antropologia dos objetos

253
 ANTROPOLOGIA DOS OBJETOS: COLEÇÕES, MUSEUS E PATRIMÔNIOS  Jos é Reginaldo S antos Go nçalv es

Upload: helio-rosa-de-miranda

Post on 07-Jul-2015

372 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

AntropologiA dos objetos: colees, museus e pAtrimniosjos reginaldo santos gonalves

Ministrio da Cultura instituto do PatriMnio HistriCo e artstiCo naCional dePartaMento de Museus e Centros Culturais Presidente da rePblica Luiz Incio Lula da Silva Ministro da cultura Gilberto Passos Gil Moreira Presidente do iPhan Luiz Fernando de Almeida diretor do dePartaMento de Museus e centros culturais Jos do Nascimento Jnior diretor de PatriMnio Material Dalmo Vieira Filho diretora de PatriMnio iMaterial Mrcia Genesia de SantAnna diretora de PlanejaMento e a dMinistrao Maria Emlia Nascimento dos Santos Procuradora- chefe Lcia Sampaio Alho coordenadora geral de ProMoo do PatriMnio cultural Luiz Philippe Peres Torelly coordenadora geral de Pesquisa , docuMentao e referncia Lia Motta

G624a Gonalves, Jos Reginaldo Santos Antropologia dos objetos : colees, museus e patrimnios / Jos Reginaldo Santos Gonalves. - Rio de Janeiro, 2007. 256p. -(Museu, memria e cidadania)

1. Etnologia. 2. Antropologia. I. Ttulo. II. Srie. 07-4138. CDD: 306 CDU: 316.7

Coleo Museu, Memria e Cidadania Coordenao: Jos do Nascimento Jnior e Mrio Chagas editorao Mrio Chagas e Claudia Maria Pinheiro Storino a ssistncia editorial Tatiana Kraichete Martins Projeto grfico Marcia Mattos editorao eletrnica Editora Garamond Ltda.

para isadora, renata e mariana

7

Introduo

13 teorIasantropolgIcaseobjetosmaterIaIs 43 colees,museuseteorIasantropolgIcas:reflexessobre conhecImentoetnogrfIcoevIsualIdade 63 osmuseuseacIdade 81 osmuseusearepresentaonobrasIl 107 oesprItoeamatrIa:opatrImnIoenquantocategorIadepensamento 117 autentIcIdade,memrIaeIdeologIasnacIonaIs:oproblemadospatrImnIosculturaIs 139 monumentalIdadeecotIdIano:ospatrImnIosculturaIscomognerodedIscurso 159 sIstemasculInrIoscomopatrImnIosculturaIs 175 afomeeopaladar:aantropologIanatIvadelusdacmaracascudo 195 patrImnIo,memrIaeetnIcIdade:reInvenesdaculturaaorIana 211 ressonncIa,materIalIdadeesubjetIvIdade:asculturascomopatrImnIos 235 aobsessopelacultura

interpretao antropolgica de quaisquer formas de vida social e cultural passa necessariamente pela descrio etnogrfica dos usos individuais e coletivos de objetos materiais. No apenas pelas razes evidentes de que esses objetos preenchem funes prticas indispensveis, mas, especialmente, porque eles desempenham funes simblicas que, na verdade, so pr-condies estruturais para o exerccio das primeiras. Seja no contexto de seus usos sociais e econmicos cotidianos, seja em seus usos rituais, seja quando reclassificados como itens de colees, peas de acervos museolgicos ou patrimnios culturais, os objetos materiais existem sempre, necessariamente, como partes integrantes de sistemas classificatrios. Esta condio lhes assegura o poder no s de tornar visveis e estabilizar determinadas categorias socio-culturais, demarcando fronteiras entre estas, como tambm o poder, no menos importante, de constituir sensivelmente formas especficas de subjetividade individual e coletiva. Os textos reunidos neste livro focalizam tpicos diversos, embora interligados: teorias antropolgicas e objetos materiais; museus etnogrficos e visualidade; museus e experincia urbana; museus e identidade nacional; concepes de patrimnio cultural; sistemas culinrios como patrimnios culturais; a antropologia nativa de Luis da Cmara Cascudo; as representaes aorianas do patrimnio no contexto das festas do

divino esprito santo; uma reflexo sobre as categorias ressonncia, materialidade, subjetividade e sua relevncia para entendermos os discursos do patrimnio; e um artigo final, onde desenvolvo uma discusso sobre os limites das modernas concepes antropolgicas de cultura. Essa discusso, de certo modo, representa uma espcie de fio condutor de minhas reflexes ao longo dos demais artigos, garantindo-lhes alguma unidade. Estes ltimos, no entanto, podem ser lidos independentemente. Eles resultam de um esforo contnuo e sistemtico de reflexo sobre os significados que podem assumir os objetos materiais da vida social e cultural. Mais precisamente, essa reflexo tem se voltado para os processos de transformao social e simblica que sofrem esses objetos quando eles vm a ser reclassificados e deslocados do contexto de seus usos cotidianos para o contexto institucional e discursivo de colees, museus e patrimnios. Originalmente palestras, conferncias, aulas, comunicaes em congressos, esses textos, em sua maioria, vieram a ser publicados em revistas especializadas e em livros, entre os anos de 1989 e 2005. Cada um dos artigos sofreu pequenas correes e alteraes para sua publicao neste livro (seja nos ttulos, seja em detalhes do seu contedo para evitar as repeties e esclarecer trechos obscuros), sem que este procedimento tenha modificado as linhas principais de argumentao (embora tenha sido difcil, em alguns casos, resistir a essa tentao). Boa parte dos artigos foi produzida para uma audincia de muselogos e profissionais de patrimnio, com os quais tenho mantido, ao longo dos ltimos anos, um dilogo constante e produtivo. Outra parte foi produzida para uma audincia ccomposta pela comunidade de meus colegas antroplogos, socilogos e historiadores. Menos preocupado em estabelecer cercas entre esses diversos campos profissionais, espero ter ajudado a construir algumas pontes, embora esteja bastante csncio de que o melhor dilogo intelectual aquele que se desenvolve a partir de nossas diferenas, reconhecendo o relativo valor e os limites de nossas respectivas tradies disciplinares. Nesse sentido, assumo que a perspectiva aqui adotada informada pela antropologia

{jos reginaldo santos gonalves}

social ou cultural, portanto essencialmente voltada para para a descrio e anlise comparativa das categorias de pensamento e seus usos na vida social. Um tema recorrente atravessa os textos aqui reunidos: o papel que os objetos materiais em geral, e em especial aqueles classificados como itens integrantes de colees, museus e patrimnios, desempenham no processo de formao de diversas modalidades de autoconscincia. Nesse sentido, eles no desempenham apenas a funo de sinais diacrticos a demarcar identidades, mas, na verdade, contribuem decisivamente para a sua constituio e percepo subjetiva. Em sua presena incontornvel e difusa, usados privada ou publicamente, colecionados e expostos em museus ou como patrimnios culturais no espao das cidades, os objetos influem secretamente na vida de cada um de ns. Perceber e reconhecer esse fato pode trazer novas perspectivas sobre os processos pelos quais definimos, estabilizamos ou questionamos nossas memrias e identidades. Ao longo desses anos, contra algumas dvidas profissionais e intelectuais com instituies e pessoas, s quais devo assinalar meus agradecimentos. Aos colegas, alunos e funcionrios do programa de ps-graduao em sociologia e Antropologia e do departamento de Antropologia cultural e do IFCS / UFRJ, cujo apoio institucional tem sido inestimvel. Aos colegas do Laboratrio de Anlise Simblica do IFCS /UFRJ, em especial a maria laura Viveiros de castro cavalcanti, marco Antonio gonalves, Elsje Lagrou, Ricardo Benzaquen e Lucia Lippi, os quais tm sido fundamentais como amigos e interlocutores. Aos integrantes dos Grupos de Trabalho e dos Seminrios Temticos de Patrimnio Cultural da ABA e da ANPOCS, especialmente a Regina Abreu, Myrian Seplveda dos Santos e Manuel Ferreira Lima Filho. O dilogo que mantenho com eles tem sido dicisivo em minha produo intelectual. Marcia Contins acompanhou com ateno e generosidade a elaborao de cada um desses artigos.10 {antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

Gostaria finalmente de agradecer o convite gentil de Mrio Chagas (um dos meus interlocutores constantes entre os profissionais de museologia) para que eu reunisse e publicasse esses textos na forma de livro. o cnpq, a cApes, a FulbrigHt, a FAperj e a Fujb, em diversos momentos e de forma significativa, forneceram apoio financeiro indispensvel ao trabalho de pesquisa de que resultou a elaborao dos textos que compem este livro.

{jos reginaldo santos gonalves}

11

Teorias Antropolgicas e Objetos MateriaisSob o ttulo Antropologia dos Objetos: colees, museus e patrimnios, este artigo foi publicado no BIB ANPOCS Revista Brasileira de Informao Bibliogrfica em Cincias Sociais, no 60, EDUSC, 2 semestre de 2005.

Ao colocar a natureza simblica de seu objeto, a antropologia social no pretende nem por isso afastar-se das realia. Como poderia faz-lo uma vez que a arte, onde tudo signo, utiliza veculos materiais? No se podem estudar os deuses e ignorar suas imagens; os ritos, sem analisar os objetos e as substncias que o oficiante fabrica e manipula; regras sociais, independentemente de coisas que lhes correspondem. A antropologia social no se isola em uma parte do domnio da etnologia; no separa cultura material e cultura espiritual. Na perspectiva que lhe prpria e que nos ser necessrio situar ela lhes atribui o mesmo interesse. Os homens se comunicam por meio de smbolos e signos; para a antropologia, que uma conversa do homem com o homem, tudo smbolo e signo que se coloca como intermedirios entre dois sujeitos. claude lvi-strauss

asas, moblias, roupas, ornamentos corporais, jias, armas, moedas, instrumentos de trabalho, instrumentos musicais, variadas espcies de alimentos e bebidas, meios de transporte, meios de comunicao, objetos sagrados, imagens materiais de divindades, substncias mgicas, objetos cerimoniais, objetos de arte, monumentos, todo um vasto e heterclito conjunto de objetos materiais circula significativamente em nossa vida social por intermdio das categorias culturais ou dos sistemas classificatrios dentro dos quais os situamos, separamos, dividimos e herarquizamos. Expostos cotidianamente a essa extensa e diversificada teia de objetos, sua relevncia social e simblica, assim como sua repercusso subjetiva em cada um de ns, termina por nos passar desapercebida em razo mesmo da proximidade, do aspecto familiar e do carter de obviedade que assume. Na maioria das vezes, a tendncia mais forte para o esquecimento da existncia e da eficcia dos sistemas de classificao a partir dos quais esses objetos so percebidos: quando, por exemplo, nos limitamos a perceber estes ltimos segundo uma razo prtica (Sahlins 1976), a partir da qual eles existiriam em funo de sua

utilidade, manipulados por indivduos a partir de suas necessidades e interesses supostamente universais (Dumont 1985; Sahlins 2004 [1996]) 1, conforme sugere uma perspectiva a que um autor chamou de concepo estratigrfica da cultura (Geertz 1989: 25-40). Essa epistemologia, cabe sublinhar, pressupe uma naturalizao das modernas categorias ocidentais de sujeito e objeto cuja problematizao parece ser a condio mesma para uma reflexo antropolgica. A literatura antropolgica e etnogrfica tem nos ensinado h mais de um sculo que so precisamente esses sistemas de categorias culturais que fazem a mediao e, mais que isso, organizam e constituem esses dois termos polares, e que sem esses sistemas de categorias, sem sistemas de classificao, os objetos materiais (assim como seus usurios) no ganham existncia significativa (Durkheim & Mauss 2001 [1903]; Mauss 2003; Boas 1966 [1911]; Whorf 1984 [1956]; Sapir 1985 [1934]; Lvi-Strauss 1962; Douglas 1975; Sahlins 2004 [1976]; Geertz 1973). Na medida em que os objetos materiais circulam permanentemente na vida social, importa acompanhar descritiva e analiticamente seus deslocamentos e suas transformaes (ou reclassificaes) atravs dos diversos contextos sociais e simblicos: sejam as trocas mercantis, sejam as trocas cerimoniais, sejam aqueles espaos institucionais e discursivos tais como as colees, os museus e os chamados patrimnios culturais. Acompanhar o deslocamento dos objetos ao longo das fronteiras que delimitam esses contextos em grande parte entender a prpria dinmica da vida social e cultural, seus conflitos, ambigidades e paradoxos, assim como seus efeitos na subjetividade individual e coletiva. Os estudos antropolgicos produzidos sobre objetos materiais, repercutindo esse quadro, tm oscilado seu foco de descrio e anlise entre esses contextos sociais, cerimoniais, institucionais e discursivos.

1 Para uma reflexo original e problematizadora da categoria indivduo no contexto da sociedade e da cultura brasileira ver a obra de Roberto DaMatta (1980).

osantroplogoseseusobjetosNo ser exagero afirmar que o entendimento de quaisquer formas de vida social e cultural implica necessariamente na considerao de objetos

{jos reginaldo santos gonalves}

15

materiais. Estes, na verdade, sempre estiveram presentes na histria da antropologia social e /ou cultural e particularmente na literatura etnogrfica. Alguns se tornaram clebres: os churinga nos ritos australianos (Durkheim 2000); os colares e braceletes do circuito do Kula trobriands (Malinowski [1922] 1976); as mscaras dogon (Griaule 1938). Mas ao longo da histria da disciplina nem sempre os antroplogos estiveram voltados para o estudo dos objetos materiais enquanto tema especfico de descrio e anlise. Acompanhar as interpretaes antropolgicas produzidas sobre os objetos materiais at certo ponto acompanhar as mudanas nos paradigmas tericos ao longo da histria dessa disciplina. Em fins do sculo XIX e incio do sculo XX, na condio de objetos etnogrficos, eles foram alvo de colecionamento, classificao, reflexo e exibio por parte de autores cujos paradigmas evolucionistas e difusionistas situavam-nos no macro-contexto da histria da humanidade. O destino desses objetos era no somente as pginas das obras etnogrficas (no necessariamente produzidas por antroplogos profissionais, mas por viajantes e missionrios) e das grandes snteses antropolgicas do perodo, mas sobretudo os espaos institucionais dos museus ocidentais, ilustrando as etapas da evoluo scio-cultural e os trajetos de difuso cultural. Objetos retirados dos contextos os mais diversos, dos mais distantes pontos do planeta, eram re-classificados com a funo de servir como indicadores dos estgios de evoluo pelos quais supostamente passaria a humanidade como um todo. Uma mscara ritual da Melansia poderia ser colocada lado a lado com uma outra de origem africana. Uma vez identificadas e descritas a sua composio material e a sua forma esttica, uma delas poderia ser classificada como a que apresentava maior complexidade e pressupondo uma tecnologia mais avanada do que a outra. Assim sendo, indicariam estgios hierarquicamente diferenciados de evoluo entre as sociedades de onde vieram. Ou poderiam ser classificadas como indicadores de um mesmo nvel de complexidade e de evoluo tecnolgica, o que indicaria a posio similar das socieda-

16

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

des que as produziram na grande escala da evoluo scio-cultural da humanidade (Stocking 1968; 1985; Chapman 1985; Dias 1991; 1991a; 1994; Gonalves 1994; ver Captulo II deste livro). Os processos histricos de difuso de objetos materiais e traos culturais entre diversas sociedades preocupavam muitos autores, os quais viam os objetos como meios de reconstituir esses processos. Ao longo dos trajetos de difuso os objetos sofriam modificaes, tornavam-se mais complexos. A cultura humana, para eles, era raramente um assunto de inveno, mas de transmisso. Alguns operavam com modelos nos quais se traavam crculos concntricos, onde o ponto central era onde supostamente se situava o objeto em sua forma primeira, sua forma original. Na medida em que se difundia, ele se transformava. Esse raciocnio valia tanto para objetos materiais como para instituies, prticas sociais, idias e valores, sendo que alguns levaram essa viso a extremos, afirmando que era possvel identificar um nico centro de onde teria partido todas as invenes culturais significativas da humanidade. Apesar das diferenas que os separavam, os paradigmas evolucionistas e difusionistas no entanto convergiam quanto a um ponto fundamental: a cultura era concebida como um agregado de objetos e traos culturais. Isto significa dizer que estes eram interpretados como elementos que responderiam a questes e dificuldades universais. Estava aberta a porta para uma percepo e entendimento claramente etnocntricos desses objetos e das culturas da qual faziam parte (Lvi-Strauss 1973: 13-44). Esses paradigmas, com suas divergncias e convergncias, forneceram os modelos museogrficos dos grandes museus enciclopdicos do sculo XIX (Schwarcz 1998; Dias 1991a). O objetivo destes era narrar a histria da humanidade desde suas origens mais remotas, reconstituindo esse longo caminho at chegar ao que entendiam como o estgio mais avanado do processo evolutivo: as modernas sociedades ocidentais. a partir dessas coordenadas tericas, fundadas numa concepo de cultura como um agregado de objetos e traos culturais, que veio a se delimitar uma rea de pesquisa: os chamados estudos de cultura material. Como se possvel

{jos reginaldo santos gonalves}

17

fosse separar na vida social e cultural o material e o imaterial (ver Captulo XII deste livro). um ponto importante merece ser ainda assinalado para entendermos as diferenas entre as formas como os antroplogos pensaram a categoria objetos materiais ao longo da histria da disciplina: nesse perodo, que ficou conhecido como a era dos museus, diferentemente do que veio a ocorrer em dcadas subseqentes, a relao entre etngrafos, antroplogos e museus era bastante prxima. A antropologia nessa poca era de certo modo produzida nos limites institucionais dos museus (Karp & Levine 1991; Gonalves 1994; ver Captulo III deste livro).

aantropologIaps-boasIanaUm autor como Franz Boas (1858-1942) ainda em 1896 formulou uma crtica extremamente poderosa s teorias evolucionistas e difusionistas e essa crtica se estendia aos modelos museogrficos concebidos a partir daquelas teorias. O ponto forte da argumentao de Boas o de que esses antroplogos pensavam os objetos materiais em funo de seus macroesquemas de evoluo e difuso, esquecendo-se de se perguntarem pelas suas funes e significados no contexto especfico de cada sociedade ou cultura onde foram produzidos e usados. Diante de uma mscara melansia e uma mscara africana, no era suficiente descrever o material com que eram feitas, nem o estilo que as caracterizava, nem a tecnologia mais ou menos evoluda com que eram produzidas. Era necessrio saber qual o uso dessas mscaras, e conseqentemente qual o seu significado para as pessoas que as empregavam em diversos contextos sociais e rituais. Em outras palavras, era preciso saber quem as usava, quando e com quais propsitos, o que permitiria revelar a diferena verdadeira entre uma mscara melansia usada em rituais religiosos e uma outra mscara usada nas festas de carnaval em algumas sociedades ocidentais. preciso observar que a partir dessa crtica desloca-se o foco de descrio e anlise dos objetos materiais (de suas formas, matria e tcnicas de fabricao) para os seus usos e significados e conseqentemente para as relaes sociais

18

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

em que esto envolvidos os seus usurios. O estudo comparativo dessas relaes nos revelaria as funes e os significados dos objetos materiais e dos traos culturais em diferentes culturas (Boas 2004 [1896]); Stocking 1974; Jacknis 1985). A antropologia ps-boasiana ou ps-malinowskiana, se utilizarmos a obra de Bronislaw Malinowski (1884-1942) como referncia produzida a partir das primeiras dcadas do sculo XX veio de certo modo a relegar progressivamente o estudo da cultura material a uma posio marginal na disciplina, em grande parte devido ao desgaste sofrido pela perspectiva etnocntrica da antropologia vitoriana. Apesar disso, importante enfatizar que os objetos materiais jamais vieram a se ausentar das pginas das monografias antropolgicas. Esse perodo da histria da antropologia, marcado pela sua profissionalizao e pela juno dos papis de etngrafo e de antroplogo distingue-se pelo afastamento dos antroplogos profissionais em relao aos museus. A produo cientfica da antropologia social ou cultural desloca-se dos museus para os recm criados departamentos de antropologia nas universidades (Clifford 1988: 21-54; Jacknis 1996; Stocking 2004; Stocking 1985; Schwarcz 1998). Nas dcadas subseqentes, especialmente aps a II Guerra Mundial, os antroplogos sociais britnicos de orientao estrutural-funcionalista e voltados para o estudo de sociedades (ao invs de culturas) interpretaro os objetos materiais como sinais diacrticos a indicar posies sociais, pouco importando a descrio e anlise da forma e do material e da tcnica com que eram produzidos esses objetos. A formao desses antroplogos no passava necessariamente pelos museus e pela ateno cultura material e as teorias antropolgicas com as quais operavam vieram a deslocar o seu foco de discusso dos objetos materiais para as relaes sociais e para os significados dessas relaes. Os objetos vo ser interpretados com base num esquema terico onde eles existiam no em funo de estarem respondendo a necessidades prticas universais, nem como indicadores de processos evolutivos e de difuso, mas como meios de demarcao de identidades e posies na vida social. No incio

{jos reginaldo santos gonalves}

1

dos anos sessenta, o antroplogo Edmund Leach (1910-1989), ao refletir sobre o que ele pensava ser a diferena fundamental entre o conceito de sociedade e o conceito de cultura dizia:A cultura proporciona a forma, a roupagem da situao social. Para mim, a situao cultural um fator dado, um produto e um acidente da histria. No sei por que as mulheres kachin antes de se casarem andam com a cabea descoberta e o cabelo cortado curo, mas usam um turbante depois, tanto quanto no sei por que as mulheres inglesas pem um anel num dedo particular para denotar a mesma mudana de status social; tudo o que me interessa que nesse contexto kachin o uso de um turbante por uma mulher tem esse significado simblico. uma afirmao sobre o status da mulher (1995 [1964]: 79).

Se interpretamos o texto corretamente, pouco importava teoricamente se uma mulher kachin, ao passar da condio de solteira para a de casada, passava a usar um turbante; enquanto uma mulher ocidental passava a usar uma aliana na mo esquerda. O importante, do ponto de vista do analista, era que um e outro objeto estariam demarcando uma mudana de status, especificamente da condio de solteira para a condio de casada. Nessa perspectiva, os objetos materiais so pensados como um sistema de comunicao, meios simblicos atravs dos quais indivduos, grupos e categorias sociais emitem (e recebem) informaes sobre seu status e sua posio na sociedade (Leach 1995 [1964]; Graburn 1975; Douglas 1982; Douglas & Isherwood 2004; Miller 1987; 1995; Bourdieu 1979).

osestudosdeantropologIasImblIcaJ os estudos antropolgicos voltados especificamente para a natureza e as funes especficas do simbolismo na vida social, especialmente a partir dos anos sessenta, resgataram a relevncia social e cognitiva do estudo dos objetos materiais no contexto da vida cotidiana, dos rituais e dos mitos. Este o caso dos estudos de antropologia estrutural; e tambm dos estudos produzidos pela chamada antropologia simblica (Dolgin; Kemnitzer; Schneider 1977).

20

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

muitos desses antroplogos viro a contestar aquela concepo defendida por Edmund Leach e iro perguntar se o papel dos objetos materiais (e dos smbolos em geral) na vida social se resume afinal a essa funo de comunicao, a de serem apenas sinais diacrticos de posies e identidades sociais. E vo sugerir que os objetos no apenas demarcam ou expressam tais posies e identidades, mas que na verdade, enquanto parte de um sistema de smbolos que condio da vida social, organizam ou constituem o modo pelo qual os indivduos e os grupos sociais experimentam subjetivamente suas identidades e status. A partir dessa perspectiva, seria sim relevante saber por que uma mulher kachin usa turbante e por que uma mulher ocidental uma aliana no dedo anular esquerdo. Seria relevante conhecer a forma desses objetos, o material e a tcnica de fabricao, assim como as modalidades e contextos de uso. Afinal cada um deles faz parte de um sistema de representaes coletivas, um sistema de categorias culturais que organiza o modo como essas mulheres experimentam subjetivamente a sua condio de mulheres e suas eventuais mudanas de status ao longo de sua biografia. Enquanto objetos cerimoniais, eles no apenas demarcam posies sociais, mas permitem que os indivduos e os grupos sociais percebam e experimentem subjetivamente suas posies e identidades como algo to real e concreto quanto os objetos materiais que os simbolizam (Mauss 1967 [1947]; Turner 1967; Sahlins 2004 [1976]; Seeger 1980).2 Importante assinalar que, a partir dessa perspectiva, os objetos materiais, como aqueles classificados como tecnologia (Schlanger 1998) ou como arte (Boas 1955; Levi-Strauss 1958; Forge, 1973; Geertz 1998: 142-181; Gell 1992; Almeida 1998; Price 2000; Lagrou 2000), sero pensados no mais enquanto parte de uma totalidade social e cultural que se confunde com os limites de uma determinada sociedade ou cultura empiricamente considerada, mas sim enquanto parte de sistemas simblicos ou categorias culturais cujo alcance ultrapassa esses limites empricos e cuja funo, mais do que a de representar, a de organizar e constituir a vida social. Em outras palavras, eles sero interpretados, segundo a ex-

2 Para uma fonte notvel de dados e interpretaes estimulantes sobre objetos materiais (mobilirio, roupas, meios de transporte, comidas e bebidas) seus usos e significados na sociedade brasileira, so indispensveis as obras de Gilberto Freyre (1981; 2000; 2004); e especialmente as de Luis da Cmara Cascudo (1957; 1983 [1959]; 1962 [1954]; 1983 [1963]; 1986 [1968]; 2001); artigos que publiquei sobre algumas das obras de Cascudo podem ser teis (Gonalves 2000; ver Captulo X deste livro).

{jos reginaldo santos gonalves}

21

presso basilar de Marcel Mauss, como fatos sociais totais (Mauss 2003), exigindo portanto que se ponham de quarentena e se problematizem as categorias classificatrias usadas na sociedade do observador.

ahIstorIcIzaodaantropologIa:areaproxImaoentreantroplogos eosmuseusMas a partir dos anos oitenta, como parte do processo de historicizao da disciplina, que os objetos materiais, especificamente enquanto partes integrantes de colees, museus, arquivos e patrimnios culturais viro a ser tematizados como foco estratgico para a pesquisa e reflexo sobre as relaes sociais e simblicas entre os diversos personagens da histria da antropologia social ou cultural: viajantes, missionrios, etngrafos, antroplogos, nativos, colecionadores, museus, universidades, poderes coloniais, lideranas tnicas, etc. Assiste-se nesse perodo a uma reaproximao entre os antroplogos e os museus, os quais passam a ser considerados como objetos de pesquisa, descrio e anlise. Ao mesmo tempo, assiste-se a um trabalho de problematizao sistemtica (e denncia) do papel desempenhado por essas instituies enquanto mediadores sociais, simblicos e polticos no processo de construo de representaes ideolgicas sobre diversos grupos e categorias sociais, especialmente aqueles que foram tradicionalmente eleitos como objetos de estudo da antropologia. Em parte da literatura antropolgica produzida nas duas ltimas dcadas do sculo XX sobre os objetos materiais, estes sero estudados no exclusivamente enquanto partes funcionais e significativas de determinados contextos sociais, rituais e cosmolgicos nativos; mas tambm enquanto componentes dos processos sociais, institucionais, epistemolgicos, e polticos de apropriao e colecionamento que sofrem por parte das sociedades ocidentais, atravs de colees, museus, arquivos e patrimnios culturais (Stocking 1985; Clifford 1988; 1994; 1997; 2002; Hainard & Kaehr 1982; 1885; Haraway 1989; Karp & Levine 1991; Karp; Kreamer; Levine 1991; Steven Kirshenblatt-Gimblett 1991; Dias 1991; 1991a; 1994;

22

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

Thomas 1991; Ames 1992; Jones 1993; Greenfield 1996; Grupioni 1998; Jacknis 2002). O interesse recente pelo tema na rea de antropologia (sobretudo a partir dos anos oitenta) est em parte associado a um determinado momento da histria da disciplina que j foi caracterizado por um conhecido historiador da antropologia como um momento reflexivo, hermenutico, interpretativo, desconstrutivo, ou ainda como a manifestao de uma sensibilidade romntica, que acompanharia toda a histria dessa disciplina (Stocking 1989:7). Mas evidentemente os objetos materiais que integram as colees, museus e patrimnios no so estudados apenas pela sua ntima relao com a histria da antropologia social ou cultural. essas instituies constituem na verdade o locus de cruzamento de uma srie de relaes de ordem epistemolgica, social e poltica, configurandose como reas estratgicas de pesquisa e reflexo para o entendimento das relaes sociais, simblicas e polticas entre diversos grupos e segmentos sociais, especialmente aqueles que se fazem presentes nos contextos coloniais e ps-coloniais. Acrescente-se que, ao longo de sua histria, elas desempenharam e desempenham ainda um papel importante na formao, transmisso e estabilizao de uma srie de categorias de pensamento fundamentais para o ocidente moderno em suas relaes com as culturas no ocidentais: civilizado / primitivo; natureza / cultura; civilizao /culturas; passado / presente; tradio / modernidade; erudito / popular; nacional / estrangeiro; cincia / magia e religio (Stewart 1984; Haraway 1989; Schwarcz 1998; Santos 1988; 1992; 2003; 2004; Pearce 1992; Kury; Camennietzki 1997; Cavalcanti 2001; Latour 2002). Entre essas categorias cabe certamente sublinhar o papel desempenhado pela noo de autenticidade, cuja notvel funo social, poltica e cognitiva j foi assinalada por diversos autores (Sapir 1985; MacCannell 1976; Handler 1986; Clifford 1988; ver Captulo VII deste livro). O deslocamento dos objetos materiais para os espaos de colees privadas ou pblicas ou para museus (por exemplo, na condio de objetos etnogrficos ou arte primitiva) pressupe evidentemente a sua

{jos reginaldo santos gonalves}

23

circulao anterior e posterior em outras esferas. Antes de chegarem condio de objetos de coleo ou de objetos de museu, foram objetos de uso cotidiano, foram mercadorias, ddivas ou objetos sagrados. Afinal, conforme j foi sugerido, cada objeto material tem a sua biografia cultural (Kopytoff 1986) e sua insero em colees, museus e patrimnios culturais apenas um momento na vida social. No entanto, esse momento crucial pois nos permite perceber os processos sociais e simblicos por meio dos quais esses objetos vm a ser transformados ou transfigurados em cones legitimadores de idias, valores e identidades assumidas por diversos grupos e categorias sociais.

ocolecIonamentocomocategorIadepensamentoEsse processo de deslocamento dos objetos materiais do cotidiano para o espao de museus e patrimnios pressupe uma categoria fundamental: o colecionamento. Na verdade, toda e qualquer coletividade humana dedica-se a alguma atividade de colecionamento, embora nem todas o faam com os mesmos propsitos e segundo os mesmos valores presentes nas modernas sociedades ocidentais. Quem coleciona o qu, onde, segundo quais valores e com quais objetivos? Basicamente, toda e qualquer coleo pressupe situaes sociais, relaes sociais de produo, circulao e consumo de objetos, assim como diversos sistemas de idias e valores e sistemas de classificao que as norteiam. Em algumas sociedades colecionam-se determinados objetos materiais com o propsito de redistribu-los ou mesmo de destru-los; no ocidente moderno, o colecionamento est fortemente associado acumulao (Mauss 2003; Malinowski [1922] 1976; Clifford 1988). Um dos espaos institucionais que no contexto globalizado das modernas sociedades ocidentais abrigam e exibem as colees (especialmente as colees etnogrficas) so os museus. Enquanto instituies culturais, ele tm acompanhado os ltimos cinco sculos de histria da civilizao ocidental, assumindo funes e significados diversos ao longo desse tempo e em diferentes contextos scio-cul-

24

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

turais. Desde os gabinetes de curiosidades dos sculos XVI e XVII s colees privadas de nobres e ricos burgueses da Renascena, passando pelos museus de histria natural e pelos museus nacionais do sculo XIX e incio do sculo XX, at os museus do final do sculo XX e princpios do sculo XXI, essa instituio parece traduzir ou representar, em suas estruturas materiais e conceituais, concepes diversas da ordem csmica e social (Oliver Impey 2001; Kury & Camenetzky 1997; Sherman & Rogoff 1994). Alm disso, a instituio parece estar intimamente associada aos processos de formao simblica de diversas modalidades de autoconscincia individual e coletiva no ocidente moderno. Nas ltimas dcadas, observa-se um notvel crescimento dos museus em todo o planeta. Aparentemente, estamos vivendo uma nova era dos museus semelhante (embora com diferentes significados e funes) quela que caracterizou a segunda metade do sculo XIX e incio do sculo XX. sintomtico que, desde os anos oitenta do ltimo sculo, essa instituio, enquanto tema de reflexo, tenha ocupado progressivamente um maior espao nos debates acadmicos (em antropologia, em histria, em sociologia e nos chamados estudos culturais), o que se manifesta na crescente e significativa bibliografia produzida sobre o tema, sobretudo nos EEUU e na Europa, mas tambm no Brasil (ver Captulo III deste livro). Em parte dessa bibliografia, a coleo aparece como uma categoria histrica e culturalmente relativa, prpria do ocidente moderno e sujeita a transformaes intelectuais e institucionais. Mas ela pode assumir uma dimenso mais ampla e ser pensada no apenas como uma categoria nativa do ocidente moderno, mas como uma categoria universal, como uma prtica cultural presente em toda e qualquer sociedade humana. Desse modo, ela assume em alguns autores rendimento analtico, servindo como eixo para uma anlise comparativa (Baudrillard 1989; Alexander 1979; Hainard & Kaehr 1982; 1985; Pomian 1987; 1991; 1997; 1997a; 2003; Clifford 1988; ver Captulo III deste livro) .

{jos reginaldo santos gonalves}

25

3 interessante observar que essa discusso (sobre modos alternativos de representao etnogrfica), que, para muitos, teria sido uma criao dos chamados psmodernos, , na verdade, um problema j assinalado por Clifford Geertz no incio dos anos 70: ...a maior parte da etnografia encontrada em livros e artigos, em vez de filmes, discos, exposies de museus, etc. Mesmo neles h, certamente, fotografias, desenhos, diagramas, tabelas e assim por diante. Tem feito falta antropologia uma autoconscincia sobre modos de representao (para no falar de experimentos com elas) (1973:30).

No contexto da recente literatura produzida sobre colees e museus etnogrficos, o centro da discusso est evidentemente nos limites da representao etnogrfica do outro. A discusso se far a partir de outras formas de representao etnogrfica que no exclusivamente os textos: fotografias, filmes, exposies em museus, etc.3 A partir desse enfoque, as colees e museus etnogrficos deixam de aparecer como conjuntos de praticas ingnuas ou neutras, para serem redesenhadas como espaos onde se constituem formas diversas da autoconscincia moderna: a do etngrafo, a do colecionador, a do nativo, a do civilizado, do primitivo, etc. (Stocking 1985; Clifford 1985: 236-246; Clifford 1988; Kirshenblatt-Gimblett 1991; Dias 1991; Hollier 1993).

objetosmaterIaIscomopatrImnIosculturaIsEm um sugestivo texto onde comenta o poder dos objetos, Annette Weiner afirma:...ns usamos objetos para fazer declaraes sobre nossa identidade, nossos objetivos, e mesmo nossas fantasias. Atravs dessa tendncia humana a atribuir significados aos objetos, aprendemos desde tenra idade que as coisas que usamos veiculam mensagens sobre quem somos e sobre quem buscamos ser. (...) Estamos intimamente envolvidos com objetos que amamos, desejamos ou com os quais presenteamos os outros. Marcamos nossos relacionamentos com objetos (...). Atravs dos objetos fabricamos nossa auto-imagem, cultivamos e intensificamos relacionamentos. Os objetos guardam ainda o que no passado vital para ns. (...) no apenas nos fazem retroceder no tempo como tambm tornam-se os tijolos que ligam o passado ao futuro. (Weiner 1987: 159).

Na formulao mais abrangente e mais precisa de um outro antroplogo, Roy Wagner, os objetos materiais, de certo modo, constituem nossa subjetividade individual e coletiva:Existe uma moralidade das coisas, dos objetos em seus significados e usos convencionais. Mesmo ferramentas no so tanto instrumentos utilitrios funcionais quanto uma espcie de propriedade humana ou cultural comum, relquias que

26

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

constrangem seus usurios ao aprenderem a us-los. Podemos mesmo sugerir [...] que esses instrumentos usam os seres humanos, que brinquedos brincam com as crianas, e que armas nos estimulam luta. [...] Assim, em nossa vida com esses brinquedos, ferramentas, instrumentos e relquias, desejando-os, colecionando-os, ns introduzimos em nossas personalidades todo o conjunto de valores, atitudes e sentimentos na verdade a criatividade daqueles que os inventaram, os usaram, os conhecem e os desejam e os deram a ns. Ao aprendermos a usar esses instrumentos ns estamos secretamente aprendendo a nos usar; enquanto controles, esses instrumentos mediam essa relao, eles objetificam nossas habilidades (Wagner 1981: 76-77).

Esses dois textos apontam de formas distintas para a funo simblica dos objetos materiais nos processos de formao de modalidades de autoconscincia individual e coletiva. A sugesto que sem os objetos no existiramos; ou pelo menos no existiramos enquanto pessoas socialmente constitudas. Sejam os objetos materiais considerados nos diversos contextos sociais, simblicos e rituais da vida cotidiana de qualquer grupo social; sejam eles retirados dessa circulao cotidiana e deslocados para os contextos institucionais e discursivos das colees, museus e patrimnios; o fato importante a considerar aqui que eles no apenas desempenham funes identitrias, expressando simbolicamente nossas identidades individuais e sociais, mas na verdade organizam (na medida em que os objetos so categorias materializadas) a percepo que temos de ns mesmos individual e coletivamente (Clifford 1985). Na vida social em geral os objetos materiais podem circular na forma de mercadorias, podendo ser livremente comprados e vendidos; ou na forma de ddivas e contra-ddivas; ou ainda terem a sua circulao restringida na forma de bens inalienveis (Weiner 1992). Evidentemente, os objetos materiais esto submetidos a um processo permanente de circulao e reclassificao, podendo ser deslocados da condio de mercadoria para a condio de presentes; ou da condio de presentes para a condio de mercadorias; e alguns desses objetos podem ser elevados condio de bens inalienveis, os quais, nessa condio, em princpio no podem

{jos reginaldo santos gonalves}

27

4 Para a j extensa produo bibliogrfica sobre patrimnio cultural no Brasil, vale a pena consultar: Arantes 1984; Gouveia 1985; Abreu 1996; 2003; Londres 1997; 2001; Rubino 1991; Santos 1992; Lima Filho 2001; Proena 2004; entre muitos outros. Para a discusso dessa categoria no contexto francs, especialmente do ponto de vista dos historiadores, ver (Nora 1997).

ser nem vendidos e nem doados, mas que integram os sistemas de trocas recprocas para que paradoxalmente possam ser mantidos e guardados sob o controle de determinados grupos (Mauss 2003; Gregory 1982; Weiner 1992; Godelier 2001; Hnnaf 2002:135-207). possvel que essa categoria universal de bens nos possa ser til para entender ao menos parcialmente aqueles objetos que, uma vez retirados da circulao cotidiana, vm a ser, no contexto das modernas sociedades ocidentais, classificados como patrimnio cultural. Objetos que compem colees particulares podem ser vendidos e comprados; e mesmo objetos que integram o acervo de museus podem eventualmente ser vendidos ou trocados; mas, em princpio, no admitido esse procedimento para aqueles objetos classificados como patrimnio cultural por determinado grupo social. Na medida em que assim classificados e coletivamente reconhecidos, esses objetos desempenham uma funo social e simblica de mediao entre o passado, o presente e o futuro do grupo, assegurando a sua continuidade no tempo e sua integridade no espao. Nas ltimas dcadas, tem crescido notavelmente a literatura sobre os chamados patrimnios culturais em diversas reas, mas especialmente na rea de antropologia4. Grande parte desses estudos corretamente tem assinalado as funes identitrias daqueles objetos materiais (ou mesmo de supostos bens imateriais ou intangveis) na representao pblica de identidades coletivas (naes, grupos tnicos, grupos religiosos, bairros, regies). Aparentemente, menos nfase vem sendo dada natureza mesma dos objetos eleitos como patrimnio (sua forma, o material com que so produzidos, as tcnicas de produo adotadas, seus usos sociais e rituais) para representar uma determinada identidade e memria. Em alguns estudos, a sugesto implcita ou explcita de que a escolha desses objetos seria de natureza arbitrria, contingente, materializando o que seriam emblemas de tradies inventadas (Hobsbawm&Ranger 1992). As aes que levariam a tais escolhas seriam conscientes e intencionais, visando propsitos ideolgicos e polticos em contextos sociais marcados pelos conflitos de interesses e valores.

28

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

Se formos coerentes com a perspectiva que estamos explorando, teremos que efetivamente perguntar se afinal assim arbitrrio e contingente esse processo de escolha e se, ao legitimarmos essa tese, no estaremos nos prendendo lgica etnocntrica da razo prtica (Sahlins 1976). A tese da inveno dos patrimnios vem se tornando uma verdadeira obsesso e penso se no seria tempo de explorarmos a sugesto segundo a qual mais importante que a inveno das tradies, seria pensarmos na inventividade das tradies (Sahlins 1999). Ou, parafraseando a rica sugesto de Roy Wagner, se no ser oportuno considerar se no so afinal os patrimnios culturais que nos inventam (no sentido de que constituem nossa subjetividade), ao mesmo tempo em que os construmos no tempo e no espao. Em outras palavras: quando classificamos determinados conjuntos de objetos materiais como patrimnios culturais, esses objetos esto por sua vez a nos inventar, uma vez que eles materializam uma teia de categorias de pensamento por meio das quais nos percebemos individual e coletivamente. Por esse prisma, a categoria patrimnio cultural assume uma dimenso universal e no seria apenas um fenmeno ocidental e moderno: na verdade, manifestar-se-ia de formas diversas em toda e qualquer sociedade humana.5 Nesse sentido, os processos sociais e culturais que levam escolha desses objetos escapam em grande parte s nossas aes conscientes e propositais de natureza poltica e ideolgica. Seria importante para o entendimento de sua natureza o trabalho de acompanhamento dos processos sociais e simblicos de circulao, deslocamento e de reclassificao que os elevam condio de patrimnios culturais. nesses processos de reclassificao que podemos surpreender a construo e os efeitos daquelas categorias fundamentais de objetos situados para alm da condio de mercadorias ou ddivas: objetos que, retirados da circulao mercantil e da troca recproca de presentes, acedem condio de bens inalienveis, e que circulam, paradoxalmente, para serem guardados e mantidos sob o controle de determinados grupos e instituies, assegurando para estas sua continuidade no tempo e no espao.

5 Do ponto de vista das ideologias das modernas sociedades ocidentais, a categoria patrimnio tende a aparecer com delimitaes muito precisas. uma categoria individualizada, seja enquanto patrimnio econmico e financeiro; seja enquanto patrimnio cultural; seja enquanto patrimnio gentico; etc. Nesse sentido, suas qualificaes acompanham as divises estabelecidas pelas modernas categorias de pensamento: economia; cultura; natureza; etc. Sabemos no entanto que essas divises so construes histricas. Podemos pensar que elas so naturais, que fazem parte do mundo. Na verdade resultam de processos de transformao histrica e continuam em mudana. A categoria patrimnio, tal como ela usada na atualidade, nem sempre conheceu fronteiras to bem delimitadas. Em contextos no modernos (e mesmo em contextos especficos das modernas sociedades ocidentais) ela tende a assumir formas totais, incorporando amplas dimenses cosmolgicas e sociais, exigindo assim o seu entendimento como fatos sociais totais (ver Captulo VI deste livro) .

{jos reginaldo santos gonalves}

2

referncias bibliogrficasAbreu, Regina 1996 A fabricao do imortal: memria, histria e estratgias de consagrao no Brasil. Rio de Janeiro, Lapa/Rocco. Abreu, Regina; Chagas, Mrio (orgs). 2003 Patrimnio e Memria: ensaios contemporneos. DP&A/FAPERJ. Alexander, Edward Poter 1979 Museums in motion: an introduction to the history and functions of museums Nashville, American Association for State and Local History. Almeida, Katia 1998 Por uma semntica profunda: arte, cultura e histria no pensamento de Franz Boas In: Mana, vol. 4 n. 2, pp. 7-34. Ames, Michael M. 1992 Cannibal tours and glass boxes: the anthropology of museums. Vancouver: University of British Columbia Press. Appadurai, Arjun 1986 The social life of things: commodities in cultural perspective. Cambridge, England: Cambridge University Press. Arantes, Antonio Augusto 1984 A produo do passado. So Paulo: Brasiliense. baudrillard, jean 1989 O sistema dos objetos. Ed. Perspectiva, So Paulo. boas, Franz 1955 Primitive art. New York: Dover Publications, Inc.

30

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

1966 [1911] Introduction to the handbook of American Indian languages In: Powell, J. W. & Boas, Franz American Indian Languages (editado por Holder, Preston) pp. 1-79. University of Nebraska Press. 2004 [1896] As limitaes do mtodo comparative na antropologia In: Franz Boas:Antropologia Cultural (org. Celso Castro), Rio de Janeiro: Zahar. bourdieu, pierre 1979 La distinction: critique sociale du jugement. Le sesn commun, Paris, Les Editions de Minuit. Cascudo, Luis da Cmara 1962 [1954] Dicionrio do Folclore do Brasil. Rio de Janeiro: INL. 1983 [1959] Rde de dormir: uma pesquisa etnogrfica. Rio de Janeiro, FUNARTE / INF, Achiam, UFRN. 1983 [1963] Histria da alimentao no Brasil. 2 volumes. Ed. I Itatiaia. 1986 [1968] Preldio cachaa. So Paulo: Ed. Itatiaia. 1957 Jangada: uma pesquisa etnogrfica. Rio de Janeiro: INL. 2001 Superstio no Brasil. 4 edio. So Paulo: Global Editora. cavalcanti, maria laura Viveiros de castro 2001 Cultura e saber do povo: uma perspective antropolgica In: Patrimnio Imaterial. (org. Ceclia Londres). Rio de Janeiro: Tempo Brsileiro. Chapman, William Ryan 1985 Arranging ethnology: A.H.L.F. Pitt Rivers and the Typological Tradition In: Objects and others: essays on museums and material culture. Madison: University of Wisconsin Press. Clifford, James

1985 Objects and selves: an afterword In: Objects and Others: essays on museums and material culture. (org. G. Stocking). Pp. 23631

{jos reginaldo santos gonalves}

246. The University of Wisconsin Press. 1988 The predicament of culture: twentieth century ethnography, literature, and art. Cambridge, Mass: Harvard University Press. 1994 Clifford, J. Colecionando arte e cultura In: Revista do Patrimnio, no. 23, 1994, pp. 69-89. 2002 [1998] A experincia etnogrfica: antropologia e literatura no sculo XX. (Org. Jos Reginaldo Santos Gonalves), 2a reimpresso. Rio de Janeiro, Ed. da UFRJ. 1 reimpresso 1997 Routes: Travel and Translation in the Late Twentieth Century. Cambridge, MA: Harvard University Press. Clifford, James; Marcus, George (orgs.) 1986 Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley, University of California Press. DaMatta, Roberto 1980 Carnavais, malandros e heris: para uma sociologia do dilema brasileiro. 5 edio. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara. Dias, N. 1991 Le muse dEthnographie du Trocadro: 1878-1908. Anthropologie et musologie en France, Paris, Ed. du CNRS. 1991a Muses In: Bonte,P.; Izard, M. Le dictionnaire de lethnologie et de lanthropologie. Paris, PUF. 1994 "Looking at objects: memory, knowledge in nineteenthcentury ethnography displays" In: Robertson, G. et allii (eds.) Tales of displacement: narratives of home and displacement. Londres, Routledge. dumont, louis 185 o individualismo: uma perspectiva antropolgica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco.

32

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

Durkheim, E.; Mauss, M. Sobre algumas formas primitivas de classificao Dolkin, Janet; Kemnitzer, David; Schneider, David (eds). 1977 Symbolic anthropology: a reader in the study of symbols and meanings. New York: Columbia University press. Douglas, Mary 1975 Implicit meanings: essays in anthropology. Londres: Routledge. 1982 Goods as a system of communication In: In the active voice. Pp. 16-33. London: Routledge & Keagan Paul. Douglas, Mary; Isherwood, Baron 2004 O mundo dos bens: por uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ. Durkheim, . 2000 As formas elementares da vida religiosa, Martins Fontes, So Paulo. 2001 [1903] Algumas formas primitivas de classificao In: Mauss, M. Ensaios de Sociologia. Pp. 399-456. So Paulo: Ed. Perspectiva. Londres, Ceclia 1997 O patrimnio em processo: trajetria da poltica federal de Preservao no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ/Minc/IPHAN. 2001 Para alm da pedra e cal: por uma concepo ampla de patrimnio In: Patrimnio Imaterial. Revista Tempo Brasileiro, no. 147. Rio de Janeiro. Forge, Anthony (ed.) 1973 Primitive art and society. Londres: Oxford University Press. Freyre, Gilberto 1981 Sobrados e mocambo: decadncia do patriarcado rural e desenvolvimento urbano. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora.

{jos reginaldo santos gonalves}

33

2000 Assombraes do Recife Velho. Topbooks / UniverCidade Editores. 2004 Casa Grande & Senzala: formao da famlia brasileira sob o regime da economia patriarcal. 49 edio. So Paulo: Global Editora. Geertz, Clifford 1989 A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LTC. 1998 Arte como sistema cultural In: Saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Pp. 142-181. Rio de Janeiro, Zahar. gell, Alfred 1992 The technology of enchantment and the enchantment of thechnology In:Coote&Shelton (eds.), Anthropology, Art and Aesthetics. Pp. 40-63 Oxford: Clarendon Press. godelier, maurice 2001 O enigma do dom. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira. gonalves, jos reginaldo santos 1994: O templo e o frum: reflexes sobre museus, antropologia e cultura In: Chuva, M. (Org.)A inveno do patrimnio. Minc/IPHAN. 2000 Cotidiano, corpo e experincia: reflexes sobre a etnografia de Luis da Cmara Cascudo. In: Revista do Patrimnio, 2000, no. 28, pp. 74-81. 2003 [1996] A Retrica da Perda: discurso nacionalista e patrimnio cultural no Brasil. Editora da UFRJ. 2 edio. gouveia, maria Alice 1985 Polticas de preservao do patrimnio:trs experincias em confronto: Inglaterra, Estados Unidos e Frana. Rio de Janeiro: FUNARTE. Graburn, Nelson H. H. 1975 Ethnic and tourist arts: cultural expressions from the fourth world. Berkeley: University of California Press.

34

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

Gregory, C.A. 1982 Gifts and commodities. London: Academic Press. Greenfield, Jeanette 1996 The return of cultural treasures. 2nd ed. Cambridge, England: Cambridge University Press. griaule, marcel 1938 Masques dogon. Paris: Institut d`ethnologie. Grupioni, Lus Donisete Benzi 1998 Colees e expedies vigiadas: os etnlogos no conselho de fiscalizao das expedies artsticas e cientficas no Brasil. So Paulo, HUCITEC / ANPOCS. Haas, Jonathan 1996 Power, objects and a voice for anthropology. In: Current Anthropology, vol. 17. Hainard, Jacques; Kaehr, Rolland (eds.) 1982 Collections passion. Neuchtel: Muse d`thnographie. 1985 Temps perdu, temps retrouv : voir les chses du pass au prsent. Neuchtel: Muse d`thnographie. Handler, Richard; Linnekin, Jocelyn 1984 Tradition, genuine and spurious. Journal of American Folklore 97 (385): 273-290. 1985 On having a culture: nationalism and the preservation of the Quebecs Patrimoine. In: Stocking (op.cit.) In: Objects and Others: essays on museums and material culture. (org. G. Stocking). The University of Wisconsin Press. 1986 Authenticity. In: Anthropology Today. 1988 Nationalism and the politics of culture in Quebec. Madison: The University of Wisconsin Press.

{jos reginaldo santos gonalves}

35

Haraway, Donna 1989 Teddy bear patriarchy: taxidermy in the garden of Eden, New York City, 1908-36In: Primate visions: gender, race, and nature in the world of modern science. Pp. 26-58. Londres, Routledge. Hnaff, Marcel 2002 Le prix de la verit: le don, l`argent, la philosophie. Paris, Editions du Seuil. Hobsbawm, Eric ; Ranger, Terence (eds.) 1992 The invention of tradition. London:Cambridge University Press Hollier, denis 1993 La valeur d`usage impossible In :Les dpossds (Bataille, Caillois, Leiris, Malraux, Sartre). Paris : Les Editions de Minuit. Oliver Impey, Arthur MacGregor 2001 The origin of museums. The cabinet of curiosities in Sixteenth and Seventeenth Century Europe. London: House of Stratus. Jacknis, Ira 1985 Franz Boas and the exhibits: on the limitations of the museum method of Anthropology In: Objects and others: essays on museums and material culture. Madison: University of Wisconsin Press. 1996 The ethnographic object and the object of ethnology in the early career of Franz Boas In: Volkgeist as Method and Ethic, Stocking, George W. (ed.) History of Anthropology, vol. 8, pp. 185-214. The University of Wisconsin Press. 2002 The storage box of tradition: Kwakiutl art, nthropologists, and museums, 1881-1981. Washington: Smithsonian Institution Press. jones, Anna laura 1993 Exploding canons: the anthropology of museums. In: Current Anthropology, 22: 201-220.

36

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

Jordanova, L. 1989 Objects of knowledge: a historical perspective on museums In: Vergo, P. (Ed.) The new museology. Londres, Reaktion Books. Karp, Ivan; Levine, Steven (eds) 1991 Exhibiting cultures: the poetics and politics of museum display. Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press. Karp, Ivan; Kreamer, Christine Muellen; Levine, Steven (eds) 1991 Museums and communities: the politics of public culture. Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press. Kirshenblatt-Gimblett, Barbara 1991 Objects of ethnography In: Karp, I.; Lavine, S. (Eds.) Exhibiting cultures. The poetics and politics of museum display. Washington, D.C. Smithsonian Institution Press. 1998 Destination culture: tourism, museums, and heritage. Berkeley: University of California Press. Kopytoff, Igor 1986 The cultural biography of things: commoditization as a process In: Apadurai, Arjun (ed) The social life of things: commodities in cultural perspective, op. cit. Kury, Lorelai; Camennietzki, Carlos Ziller 1997 Ordem e natureza: colees e cultura cientfica na Europa Moderna In: Anais do MHN, vol. 29/1997 pp. 57-86. Lagrou, Elsje 2000 Prefcio edio brasileira de Price, Sally Arte Primitiva em Centros Civilizados, pp. 9-13. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ.

{jos reginaldo santos gonalves}

37

latour, bruno 2002 Reflexo sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. So Paulo, Edusc. Leach, Edmund 1997 [1964] Sistemas polticos da alta Birmnia: um estudo da estrutura social kachin. So Paulo: Edusp. Lvi-Strauss, C. 1962 La science du concret In: La pense sauvage. Pp. 3-42. Paris : Plon. 1973 O desdobramento da representao nas Artes da sia e da Amrica In: Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro. Lima Filho, Manoel Ferreira 2001 O desencanto do oeste. Editora da UCG. MacCannell, D. 1976 Staged authenticity In: The tourist: a new theory of the leisure class, pp.91-108. Schocken Books. Malinowski, Bronislaw 1976 [1922] Os Argonautas do Pacfico Ocidental. Col. Os Pensadores. Ed. Abril, Rio de Janeiro. mauss, marcel 1967 [1947] Manuel d`ethnographie. Payot, Paris. 2003 [1950] O ensaio sobre a ddiva In: Sociologia e Antropologia, Cosac & Naif, So Paulo. miller, daniel 1987 Material Culture and Mass Consumption. London: Blackwell 1995 Comsumption and commodities. In: Annual Review of

38

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

Anthropology, n. 24, pp. 141-161. Nora, Pierre (ed) 1997 Science et conscience du patrimoine. Paris : Fayard. Pearce, Susan M. 1992 Museums, objects, and collections: a cultural study. Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press. Pomian, Krzysztof 1987 Collecionneurs, amateurs et curieux / Paris, Venice: XVIe-XVIIIe Sicle. Paris, Ed. Gallimard. 1991 Collections et muses (note critique) In: Annales, 48 anne, no. 6. Paris. Armand Colin. 1997 De lhistoire, partie de la mmoire, la mmoire, objet dhistoire In: Revue de Metaphysique et de Morale, Janvier-Mars 1998, no. 1. Paris, PUF. 1997a Entre o visvel e o invisvel: teoria geral das colees In: A Coleo, Enciclopedia EINAUDI, 1. Memria-Histria. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 2003 Des saintes reliques lart moderne : Venise, Chicago, XVIIImeXxme sicles. Paris, Gallimard Price, Sally 2000 Arte primitiva em centros civilizados. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ. proena, rogrio leite 1984 Lugares da poltica e consumo dos lugares In: Contrausos da cidade: lugares e espao pblico na experincia urbana contempornea, Ed UNICAMP.

{jos reginaldo santos gonalves}

39

Rubino, Silvana 1991 As fachadas da histria: os antecedentes, a criao e os trabalhos do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, 1937-1968. Diss. de Mestrado. Universidade de Campinas. Sahlins, Marshall 1976 Culture and pratical reason. Chicago: The University of Chicago Press. 1999 Two or three things I that know about Culture. In: Journal of Anthropological Institute, n. 5, pp. 399-421. 2004 [1976] La pense bourgeoise: a sociedade ocidental como cultura. In: Cultura na prtica. Pp: 179-22. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ. 2004 [1996] A tristeza da doura, ou a antropologia nativa da cosmologia ocidental. In: Cultura na prtica. Pp: 563-620. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ. santos, marisa Veloso motta 1992 O tecido do tempo: a idia de patrimnio cultural no Brasil. Tese de Doutorado. Departamento de Antropologia, Universidade de Brasilia. Santos, Myrian Seplveda dos 1988 Histria, tempo e memria: um estudo sbre museus a partir da observao feita no Museu Imperial e no Museu Histrico Nacional. Tese de mestrado apresentada no IUPERJ. Mimeo. 1992 Objetos, histria, memria: observao e anlise de um museu brasileiro In: Dados, no. 2, pp.217-238. 2003 Museums and Memory: The Enchanted Modernity. Journal For Cultural Research, Inglaterra, v. 7, n. 1, p. 25-44, 2003. 2004 Museus Brasileiros e Poltica Cultural. Revista Brasileira de Cincias Sociais, So Paulo, v. 19, n. 55, p. 53-72, 2004. sapir, edward 1985 [1924] Culture, genuine and spurious In: Selected writings

40

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

in language, culture and personality (Ed. David G. Mandelbaum), Berkeley, University of California Press. 1985 [1934] Symbolism In: op. cit. pp. 564-568. Schlanger, N. 1998 The study of techniques as an ideological challenge: technology, nation, and humanity in the work of Marcel Mauss In: Marcel Mauss: a centenary tribute. Pp. 192-212 (org. W. James; N. J. Allen). Berghahn Books. New York, Oxford. Schwarcz, Lilian 1998 O nascimento dos museus brasileiros 1887-1910. In: Miceli, S. (org) Histria das Cncias Sociais no Brasil. So Paulo, IDESP, vol. 1. Seeger, Anthony 1980 O significado dos ornamentos corporais In: Os Indios e Ns. Rio de Janeiro: Ed. Campus. Sherman, Daniel and Irit Rogoff, eds. 1994 Museum Culture: Histories, Discourses, Spectacles. Minneapolis: University of Minnesota Press. stewart, susan 1984 On Longing: narratives of the miniature, the gigantic, the souvenir, the collection. Baltimore. Stocking, George W. Jr. (ed) 1968 Race, culture and evolution: essays in the history of anthropology. New York: The Free Press. 1974 The shaping of American anthropology, 1883-1911: a Franz Boas reader. New York: Basic Books. 1985 Objects and others: essays on museums and material culture. Madison: University of Wisconsin Press. 1985a Essays on museums and material culture In: Objects and

{jos reginaldo santos gonalves}

41

others: essays on museums and material culture. Madison: University of Wisconsin Press. 1989 Romantic motives: essays on anthropological sensibility. Madison, The University of Wisconsin Press. 2004 Franz Boas: a formao da antropologia americana 1883-1911. Contraponto / Ed da UFRJ. Thomas, Nicholas 1991 Entangled objects: exchange, material culture, and colonialism in the Pacific. Cambridge, Mass: Harvard University Press. Turner, Victor W. 1967 Betwixt and between: the liminal period in Rites de Passages In: The Forest of Symbols. Pp: 93-111. Ithaca: Cornell University Press. Van Velthen, Lucia; Ribeiro, Berta 1992 Colees etnogrficas: documentos materiais para a histria indgena e a etnologia In: Carneiro da Cunha, Manuela (org) Histria dos ndios do Brasil, pp. 103-112. So Paulo, FAPESP/SMC/ Cia. das Letras. Wagner, Roy 1981 The Invention of Cultures. The University of Chicago Press. Chicago. Weiner, Annette 1987 The trobianders of papua New Guinea. Stanford University. 1992 Inalianable possessions: the paradox of keeping while giving, University of California Press, Berkeley. Whorf, Benjamin Lee 1984 [1956] Language, thought and reality. The M.I.T. Press.

42

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

~ Colees, Museus e Teorias ~ Antropolgicas: reflexes sobre conhecimento etnogrfico e visualidadeA verso original deste texto foi publicada em Cadernos de Antropologia e Imagem, UERJ, 1999, no. 8, pp. 21-34.

hIstorIcIzandocoleesemuseusetnogrfIcos

1 Para uma resenha dos estudos recentemente realizados na rea de Histria, especialmente na Europa, ver (Pomian 1993:1381-1401). No Brasil, esse campo de estudos vem se expandindo nas duas ltimas dcadas, de forma diversificada, sobretudo nas reas de histria e antropologia H estudos voltados para a relao entre colees e histria intelectual (Schwarcz 1989; Lopes 1993; Kury e Camennietzki 1997); colees e construo de memrias e identidades sociais (Arantes 1984; Gonalves 1996; Abreu 1996; Santos 1992; Meneses 1993; Bittencourt 1997; Fonseca 1997); colees e mercado de arte (Veiga 1998); entre outros.

bibliografia sobre colees e museus tem crescido bastante desde o sculo passado, a partir dos anos setenta.1 desde as duas ltimas dcadas daquele sculo, tem se tornado praticamente impossvel um controle preciso sobre os problemas discutidos em cada uma das reas em que se divide esse campo de pesquisa. H os estudos voltados para a histria da cincia; estudos voltados para concepes de histria, ou temas precisos da historiografia; pesquisas dedicadas histria da arte; estudos sobre colees e museus na rea de histria da antropologia; sem contar as pesquisas desenvolvidas pelos chamados estudos culturais, voltadas para a representao museogrfica de memrias e identidades sociais. prudente, nesse campo, nos restringir a uma determinada rea de pesquisa. Minha proposta, neste caso, uma reflexo sobre alguns problemas suscitados pela bibliografia. Mais precisamente, a respeito das relaes entre colees e museus etnogrficos e teorias antropolgicas. se consultarmos o Dictionaire de lethnologie et de lanthropologie, publicado no incio da dcada de noventa pela Presses Universitaires de France, l poderemos ler um verbete relativamente extenso dedicado aos Museus. A presena e o contedo desse verbete esto associados problematizao dos processos de representao do outro, problematizao do discurso etnogrfico e da repercusso deste junto s colees e museus etnogrficos. J na primeira frase, a autora do verbete aponta no sentido de uma historicizao das relaes entre museus e teorias

antropolgicas: Ao se acompanhar o percurso histrico da etnologia, foroso constatar que cada etapa de renovao terica se faz acompanhar de um projeto museogrfico (Dias 1991a: 496-498). Dificilmente encontraramos algo semelhante em dicionrios publicados anteriormente aos anos oitenta. No que colees e museus etnogrficos estivessem ausentes de tais dicionrios, ou da reflexo antropolgica em geral. Mas sua presena se fazia de forma distinta. Na melhor das hipteses, encontraramos meno a colees e museus como fontes de dados para a pesquisa etnogrfica, sobretudo dados relativos chamada cultura material. Ou ainda, essas colees e museus poderiam tambm ser entendidos como uma espcie de prolongamento do campo, a desempenhar um papel importante na formao dos etnlogos (como sugere Lvi-Strauss).2 num e noutro caso, no se questiona o papel desempenhado por essas instituies na construo de uma determinada forma de representao do outro. Na medida em que esse papel vem a ser problematizado, a coleo (ou a prtica do colecionamento) ganha relevo enquanto uma categoria de pensamento. Primeiramente, desempenhando uma funo mediadora essencial, e qualificando esse processo mesmo de apropriao de objetos retirados das chamadas sociedades ou culturas primitivas, e sua transformao em objetos etnogrficos preservados e expostos nos museus ocidentais. Por esse prisma, a coleo aparece como uma categoria histrica e culturalmente relativa, prpria do ocidente moderno e sujeita s suas transformaes intelectuais e institucionais. Mas seu uso na recente bibliografia sobre colees e museus pode assumir uma dimenso mais ampla. Na verdade, ela vem a ser pensada no apenas como uma categoria nativa do ocidente moderno, mas como uma categoria universal, como uma prtica cultural presente em toda e qualquer sociedade humana. Nesse sentido, ganha, em alguns autores, rendimento analtico, servindo como eixo para uma anlise comparativa.

2 Lvi-Strauss, num texto publicado originalmente em 1954, onde comenta o papel dos museus de antropologia na formao dos etnlogos, afirma: ...o contato com os objetos, a humildade inculcada no musegrafo pelas pequeninas tarefas que esto na base de sua profisso desencaixotamento, limpeza, manuteno o sentido agudo do concreto que desenvolve este trabalho de classificao, de identificao e de anlise das peas de coleo; a comunicao com o meio indgena, que se estabelece indiretamente por intermdio de instrumentos que preciso saber manejar para conhecer, que possuem alm disso uma textura, uma forma, muitas vezes mesmo um odor, cuja apreenso sensvel, mil e uma vezes repetida, cria uma familiaridade inconsciente com gneros de vida e de atividade longnquas; o respeito, enfim, pela diversidade das manifestaes do gnero humano, que no poderia deixar de resultar de tantos e incessantes desafios para o gosto, a inteligncia e o saber, a que os objetos aparentemente mais insignificantes submetem cada dia o meusegrafo; tudo isto constitui uma experincia de uma riqueza e de uma densidade que no teramos razo em subestimar (1973 [1954]: 418-419).

{jos reginaldo santos gonalves}

45

3 Krzysztof Pomian historiador e filsofo, e associado ao grupo dos historiadores dos Annales. Ao longo dos anos setenta e oitenta publicou diversos artigos sobre colees e museus na Europa moderna, especificamente do sculo XVI ao sculo XVIII. Esses artigos, juntamente com o conhecido ensaio sobre uma teoria geral das colees, vieram a ser reunidos no livro Collecionneurs, amateurs et curieux / Paris, Venice: XVIe-XVIIIe sicle, publicado em 1987. Anteriormente, em 1984, publica L ordre du temps, um estudo sobre concepes de tempo no ocidente. Em 1990, publica L Europe et ses nations, sobre identidade europia. O autor, ao que parece, continua ligado ao tema das colees e museus. Alm de uma excelente resenha a respeito da crescente bibliografia sobre colees e museus recentemente publicada num nmero dos Annales (1993), o autor publicou h pouco na Revue de Metaphysique et de Morale um artigo em que discute as relaes entre histria, memria e os efeitos das transformaes tecnolgicas desencadeada nos ltimos sculos sobre estas relaes (1998).

acoleocomomedIaoentreovIsveleoInvIsvelUm dos autores centrais no debate assim define as colees:...todo conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporria ou definitivamente fora do circuito de atividades econmicas, submetidos a uma proteo especial em um local fechado preparado para esta finalidade, e expostos ao olhar (1987:18).

4 Embora no os cite, uma referncia certamente importante para as reflexes de Pomian so os estudos de J. P. Vernant e outros helenistas franceses sobre as concepes a respeito do visvel e do invisvel na Grcia antiga (ver especificamente Vernant [1973] 1990: 303330; e Gernet [1968] 1982: 227-238).

Autor de um livro bastante citado na bibliografia, Krzysztof Pomian (historiador polons trabalhando e publicando na Frana)3, ao elaborar uma teoria geral das colees, vai chamar a ateno para o seguinte ponto: a coleo instituio universalmente conhecida, presente em toda e qualquer coletividade humana, nas modernas sociedades complexas, assim como nas chamadas sociedades primitivas, e nas sociedades complexas tradicionais. Esses conjuntos de objetos integram, segundo ele, um sistema de trocas sociais e simblicas entre distintas categorias sociais, tais como reinos, imprios, cls, sociedades nacionais, etc; assim como entre categorias cosmolgicas tais como vivos e mortos, deuses e seres humanos, passado e presente, presente e futuro, etc. o carter universal da coleo deriva, segundo o autor, do papel mediador que ela desempenha entre os espectadores e o mundo invisvel do qual falam os mitos, as narrativas e as histrias. Essa mediao, cabe sublinhar, realizada especificamente atravs dos objetos da coleo, uma vez que, segundo seu entendimento, eles existem para serem expostos ao olhar. Realizam assim uma mediao entre os dois termos de uma oposio igualmente universal: o visvel e o invisvel. Os significados atribudos a esses termos, e as modalidades de relao entre eles vo, evidentemente, variar cultural e historicamente. Mas o que tornar possvel a comparao entre diferentes perodos histricos, entre diferentes sociedades ou culturas precisamente a universalidade dessa oposio4. na perspectiva assumida por pomian, seriam entendidos como colees conjuntos de objetos os mais diversificados: moblia funerria, oferendas, ddivas e objetos expropriados em guerras, relquias e objetos sagrados. Alm, obviamente, dos objetos que integram as colees privadas

46

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

e diferentes acervos museogrficos do ocidente moderno. O que haveria de comum entre esses diversos conjuntos de objetos, situados em contextos socioculturais os mais distintos, seria o seu papel de intermedirios entre o visvel e o invisvel. Esta funo mediadora resultaria de seu deslocamento do circuito econmico e utilitrio, sua separao em lugares especiais, sua exposio ao olhar (seja dos seres humanos, seja dos mortos, seja dos deuses) e sua conseqente especializao enquanto objetos cuja vocao significar (da o termo semiforos que a eles reserva)5. Vale observar que o autor vai enfatizar a coleo enquanto uma funo sociolgica de mediao entre o visvel e o invisvel. Assim procedendo, deixa em segundo plano o conjunto de prticas sociais e culturais por meio das quais as colees vm a se constituir e se transformar. Em outras palavras, como a oposio visvel/invisvel vem a se constituir historicamente, na medida mesmo em que se formam aqueles conjuntos de objetos significativos que viro a realizar uma mediao entre esses termos. O que estou sugerindo que, assumindo essa perspectiva, o autor parece se deixar enfeitiar pela prpria ideologia da coleo, a partir da qual esta concebida como um espao auto-suficiente, infenso s contingncias histricas, suprimindo-se assim os processos histricos econmicos, polticos de produo que a tornaram possvel.

5 Entre as formulaes de Pomian esta bastante problemtica, uma vez que assume uma oposio ontologica entre objetos que existem para significar (os semiforos); e objetos que, supostamente, existitriam em razo de funes exclusivamente prticas. O autor parece a incidir no uso da chamada razo prtica, objeto de uma problematizao radical por Marshall Sahlins (1976). 6 Jame s Clif ford historiador e trabalha atualmente no History of Consciousness Program na Universidade da California, Santa Cruz. Autor de uma excelente monografia sobre o etngrafo e missionrio francs Maurice Le enhardt (Clifford 1982), tournou-se mais conhecido por seu livro The predicament of culture: t w e nt i e t h c e nt ur y ethnography, literature and art, publicado em 1988; e tambm pela co-edio do conhecido Writing culture, juntamente com Georges Marcus (1986). Nesses estudos, Clifford se dedica a refletir sobre o pensamento antropolgico no sculo XX, em especial a antropologia francesa e suas relaes com o mundo intelectual modernista. tambm autor de Routes: travel and translation in the late twentieth century, em 1997. E, mais recentemente, em 1998, publica no Brasil uma coletnea de textos: A experincia etnogrfica: antropologia e literatura no sculo X X, organizada por Jos Reginaldo Santos Gonalves (Clif ford 1998).

ocolecIonamentocomoprtIcaculturalOutro autor, cuja referncia constante na bibliografia sobre colees e museus, James Clifford6, historiador norte-americano que tem produzido vrios estudos sobre o pensamento antropolgico no sculo XX, e especialmente sobre a moderna concepo etnogrfica de cultura. a partir desse campo de reflexo que ele vai se voltar para as prticas de colecionamento do ocidente moderno e, em especial, para os processos pelos quais os chamados artefatos tribais vieram, segundo ele, a ser reapropriados pelos museus, sistemas de troca, arquivos disciplinares e tradies discursivas do ocidente (1988:215).

{jos reginaldo santos gonalves}

47

James Clifford parte da universalidade da prtica do colecionamento. No entanto, sua nfase desloca-se para as formas especficas que essa prtica pode assumir em diferentes sociedades, e especialmente no ocidente moderno. Segundo ele:Alguma espcie de coleta em torno do self e do grupo a composio de um mundo material, a demarcao de um domnio subjetivo por oposio a um outro provavelmente universal. (...) Mas a noo de que essa coleta envolva a acumulao de posses, a idia de que a identidade seja uma espcie de riqueza (composta por objetos, conhecimento, memrias, experincia) certamente no universal. (...) No ocidente, o colecionamento, por longo tempo, tem sido uma estratgia para a elaborao de um self, uma cultura e uma autenticidade possessivas (Clifford 1988:218).

Na perspectiva de James Clifford, as prticas de colecionamento tm papel constitutivo no processo de formao de determinadas subjetividades individuais e coletivas. No contexto das sociedades tribais e das sociedades complexas tradicionais, essas prticas esto associadas redistribuio e ao processo de decadncia natural e histrica; enquanto que, no ocidente moderno, elas esto associadas acumulao e preservao. essas modernas prticas de colecionamento esto no centro dos processos de transformao dos chamados artefatos tribais em curiosidades (como eram classificados no sculo XIX), e posteriormente sua reclassificao como objetos etnogrficos ou como arte primitiva (no sculo XX). Nessa transformao, so atualizadas estratgias epistemolgicas, valores estticos e polticos prprios do ocidente. Assim coleciona-se o que vem a ser classificado como tradicional, autntico, deixando-se de lado o que h de hbrido, ou histrico num sentido atual e emergente. Segundo o autor, o que se dramatiza nesses processos a moderna concepo etnogrfica de cultura (ou culturas, no plural e com letra minscula), associada por sua vez aos aspectos de totalidade, coerncia, equilbrio e autenticidade. O que classificado como tradicional garante a idia de uma essncia e uma continuidade no tempo a

48

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

distinguir as culturas. Nesses processos est presente uma determinada concepo da temporalidade, na qual a histria vista como um processo incontrolvel de destruio, devendo as culturas, as tradies serem resgatadas, preservadas, especialmente atravs do colecionamento e exibio de seus objetos (Clifford 1988). partindo-se do pressuposto de que sempre nos colecionamos a ns mesmos, por meio desses processos de colecionamento que vieram a se constituir as identidades disciplinares do etngrafo e do moderno antroplogo social ou cultural. atravs desses processos que veio a se formar o que o autor chama de sistema de arte e cultura do ocidente moderno, constitudo pelas relaes entre as categorias arte, cultura e autenticidade. em resumo, para o autor, o colecionamento est no corao mesmo dos processos de formao de uma subjetividade moderna no ocidente, a partir da relao deste com as chamadas sociedades primitivas ou exticas. Nas prticas que desencadeiam esses processos fazem-se presentes valores centrais de ordem epistemolgica, esttica e poltica. O colecionamento, nessa perspectiva, ganha o status de uma metfora privilegiada para descrever as relaes do ocidente com aquelas sociedades e com sua prpria subjetividade, para pensar as formas de representao do outro. Nesses termos, a representao etnogrfica passa a ser pensada como uma forma de colecionamento. Entre as vantagens que pode trazer o uso dessa metfora est a nfase no carter necessariamente parcial dessa representao. Afinal, uma coleo sempre parcial, ela jamais atinge uma totalidade. Pela sua natureza mesma, ela problematiza essa totalidade, j que uma coleo jamais se fecha. Trata-se portanto de um conhecimento sempre situado, produzido a partir de um sujeito situado numa posio relativa. Um sujeito limitado a produzir, portanto, verdades parciais. o uso dessa metfora para pensar a cultura sugere que esta possa ser vista em constante reconstruo, como um processo hbrido, sempre parcial, precrio, contingente, jamais fechando-se numa totalidade. A

{jos reginaldo santos gonalves}

49

anlise crtica da ideologia da coleo mostra precisamente o esforo sempre irrealizado no sentido de constituir essa totalidade, na medida mesmo em que exclui o que seja considerado inautntico. Em outras palavras, o colecionamento, na perspectiva desse autor, parece um processo dividido contra si mesmo, articulado por uma permanente tenso entre totalizao e fragmentao. Essa perspectiva em relao s formas de representao etnogrfica define-se por oposio contrastiva em relao s formas presentes no sculo XIX, com a antropologia evolucionista, e no sculo XX, com a moderna antropologia social e cultural.

colecIonamentoeconhecImento:aexperIncIadoolhar um pressuposto epistemolgico das colees e dos museus que o ato de olhar (objetos expostos) equivale a conhecer algo que est alm dos prprios objetos e que estes de algum modo evocam (Jordanova 1989). Esse processo no absolutamente natural. Como ento se d essa transformao? Como um objeto, por si insignificante, passa a merecer a ateno especial reservada a objetos que, supostamente, ao serem olhados, possibilitam o conhecimento de determinadas realidades invisveis? (Kirschenblatt-Gimblett 1991). Para que se realize o processo de transformao de artefatos tribais em objetos etnogrficos (ou arte primitivas), se fazem necessrias diversas mediaes. Estas variam desde as formas de aquisio desses artefatos, o contexto social e cultural em que foram adquiridos, sua transferncia para colees privadas e museus, sua reclassificao e, no menos importante, suas formas de exposio, e os processos visuais que tornam possvel a sua recepo por parte dos espectadores. Alguns autores, presentes na bibliografia de colees e museus, vo abordar exatamente esse problema. Seu ponto de partida o reconhecimento de que o olhar desses espectadores no absolutamente uma experincia natural, mas, na verdade, uma experincia codificada segundo regras variveis cultural e historicamente. os estudos de nelia dias7 (autora daquele verbete sobre Museus que

7 Nlia Dias professora-assistente do Departamento de Antropologia Social da Universidade de Lisboa, e uma especialista em antropologia francesa no sculo XIX. Publicou em 1991, Le muse dEthnographie du Trocadro: 18781908. Anthropologie et musologie en France; e autora de diversos artigos sobre a histria da antropologia francesa e colees etnogrficas no sculo XIX.

50

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

mencionamos acima) trazem alguns problemas originais para a anlise das relaes entre teorias antropolgicas e colees etnogrficas no sculo XIX. Ela autora de um estudo monogrfico, publicado na Frana, sobre a transformao do antigo museu Trocadro no Muse de lHomme em Paris, e sobre a reclassificao do acervo de curiosidades como objetos etnogrficos e em seguida arte primitiva, referncia importante para os artistas modernistas nos anos vinte. Nestes comentrios vou me concentrar num pequeno artigo publicado pela autora (1994), no qual explora alguns problemas importantes na relao entre teorias antropolgicas, colees e exposies etnogrficas e modalidades distintas de construo cultural do olhar. Em seu Looking at objetcs: memory, knowledge in nineteenth-century ethnographic displays (1994: 164-176), Dias discute inicialmente a relao entre viso, conhecimento e memria; e em seguida explora a relao entre modalidades de viso e formas de exposio museogrfica. A exemplo de James Clifford (1988) e outros (Karp and Lavine 1991), Dias parte do reconhecimento das prticas de colecionamento enquanto historicamente determinadas, o que torna possvel o questionamento dos sistemas de representao usados para transmitir conhecimento (1994:164). Desse modo, a pergunta que ela prope inicialmente : que tipo de conhecimento transmitem os museus? O que significa ver uma cultura e entend-la olhando objetos? (1994:164)8. Dias assinala as conexes histricas entre antropologia e a chamada histria natural no sculo XIX, conexo que se faz especialmente presente nos processos metodolgicos de observao, colecionamento e classificao (1994: 164). Essa valorizao da observao, segundo os cnones da histria natural, transformou-se depois, com a moderna antropologia social e cultural, em observao participante e, com esta, o trabalho de campo (1994:165). Desse modo, a nfase colocada sobre a observao, alm da convico, j assinalada por outros autores (por exemplo, Fabian 1983:107), de que o conhecimento antropolgico est baseado na observao e validado por ela, fez com que a viso viesse a ser valorizada, em detrimento de outros

8 Questes que, por sua vez, so tambm formuladas por outros autores presentes na bibliografia sobre colees e museus (ver Haraway 1989; Jordanova 1989; Kirschenblatt-Gimblett 1991; entre outros).

{jos reginaldo santos gonalves}

51

sentidos. Mas, assinala Dias, diversos autores que focalizaram e criticaram o que chamam de visualismo do conhecimento antropolgico estavam voltados para as metforas visuais presentes no texto, e no para as exposies de objetos (Fabian 1983; Clifford e Marcus 1986; Tyler 1987). E para estas que se dirige sua reflexo. Ela sugere que se assuma um enfoque histrico para entender as diversas formas que pode assumir essa associao entre viso e conhecimento antropolgico. Uma vez que a viso parece se constituir num modo privilegiado desse conhecimento, o que para ser visto num museu muda de um perodo histrico para outro assim como mudam as relaes e a diviso entre o visvel e o invisvel. A autora chama a ateno para a nfase concedida, no sculo XIX, aos objetos em detrimento das palavras. A vasta e diversificada quantidade de colees e museus nesse perodo, que j mereceu o ttulo de era dos museus, parece sustentar sua afirmao. No caso dos museus etnogrficos desse perodo, assinala Dias, possvel perceber duas modalidades de exposio de objetos: o arranjo tipolgico e o arranjo geogrfico, associados a duas diferentes modalidades de viso e dois diferentes tipos de memria, dois diferentes modos de adquirir e reter conhecimento (1994:165). Enquanto Pomian, como vimos anteriormente, concebe a relao visvel /invisvel como uma oposio universal a ser mediada pelas colees, Dias vai deslocar sua anlise para o olhar enquanto uma categoria histrica e culturalmente determinada, e para o entendimento de como distintas modalidades do olhar podem estar articuladas a concepes diversas sobre o que visvel e o que invisvel em diferentes culturas e diferentes momentos histricos. Desde o sculo XIX, o conhecimento antropolgico tem estado associado s metforas visuais. Uma vez que o antroplogo definido como um observador, e que o sujeito definido pela condio mesma daquele que olha e no do que olhado , esse conhecimento leva objetificao do outro. Este outro, o primitivo, representado como distante no espao e no tempo: um tempo e espao definidos por oposio ao discurso antropolgico, por sua vez definido no tempo presente e no espao atual.

52

{antropologia dos objetos: colees, museus e patrimnios}

o conceito de cultura entendido como uma totalidade materializada por objetos especificamente em Edward B. Tylor (1832-1917) que torna possvel a ordenao dos artefatos na forma de listas. Alm disso, essa concepo de cultura como uma entidade que pode ser visualizada atravs dos objetos confere a estes, individualmente considerados, o papel metonmico de representar aquele todo abstrato. A categoria espcime (usada no sculo XIX para classificar os artefatos etnogrficos) funcionava precisamente como uma ilustrao da espcie. Os modos tipolgico e geogrfico, de certa maneira, balizavam, segundo Dias, os debates cientficos e pedaggicos no sculo XIX. O primeiro privilegiava a forma dos objetos. Alm disso, ele torna possvel traar uma linha seqencial do mais simples ao mais complexo, independentemente da origem geogrfica dos objetos expostos. Ele ilustrava um conceito linear de evoluo e seu pressuposto de uma mente humana universal. Os artefatos considerados mais simples eram colocados do lado esquerdo, enquanto que os que eram considerados mais complexos eram colocados do lado direito. De tal forma que o espectador acompanhava visualmente um esquema similar aos estgios da evoluo (1994:168). Ao espectador era possvel transcender o espao e o tempo prprio dos objetos e situar-se no espao intemporal, abstrato e analtico do museu (1994:168). O olhar desse espectador dirigia-se a uma construo terica que era encaminhada mente desse espectador. O arranjo tipolgico, alm disso, pressupunha uma ordenao classificatria do mais simples ao mais complexo; e tambm das atividades supostamente mais necessrias s supostamente mais suprfluas (1994:168). Dias observa ainda que esse arranjo articulava um esquema mnemnico anlogo ao da escrita, deslocando-se o olhar do espectador da esquerda para a direita, como no ato de ler um texto. Se o arranjo tipolgico tinha como propsito demonstrar a evoluo da cultura como princpio universal, j o modo geogrfico tinha como propsito mostrar o modo de vida caracterstico de determinada regio. A nfase a recai nas particularidades das culturas. Desse modo, no importava apenas a forma exterior dos objetos expostos, mas sim a sua lo-

{jos reginaldo santos gonalves}

53

calizao em determinado ambiente geogrfico, sua produo, seus usos e seus significados (1994:170). Nessas modalidades de exposio muito comum apresentarem-se cenas da vida diria. Esse arranjo pressupunha um outro modo de ver. Outro modo de tornar visvel o invisvel. Nele buscava-se o significado dos objetos, o que exigia que se chegasse a descobrir aquelas relaes que no eram perceptveis imediatamente no ato de ver. Essas relaes ocultas eram acessveis apenas atravs do trabalho de campo (1994:170). O olhar do espectador era solicitado a se projetar para alm da superfcie, para alm do quadro horizontal e mergulhar verticalmente (1994:171). Os artefatos eram expostos no para evidenciar princpios (como no arranjo tipolgico), mas para levantar questes, levar a descobertas e desafiar os valores dos visitantes (1994:171), uma vez que esse outro que era representado deixava de ser apenas um personagem no processo evolutivo (como na antropologia evolucionista), e tornava-se o representante de culturas radicalmente distintas do ocidente (como vem a ser no discurso da moderna antropologia social e cultural). O tipo de olhar a presente no poderia ser o olhar desengajado que caracterizava os arranjos tipolgicos. Em contraste com os arranjos tipolgicos, o arranjo geogrfico voltase para um espao concreto, situado geogrfica e temporalmente. Mas, paradoxalmente, esses arranjos, ainda que mostrem a vida de um povo na sua singularidade e situados geogrfica e temporalmente, terminam por apresentar a cultura como se num eterno presente, estvel e imutvel (1994:171). O espectador, nessas modalidades de exposio, convidado a ocupar o lugar do antroplogo, como se fosse este no campo, procedimento anlogo ao que articulado nas monografias clssicas (1994:172). outro aspecto importante assinalado pela autora que, no caso dos arranjos geogrficos,