento e deixando à margem outras

maneiras de pensar e interpretar o passado colonial.9

Essas representações historiográficas e didáticas do passado colonial encontrariam

também espaço fértil no imaginário cultural nacional, povoando os romances históricos, filmes, minisséries

e iconografia. O tema dos descobrimentos, por exemplo, tem sido permanentemente apropriado a partir da

aceitação da idéia de que a carta de Pero Vaz de Caminha seria a certidão de nascimento do Brasil. Os

usos deste documento como monumento de nacionalidade se fizeram presentes nos escritos do visconde

de Porto Seguro, nas pinturas de Victor Meirelles e Oscar Pereira da Silva, nos manuais escolares de

autores como Joaquim Manuel de Macedo, José Francisco da Rocha Pombo e Joaquim Silva, nas

propagandas oficiais do Estado Novo, da ditadura militar pós-1964 e das comemorações dos chamados

500 anos, nos filmes de Humberto Mauro, nos anos 1930, e nas recentes minisséries da Rede Globo como

O Caramuru.10

Não se pretende afirmar aqui que Varnhagen seja a fonte primeira de todas estas imagens

sobre a história do Brasil, mas com certeza ele foi um dos grandes colaboradores na sua fabricação, sendo

seu enredo temático ressignificado em diferentes contextos ao gosto dos temperos políticos, sociais e

culturais. Por mais que se possa negar, as tramas e temas da sua Historia geral do Brazil continuam mais

presentes e latentes do que imagina a historiografia brasileira.11 Dentro desta perspectiva, as palavras de

Nestor Garcia Canclini continuam a dizer muito ao mundo contemporâneo:

A identidade é uma construção que se narra. Estabelecem-se acontecimentos

fundadores, quase sempre relacionados à apropriação de um território por um

povo ou à independência obtida através do enfrentamento dos estrangeiros. (...)

Os livros escolares e os museus, assim como os rituais cívicos e os discursos

políticos, foram durante muito tempo os dispositivos com que se formulou a

Identidade de cada nação (assim, com maiúscula) e se consagrou sua retórica

narrativa.12

9 Genaro Vilanova Miranda de Oliveira, O século XVI que o XIX criou: heterodoxias e multimídias no ensino de História do Brasil, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007, capítulo I. 10 Conferir: Eduardo Victorio Morettin, Produção e formas de circulação do tema do Descobrimento do Brasil: uma análise de seu percurso e do filme Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro, Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 20, n. 39, 2000, p. 135-165; Thais Nivia de Lima e Fonseca, História & Ensino de História, Belo Horizonte, Autêntica, 2003. 11 Conferir: Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, Capítulo VIII. 12 Nestor Garcia Canclini, Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização, Rio de Janeiro, Ed. da UFRJ, 1995, p. 139.

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Os escritos do século XIX incomodam pela sua teimosa presença porque a

contemporaneidade ainda não conseguiu se desvencilhar das noções de nação, Estado, identidade como

verdades fixas, essencialistas e necessárias para nortear as vidas dos indivíduos.13 Ainda a busca da

identidade nacional, da essência do ser brasileiro, tem deixado suas marcas no corpo, mentes e corações

mesmo num contexto de sua fragmentação e questionamentos – das inovações trazidas trazidos pelos

ventos de outras latitudes, como bem recordou o saudoso professor José Roberto do Amaral Lapa.

Em síntese, há que se superar o fardo do legado de uma única narrativa histórica do

Brasil, solapando – como sugeriu Stuart Hall – a idéia da nação como uma identidade cultural unificada.14

*

* *

13 Conferir: Margareth Rago, Sexualidade e identidade na historiografia brasileira, Revista Aulas – Dossiê Identidades Nacionais, Campinas, n. 02, out./nov. 2006, p. 01-35. 14 Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, 11 ed., Rio de Janeiro, DP&A, 2006, p. 65.

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________________________ACERVOS, FONTES & BIBLIOGRAFIA

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-- Arquivo e Biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)

Rio de Janeiro/RJ

-- Biblioteca Central – Setor de Obras Raras

Universidade Estadual de Campinas (BC – UNICAMP)

Campinas/SP

-- Biblioteca do Instituto de Filosofia de Ciências Humanas

Universidade Estadual de Campinas (IFCH – UNICAMP)

Campinas/SP

-- Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem

Universidade Estadual de Campinas (IEL – UNICAMP)

Campinas/SP

-- Biblioteca da Faculdade de Educação

Universidade Estadual de Campinas (FE – UNICAMP)

Campinas/SP

-- Biblioteca da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras

Universidade de São Paulo (FFLCH – USP)

São Paulo/SP

-- Biblioteca do Campus Universitário de Rondonópolis

Universidade Federal de Mato Grosso (CUR/UFMT)

Rondonópolis/MT

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_____, Extractos da 63ª Sessão em 19 de maio de 1841, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 03, 1841, p. 231-236.

_____, Extractos da ata da 79ª sessão em 12 de janeiro de 1842, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 04, 1842, p. 96-100.

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