antropologia aplicada - razões e práticas

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ÁLVARO CAMPELO UNIVERSIDADE FERNANDO PESSOA PORTUGAL A Antropologia A licada sempre foi ziistn como uma parente obre da antropologia geral. Tentando relalar 0 sign$ca& de uma antropolo@a aplicada a partir da eiboração do próprio processo cient+co, tendo enz conta a história da ciência aphcada, procuramos dar uma nova perspectizra desta antropolo ia ao class$aí-ia como uma antropologia relaciona/. Ao se constituir como relacional, a antropologu> ap8i'rida faz dessa relação unz espaço próprio de investigação ou, mais propriamente, um clugarn antropológico por excelência, onde as suas capacidades e debilidades são postas ir prozia, nzas onde é reforpdo o seu significado como ciência do acfo social. Applied Anthro ology has alu~a s been seen as a less important branch of eneral Anfhropology. This article attempt &sclose the sisn$ed ofan applied anihropology as a relationafone regarding the scienf$c process in itwlJ as 1uel1 as fhe hisfory o f ~ ~ p l i e d science. Conceptualised as relational, a plied anthropologyfocuses on this relations ar the i ruidualtsed paper space a/ resmrch, an anthropo~giml "locale" par excellence where skills and d~ficulties are proned and where anthropology reenjbrce its nieaning as a science of the social action. Das eternas discussões subjacentes à validade e razoabilidade de uma antropologia aplicada, como projecto científico, a questão da construção de conceitos de análise, operadores e legitimadores de uma prática, revela-se da maior pertinência, quanto ao sentido de aproximação da investigação aplicada a uma antropologia rigorosa. Como a arte de pensar a maneira de pensar (Bachelard, 1971) constitui o método, e como os utensílios que permitem o exercício desta arte são fornecidos pelos conceitos, a formulação e postulação dos mesmos resultam essenciais quanto à possibilidade de uma antropologia aplicada. Temos então a questão: até onde vai a arte e a manipulação?; ou ainda, dado que a construção destes conceitos ~reveladoresfi faz-se dentro de um sistema complexo de imposições e de escolhas, qual o significado político/antropológico deles? A construção da teoria que possibilite uma prática antropológica é de~eras paradoxal. Cremos que a maior parte das dificuldades colocadas à cientificidade da antropologia aplicada advém dos problemas internos à antropologia teórica e não à capacidade desta ser actuante na sociedade como um contributo essencial para estudar e intervir nos fenómenos de mudança social, como os que se relacionam com o desenvolvimento (Cochrane, 1971). Que problemas teóricos e éticos se podem colocar a urna ciência que pretende agir na sociedade, quando a sua capacidade crítica nasce da necessidade de uma praxis e, como disciplina, assume o benefício social do conhecimento. O problema reside no facto da antropologia ter entrado na praxis pela porta traseira, isto é, a antropologia aplicada surge como uma adaptação de um conhecimento a questões colocadas por certas curiosidades intelectuais, condições extremas da vida das sociedades, como guerras e desastres ecológicos, ou então

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  • LVARO CAMPELO UNIVERSIDADE FERNANDO PESSOA PORTUGAL

    A Antropologia A licada sempre foi ziistn como uma parente obre da antropologia geral. Tentando relalar 0 sign$ca& de uma antropolo@a aplicada a partir da eiborao do prprio processo cient+co, tendo enz conta a histria da cincia aphcada, procuramos dar uma nova perspectizra desta antropolo ia ao class$a-ia como uma antropologia relaciona/. Ao se constituir como relacional, a antropologu> ap8i'rida faz dessa relao unz espao prprio de investigao ou, mais propriamente, um clugarn antropolgico por excelncia, onde as suas capacidades e debilidades so postas ir prozia, nzas onde reforpdo o seu significado como cincia do acfo social. Applied Anthro ology has alu~a s been seen as a less important branch of eneral Anfhropology. This article attempt &sclose the sisn$ed ofan applied anihropology as a relationafone regarding the scienf$c process in itwlJ as 1uel1 as fhe hisfory o f ~ ~ p l i e d science. Conceptualised as relational, a plied anthropologyfocuses on this relations ar the i ruidualtsed paper space a/ resmrch, an anthropo~giml "locale" par excellence where skills and d~ficulties are proned and where anthropology reenjbrce its nieaning as a science of the social action.

    Das eternas discusses subjacentes validade e razoabilidade de uma antropologia aplicada, como projecto cientfico, a questo da construo de conceitos de anlise, operadores e legitimadores de uma prtica, revela-se da maior pertinncia, quanto ao sentido de aproximao da investigao aplicada a uma antropologia rigorosa. Como a arte de pensar a maneira de pensar (Bachelard, 1971) constitui o mtodo, e como os utenslios que permitem o exerccio desta arte so fornecidos pelos conceitos, a formulao e postulao dos mesmos resultam essenciais quanto possibilidade de uma antropologia aplicada. Temos ento a questo: at onde vai a arte e a manipulao?; ou ainda, dado que a construo destes conceitos ~reveladoresfi faz-se dentro de um sistema complexo de imposies e de escolhas, qual o significado poltico/antropolgico deles?

    A construo da teoria que possibilite uma prtica antropolgica de~eras paradoxal.

    Cremos que a maior parte das dificuldades colocadas cientificidade da antropologia aplicada advm dos problemas internos antropologia terica e no capacidade desta ser actuante na sociedade como um contributo essencial para estudar e intervir nos fenmenos de mudana social, como os que se relacionam com o desenvolvimento (Cochrane, 1971). Que problemas tericos e ticos se podem colocar a urna cincia que pretende agir na sociedade, quando a sua capacidade crtica nasce da necessidade de uma praxis e, como disciplina, assume o benefcio social do conhecimento.

    O problema reside no facto da antropologia ter entrado na praxis pela porta traseira, isto , a antropologia aplicada surge como uma adaptao de um conhecimento a questes colocadas por certas curiosidades intelectuais, condies extremas da vida das sociedades, como guerras e desastres ecolgicos, ou ento

  • como pedidos institucionais, os quais esperam uma resoluqo imediata do problema que colocam.

    Na histria da antropologia aplicada passamos de uma antropologia doutoral, preocupada somente com problemas tericos, para uma outra que afirmava um certo interesse pelos assuntos pblicos. Tendo em conta a sua origem, o racionalismo ilustrado e um certo realismo romntico os quais postulavam uma unidade terico-instrumental quando versavam os problemas da natureza humana e a sociedade, a antropologia procura, tambm ela, construir teorias para actuar socialmente. A ideia de progresso e o conceito evolucionista da sociedade impregnavam todo o pensamento erudito do sculo XIX, momento em que nasce a antropologia. Os estudiosos do social no temiam as implicaes das suas teorias, antes pelo contrrio, criavam teorias para transformar o social. Mais tarde esta capacidade e desejo veio a perder-se. As razes podem ser muitas. Ao se diferenciarem as disciplinas e especializarem-se em seus objectos tentando dar ao seu trabalho um pretendido rigor cientfico, academizando excessivamente o seu trabalho, cingindo-o ao espao universitrio, as razes prticas do seu estudo foram vistas como secundrias ou destitudas desse anunciado rigor cientfico. Por outro lado a constatao da relatividade cultural impediu um discurso de actuao social, dado ela implicar problemas ticos relevantes. Por fim, uma crtica feita ao colonialismo e a muitos dos compromissos anteriormente assumidos pela antropologia com os poderes institudos fez com que o abandono por este campo do saber se concretizasse paulatinamente.

    Malinowski mostra em 1918 como se pode colaborar com o servio pblico, ao ajudar o governo australiano ao redigir um trabalho sobre as condies laborais no Pacfico. No entanto, as contradies e dificuldades de relao entre a antropologia e a figura do antroplogo como profissional implicado na transformao da sociedade so j manifestas em Radcliffe-Brown em 1923, quando defendia que no futuro o governo deveria ser atribudo antropologia aplicada, mas ao mesmo tempo dizia que os antroplogos deveriam colocar-se de parte nas discusses problemticas e cheias de interesses, afastando-os das consideraes de aplicao.

    A grande razo do alheamento dos antroplogos dos assuntos pblicos estava no facto de eles se terem dado conta de que para os mesmos problemas pblicos no havia uma soluo nica nem optirnal (Firth, 1981). E pela dificuldade em definir os termos de anlise e constituir;o da questo a nvel cientfico que os maiores problemas surgem e que as desistncias acontecem. Quando o problema era imposto pelas autoridades que pagavam os trabalhos, a definio do trabalho era mais orientada pelos interesses dos que pagavam do que por critrios de objectividade:

    "Muitos dos pioneiros da Antropologia Aplicada construram as suas disciplinas como uma cincia, virtualmente um evangelho, que podia ser usado para assegurar melhores relaes humanas em todo o mundo. E actuaram como agentes de polticas que no foram exactamente humanitrias em sua execuo por nobre que fosse a sua concepo. Interessados exclusivamente pela sua gente, fracassaram em considerar o interesse correspondente das burocracias que os pagavam. E o defeito fatal no trabalho antropolgico foi a

  • incapacidade de estender essas habilidades, mostradas para com os sujeitos exticos, na direcco dos administradores europeus e americanos brancos. No julgaram necessrio estudar a burocracia para ver como funcionava'' (Angrosino, 1976).

    6 s contingncias provocadas pela diversidade cultural e precariedade do contacto social, juntavam-se as estratgias da burocracia e do poder poltico, originando certas concluses contraditrias e parcialidade nas concluses. Tudo isto fez com que a suspeita casse sobre a antropologia aplicada, nascendo da certas perspectivas que a limitam: a) a ideia que as culturas em mudana tm as suas prprias metas e ritmos, fazendo temer qualquer tipo de interveno; b) o facto de o conhecimento antropolgico fugir a toda a possibilidade de definir polticas pblicas, unicamente reservando para si o papel de alertar para aspectos descurados pelas polticas dos governantes; c) a afirmao de que a teoria antropolgica era suficientemente crtica e prtica nos seus trabalhos e textos publicados, reservando para os espaos de deciso o trabalho de ter em conta esses trabalhos; d) a ideia de a antropologia aplicada ser uma antropologia pouco crtica, uma cincia operria e por isso com pouco prestgio; e) a dificuldade em delimitar os papeis quanto deciso ou ao status profissional, ao colocar o antroplogo como assessor e dependente de outras autoridades.

    Apesar de tudo, houve um espao para debater a legitimidade desta disciplina e a relevncia prtica dos conhecimentos antropolgicos. Em 1941 nasce a Society for Applied Anfhropology e novos conceitos e

    projectos se concretizam. Sejam eles denominados de antropologia da aco, prtica da antropologia ou antropologia do desenvolvimento, todos procuram um suporte terico e uma aplicao prtica para a antropologia. H quem proponha uma antropologia da aco, capaz de resolver os problemas da comunidade (Tax, 1952), aliando os conhecimentos gerais da antropologia com a soluo dos problemas prticos. Este princpio da antropologia aplicada ou era ainda muito acadmico, fornecendo material para consulta, mostrando a dificuldade em tomar decises ao salientar a responsabilidade de mudar os costumes (Cochrane, 1980), ou era ainda quase exclusivamente praticado por um grupo muito restrito de antroplogos (Rubinstein, 1986) que pareciam interessar-se pelas franjas da sociedade, sendo at por isso marginalizados pelos poderes institudos. No entanto um dado novo se vai impondo, que o da capacidade do antroplogo em intervir nos processos de transformao.

    Cochrane (1971) apresenta uma aproximao acadmica, com forte valncia interdisciplinar, denominada Antropologia do Desenvolvimento, a qual tem como ponto de partida uma teoria bsica ao planear uma determinada situao, mas cuja aco no termina a. O antroplogo do desenvolvimento contribui para a elaborao do plano de aco para a efectuao dessa aco implicando-se tambm na sua avaliao.

    Um dos maiores contributos para a superao duma suposta dicotomia entre a reflexo terica e a aco social partiu da teoria crtica da Escola de Frankfurt e da prpria

  • crtica cultural, fazendo com que a reflexo e a aco social se constitussem como processos interactuantes. Horkheimer (1972) emancipa o social e interessa-se pelos seus processos de transformao; Habermas (1987) substitui a velha ideia da razo universal pela de uma conscincia recentrada no corpo, na lngua e nas polticas culturais, o que implica uma intelectualizao dos problemas especficos da sociedade; por sua vez, uma tendncia semitica instala-se dentro da reflexividade do social, procurando uma contextualizao dos problemas e sua relao dialctica: o significado para alguma coisa,.e isso que o significado (Gadamer 1987). A prpria cincia constri-se em contexto de significados, definindo-se como sendo tambm ela uma realidade social, uma organizao particular da aco humana sujeita a processos de interpretao. A dimenso prtica da cincia no se constitui como um espao menor ou uma cedncia da especificidade da mesma ou uma concesso cientfica. Cada vez mais a cincia vista como um processo, sujeita a vicissitudes vrias, elemento de uma sociedade que actua estrategicamente e numa interaco humana a fazer-se numa constante mudana de sistemas de aco.

    ANTROPOLOGIA APLICADA: O LUGAR NASCE DA RELAO

    Importa agora especificar um possvel lugar para a antropologia aplicada. Nesta pequena reflexo procuramos construir esse ltigar entendendo-a como ligado problemtica do desenvolvimento. No se pretende agora

    questionar a complexidade do termo, o seu significado mtico e ideolgico, nem fazer uma arqueologia do mesmo (Sachs, 1986). A antropologia do desenvolvimento caracteriza-se por ser uma investigao antropolgica que visa os fenmenos de mudana provocados, a qual se concretiza, em primeiro lugar, num projecto de interveno e, em segundo lugar, por uma conscincia dos limites colocados a si mesma dentro das actividades operacionais do espao scio/cultural. Verificamos a dificuldade colocada pelo seu posicionamento: entre a Antropologia Geral e a prtica social!

    Ao versar o campo do desenvolvimento, a antropologia ter que assumir as responsabilidades da praticidade dos seus conhecimentos. No concordamos com R. Bastide quando diz que a antropologia aplicada no orientada para a aco ou planificao, e que ela analisa esta aco e planificao como a antiga antropologia analisava os sistemas de parentesco, as instituies econmicas e polticas, os processos espontneos de mudana, exactamente com os mesmos mtodos e as mesmas tcnicas de aproximao (Bastide 1971). Achamos sim que, para alm de ter capacidade de anlise dos fenmenos de mudana, ela, a partir da anlise destes fenmenos, orienta-se para a prtica como interveniente, ou seja, sem a pretenso de uma neutralidade, de modo a salvaguardar a aparncia cientfica.

    na orientao para a prtica que se joga o sentido do seu carcter cientfico. Por vezes ele passa atravs de uma mistificao, requerendo um campo simblico de origem, legitimador do poder que manifesta, como sejam a

  • academia e o laboratrio de investigao. Estes dificilmente aceitam transferir o sentido e fundamento cientfico para o meio das pessoas. H uma preocupao de que o trabalho de investigao se oriente para o campo do saber terico, e no para o simples conhecimento dos fenmenos complexos da vida, trabalhando sobre eles e agindo sobre eles. No nosso entender, a antropologia aplicada no analisa unicamente a prtica: ela faz parte dessa prtica, criando assim um ltigar antropolgico prprio, o qual apelidamos de relao de desenvolvimerzto.

    Se o facto cientfico "est compris, construit et constat", como afirma Bachelard (1938), no campo da investigao antropolgica aplicada este facto cierzt$co uma conquista da investigao, enquanto o encara como um processo, de carcter rigoroso, em dilogo com o real. Um real que relacional (Aug, 1992, 1994), dentro de um universo de configuraes possveis. Dentro do prprio ltigar, como recriao do real, a alteridade antropolgica aparece na questo do desenvolvimento enquanto ela se apresenta no terreno da relao e, enquanto relao, "supe necessariamente a apario de situaes conflituais entre tradies . diferentes, na maior parte das vezes dificilmente compatveis umas com as outras" (Sabelli, 1993).

    Analisar a questo do desenvolvimento nesta perspectiva relacional implica a enunciao daquilo que executa a aco. Existe um poder no discurso enunciativo do desenvolvimento, o qual repousa em actos de autoridade que se reproduzem em aparelhos de poder organizados, de forma a legitimar a sua

    pretendida eficcia. Por sua vez este discurso versa sobre campos de poder estabelecidos, que so os do prprio universo social considerado, os quais variam conforme os lugares e as circunstncias. H, por assim dizer, um trabalho simblico de reconstituio do poder, tanto no acto do investigador, como no processo cientfico, enquanto discurso, na medida em que ele abarca o ((real a modificar.

    Enquanto se define como processo, a actividade cientfica da antropologia aplicada assume-se como construo do real, logo sujeita a uma relao de foras. Nenhuma outra constru~o cientfica, como esta da antropologia aplicada, se pode definir como uma construo social da realidade. Trata-se de um universo social como outros (Sabelli, 1993). No entanto, ela tambm um mundo parte, na medida em que tem as suas prprias leis de funcionamento, ultrapassando os conceitos que a descrevem e que a revestem de urna forma especfica.

    Se definirmos esta antropologia como dialgica - a relao de desenvolvimento - , ela ter de se constituir como espao semitico privilegiado, dado que para a manuteno da relao seja necessria uma produo de sentido. As culturas estabelecem-se atravs de regras fundamentais da vida social, por onde passam as bases da signihcao e da comunicao. A razo da eficcia dos actos sociais reside na adeso dos indivduos. E esta adeso faz-se atravs de um acto de crena:

    "A partir do momento enr que o objecto de inziestigao toca de perto ou de lotzge os fazn~enos de crena - e esse o caso das situaes de desenz~olvimento - o investigador necessnriantatte confrontado com problemticas ligadas efiucia dos aparelhos mitolgicos" (Sabelli, 1993: 27).

  • O acto da crena implica os sujeitos e legitima a veracidade de um discurso. Como diria Certeau (1980), o importante no o contedo da crena, mas o que o sujeito faz supondo a verdade do discurso em que acredita. O prprio conceito de desenvol- vimento encerra em si o princpio operativo do mito. O seu grau de veracidade mede-se quanto sua eficcia social, ou seja, mais do que falso na sua prpria realidade, ele verdadeiro no imaginrio social, enquanto discurso.

    A R E L A ~ O DE DESENVOLVIMENTO: O INTERLOCUTOR DESCONHECIDO.

    Afigura-se ao investigador de antropologia aplicada que a grande dificuldade no propriamente de ordem tcnica, ou seja, quais os utenslios para ver e depois compreender, mas a nvel epistemolgico: quais os obstculos que o impede de pensar a interligao dos sistemas simblicos ou mitolgicos presentes no meio social. O importante neste momento verificar at que ponto se pode averiguar a influncia exercida pelos nossos complexos mitolgicos sobre os processos de identificao do outro ou sobre a prpria .

    As condies de existncia dos nossos interlocutores dependem da relao que eles mantm com o mundo onde se alicerqa o seu ethos, e como eles entram no discurso cientfico. A ambiguidade passa at pelas palavras mais utilizadas nas cincias sociais. Estas, por vezes, antes de fornecer os elementos possveis para entrar na explicao das realidades complexas, comeam por deformar ou ocultar essas realidades na utilizao de conceitos e termos, com um historial prprio

    dentro da sua reflexo. Temos por exemplo os termos identidade cultural ou

  • sistemas sociais. Esta preocupao manifesta-se pelas descries minuciosas das prticas sociais e suas representaes. Dentre estas prticas, as que se relacionam com a mudana social e que agora nos interessam, foram as que mais chamaram a ateno dos investigadores.

    E Podemos dar o exemplo de Georges Balandier (1971) que analisa a mudana social resultante de presses externas a uma sociedade referida. Qualificando de mudana exgena* este processo, Balandier fornece um conjunto de elementos que permitem diagnosticar a natureza dos dinamismos provocados por uma situao de contacto. Temos, assim, a distncia diferencial, prioritariamente de ordem econmica, entre as sociedades em relao, a situao respectiva de cada uma delas; a durao dos processos de contacto; a quantidade das mudanas provocadas; e os ritmos seguidos por cada uma delas nesta situao de contacto e no processo de mudana provocado.

    No fim o que se pretendia era colocar em evidncia os diversos obstculos de ordem cultural que a difuso do progresso econmico e tcnico encontram. Para isso fazia- se apelo a instrumentos de anlise que, em razo de uma pretensa generalizao e operatividade, reduziam a complexidade do social ao nvel dos fenmenos puramente sintomticos (veja-se por exemplo os modelos de mudana ou indicadores da aculturao de Bastide).

    Uma outra posio, e aquela que aqui propomos com Sabelli (1993), a que parte da hiptese de que o que designamos como relao de desenvolvimento traduz, na realidade, um conjunto de prticas caracteiizadas por uma

    naturem ilusria da comunicao. Desta forma, no podemos mais falar univocamente de confrontao entre tradio e inovao. H uma forma de saber e agir, enquanto este agir expresso do prprio saber. H um sentido nas decises, o qual no parte somente dos princpios e dos valores, que so prprios a uma lgica social determinada, mas tambm, e sobretudo, de um conhecimento sociolgico dos actores que propem ou impem, segundo os casos, a relao de desenvolvimento. Uma relao de desenvolvimento que se estabelece a partir de uma perspectiva tctica (Certeau, 1980) no caso dos intervenientes menos poderosos ou visveis, e que desenvolvem uma espcie de jogo de engano (ruse) para exprimir justamente esta faculdade de colocar em prtica tcticas onde o fim o de dominar a situao que uma relao acaba de criar, sobretudo quando se trata de uma relao contrastante e modificadora: "La force et l'efficacit de cette intelligence de la ruse provient de son dguisement sous des semblants qui e m seuls restent accessibles a w partenaires" (Sabelli, 1980:32). Estes "semblants" ns os apelidamos, segundo o contexto, como cultura e tradio*, crenas e valores.

    Aqui chegados, parece-nos no ser possvel aceder complexidade da relao de desenvolvimento sem fazer apelo a uma teoria da prtica e a uma teoria da pessoa: o conhecimento dos factos sociais passa por um exame conjunto do que resulta da situao contingente e do que se encontra incorporado nos sistemas de pensamento e nas estruturas sociais.

    A relao de desenvolvimento, longe de ser o resultado de um encontro ou de um choque

  • cultural, uma ocasio, um processo, cada vez indita, sempre renovada, onde a antropologia, o antroplogo, o poder, o oufro presente e diferenciado, se colocam em questo, se descobrem e se recriam para enriquecimento mtuo e para dar razo do seu existir.

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