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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES INSTITUTO DE LETRAS COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA ANTONIO NÓBREGA: A EXPRESSÃO LINGÜÍSTICO-POÉTICO-MUSICAL DE UM BRINCANTE PERNAMBUCANO por JORGE MOUTINHO Rio de Janeiro 2006

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

INSTITUTO DE LETRAS

COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

ANTONIO NÓBREGA:

A EXPRESSÃO LINGÜÍSTICO-POÉTICO-MUSICAL

DE UM BRINCANTE PERNAMBUCANO

por

JORGE MOUTINHO

Rio de Janeiro

2006

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Antonio Nóbrega:

a expressão lingüístico-poético-musical

de um brincante pernambucano

por

Jorge Luís Moutinho Lima

Tese submetida à Coordenação de Pós-Graduação do Instituto de Letras – Centro de Educação e Humanidades – da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor, sob a orientação do Professor Doutor André Crim Valente

Rio de Janeiro, 2006

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ANTONIO NÓBREGA:

A EXPRESSÃO LINGÜÍSTICO-POÉTICO-MUSICAL

DE UM BRINCANTE PERNAMBUCANO

por

JORGE MOUTINHO

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________

Professor Doutor André Crim Valente (Orientador) (UERJ)

_________________________________________________

Professor Doutor José Carlos Santos de Azeredo (UERJ)

_________________________________________________

Professor Doutor Júlio César Valladão Diniz (PUC-Rio)

_________________________________________________

Professora Doutora Maria Teresa Gonçalves Pereira (UERJ)

_________________________________________________

Professor Doutor Mário Eduardo Toscano Martelotta (UFRJ)

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RESUMO

Esta tese tem por objetivo abordar o universo lingüístico-poético-musical

em que se expressa o cantor, compositor, ator, dançarino, violinista e

rabequeiro pernambucano Antonio Nóbrega, tomando como base três campos

da língua portuguesa: estilística, semântica e dialetologia. O estudo tem como

ponto de partida o repertório dos cinco CDs gravados por ele no período de

1996 a 2002 (Na pancada do ganzá, Madeira que cupim não rói, Pernambuco

falando para o mundo, O marco do meio-dia e Lunário perpétuo), discos que

resultam de espetáculos homônimos.

Com base no corpus aqui analisado, serão feitas aproximações entre os

pressupostos teóricos referentes aos campos de estudo indicados e o que se

verifica nas letras que fazem parte desse universo lingüístico, realçando-se a

presença dos parceiros Bráulio Tavares e Wilson Freire e levando-se em conta

aspectos relativos à importância da cultura popular brasileira na formação

desse brincante nordestino – que tem como referenciais preponderantes em

seu trabalho o escritor Ariano Suassuna e o Movimento Armorial.

As reflexões sobre o trabalho de Antonio Nóbrega são contribuições

desta tese no sentido de mostrar como se pode analisar uma obra literário-

musical utilizando elementos teóricos da língua portuguesa, estabelecendo

diálogos entre mais de um campo de estudo.

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ABSTRACT

This doctorate dissertation has as its aim to deal with the musical-poetic-

linguistic universe in which Antonio Nóbrega, an artist from the state of

Pernambuco, Brazil, expresses himself as singer, composer, actor, dancer,

violinist, and rebec player, taking as its basis three fields of the Portuguese

language: stylistics, semantics and dialectology. The study has as its starting

point the repertoire of the five CDs recorded by him in the period from 1996 to

2002 (Na pancada do ganzá, Madeira que cupim não rói, Pernambuco falando

para o mundo, O marco do meio-dia e Lunário perpétuo), records which result

from the homonymous spectacles.

Having as basis the corpus which was analyzed here, approximations will

be accomplished among the theoretical presuppositions related to the fields of

study mentioned before, and the one which is verified in the lyrics which are

part of this linguistic universe, giving prominence to the presence of his partners

Bráulio Tavares and Wilson Freire, and taking into consideration aspects

concerning the importance of Brazilian popular culture in the formation of this

northeastern artist – who has the writer Ariano Suassuna and the cultural

movement known as Movimento Armorial as prominent referentials in his work.

The reflections on the work of Antonio Nóbrega are the contributions of

this doctorate dissertation in the sense of showing how it is possible to analyze

a musical-literary work by using theoretical elements of the Portuguese

language, establishing dialogues among more than one field of study.

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RÉSUMÉ

Cette thèse envisage l’univers linguistique-poétique-musical dans lequel

s’exprime le chanteur, compositeur, acteur, danseur, violoniste et joueur de

rabeca Antonio Nóbrega, ayant pour base trois domaines de la langue

portugaise: la stylistique, la sémantique et la dialectologie. Le point de départ

de cette étude est le répertoire des cinq CD enregistrés par l’artiste pendant la

période de 1996 à 2002 (Na pancada do ganzá, Madeira que cupim não rói,

Pernambuco falando para o mundo, O marco do meio-dia e Lunário perpétuo),

des disques qui résultent de spectacles homonymes.

D’après le corpus analisé, on fera ici des rapprochements entre les

suppositions théoriques concernant les domaines indiqués et ce qui se vérifie

dans les paroles qui font partie de cet univers linguistique, tout en soulignant la

présence des partenaires Bráulio Tavares et Wilson Freire et tenant compte

des aspects concernant l’importance de la culture populaire brésilienne dans la

formation de ce brincante [joueur] du nord-est brésilien dont les références

prépondérantes sont l’écrivain Ariano Suassuna et le Mouvement Armorial.

Les réflexions sur le travail de Antonio Nóbrega sont des contributions de

cette thèse dans le sens de montrer comment on peut analyser une œuvre

littéraire-musicale en employant des éléments téoriques de la langue portugaise

et établissant des dialogues entre plus d’un champ d’étude.

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FICHA CATALOGRÁFICA

Moutinho, Jorge. Antonio Nóbrega: a expressão lingüístico-poético-musical de um brincante pernambucano. / Jorge Moutinho. - Rio de Janeiro, 2006. x, 243 p. Orientador: André Crim Valente. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenação de Pós-Graduação em Letras. Bibliografia: p. 165-173. 1. Língua portuguesa. 2. Estilística. 3. Semântica. 4. Dialetologia. 5. Cultura popular brasileira. 6. Música popular brasileira. I. Valente, André Crim. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenação de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

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A todo artista popular brasileiro que se esforça dignamente

para mostrar a cada dia que a linguagem com que

se expressa é madeira de lei que cupim não rói.

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vi

AGRADECIMENTOS

A todos os professores e colegas da primeira turma – assim como aos

funcionários da secretaria – do curso de Doutorado em Língua Portuguesa

(Coordenação de Pós-Graduação em Letras) da Universidade do Estado do

Rio de Janeiro, no período de 2002 a 2005.

Ao professor orientador e amigo André Crim Valente pela calorosa

acolhida desde o início do doutorado, entreabrindo-me as portas para as

leituras teóricas referentes à estilística, à semântica e à dialetologia,

fascinantes campos de estudo da língua portuguesa. Por trás dele, eu não

poderia deixar de agradecer a Leila Valente, sua esposa e também professora

de português, pela constante simpatia ao me atender nas freqüentes vezes em

que precisei ligar para a residência do casal, em busca de meu preclaro

orientador. Também sou muito grato a André pelo decisivo apoio durante os

diversos eventos acadêmicos em que estivemos juntos ao longo desses quatro

anos, incluindo o VII e o VIII Congresso Nacional de Lingüística e Filologia, na

UERJ; nossa viagem a João Pessoa (Paraíba) para participar do II Encontro

Nacional de Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino (Eclae), promovido

pelo Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste (Gelne), onde dividimos uma

sessão com Lucia Helena Lopes de Matos, a quem também agradeço o

estímulo; e minha ida a Minas Gerais para participar do X Simpósio Nacional

de Letras e Lingüística na Universidade Federal de Uberlândia.

Aos professores Maria Teresa Gonçalves Pereira e Júlio Cesar Valladão

Diniz pelas pertinentes observações que fizeram durante o Exame de

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Qualificação, as quais foram de grande valia na elaboração do texto final e

incorporadas na medida do possível.

À professora Nelly Carvalho pelas proveitosas indicações de leituras e

pela atenção dispensada em minha ida ao Departamento de Letras da

Universidade Federal de Pernambuco.

À professora Maria Helena Duarte Marques pelas oportunas sugestões

dadas ao trabalho que apresentei (Madeira que cupim não rói: introdução ao

universo de referência da obra de Antonio Nóbrega) como encerramento de

disciplina ministrada por ela (Descrição do Português Contemporâneo) no

curso de Doutorado em Língua Portuguesa na UERJ.

A Bráulio Tavares, pela disposição com que me acolheu em sua casa,

no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, para uma boa conversa sobre sua

obra, sua ligação com Antonio Nóbrega e a poesia popular brasileira. E pela

sua influência decisiva para que eu conseguisse conversar pessoalmente com

o próprio Nóbrega, em São Paulo.

A Wilson Freire, pela prosa amistosa que mantivemos por telefone e via

internet, eu no Rio de Janeiro e ele no Recife. A ele e a Bráulio, aproveito para

agradecer as rápidas, porém consistentes, lições sobre poesia popular

brasileira.

À amiga e irmã Tereza Marques de Oliveira Lima, também professora

universitária (literatura americana), pelo Abstract, pela troca de idéias sobre a

vida acadêmica e pelas constantes conversas reflexivas que tanto nos

estimulam em nossas caminhadas nesse mundão de meu Deus. Aproveito e

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agradeço a Eduardo Golodne pela costumeira boa vontade em sua consultoria

nos assuntos referentes à informática.

A Denise Gusmão, pelo estímulo constante – de outros carnavais – no

trabalho com a nossa memória e com a nossa cultura popular.

A Mônica Dourado, pelo permanente incentivo cearense-paraibano e

pelas consultas referentes à língua inglesa sempre que precisei utilizar esse

idioma ao longo do doutorado – afinal, penso em português.

A Irene Ernest Dias, pela colaboração desde o preparo do anteprojeto

com que ingressei no Doutorado até a presteza na elaboração do Résumé.

A Stella Caymmi, pelo apoio na “busca bibliográfica”.

A Anna Paula de O. Mattos Silva pela atenção e pelo envio, via internet,

de sua dissertação de mestrado sobre Ariano Suassuna e Chico Science.

A Carmem Lélis, do Centro de Estudos e Pesquisa em Cultura Popular

Casa do Carnaval (Recife – PE), pela atenção e pelos livros presenteados

sobre a cultura pernambucana, quando ali estive recolhendo material para

minha pesquisa.

Ao jornalista Luiz Freitas, com quem trabalhei como jornalista em

determinada empresa ao longo desse período, por ter compreendido que eu

poderia conciliar perfeitamente minhas atividades profissionais de redator e

revisor com as aulas do doutorado e os eventos relacionados ao curso.

A Denílson Botelho, pelo estímulo decisivo na “arrancada” final para a

defesa da tese.

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A Lucia Niquet, que está em alguma página do meu Lunário perpétuo.

Que ela possa crescer cada vez mais ao descobrir a beleza guardada no

aroma dos jasmins e na luminosidade dos vaga-lumes.

A Antonio Moutinho, apoio fraternal em muitas horas H, entre elas a da

defesa.

A Dorival e Lisette, meus Pais, pela semeadura, pelo plantio, pelos

sólidos alicerces e pela farta, proveitosa e perene colheita. Que assim seja!

Aos “Heróis do Maravilhoso” (aproveitando expressão da canção Lunário

perpétuo), companheiros que povoam o meu cotidiano e o meu Ideário (assim

como Nóbrega tem o dele), ensinando-me a ser melhor a cada dia. Eles

saberão a quem me refiro.

E ao próprio Antonio Nóbrega, que me recebeu no escritório da

Brincante Produções, em São Paulo, a princípio meio desconfiado, mas aos

poucos abrindo-se para uma fluente e amistosa prosa sobre sua vida e obra.

Como se ele fosse, literalmente, Pernambuco falando para o mundo.

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x

Sumário

Introdução........................................................................................................................1

1 – Considerações sobre a cultura popular nordestina.................................................11

2 – Diálogos e parcerias................................................................................................25

2.1 – Ecos do Movimento Armorial - A influência de Ariano Suassuna.............26

2.2 – Os parceiros fiéis......................................................................................35

2.2.1 – Wilson Freire..............................................................................36

2.2.2 – Bráulio Tavares..........................................................................41

3 – Pressupostos teóricos.............................................................................................58

3.1 – Aspectos estilísticos..................................................................................58

3.2 – Aspectos semânticos................................................................................68

3.3 – Aspectos dialetológicos............................................................................82

4 – Corpus.....................................................................................................................89

4.1 – Apresentação............................................................................................89

4.2 – Análise do corpus.....................................................................................98

4.2.1 – Na pancada do ganzá................................................................99

4.2.2 – Madeira que cupim não rói.......................................................118

4.2.3 – Pernambuco falando para o mundo.........................................132

4.2.4 – O marco do meio-dia................................................................136

4.2.5 – Lunário perpétuo......................................................................148

5 – Conclusão..............................................................................................................158

Referências Bibliográficas...........................................................................................165

Bibliografia de Apoio....................................................................................................172

Referências Discográficas (CDs e DVD).....................................................................174

Anexos.........................................................................................................................175

Anexo 1 – Letras.........................................................................................................175

Anexo 1.1 – Na pancada do ganzá..................................................................175

Anexo 1.2 – Madeira que cupim não rói..........................................................183

Anexo 1.3 – Pernambuco falando para o mundo............................................192

Anexo 1.4 – O marco do meio-dia...................................................................199

Anexo 1.5 – Lunário perpétuo..........................................................................207

Anexo 2 – Entrevista com Antonio Nóbrega................................................................215

Anexo 3 – Glossário....................................................................................................238

Anexo 4 – Imagens (reproduções de capas de CDs e DVD)......................................240

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1

Introdução

(em que o autor desta tese conta como tomou conhecimento da existência do

artista Antonio Nóbrega e apresenta sua carta de intenções)

Senhores desta sala, licença, eu vou chegando, eu vou.

A voz e a rabeca, o coração cantando, eu vou.

(Loa de abertura – Na pancada do ganzá)

Corria o ano de 1993 e eu dava prosseguimento ao meu curso de

educação artística, habilitação em música, na Universidade Federal do Estado

do Rio de Janeiro (UNI-RIO). Certo dia, fui informado de que haveria uma aula-

espetáculo com um artista pernambucano, cujo nome eu não conhecia.

Enquanto aguardava, chamou a minha atenção um sujeito franzino, de baixa

estatura, que observava os livros expostos no saguão da referida instituição de

ensino, atento aos títulos especialmente da área de música e cultura popular,

hábito que também me é comum. Quando me sentei para assistir à

apresentação, qual não foi a minha surpresa ao constatar que aquele cidadão é

que daria a tal aula-espetáculo. Ao subir no palco, ganhou um fôlego especial e

transformou-se num ser grandioso. Cantou, dançou, contou histórias, jogou

capoeira com pessoas da platéia. Manteve o domínio absoluto do público o

tempo todo. A partir de então, não pude mais ouvir o seu nome ou referências

a seu trabalho e ficar indiferente.

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Antonio Carlos Nóbrega de Almeida1 nasceu no dia 2 de maio do ano da

graça de 1952, no Recife, em Pernambuco. Compositor, cantor, violinista,

rabequeiro, violeiro, violonista, tocador de ganzá, pandeiro, alfaia2 etc. –

músico de amplo espectro, portanto. Ator, dançarino, pesquisador de cultura

popular brasileira, sobre a qual muito aprendeu com o escritor Ariano Suassuna

quando integrou o Quinteto Armorial, no início dos anos 70.3 Em linhas gerais,

esta é a forma mais sucinta de apresentar o nosso personagem principal. Falar

sobre sua obra, no entanto, não é algo tão fácil assim, uma vez que tal

empreendimento pode ser feito segundo vários enfoques, conforme o ponto de

vista e a área de interesse do observador.

Como sempre tive grande interesse pela cultura popular brasileira em

suas mais diversas manifestações, o trabalho desse artista popular nordestino,

ou brincante, como é habitualmente chamado naquela região, passou a fazer

parte do meu foco de atenção tanto em termos musicais como,

conseqüentemente, no que diz respeito aos textos que se relacionam com as

canções, em sua maior parte criados em conjunto com seus constantes

parceiros Wilson Freire e Bráulio Tavares. Mas por que a escolha da obra de

Antonio Nóbrega como tema de uma tese de doutorado em língua portuguesa,

uma vez que ele é um artista essencialmente ligado à música e à dança? Pela

oportunidade de reunir no mesmo objeto de estudo aspectos que dizem

respeito tanto à linguagem escrita quanto à linguagem oral, unindo a palavra no

1 Apesar de a norma culta da língua portuguesa recomendar a acentuação do nome Antonio, optou-se aqui por registrá-lo sem acento, conforme o próprio artista assina e segundo aparece em capas e encartes de seus CDs. 2 Ver Glossário. 3 A influência de Ariano Suassuna e a importância do Quinteto Armorial no trabalho de Antonio Nóbrega serão estudadas no capítulo 2.

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papel (verso) ao jeito de falar (canto), destacando aspectos que possam

contribuir para caracterizar o trabalho do artista em questão, por meio de

elementos teóricos de determinados campos de estudo da língua portuguesa.

E o que se pretende estudar aqui? Vamos por partes, de modo a apresentar os

principais elementos que levaram o autor desta tese a escolher como tema a

obra desse brincante pernambucano.

Nesta tese, será estudada a expressão lingüístico-poético-musical de

Nóbrega levando-se em conta aspectos da língua portuguesa como semântica,

dialetologia e principalmente estilística, analisados sob um viés cultural em que

se destaca a importância da cultura popular nordestina na formação do artista

em questão.4 Afinal, o fato estilístico é tanto de ordem lingüística como

psicológica e social, lembrando conceito de Marcel Cressot (1980).

Inicialmente, explique-se o que se entende por brincante: “participante de

folguedo popular” (Ferreira, 1985: 286); “aquele que brinca; brincador;

participante de folguedo folclórico ou auto popular, ou de qualquer folia, como o

carnaval” (Houaiss & Villar, 2001: 513). Em resumo, trata-se dos artistas

populares ou folgazões, como o próprio Antonio Nóbrega conta durante as

apresentações de seus espetáculos. São aqueles que participam dos

brinquedos, como explica Mário de Andrade (1989: 71):

[Brinquedo] No Nordeste é sinônimo de canto e de dança. Empregado especialmente como nome genérico das danças dramáticas (Pastoris, Cheganças, Bois, Congos, Caboclinhos, etc.). Também se usa no mesmo sentido brincadeira, brincar.

4 Estudar a expressão corporal e a dança, elementos indissociáveis do trabalho de Nóbrega, está além dos limites desta tese, que tem como objetivo central a análise de aspectos referentes aos citados campos teóricos da língua portuguesa.

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4

Existe até uma definição francesa para o termo, conforme consta no

dicionário português-francês das manifestações folclóricas de Pernambuco

(Coimet, 2002: 33): “[Néo. Comp. de brincar (jouer, danser, s’amuser) et du

suff. -ante (qui indique une action, un agent)]. (..) manif. pop. Participant d’un

groupe folklorique qui s’amuse, tout en divertissant le public.” É um termo muito

usado no Nordeste brasileiro. Devido à importância da figura do brincante na

cultura popular nordestina e ao fato de o próprio Nóbrega se definir

prazerosamente como um deles (inclusive o selo pelo qual grava seus CDs tem

o nome de Brincante, assim como um teatro que mantém no bairro de Vila

Madalena, na cidade de São Paulo, onde mora),5 esse conceito será

devidamente aproveitado ao longo desta tese.

Sobre o despertar do meu interesse para a obra do brincante nordestino

Antonio Nóbrega, o que acarretou a motivação para este estudo, já se falou há

pouco. Tal identificação, por sinal, provocou esse tom um tanto confessional na

narrativa em primeira pessoa nesta introdução, o qual será deixado de lado nos

capítulos teóricos, dando vez à objetividade típica do texto acadêmico. Devo

acrescentar que, como profissional também da área de letras, percebi no

trabalho apresentado pelo artista uma boa oportunidade para estudar as inter-

5 A proposta do Teatro Escola Brincante é servir como local de valorização e promoção da cultura brasileira. Criado em 1992, desde então oferece, além da apresentação de espetáculos, cursos e oficinas de dança, capoeira, teatro, percussão e formação de educadores brincantes, por exemplo, todos ministrados por diversos profissionais dessas áreas. O letrista Bráulio Tavares, um dos parceiros mais importantes de Nóbrega, já ministrou no local um curso sobre poética popular do Nordeste. Nóbrega ali estreou os espetáculos Brincante, Segundas histórias, Na pancada do ganzá e Madeira que cupim não rói. Também ali já apresentou muitas vezes sua aula-espetáculo. Com a notoriedade que conquistou, o seu teatro ficou pequeno para suas apresentações e não comporta o grande público que o artista atrai hoje. Devido à excelente receptividade da iniciativa, Nóbrega criou o Instituto Brincante, que por sua vez gerou o Centro Brasileiro de Estudos e Folganças, o qual – por meio de patrocínio e parcerias – oferece aulas gratuitas para comunidades, instituições sociais e jovens de baixa renda. A repercussão chegou a além-mar: em 1993, a Oficina Municipal de Teatro, em Coimbra (Portugal), homenageou Nóbrega com a abertura do Espaço Brincante.

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5

relações linguagem poética–música–cultura popular brasileira, de modo a

responder à pergunta básica que servirá de mote em nosso trajeto ao longo

desta tese: como estabelecer elementos estilísticos que possam caracterizar a

expressão lingüístico-poético-musical de Antonio Nóbrega?

Dessa forma, serão abordados aspectos lingüísticos constantes do

repertório dos cinco discos de Nóbrega lançados no período de 1996 a 2002

(Na pancada do ganzá, Madeira que cupim não rói, Pernambuco falando para o

mundo, O marco do meio-dia e Lunário perpétuo)6 como se fossem cinco

roteiros que seguem a mesma seqüência ou lógica e que, na verdade, formam

um único e longo roteiro de proporções muito maiores, pode-se dizer, que é a

própria trajetória artística desse pernambucano radicado em São Paulo. Deve-

se informar que, antes dos espetáculos e CDs homônimos mencionados,

Nóbrega criara e apresentara outros no início de sua trajetória solo pós-

Quinteto Armorial. São eles: Bandeira do Divino (1976), A arte da cantoria

(1981), O maracatu misterioso (1982), Mateus presepeiro (1985), O Reino do

Meio-Dia (1989), Figural (1990), Brincante (1992) e Segundas histórias (1994).

Depois viriam Pernambouc (1999)7 e Antonio Nóbrega e banda (2005). Há

ainda a aula-espetáculo Sol a pino, encenada com freqüência nos mais

diversos locais, na qual Nóbrega conta eventualmente com a participação de

Rosane Almeida, sua esposa, dançarina e acrobata, e seu filho Gabriel,

percussionista.

6 As letras de todos os CDs estão relacionadas no Anexo 1, incluindo as de outros autores que não Nóbrega e seus parceiros. No final de 2005, ele lançou o CD Nove de frevereiro, o qual não é analisado aqui, devido ao fato de este texto já estar em fase de conclusão na época. 7 Versão apresentada pelo artista, na França, do espetáculo Pernambuco falando para o mundo.

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6

Nosso percurso está dividido nos seguintes temas: considerações gerais

acerca da cultura popular nordestina; a influência do escritor Ariano Suassuna

e do Movimento Armorial no trabalho de Nóbrega, assim como a forte presença

de seus fiéis parceiros Wilson Freire e Bráulio Tavares; pressupostos teóricos

(aspectos estilísticos, semânticos e dialetológicos); apresentação e análise do

corpus; e conclusão reunindo as principais características do que se chama

aqui de expressão lingüístico-poético-musical de nosso brincante nordestino.8

Cada capítulo tem como epígrafe um trecho de uma das letras contidas nos

discos de Nóbrega, de canções de sua autoria, com a respectiva indicação do

nome do CD em que se encontra.9

Como referenciais teóricos, serão utilizados conceitos de autores ligados

à estilística (assim como à semântica e à dialetologia), de modo a se construir

um arcabouço consistente para o estudo da obra desse artista, em busca das

características principais de sua linguagem. Afinal, compete à estilística

investigar a expressão dos fatos da sensibilidade pela linguagem e a ação dos

fatos de linguagem sobre a sensibilidade (Bally, 1951). Uma vez que se falará

de estilo, entre tantas definições citem-se aqui a de John Middleton Murry

(1968), para quem estilo é uma qualidade de linguagem peculiar ao escritor,

que comunica emoções ou pensamentos, e a de Joaquim Mattoso Câmara

Júnior (1978), que diz ser a definição de uma personalidade em termos

lingüísticos. Nilce Sant’Anna Martins (2000: 2) relaciona diversas outras,

incluindo a de Jules Marouzeau: “Estilo é a qualidade do enunciado, resultante

8 Ao longo da análise de elementos lingüísticos empreendida nesta tese, propõe-se também uma interpretação dos textos contidos nas letras do corpus em questão. 9 A indicação dos respectivos parceiros dos versos (fragmentos de letras de música) citados nas epígrafes pode ser encontrada no Anexo 1.

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de uma escolha que faz, entre os elementos constitutivos de uma dada língua,

aquele que a emprega em uma circunstância determinada.” Para completar,

outro especialista no assunto, Pierre Guiraud (1978: 9), ressalta que a

estilística “não é mais que o estudo da expressão lingüística; e a palavra estilo,

reduzida à sua definição básica, nada mais é que uma maneira de exprimir o

pensamento por intermédio da linguagem.” O capítulo 3.1 desta tese vai

explorar detidamente diversos aspectos estilísticos que podem ser apreciados

na obra de Antonio Nóbrega.

Para situar termos e expressões que aparecem nas letras em questão, a

semântica estará ao nosso lado, levando-se em conta que

o ponto de partida de um ato lingüístico é o significado em sentido estrito, determinado pela gramática. (...) [e o] significado em sentido estrito é colocado em uso com a ajuda da totalidade de nossas capacidades cognitivas (percepção, estratégias inferenciais não estritamente lingüísticas etc.) (Chierchia, 2003: 235).

Assim, serão analisados determinados elementos das teias de

significados estabelecidas nos campos semântico e lexical em questão.

Estudos sobre dialetologia servirão para dar base ao caráter regionalista

do trabalho de Nóbrega, incluindo aspectos do seu jeito de falar e cantar, uma

vez que, ao falar, cada indivíduo transmite, além da mensagem contida em seu

discurso, “uma série de dados que permite a um interlocutor atento não só

depreender seu estilo pessoal – seu idioleto –, mas também filiá-lo a um

determinado grupo” (Brandão, 1991: 6). Serão aproveitadas noções dadas por

Ferreira e Cardoso (1994) para a interpretação de dados lingüísticos no que

toca à dialetologia.

Conceitos retirados de estudos fonológicos (como os de Leite & Callou,

2002) aparecerão eventualmente, quando forem necessários para reforçarem

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determinados aspectos de nosso estudo, como a pronúncia de Nóbrega

caracteristicamente nordestina. Mário Marroquim (1996: 21), por exemplo,

afirmou que “a pronúncia do nordestino é a que caracteriza em geral o falar

brasileiro: é demorada, igual, digamos mesmo arrastada, em contraste com a

prosódia lusitana, áspera e enérgica”. E de modo a estabelecer referenciais

com relação a um solo tão rico de marcos culturais, onde surgiu a arte desse

brincante, teóricos da cultura popular não ficarão de fora, sendo aproveitadas

idéias de Bakhtin (1999) em seu célebre estudo sobre a cultura popular na

Idade Média e no Renascimento, aqui transplantadas para o universo

nordestino brasileiro. Ressalte-se que ao longo desta tese aparecerão

conceitos de diversos outros autores – relacionados aos campos de estudo em

questão – que não são citados nesta introdução.

Como o referencial teórico privilegiará a estilística, voltemos a Marcel

Cressot (1980: 16):

Podemos estudar os meios de expressão de um indivíduo, de um grupo ou de uma época. O indivíduo, ao fazer uma escolha dentro do material fornecido pela língua, é influenciado pela sensibilidade lingüística do grupo e da época a que pertence; na medida em que reflete essa sensibilidade, contribui para consolidar as fórmulas estilísticas que lhe são próprias. A sua sensibilidade pessoal pode, no entanto, desempenhar também um papel afetivo. Pode, neste sentido, influenciar o seu grupo, que, por sua vez, influenciará zonas mais vastas (...). É esta sensibilidade que tentaremos destacar, partindo da escolha do vocabulário, do material gramatical, da ordem das palavras, do movimento e da música da frase (destaque do autor desta tese).

Esta última frase de Cressot reúne importantes elementos que servirão

para “compor” a linguagem de Nóbrega no plano estilístico: escolha do

vocabulário, material gramatical, ordem das palavras, movimento e “música da

frase”. Este é um aspecto fundamental que será levado em conta, uma vez que

a obra estudada é a de um músico que traduz nas letras que canta um caráter

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eminentemente regional, devido à sua dicção e à utilização de termos

específicos de sua região: o Nordeste brasileiro, especialmente o estado de

Pernambuco. E para a investigação sobre a “dicção” artística de Antonio

Nóbrega será válida a lembrança de conceitos do lingüista Luiz Tatit, também

cantor e compositor, que estuda o que chama de dicção do “cancionista”

brasileiro, com suas específicas maneiras de dizer, cantar, musicar, gravar e

compor, incluindo aspectos como a gestualidade oral.

O cancionista mais parece um malabarista. Tem um controle de atividade que permite equilibrar a melodia no texto e o texto na melodia, distraidamente, como se para isso não despendesse qualquer esforço. (...) Cantar é uma gestualidade oral, ao mesmo tempo contínua, articulada, tensa e natural, que exige um permanente equilíbrio entre os elementos melódicos, lingüísticos, os parâmetros musicais e a entoação coloquial. O cancionista é um gesticulador sinuoso com uma perícia intuitiva muitas vezes metaforizada com a figura do malandro, do apaixonado, do gozador, do oportunista, do lírico, mas sempre um gesticulador que manobra sua oralidade, e cativa, melodicamente, a confiança do ouvinte (1996: 9).

Os personagens sugeridos por Tatit são “encarnados” pelo artista

pernambucano na interpretação de suas canções, que podem ganhar um

caráter lírico, apaixonado ou gozador – como faz o personagem Tonheta, que

será apresentado aos leitores no próximo capítulo. E Nóbrega não deixa de ser

um malabarista das canções, no sentido de que também é um exímio

dançarino e tem grande domínio de palco, costumando conquistar as platéias

por onde se apresenta.

Antes de prosseguir, lembre-se uma vez mais que os aspectos de língua

portuguesa – como estilística, semântica e dialetologia – no trabalho do

“cancionista” Antonio Nóbrega serão analisados aqui sob um viés cultural, de

modo a integrar diversos fragmentos que se reúnem para compor esse

caleidoscópio lingüístico-poético-musical formado por sua arte, traduzindo uma

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“expressão lingüística da vida”, para aproveitar aqui um conceito de Charles

Bally (1957).

Comecemos por situar o universo artístico e poético em que surgiram

Antonio Nóbrega e sua arte popular.

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1 – Considerações sobre a cultura popular nordestina

(em que se fala sobre o universo regional onde surgiu e fermentou-se a arte de

Antonio Nóbrega)

Meu povo, meus senhores, aqui estou no meu destino,

estou no meu desatino, vim brincar neste lugar.

(Mateus Embaixador – Na pancada do ganzá)

Este capítulo pretende traçar um breve panorama do universo em que

nasceram a arte e o artista aqui estudados, uma região cuja cultura popular

traz marcas peculiares que a diferenciam do que se verifica em outras partes

do Brasil.10 O ponto de partida é a figura do brincante, já apresentada na

Introdução. Na definição mais simples, costuma-se dizer que é um artista

popular, um participante de folguedo popular. De forma mais ampla, esta tese

procurará mostrar que uma das melhores definições de brincante atende pelo

nome de Antonio Nóbrega.

É na cultura popular nordestina que ele se inspira para desenvolver o

seu trabalho, buscando elaborar as manifestações artísticas a que assiste

10 A intenção aqui é apresentar um panorama geral, como já dito, uma vez que não é o objetivo deste trabalho se aprofundar em questões como a definição de cultura ou de cultura popular, muito menos fazer um histórico ou uma análise em profundidade das diversas manifestações da cultura popular pernambucana, especialmente da música, já que tal tarefa foi ou vem sendo feita com o devido esmero, há anos, por especialistas no assunto, como Alvarenga (1960), Andrade (1982, 1983, 1984, 1987, 1989), Araújo (1973), Ayala & Ayala (2000), Cravo Albin (2003), Marcondes (1999), Mota (1962), Tinhorão (1988, 1991) e Valente (1979), por exemplo. Consulte-se também o Dicionário Cravo Albin de Música Popular Brasileira (www.dicionariompb.com.br). Especificamente sobre gêneros musicais pernambucanos, no final de 2005 começou a ser editado o Batuque book, de Climério de Oliveira Santos e Tarcísio Resende (Recife: Governo de Pernambuco; Prefeitura do Recife; Chesf, 2005), que tem 15 volumes planejados, incluindo temas como o coco e o cavalo-marinho. O primeiro volume registra notações melódicas e rítmicas e letras de toadas de maracatu. O prefácio é assinado pelo etnomusicólogo Carlos Sandroni. Ressalte-se que a proposta deste capítulo é reunir

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desde a infância, dando-lhes um tratamento mais sofisticado – sofisticado no

sentido de que as transpõe para o palco e para gravações em CD e mesmo em

DVD,11 o que exige os conseqüentes cuidados de produção referentes a tais

empreitadas. No entanto, ele tem a preocupação de sempre preservar as

características essenciais dessas manifestações, tanto na música quanto na

dança ou na encenação.

As fontes populares são inspiração inesgotável para Nóbrega, assim

como o foram para o escritor francês François Rabelais, conforme esmiúça o

clássico estudo de Mikhail Bakhtin (1999) sobre a cultura popular na Idade

Média e no Renascimento, em que são estudados, sempre em relação à obra

de Rabelais, aspectos como o vocabulário da praça pública, formas e imagens

da festa popular, o banquete, a imagem grotesca do corpo, o “baixo” material e

corporal, as imagens e a realidade do tempo em questão. Essas fontes

determinaram não apenas o conjunto do seu sistema de imagens como

também a sua concepção artística, no que se permite aqui fazer um paralelo

com o nosso brincante nordestino, guardadas as devidas proporções,

naturalmente.

Rabelais foi procurar a sabedoria na voz popular de antigos dialetos,

refrões, provérbios, farsas dos estudantes, na boca dos simples e dos loucos.

É na fonte desses dialetos,12 refrões, provérbios e farsas, naquilo que disseram

as bocas nordestinas dos simples e “loucos”, que bebeu Nóbrega para criar e

elementos importantes que relacionem a cultura popular nordestina e o trabalho de Nóbrega, os quais poderão servir como parâmetros para o estudo empreendido ao longo desta tese. 11 No período de elaboração deste texto, o único DVD lançado por Nóbrega refere-se ao espetáculo Lunário perpétuo (v. Referências Discográficas). 12 Segundo Joaquim Mattoso Câmara Júnior (2001: 95), “do ponto de vista puramente lingüístico, os dialetos são falares regionais que apresentam entre si coincidência de traços

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desenvolver o seu trabalho artístico. Pode-se comparar aqui a realidade social

brasileira ao universo rabelaisiano. Afinal, segundo Bakhtin (1999), são duas as

concepções do mundo que se entrecruzam no realismo renascentista:

enquanto a primeira deriva da cultura cômica popular, a outra, tipicamente

burguesa, expressa um modo de existência preestabelecido e fragmentário.

Dessa forma, o trabalho de Nóbrega une a erudição de sua formação como

violinista13 à simplicidade e aparente rusticidade do “macrocosmo” cultural que

sempre o envolveu.

Os folguedos populares que apresentam elementos recriados por

Nóbrega, como a nau-catarineta e o cavalo-marinho, por exemplo, são prenhes

de figuras emblemáticas da cultura popular pernambucana, como o Doutor, o

Bastião, o Mateus e tantos outros.14 Para afirmar que tudo isso não deixa de

estar relacionado ao mundo da commedia dell’arte,15 lembre-se aqui o que

disse Justus Möser em estudo publicado em 1761, citado por Bakthin (1999:

31):

Arlequim é uma parcela isolada de um microcosmos ao qual pertencem Colombina, o Capitão, o Doutor, etc., isto é, o mundo da commedia dell’arte. Esse mundo possui uma integridade e leis estéticas especiais, um critério próprio de perfeição não subordinado à estética clássica da beleza e do sublime.

lingüísticos fundamentais”. Esta definição de dialeto mostra-se suficiente para o trabalho a ser desenvolvido aqui. 13 No próximo capítulo serão feitas considerações sobre o Quinteto Armorial, do qual Nóbrega foi integrante, como violinista, nos anos 70. 14 Para uma visão aprofundada dos folguedos populares nordestinos e de seus personagens, cf. Alvarenga (1960), Andrade (1982, 1984, 1987, 1989), Araújo (1973), Câmara Cascudo (s.d.), Carvalho, Mota & Paes Barreto (2000), Mota (1962), Pinto (1997), Tavares (s.d.), Valente (1979) e o endereço eletrônico http://www.recife.pe.gov.br/especiais/brincantes. 15 “Gênero teatral espirituoso e nitidamente popular, de origem italiana, que floresceu na Europa durante o séc. XVII e cuja ação, de gestos estereotipados, é sempre improvisada, embora os enredos e as personagens sejam fixos; algumas destas (o Arlequim, a Colombina, o Pantaleão, o Doutor, etc.) usavam máscaras, e permanecem até hoje como tipos

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O mundo regional recriado por Nóbrega tem mesmo sua estética própria

de beleza e do sublime, contrastando com o mundo globalizado dos tempos

atuais, em que os meios de comunicação dificilmente veiculam manifestações

culturais brasileiras alheias a interesses comerciais. Como discutir estética e

indústria cultural não é propósito deste trabalho, então eis-nos de volta aos

personagens dos folguedos nordestinos e sua importância mítica.

Pode-se dizer que a reunião de tantos “alter egos” levou à criação do

emblemático personagem Tonheta, o qual é sucesso garantido nas

apresentações de Nóbrega e cuja gênese foi desenvolvida por ele juntamente

com seu parceiro Bráulio Tavares. Folgazão, Tonheta conta “causos”, canta,

dança, toca rabeca, implica com os músicos que o acompanham, enfim, “agita”

a platéia. Nele ouvimos com a maior clareza as vozes da praça pública, para

aproveitar uma idéia de Bahktin (1999). Este autor, por sinal, ao falar sobre o

também emblemático personagem Gargântua (que poderia ser um

antepassado francês de Tonheta), costuma carregar nos elogios, valorizando o

superlativo. “Mas não se trata de maneira alguma de um superlativo retórico;

ele é exagerado, inflado, não sem ironia ou aleivosia; é o superlativo do

realismo grotesco”, diz Bakhtin (1999: 139). Segundo ele, “é o avesso (ou

melhor, o direito) das grosserias” (id. ibid.). Assim é o vocabulário de Tonheta:

gozador, sem ser grosseiro, como se observa nas músicas interpretadas por

ele, a exemplo de Minervina e Meu foguete brasileiro (v. letras no Anexo 1).

Apesar de distantes temporal e geograficamente, mais uma vez os

mundos de Gargântua e de Tonheta se aproximam nas referências: enquanto

característicos do carnaval. [Sin.: comédia de improviso, comédia-de-arte e comédia italiana.]” (Ferreira, 1995: 438.)

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15

Bakhtin (1999: 176) fala do jogo do “boi violado” na época de Rabelais,

Nóbrega tem a seu dispor o boi do cavalo-marinho, uma das dezenas de

figuras presentes neste folguedo.

Outra comparação: em Viagem fantástica (Nóbrega, Wilson Freire e

Bráulio Tavares), a comilança descrita na composição – que inclui dobradinha,

marisco, feijoada, baião-de-dois, arroz de polvo, galinha de cabidela etc.16 –

lembra as imagens dos banquetes que são narradas detalhadamente por

Rabelais. “As imagens do banquete associam-se organicamente a todas as

outras imagens da festa popular. O banquete é uma peça necessária a todo

regozijo popular. Nenhum ato cômico essencial pode dispensá-lo” (Bakhtin,

1999: 243).

Quanto ao poder das palavras para traduzir corretamente as idéias

pretendidas pelos falantes, cite-se uma vez mais esse teórico russo:

Os aspectos elogiosos e injuriosos são evidentemente próprios de toda linguagem, de toda língua viva. Não existem palavras neutras, indiferentes, não pode haver, na realidade, senão palavras artificialmente neutralizadas. O que caracteriza os fenômenos mais antigos da linguagem é aparentemente a fusão do elogio e da injúria, a dupla tonalidade da palavra. Em seguida, essa dupla tonalidade mantém-se, mas adquire um sentido novo nas esferas não oficiais, familiares e cômicas onde observamos esse fenômeno (1999: 379).

Tanto Rabelais quanto Nóbrega (este na companhia de seus parceiros)

retratam de forma bastante cuidadosa seus respectivos universos, explorando

significativamente o léxico e a sonoridade das palavras que utilizaram/utilizam.

Afinal, a intenção na escolha das palavras é que dá a “temperatura da frase”,

aproveitando aqui uma imagem de Cressot (1980: 55). E antecipando um

16 Ver a letra completa no Anexo 1.4.

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pouco mais os pressupostos estilísticos que serão vistos no capítulo 3.1,

lembre-se o que disse Bakhtin ao abordar o que chama de “vida estilística” na

obra de Rabelais:

Ele tomou de fontes orais um número considerável dos

elementos da sua linguagem: trata-se de palavras virgens que, saídas pela primeira vez das profundezas da vida popular, da língua falada, entraram para o sistema da linguagem escrita e impressa. Os léxicos de quase todos os ramos da ciência saíram, na sua maior parte, da linguagem oral e pela primeira vez participaram de um contexto livresco, de um pensamento livresco sistemático, de uma entoação escrita livresca, de uma construção sintática escrita e livresca. Na época de Rabelais, a ciência mal começava a conquistar, às custas de um grandioso esforço, o direito de falar e de escrever na língua nacional, dita vulgar. Nem a Igreja, nem as universidades, nem o ensino a reconheciam. Ao lado de Calvino, Rabelais foi o criador da prosa literária francesa. Ele mesmo devia apoiar-se, em todas as esferas do conhecimento e da prática (mais numas que noutras), sobre o elemento oral da língua, daí retirando as riquezas verbais. As palavras vindas dessa fonte eram perfeitamente novas, não polidas ainda pelo contexto escrito e livresco (1999: 402-403; destaques no original).

Muitos anos depois que o francês Rabelais explorou/elaborou uma

linguagem específica com foco na cultura popular da Idade Média e do

Renascimento, um pernambucano faria o mesmo por aqui, só que reunindo à

linguagem oral a linguagem musical, criando um trabalho cheio de

características próprias que são estudadas ao longo desta tese. Como

inspiração maior, a cultura popular nordestina.

*******

Dizer que a cultura popular nordestina é rica não é novidade; não o

fosse, não teria atraído o interesse de tantos estudiosos, entre os quais

destaca-se Mário de Andrade, que escreveu importantes obras sobre o

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assunto, como Ensaio sobre a música brasileira, Danças dramáticas do Brasil,

O turista aprendiz, Os cocos, As melodias do boi e outras peças e o Dicionário

musical brasileiro (Andrade, 1972, 1982, 1983, 1984, 1987, 1989). Uma figura

que se tornou emblemática para Mário e que anos depois também se tornaria

para Nóbrega é a do coquista ou coqueiro17 Chico Antônio (Francisco Antônio

Moreira). Exímio cantor e tocador de coco, sempre acompanhado por seu

ganzá,18 este artista – filho, por sua vez, de Antônio Chico – mereceu de Mário

os mais rasgados e emocionados elogios, conforme escreveu o nosso “turista

aprendiz”:

Que artista. A voz dele é quente e duma simpatia incomparável. A respiração é tão longa que mesmo depois da embolada inda Chico Antônio sustenta a nota final enquanto o coro entra no refrão. O que faz com o ritmo não se diz! Enquanto os três ganzás, único acompanhamento instrumental que aprecia, se movem interminavelmente no compasso unário, na “pancada do ganzá”, Chico Antônio vai fraseando com uma força inventiva incomparável (...). Porque Chico Antônio não é só a voz maravilhosa e a arte esplêndida de cantar: é um coqueiro muito original na gesticulação e no processo de tirar um coco (Andrade, 1983: 277-278).

Mesmo com tanta reverência, Mário acabou não escrevendo o livro em

que reuniria o material de suas pesquisas musicais no Nordeste e faria uma

homenagem especial a Chico Antônio, obra que teria o título de Na pancada do

ganzá. Admirador de ambos – Mário e Chico –, outro Antonio (o Nóbrega)

resolveu prestar uma homenagem a ambos ao escolher esse nome para seu

primeiro trabalho solo em CD (e conseqüente espetáculo musical), resultado de

suas pesquisas e recriações artísticas inspiradas na cultura popular nordestina.

17 Ver Glossário. 18 Mais informações sobre o instrumento conhecido como ganzá estão no capítulo Análise do corpus, no trecho em que se aborda a letra da música Na pancada do ganzá (4.2.1). Ver também Glossário.

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18

O próprio Nóbrega afirma no texto do encarte do CD (selo Brincante, BR 0001,

1996): “Disco e espetáculo são dedicados à memória de Mário de Andrade e

Chico Antônio, cujo encontro revela e celebra um Brasil com o qual continuo

sonhando.”

Os documentos que formariam o livro Na pancada do ganzá foram

recolhidos na viagem etnográfica realizada por Mário ao Nordeste no período

de dezembro de 1928 a fevereiro de 1929. Nos 245 cocos reunidos no livro

intitulado Os cocos, a expressão “na pancada do ganzá”, como diria Oneyda

Alvarenga (Andrade, 1984: 10),

definidora da função do instrumento como apoio não só do ritmo, mas da invenção músico-poética em seu conjunto, aparece exclusivamente, e sempre heptassílabo completo, nos Cocos de Chico Antônio, que, se não for o dono dela, é sem dúvida a fonte do nome escolhido.

Ao partir do Rio Grande do Norte, naquela ocasião, Mário levaria consigo,

para São Paulo, um ganzá presenteado por seu amigo Chico Antônio.19

Numa de suas cartas a Manuel Bandeira, datada de 22-4-1933

(Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, 2001: 557), o autor de

Macunaíma contava:

Na verdade não estou atualmente trabalhando senão em dois

livros, a Pancada do ganzá, que é técnico, e o Café, que é lirismo. Deste pretendo acabar este ano, se Deus quiser, a segunda parte (são cinco), e ao mesmo tempo terminar os estudos pra escrever no ano que vem o Pancada, que fica delicioso assim rabicó, Pancada, loucura, tolice, divinização.

A maior parte das melodias reunidas na obra Os cocos é que iria formar o

emblemático e, como livro, inexistente Na pancada do ganzá, destinado ao

19 No curta-metragem Chico Antônio, o herói com caráter, dirigido por Eduardo Escorel e lançado em 1983, o cineasta conversa com Chico Antônio no Rio Grande do Norte e o deixa emocionado ao lhe mostrar o mesmo ganzá que Mário de Andrade levara de presente para

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folclore musical nordestino, como bem explicou Manuel Bandeira, assim

sistematicamente anunciado em todas as listas de obras em preparo incluídas

nos livros publicados de 1929 a 1935, e assim referido em vários documentos,

segundo escreveu Oneyda Alvarenga nas explicações introdutórias em

Andrade (1984). Os seis apêndices de Os cocos (1984: 345-495) trazem as

fichas e notas de Mário relacionadas à organização e ao prefácio de Na

pancada do ganzá.

É nesse universo com figuras humanas tão proeminentes como Chico

Antônio que também se destacam figuras fantásticas que gozam de grande

aceitação popular, como as personagens do cavalo-marinho – de onde fazem

parte, entre dezenas de outras figuras, o Capitão, o Mestre Ambrósio, a Ema, o

Bastião e o Mateus (este, por sinal, nome original do personagem Tonheta, de

acordo com Bráulio Tavares20) – e de tantos outros folguedos.

Com relação à literatura específica sobre as danças dramáticas

brasileiras e os textos e melodias a elas relacionados, Andrade (1982), em três

tomos, continua sendo referência certeira pela forma minuciosa como estuda

os temas abordados, incluindo partituras. Sebastião Nunes Batista (1982)

relaciona aspectos formais da cantoria e da literatura de cordel, do “ABC”

(forma utilizada na Excelência, toada popular com recriação literária de Ariano

Suassuna e interpretada por Nóbrega em Lunário perpétuo) ao “Vai-e-vem” (ou

“Quadrão de meia quadra”). Tais formas poéticas de cantoria ou recitação

seguem numerosas regras; explicar todas elas aqui estaria além dos limites da

São Paulo. Chico Antônio – o oposto de Macunaíma, herói sem caráter criado por Mário – faleceu em 1993. 20 Ver capítulo 2.2.2, em que o letrista Bráulio Tavares presta diversas informações sobre a gênese do personagem Tonheta.

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proposta em questão. Assim, privilegiar-se-ão naturalmente as que aparecem

no trabalho de Nóbrega, como se verá no capítulo 4.

No final desta tese, há indicações bibliográficas voltadas para o estudo

da cultura popular brasileira, na Bibliografia de Apoio. Cite-se desde já a

referência explícita de um parceiro de Nóbrega que é especialista no assunto:

Cantoria, regras e estilos (Bráulio Tavares, s.d.). Bráulio é citado na relação de

“poetas eruditos que escreveram cordéis” na obra Cantadores, repentistas e

poetas populares, do cantador paraibano José Alves Sobrinho (2003: 102).

A cultura popular nordestina conta cada vez mais com títulos (tanto

acadêmicos quanto destinados ao público em geral) que buscam estudar suas

diversas manifestações. No caso de Pernambuco, há desde análises teóricas

profundas a obras pontuais como Getúlio Cavalcanti: o menestrel do frevo-de-

bloco (Paes Barreto, 2000), Quadrilha junina, história e atualidade (Almeida,

2001), Festejos juninos: uma tradição nordestina (Paes Barreto & Pereira,

2002), Carnaval: cortejos e improvisos (Amorim & Benjamin, 2002) e o

Itinerário lírico do carnaval de Pernambuco (Santos & Paes Barreto, 2003).

Para aprofundar conhecimentos históricos sobre a terra natal de Antonio

Nóbrega, O Recife: histórias de uma cidade (Rezende, 2002) é uma indicação

bibliográfica recente. O Dicionário do frevo (Carvalho, Mota & Paes Barreto,

2000), Dito e feito! (Santuzza Silva, 2004) – sobre expressões regionais – e o

Dicionário do Nordeste: 5.000 palavras e expressões (Navarro, 2004) não

podem ficar de fora dessa lista de indicações bibliográficas para se conhecer

mais a fundo aspectos da cultura popular nordestina. Destaque-se ainda o

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21

Pequeno dicionário do Natal, sobre termos natalinos, de Roberto Benjamin

(1999).

Uma obra que propõe reflexões sobre a importância do coco para as

comunidades onde este ritmo é praticado é Cocos: alegria e devoção,

organizada por Ayala & Ayala (2000), do Laboratório de Estudos da Oralidade

(LEO) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Os textos abordam não só

o gênero poético-musical em si como também o perfil dos coquistas, a

instrumentação, a dança, o seu papel dentro de uma tradição regional.

Com enfoque sociológico, uma pesquisa sobre cantoria foi desenvolvida

por Ramalho (2000a), Cantoria nordestina: música e palavra. Esta mesma

autora publicou Luiz Gonzaga: a síntese poética e musical do sertão (2000b),

em que estuda a relação música-poesia na obra do Rei do Baião. Cultura e

tradição nordestina: ensaios de história cultural e intelectual (Andrade, 2000) se

aprofunda na interpretação da cultura nordestina com foco antropológico.

Na área de literatura popular nordestina, um legítimo representante dela

mereceu um estudo sociológico de fôlego feito por Feitosa (2003): o poeta

cearense Patativa do Assaré. E um bom conjunto de elementos ligados à

cultura popular brasileira, com mais de cinqüenta itens como romances,

abecês, adivinhas, quadras e desafios, preces, orações e “benzeções”, está

compilado em Weitzel (1995).

A pesquisadora Márcia Abreu é voz contrária à tendência de se

estabelecer na Península Ibérica a origem da literatura popular brasileira, ou

literatura de folhetos. Em seu livro Histórias de cordéis e folhetos, ela procura

mostrar detidamente a desvinculação entre a literatura de cordel lusitana e a

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22

nordestina. “A expressão ‘literatura de cordel nordestina’ passa a ser

empregada pelos estudiosos a partir da década de 1970, importando o termo

português que, lá sim, é empregado popularmente” (Abreu, 1999: 17). Desta

forma, contestando a visão de diversos historiadores e especialistas em cultura

popular, ela afirma ao longo de sua obra que a “literatura de folhetos” (como

prefere chamar as composições nordestinas) brasileira e a “literatura de cordel”

portuguesa são completamente diferentes. A intenção aqui não é polemizar,

mas destacar uma visão diferente em relação à apontada pelos demais

estudos sobre o assunto. A autora diz, por exemplo, que o termo “literatura de

cordel portuguesa” engloba textos em verso e prosa, de diversos gêneros,

provenientes de várias tradições culturais, produzidos e consumidos por

amplas camadas da população. Em sua pesquisa, ela sinaliza para a

uniformidade da literatura de folhetos produzida no Nordeste do Brasil, a qual é

codificada, ao contrário da variedade da literatura de cordel portuguesa. As

diferenças são estabelecidas da seguinte forma:

entre o final do século XIX e os anos 20, a literatura de folhetos consolida-se: definem-se as características gráficas, o processo de composição, edição e comercialização e constitui-se um público para essa literatura. Nada nesse processo parece lembrar a literatura de cordel portuguesa. Aqui, haviam [sic] autores que viviam de compor e vender versos; lá, existiam adaptadores de textos de sucesso. Aqui, os autores e parcela significativa do público pertenciam às camadas populares; lá, os textos dirigiam-se ao conjunto da sociedade. Aqui, os folhetos guardavam fortes vínculos com a tradição oral, no interior da qual criaram sua maneira de fazer versos; lá, as matrizes das quais se extraíam os cordéis pertenciam, de longa data, à cultura escrita. Aqui, boa parte dos folhetos tematizavam o cotidiano nordestino; lá, interessavam mais as vidas de nobres e cavaleiros. Aqui, os poetas eram proprietários de sua obra, podendo vendê-la a editores, que por sua vez também eram autores de folhetos; lá, os editores trabalhavam fundamentalmente com obras de domínio público (Abreu, 1999: 104-105).

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23

Segundo a pesquisadora, pode-se entender a literatura de folhetos

nordestina como mediadora entre o oral e o escrito, uma vez que as exigências

pertinentes às composições orais permanecem, mesmo quando se trate de um

texto escrito – mediação essa, entre o oral e o escrito, também feita por

Nóbrega em seu trabalho como cantor e compositor. Entre as histórias mais

famosas da literatura de folhetos que Márcia Abreu registra está a do boi Mão

de Pau, que serviu de inspiração para poema de Ariano Suassuna musicado

posteriormente por Nóbrega (A morte do touro Mão de Pau, que consta do

repertório de Lunário perpétuo).

Ao se falar em oralidade, lembre-se Paul Zumthor (1983, 1993),

associando-se a suas palavras o papel desempenhado por Nóbrega com sua

arte:

No caleidoscópio do discurso que faz o intérprete de poesia na praça do mercado, na corte senhorial, no adro da igreja, o que se revela àqueles que o escutam é a unidade do mundo. Os ouvintes precisam de tal percepção para... sobreviver. Apenas ela, pela dádiva de uma palavra estranha, faz sentido, isto é, torna interpretável o que se vive. Mas o homem vive também a linguagem da qual ele provém, e é só no dizer poético que a linguagem se torna verdadeiramente signo das coisas e, ao mesmo tempo, significante dela mesma (1993: 74).

Dessa forma, torna-se imprescindível a relação palavra escrita-palavra

cantada para que se realize a expressão lingüístico-poético-musical do criador

de Tonheta, constituindo o caleidoscópio bem particular de seu discurso, em

que se fundem regionalismos, fortes referências à cultura popular brasileira e

um universo literário povoado por personalidades como Aleijadinho, Garrincha

e Arthur Bispo do Rosário, sem falar em Antônio Conselheiro, Riobaldo e

Diadorim. Tais referências serão vistas mais detidamente adiante.

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24

Ao encerrar este capítulo, diga-se uma vez mais que, por não se tratar

aqui da elaboração de um trabalho específico sobre a cultura popular

nordestina, mas sim sobre a obra de um artista específico – e com foco em

aspectos relacionados ao estudo da língua portuguesa –, não serão

aprofundadas as considerações referentes às diversas manifestações culturais

nordestinas; comentários serão feitos, entretanto, à medida que elas

aparecerem durante a análise das letras, no capítulo 4.

Dentro desse universo cultural tão amplo onde germinou a obra de

Antonio Nóbrega, uma figura ainda não foi citada mas merece destaque

absoluto, tamanha influência exerceu sobre a formação de seu pupilo. Trata-se

de Ariano Suassuna, idealizador do Movimento Armorial. É tanta a sua

importância na gênese da obra do brincante pernambucano aqui estudado que

ele merece um capítulo à parte, no qual também se destacam os dois parceiros

mais constantes de Nóbrega: Wilson Freire e Bráulio Tavares.

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2 – Diálogos e parcerias

(em que se estabelecem as bases indispensáveis à gênese da expressão

lingüístico-poético-musical de Antonio Nóbrega)

Ariano Suassuna pode ser considerado uma espécie de mandarim

milagroso na formação cultural e pessoal de Antonio Nóbrega, para aproveitar

uma imagem cunhada por Travassos (1997) em seu trabalho sobre as obras de

Mário de Andrade e Béla Bartók, duas personalidades fortemente envolvidas

com a pesquisa e o estudo da música popular (brasileira e húngara,

respectivamente). É o próprio Nóbrega quem diz: “Ariano é o mestre maior. Da

arte e do mundo.”21

Num plano um pouco abaixo, pode-se dizer, do “mestre maior” situam-se

os poetas Bráulio Tavares e Wilson Freire, parceiros diletos e contemporâneos

de Nóbrega, que os considera indispensáveis ao seu trabalho:

Tanto Wilson como Bráulio são pessoas sem as quais não existiria o meu cancioneiro. O meu cancioneiro só existe porque eu encontrei esses dois parceiros. A minha música instrumental, a minha dança existiriam. Mas o meu cancioneiro, não. Eles são figuras absolutamente fundamentais e vitais.22

Este capítulo procurará mostrar por que Ariano, Wilson e Bráulio

assumem esse caráter proeminente no trabalho de Nóbrega.

21 Ver entrevista no Anexo 2. 22 Idem.

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26

2.1 – Ecos do Movimento Armorial – A influência de Ariano

Suassuna

(em que se fala sobre o criador de João Grilo, Chicó, do Auto da compadecida

e de tantas coisas mais)

A bandeira do sol estrala ao vento

e soa a minha voz de cantador, num protesto do sonho contra a dor, a pobreza do povo e o sofrimento.

(Martelo d’o marco do meio-dia – O marco do meio-dia)

Ele é o criador de personagens que devem figurar em qualquer antologia

que se preze sobre a literatura ou a dramaturgia brasileiras, como Quaderna

(do Romance d’a Pedra do Reino) ou João Grilo e Chicó (da peça Auto da

compadecida). Nascido em 16 de junho de 1927 no Palácio da Redenção, na

cidade da Paraíba, como era então chamada a capital do estado de mesmo

nome e que é a atual João Pessoa, Ariano Villar Suassuna é o oitavo dos nove

filhos de João Urbano Pessoa de Vasconcellos Suassuna e Rita de Cássia

Dantas Villar. Quando ele nasceu, seu pai era o presidente (ou governador) da

Paraíba. Em função de fortes desavenças na política paraibana, João

Suassuna foi assassinado por um pistoleiro no Centro do Rio de Janeiro, em

1930, e tal episódio marcaria para sempre a trajetória artístico-pessoal de seu

filho Ariano.

Inpirado nesse trágico acontecimento, o poema A morte do touro Mão de

Pau, que seria musicado por Antonio Nóbrega (faz parte do repertório de

Lunário perpétuo), é uma homenagem pungente que Ariano presta a seu pai:

“Corre a Serra Joana Gomes / galope desesperado: / um Touro se defendendo,

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/ homens querendo humilhá-lo, / um Touro com sua vida, / os homens em seus

Cavalos”.23 No início e próximo ao final da canção, Nóbrega entoa um aboio,

melodia de tom melancólico, repetitiva, interpretada pelos boiadeiros ou

vaqueiros enquanto conduzem a boiada ou chamam os bois dispersos. Na letra

contida no encarte do CD, esses momentos são indicados pela palavra aboio

entre parênteses. Dessa forma, o compositor busca tornar mais plangente

ainda o drama relatado na letra, em seus versos de sete pés (ou sílabas).24

Datam de 1946 a 1948 os primeiros poemas de Ariano ligados ao

romanceiro popular nordestino, como A morte do touro Mão de Pau.

A rima toante, às vezes usada nesses poemas, é influência do romanceiro ibérico; por outro lado, em vez da quadra ibérica (quatro versos de sete sílabas, rimadas em ABCB), Ariano dá preferência à sextilha, ou repente, a estrofe mais usada pelos cantadores do sertão nordestino, formada por seis versos de sete sílabas, rimadas em ABCBDB (Cadernos de Literatura Brasileira – Ariano Suassuna, 2000: 132).

Suassuna, “apelido familiar adotado como nome pelo bisavô de Ariano, é

uma palavra tupi, que significa cervo negro” (Newton Júnior, 1999: 132), daí o

codinome Albano Cervonegro utilizado por ele e que dá nome a sua obra

Sonetos de Albano Cervonegro, edição manuscrita e iluminogravada pelo autor

lançada no Recife, em 1985. Iluminogravuras são as ilustrações que o próprio

Ariano cria para os seus poemas, porque resultam da fusão da iluminura

medieval com os processos modernos de gravação em papel.

23 Ver letra completa no Anexo 1.5. 24 A rigor, em versificação, pé significa “unidade rítmica e melódica do verso, constituída de duas ou mais sílabas, sendo uma forte e outra(s), fraca(s), característica da versificação em línguas onde há acento de intensidade, como o português; pé métrico”; “cada uma das unidades de duas ou mais sílabas, que, articuladas e ordenadas, compõem os versos nas línguas com acento de quantidade, como o latim, o grego antigo e as línguas orientais; compasso” (Houaiss & Villar, 2001: 2159). No entanto, utiliza-se aqui um pé como equivalente a uma sílaba poética, tal como fazem os cantadores e poetas populares.

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28

Sobre o Movimento Armorial, em linhas gerais trata-se de uma iniciativa

liderada por Ariano, nos anos 70, no sentido de criar uma arte erudita brasileira

inspirada na cultura popular, englobando música, literatura, pintura, escultura,

dança – as artes da forma mais ampla possível. É motivo de diversos estudos

acadêmicos, como os empreendidos por Newton Júnior (1999), Santos (1999),

Moraes (2000) e Nogueira (2002). “O substantivo ‘armorial’ designa, em

português, a coletânea de brasões da nobreza de uma nação ou de uma

província. Sua utilização como adjetivo constitui um neologismo” (Santos, 1999:

25). Esta autora conta que o próprio Ariano diz ter descoberto que o nome

armorial servia ainda para qualificar os cantares do romanceiro, os toques de

viola e rabeca dos cantadores, toques que ele denominava de ásperos,

arcaicos, acerados como gumes de faca-de-ponta. Dessa inspiração veio o

título dado por Ariano a Ponteio acutilado, primeiro tema instrumental composto

por Nóbrega para o Quinteto Armorial e que ele regravou em Lunário perpétuo.

É a música que abre e encerra o espetáculo, apresentando uma sonoridade

característica do movimento (com o uso do marimbau),25 que buscava fundir o

antigo e o novo nesse campo das artes.

O estilo armorial caracterizou-se pela investigação e recuperação de melodias barrocas preservadas pelo romanceiro popular, dos sons de viola, dos aboios e das rabecas dos cantadores. Baseando-se nesses elementos musicais, o movimento armorial realizava a sua “recriação”. Procurava articular elementos de um passado preservado com uma linguagem musical que nomeava de nova, autêntica e representativa da cultura brasileira (Moraes, 2000: 102-103).

Pode-se dividir o Movimento Armorial em duas partes: a fase de 1970 a

1975, considerada por Ariano Suassuna como experimental, e a fase

25 Ver Glossário.

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denominada por ele de romançal, que teve início em 1975 com a estréia, no

Teatro Santa Isabel (no Recife), da Orquestra Romançal Brasileira. Esta fase

seria a mais criativa, segundo Newton Júnior (1999: 92-93), por pelo menos

três motivos: “O trabalho da Orquestra Romançal, o lançamento do Balé

Armorial (origem do atual Balé Popular do Recife) e a estréia de Antonio Carlos

Nóbrega de Almeida como teatrólogo, com o espetáculo A bandeira do Divino”,

conferindo ao criador de Tonheta, por meio do uso da palavra teatrólogo, o

status de dramaturgo, autor de peças teatrais, qualquer indivíduo que se ocupa

de teatro (Ferreira, 1995).

Como a meta do Movimento Armorial era realizar uma arte brasileira

erudita com base nas raízes populares da cultura brasileira, um dos

fundamentos da sua estética era a preocupação de ligar a criação artística a

um alicerce nacional-popular (Newton Júnior, 1999). O Movimento Armorial

preconizava, ao mesmo tempo, não apenas a retomada de uma herança

cultural assinalada por sua perenidade como também a reafirmação da

originalidade regional, incluindo a renovação dos modelos formais por meio de

uma temática nova, o recurso a formas populares em obra não popular e a

passagem do oral ao escrito, ou seja, a reelaboração erudita com base em um

modelo popular (Cadernos de Literatura Brasileira – Ariano Suassuna, 2000).

Como escreve Idelette Muzart Fonseca dos Santos, especialista na obra

do criador do Auto da compadecida:

Eis, talvez, a mais profunda originalidade de Ariano Suassuna e de alguns artistas do Movimento Armorial: tomaram emprestada da literatura popular, além dos seus temas e dos seus modelos poéticos, uma estética nova, herdeira da voz, do instante, do improviso, do provisório, uma estética em movimento que não imobiliza a obra, convertendo-a em “obra-prima” imutável, uma estética que se alimenta de suas próprias obras tanto quanto das obras alheias, num ciclo infinito

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de retomadas e empréstimos (Cadernos de Literatura Brasileira – Ariano Suassuna, 2000: 101).

A estética armorial refletir-se-ia no trabalho-solo de Nóbrega após o

encerramento das atividades do quinteto, no qual atuou como violinista por

cerca de dez anos. Aliando à música instrumental o trabalho com a palavra

escrita e o canto, esse malabarista da canção26 passou a desenvolver seu

próprio estilo, exprimindo assim seu gênio individual, como diria Guiraud

(1978). Vale destacar a idéia de complemento e ao mesmo tempo de

renovação que a voz (o canto) oferece ao texto escrito:

a escritura (do folheto) não exclui a voz (da cantoria, do romance, do conto): completa-a e renova-a, desempenhando o papel de arquivo da improvisação e do fugitivo. Tal escritura não marginaliza a dimensão oral; tornou-se objeto preferencial de estudo por ser relativamente estável, embora o texto do folheto esteja também submetido à variação, reescritura e atualização. Em compensação, a cantoria, poesia do instante e, por essência, fugitiva, institucionalizou-se com um conjunto de regras e códigos poéticos, genéricos e teatrais, permitindo assim ao cantador improvisar livremente, sem prejuízo da coerência e inteligibilidade da mensagem. É a esta ambivalência oral-escrita que recorre o poeta armorial para estabelecer os fundamentos de uma nova arte poética (Santos, 1999: 19-20).

Ao realizar essa ambivalência oral-escrita, Nóbrega tem como seu

mentor Ariano Suassuna, o principal articulador do Movimento Armorial, que

aglutinou interesses comuns a uma geração de artistas nordestinos, identificou

tendências e promoveu um encontro de criação em torno dos signos da

literatura de cordel, como relaciona Anna Paula de O. Mattos Silva em sua

dissertação de mestrado intitulada “O encontro do Velho do Pastoril com

Mateus na Manguetown ou as tradições populares revisitadas por Ariano

Suassuna e Chico Science” (2004). Ao abordar questões referentes à cultura

popular e à intelectualidade, ela afirma:

26 Expressão inspirada em Tatit (1996).

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Pode-se reconhecer, assim, no interesse pelas manifestações da chamada cultura popular, uma atitude própria aos intelectuais da modernidade, que, movidos por um ideal romântico de identidade, atribuem valor às expressões originais da cultura nacional de acordo com critérios de antigüidade, conservação e espontaneidade, em contraste com a efemeridade, ruptura e artificialidade da cultura moderna (cap. 1: 24).

Tal afirmação vai ao encontro da idéia já citada de “mandarim milagroso”

(Travassos, 1997), que também pode ser atribuída a Ariano. Nóbrega chega a

considerar Ariano como o pai espiritual de um povo, o pai do Brasil, conforme

afirmou em mesa-redonda que homenageou o criador do Auto da compadecida

no Teatro Sesc-Copacabana, no Rio de Janeiro, no dia 6 de maio de 2004.

Declaração semelhante ele deu ao jornalista Beto Freitas na TV Senado, em

entrevista exibida no dia 10 de junho de 2005: “Ariano é a representação mais

altissonante do povo brasileiro.” Exageros à parte, é inegável a simbiose entre

Nóbrega e Ariano, servindo este de referência cultural inconteste para aquele.

*******

Antes de se chegar aos outros parceiros fundamentais de Nóbrega,

abordar-se-á rapidamente a questão “popular versus erudito” contida na obra

desse artista, questão que não deixa de ser a mesma enfrentada por Ariano.

Aproveitando-se uma expressão de Peter Burke (1989), o criador de Tonheta

pode ser analisado como um artista “bicultural”, ou seja, participa da cultura

popular e ao mesmo tempo mantém fortes contatos com o mundo da erudição.

Ele próprio não se considera um artista popular.27 Como ao se penetrar o

campo dos estudos culturais uma série de fatores entra em jogo, e não é

pretensão deste trabalho aprofundar essas questões, ressalte-se que a

27 Ver entrevista no Anexo 2.

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intenção é apenas sinalizar tópicos que contribuam para o estudo aqui

desenvolvido.

Stuart Hall, especialista no assunto, afirma em seu ensaio “As culturas

nacionais como comunidades imaginadas”:

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. (...) As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas (2005: 50-51).

Em sua interpretação, a identidade nacional é muitas vezes

simbolicamente baseada na idéia de um povo ou folk puro, original, mas nas

realidades do desenvolvimento nacional esse povo (folk) primordial raramente

persiste ou exercita o poder. Segundo ele, a tradição funciona, em geral,

menos como doutrina do que como “repertórios de significados”. Cada vez

mais os indivíduos recorrem a vínculos e estruturas nos quais se inscrevem

para dar sentido ao mundo, mas sem ser rigorosamente atados a eles em cada

detalhe de sua existência. Dessa forma, fazem parte de uma relação dialógica

mais ampla com “o outro”.

No ensaio “Notas sobre a desconstrução do ‘popular’”, Hall afirma que

não existe uma “cultura popular” íntegra, autêntica e autônoma, situada fora do

campo de força das relações de poder e de dominação culturais.

Creio que há uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual, por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular; para cercá-la e confinar suas definições e formas dentro de uma gama mais abrangente de formas dominantes. Há pontos de resistência e também momentos de superação. Esta é a dialética da luta cultural. Na atualidade, essa luta é contínua e ocorre nas linhas complexas da resistência e da aceitação, da recusa e da capitulação, que transformam o campo da cultura em

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uma espécie de campo de batalha permanente, onde não se obtêm vitórias definitivas, mas onde há sempre posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas (2003: 255).

Um termo que tem sido utilizado para caracterizar as culturas cada vez

mais mistas e diaspóricas, como as chama Hall, é “hibridismo”, tema também

estudado por Canclini (1998). Como já dito, no entanto, não é preocupação

aqui desenvolver tais questões, nem aspectos concernentes à autenticidade ou

não de manifestações culturais populares.28

É preciso atentar para o fato de que se tende a pensar as formas

culturais como algo inteiro e coerente, ou inteiramente corrompidas ou

inteiramente autênticas, enquanto que elas são profundamente contraditórias,

jogam com as contradições, em especial quando funcionam no domínio do

“popular”, como afirma Hall (2003). Para ele, o essencial em uma definição de

cultura popular são as relações que a colocam numa tensão contínua (de

relacionamento, influência e antagonismo) com a cultura dominante.

Ainda no entender de Stuart Hall (2003), cultura popular constitui-se de

tradições e práticas culturais populares e da forma como estas se processam

em tensão permanente com a cultura hegemônica. Assim, ela não se resume à

tradição e ao “folclore”, nem ao que mais se consome ou vende; não se define

por seu conteúdo, nem por qualquer espécie de “programa político popular”

preexistente. Sua importância reside em ser um terreno de luta pelo poder, de

consentimento e resistência populares, abarcando, assim, elementos da cultura

de massa, da cultura tradicional e das práticas contemporâneas de produção e

consumo culturais.

28 Para aprofundar esses temas, ver Andrade (1972) e Sapir (1970).

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Excluindo elementos da cultura de massa, acredita-se ser esse o terreno

(cultura tradicional aliada a práticas contemporâneas de produção e consumo

culturais) em que atuam não só Antonio Nóbrega como também seu grande

mentor, Ariano Suassuna. Por aí também transitam dois outros diletos

parceiros, que serão vistos a seguir.

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2.2 – Os parceiros fiéis

(em que são apresentados dois diletos “escudeiros” de nosso “Quixote”

nordestino)

Aí, um dia, eu sentado na cadeira,

um estalo-de-Vieira clareou a minha mente.

Eu percebi que tinha de procurar,

descobrir e encarar minha terra e minha gente.

(Viagem maravilhosa – O marco do meio-dia)

Se a figura de Dom Quixote é tão emblemática como inspiração para

Ariano Suassuna, tome-se aqui a liberdade de associá-la a seu dileto discípulo,

ainda que as semelhanças físicas não sejam tantas.29 E esse “Quixote”

nordestino não poderia deixar de ter ao seu lado fiéis escudeiros como

parceiros. Entre eles destacam-se Wilson Freire, poeta e médico

pernambucano, e Bráulio Tavares, paraibano, também poeta, letrista de música

popular brasileira, cronista, roteirista e especialista em ficção científica. Ambos

são profundos conhecedores da cultura popular nordestina. Ao analisar as

parcerias de cada um deles com Nóbrega, buscar-se-á reunir elementos que

contribuam para o estudo da expressão lingüístico-poético-musical desse

brincante pernambucano.

Viagem maravilhosa teve um de seus trechos escolhido como epígrafe

deste capítulo justamente por representar a parceria a seis mãos de nosso

“Quixote” com seus dois “Sanchos”. A longa letra (a maior da obra de Nóbrega)

29 Ressalte-se que em 2005, ano de elaboração deste texto, comemoraram-se quatrocentos anos do lançamento de Dom Quixote, do espanhol Miguel de Cervantes, romance considerado

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traz 176 versos, mais cinco do refrão que é apresentado quatro vezes, e pode

ser lida na íntegra no Anexo 1.4.

Entre os seus parceiros, são esses dois que aparecem com mais

freqüência (há parcerias esporádicas com outros autores, como Dimas Batista

Patriota, Marcelo Varella e Zezinho Pitoco). Como a ligação de ambos com

Nóbrega é bastante estreita, eles contribuem decisivamente para o

estabelecimento dos traços estilísticos da obra do artista, vista sob um amplo

prisma pelo qual passam não só a citada variedade de influências culturais

como também elementos que caracterizam a linguagem de uma região.

2.2.1 – Wilson Freire30

”Médico ‘xistossomista’ consumado, poeta, escritor, amigo e pau pra

toda obra.” Assim Nóbrega apresenta seu parceiro, cujo ganha-pão vem de

suas atividades como gastroenterologista.31 No repertório dos cinco discos

estudados, há 17 canções originais dos dois e quatro canções de domínio

público que ambos adaptaram, além de duas parcerias a seis mãos (incluindo

Bráulio Tavares).

um dos maiores clássicos da literatura universal e inspiração fundamental para Ariano Suassuna. 30 O texto a seguir reúne informações e comentários com base em entrevista dada por Wilson Freire ao pesquisador por telefone, do Recife, no dia 22 de novembro de 2005. 31 Ver endereço eletrônico www.antonionobrega.com.br, texto de Nóbrega referente ao espetáculo Madeira que cupim não rói.

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Nascido em 1959 em São José do Egito (PE), Wilson Freire diz que

escreve desde que se entende por gente. Sua sobrevivência financeira, no

entanto, vem de sua atividade profissional como médico, especializado em

endoscopia digestiva, trabalhando em hospitais públicos do Estado de

Pernambuco e da Prefeitura de Olinda. Fez seu doutorado nessa área na

Alemanha.

Seu aprendizado de poesia popular começou com a atenta observação

de numerosos cantadores, como os irmãos Batista (Dimas, Lourival e Otacílio).

“Certa vez, aos 14 anos, assisti a uma cantoria de Pinto de Monteiro versus

Lourival Batista, em Sertânia (PE). Foi uma enxurrada tão violenta de versos

que fiquei sem dormir”, ressalta. “Os cantadores são uns verdadeiros heróis,

guardam tudo na memória”, acrescenta.

Pinto de Monteiro foi o maior cantador, em sua opinião. Não é à toa que

ele é homenageado na Sambada dos Mestres, que faz parte do repertório de

Madeira que cupim não rói (“No improviso da viola / de todos sou o primeiro, /

porque sou cobra criada / pelo Pinto de Monteiro”).

Wilson conheceu Nóbrega (Toinho, como ele chama, da mesma forma

que Bráulio) nos anos 80, na época do festival Frevança, em que o criador de

Tonheta interpretou a música Maracatu Misterioso. Ao passar por ele na praia

de Casa Caiada, em Olinda, dias após a apresentação, Wilson parou para

cumprimentá-lo e trocar idéias. Ali começou a fermentar-se a parceria, cujo

primeiro resultado seria a composição Na pancada do ganzá, que conquistou

na época o Prêmio Sharp de melhor música e também o de melhor disco

regional.

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Entre os escritores que cita como fundamentais para a sua formação

literária, ao lado dos cantadores populares, Wilson destaca Manuel Bandeira,

Carlos Drummond de Andrade, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos; na

área musical, Arnaldo Antunes e Caetano Veloso, por exemplo. Ele diz que, na

adolescência, sua “Bíblia” foi Maiakovsky. Também acompanha com interesse

o trabalho de novos autores, como Marçal Aquino e Marcelino Freire.

Os dois parceiros discutem com bastante vagar o tema de cada

composição. Há muita conversa e troca de idéias: Nóbrega em São Paulo,

Wilson no Recife. Eventualmente, quando há necessidade de uma

concentração especial para a conclusão de algum trabalho, Wilson “se interna”

durante pequenas temporadas de duas ou três semanas intensas na casa de

Nóbrega, no bairro Alto de Pinheiros, na capital paulista. É a “Sibéria”, como

chama, por apresentar temperaturas bem inferiores à média verificada em

Pernambuco.

A linguagem literária e musical de ambos goza de boa afinação. Wilson

raramente mexe em algum detalhe da melodia. Com relação à forma final da

letra, ele costuma dizer a Nóbrega: “A palavra final é sua, porque é você que

vai cantar.” É Toinho quem bate o martelo, como destaca.

“Nóbrega é um batalhador, um idealista no que acredita, fortalecendo-se

cada vez mais em sua meta de mostrar um Brasil que o próprio Brasil pouco

conhece, que passa por fora da comunicação de massa”, salienta, reforçando

conceito citado no final do capítulo anterior, baseado em Stuart Hall (2003).

Assim como Nóbrega tem seu Ideário, ou seja, o seu baú de idéias, as

sobras e sugestões de versos desse trabalho em parceria, que poderão ser

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aproveitadas, constituem o Refugo de Wilson. Mas ao contrário de seu

parceiro, que toca vários instrumentos, ele diz que toca, no máximo, “sino de

igreja”.

Uma das parcerias com Nóbrega que mais comoveram Wilson foi

Canudos: “Eu, viandante, de um chão poento. / Dias queimosos, vida sem

idílio. / Preces voltadas para sóis ardentes, / luares claros a buscar o Auxílio. /

Para os meus olhos, confusão pasmosa, / batalha surda, secular martírio.” Ele

conta: “Tínhamos lido Os sertões, de Euclides da Cunha, para retratar na letra

aquela realidade. Aí veio forte a lembrança da minha infância, a aridez e as

dificuldades do interior de Pernambuco.”

Dedicada ao índio Galdino Jesus dos Santos, outra letra que ele destaca

é Chegança, devido às imagens que retrata com relação à descoberta do Brasil

sob o ponto de vista do índio. Wilson tinha um avô que era índio fulniô. Lembra

que Galdino foi queimado vivo no mesmo dia em que ele e Nóbrega

terminaram de compor Flecha fulniô, em homenagem a Garrincha, para o

repertório do espetáculo O marco d’o meio-dia. Ainda sobre Chegança, informa

que essa letra ganhou o status de objeto de estudo em livro didático de língua

portuguesa, já tendo sido aproveitada inclusive em exame de vestibular.

O romance de Riobaldo e Diadorim foi outra parceria marcante. “A

poética veio rápida, violenta e intensa. Buscamos recriar o clima de Guimarães

Rosa, aproveitar palavras que ele usou.”

Ao falar sobre O marco do meio-dia, fortaleza poética imaginária,

seguindo a idéia original de marco, como será visto na análise do corpus

referente a esse CD, Wilson acentua a presença de dois marcos na literatura

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brasileira, em seu entender: Euclides da Cunha e Guimarães Rosa – daí terem

sido a inspiração para canções como Canudos e O romance de Riobaldo e

Diadorim. “Ambos fizeram seus marcos, suas fortalezas literárias, assim como

o Aleijadinho [cantado em O romance do Aleijadinho] fez de sua obra um

marco”, assinala. Note-se que Euclides também é uma personalidade

constantemente exaltada por Ariano Suassuna, mentor do Movimento Armorial,

no qual começou a brotar a arte de Antonio Nóbrega. As referências, portanto,

se fortalecem e se expandem há mais de uma geração.

Assim como para Nóbrega e Bráulio Tavares, o universo do Lunário

perpétuo é comum a Wilson, que já o conhecia desde garoto, tal como a sua

mística. Dessa forma, povoar com versos mais essa vertente do universo

musical de Nóbrega não foi uma tarefa difícil, devido à sintonia que se torna

cada vez mais fina com o passar dos anos. De Na pancada do ganzá ao

Lunário, cada vez mais a parceria se fortalece, a ponto de Wilson ser

considerado indispensável por Nóbrega para a constituição do seu cancioneiro.

E como fonte de inspiração de ambos estarão sempre os mestres cantadores e

os poetas de bancada (aqueles que não cantam, mas recitam e editam os seus

versos). São os Mestres com letra maiúscula, devidamente homenageados na

Sambada dos Mestres de Madeira que cupim não rói, que exalta

personalidades como Chico Antônio, Mestre Salustiano, Zé Alfaiate, Leandro

de Barros e o aqui já decantado Pinto de Monteiro. Para Wilson, o verdadeiro

“Mestre” tem de ser com letra maiúscula. “Tem-se de respeitá-los na sua

grandeza. É algo divino, que está acima do humano”, afirma.

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2.2.2 – Bráulio Tavares32

Natural de Campina Grande (PB), Bráulio Tavares, nascido em 1950,

conheceu Antonio Nóbrega por volta de 1972, quando estudava ciências

sociais na Universidade Federal da Paraíba e o Quinteto Armorial33 foi

contratado pelo então reitor da UFPB, Linaldo Cavalcanti de Albuquerque, para

se sediar em Campina Grande. Nóbrega, no entanto, continuou morando no

Recife. Na época, Bráulio lia o Romance d’a Pedra do Reino, de Ariano

Suassuna, e havia escrito a peça O casamento de Trupizupe com a filha do rei.

“Trupizupe é uma espécie de João Grilo meu”, explica ele, fazendo menção ao

célebre personagem de Ariano que protagoniza o Auto da compadecida. A

peça também foi montada com o nome de Trupizupe, o raio da silibrina. No

início do espetáculo, era apresentado O coco do nascimento, que contava

como a mãe de Trupizupe engravidara e as peripécias em decorrência da

gestação e do parto.

O texto chegou às mãos de Nóbrega e atraiu a sua atenção, no que

seria o germe da futura parceria. “Viemos para o Sudeste na mesma época:

1982. Ele para São Paulo e eu para o Rio de Janeiro”, conta Bráulio. “Em 1989

ele me chamou oficialmente para começarmos a trabalhar juntos.”

Como Nóbrega já cantava, dançava, representava, tocava rabeca, violão

etc., disse a Bráulio que não poderia além disso tudo escrever o texto. “Ele até

32 O texto a seguir reúne informações e comentários com base em entrevista concedida por

Bráulio Tavares ao autor desta tese no dia 15 de agosto de 2005, no Rio de Janeiro. 33 Era formado por Antônio José Madureira (viola sertaneja, tambor e zabumba), Edílson Eulálio Cabral (violão, ganzá e matraca), Fernando Torres Barbosa (marimbau, flauta e tambor), Egildo Vieira do Nascimeno (flauta), substituído por Antônio Fernandes de Farias, e Antonio Carlos Nóbrega (violino e caixa).

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poderia, porque Nóbrega é muito bom de texto. Escreve muito bem. Tem

versos muito bons e uma fluência verbal muito grande”, elogia o parceiro.

Desassombrado, por exemplo, é uma música lindíssima, tem uma letra que eu gostaria de ter feito. Mas Nóbrega não gosta de escrever sozinho. Ele “corrige” muito os versos, dizendo: “Vamos trocar aquela palavra por essa, aquele verso por esse”...

Os dois trabalharam em várias versões do espetáculo Brincante,

primeiro resultado concreto da parceria, até chegar na de 1992, que finalmente

foi levada ao palco. Bráulio escreveu o texto do espetáculo. Ele conta:

A gente se afina bem. Para você trabalhar em parceria, é preciso ter um universo cultural semelhante e uma linguagem semelhante. Por exemplo: essa cena aqui está muito séria, vamos fazer um negócio um pouco mais... Rabelais. Pronto! Falou-se em Rabelais... Eu sou louco por Rabelais e ele também, então já sabemos como é: uma coisa séria, mas dita de maneira caricatural, exagerada. São certas unanimidades que nós temos: Rabelais, Cervantes, cordel, o próprio Ariano.34

Brincante traz como personagem principal Tonheta – inicialmente

chamado Mateus, inspirado nesta figura do cavalo-marinho – e conta a sua

gênese. Com o sucesso inicialmente em São Paulo e depois no Rio de Janeiro,

os dois deram prosseguimento às aventuras de Tonheta com um novo

espetáculo em 1994: Segundas histórias.

Nóbrega sempre fez um tipo de espetáculo em que mistura dança e música. Houve um momento em que ele, conscientemente ou não, isso é uma inferência minha, disse a si mesmo: “Olha, eu faço teatro musical e coloco quinhentas pessoas na platéia. Se eu fizer uma música teatralizada, eu posso botar duas mil pessoas no Canecão.” E foi exatamente o que ele fez com Na pancada do ganzá, o segundo espetáculo fundador da carreira dele (o primeiro foi Brincante), o que marcou um novo começo. Brincante foi o espetáculo fundador do ponto de vista teatral.

34 Essas afirmações de Bráulio comprovam a influência de Rabelais e da praça pública no universo cultural de Nóbrega, vista no capítulo 1, tomando como base Bakhtin (1999).

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Assim como Wilson, Bráulio chama seu parceiro de Toinho, apelido

comumente dado em Pernambuco a quem se chama Antonio. “Ele pesquisa

muito e tira verdadeiros tesouros do fundo do baú”, conta.

De 1989 a 1991 a parceria deles foi muito intensa. Quando Nóbrega

começou a fazer os shows de música, passou a conviver mais intensamente

com Wilson Freire. “Wilson escreve desde pequeno, é um excelente poeta, um

poeta maravilhoso. Aliás, todo nordestino é poeta desde a infância”, destaca

Bráulio.

Na carreira discográfica de Antonio Nóbrega, as letras de Bráulio só

aparecem a partir de O marco do meio-dia, uma vez que nos três primeiros

discos ele gravou canções populares, de domínio público ou parcerias suas

com Wilson.

“Na nossa parceria, há uma coisa interessante: praticamente todas as

músicas utilizam formas fixas dos cantadores de viola, como a décima, a

sextilha, o martelo, o galope-à-beira-mar e assim por diante”, diz Bráulio. Essas

formas são fixas porque têm estrofes fechadas, com número determinado de

versos, número certo de sílabas por verso, rimas em posição determinada,

como se fosse um soneto. Bráulio diz que seu grande interesse é o verso, a

questão técnica do verso: metrificação, rima.

Às vezes Toinho diz assim: “Eu tô com uma melodia de décima aqui. Faça uma letra.” Quando ele pede uma melodia para décima, eu faço a letra sem precisar ouvir a melodia, porque eu já sei o que é uma décima. O máximo que pergunto é se é uma melodia alegre, movimentada, dolente. Aí ele responde: “É uma coisa bem nostálgica.” Basta dizer: vamos fazer um martelo agalopado? Pronto! Já sei do que se trata sem ele precisar me mostrar a melodia. A melodia dele não vai ser a tradicional do martelo agalopado, mas tem que ser uma melodia que se encaixe: larari, larari, lararirá; é o verso que se chama de três, três, quatro. É como digo aos alunos para memorizarem, quando dou oficinas: maracá, maracá, maracatu. Qualquer martelo agalopado tem

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que ter essa cadência: são dez linhas de dez pés, agrupadas em quatro, quatro e dois versos.

Com relação à extensa letra de Meu foguete brasileiro, do repertório do

Lunário perpétuo, ele diz que é baseada num poema chamado O navio

brasileiro, cuja autoria não sabe ao certo, sobre uma pessoa contando que vai

construir um navio fantástico, com banheiro de ouro maciço, quinhentos

marinheiros tomando conta, motor com mil toneladas etc., “essas gabolices que

são típicas do poeta popular”, como ressalta. Nóbrega disse a ele que queria

fazer uma coisa parecida com O navio brasileiro.

A minha primeira idéia foi fazer no formato de galope à beira-mar, aquele verso de 11 sílabas que termina com o verso “cantando galope na beira do mar”. É uma estrofe parecida com o martelo, só que em vez de 3-3-4 (tá-tá-ti, tá-tá-ti, tá-tá-tá-tá), é 2-3-3-3 (tá-ti, tá-tá-tá, tá-tá-tá, tá-tá-tá). Por exemplo: “Eu fiz um foguete de andar pelo espaço / Igual um que eu vi pela televisão / Não sei se era coisa da China ou Japão / Mas basta ver gringo fazer eu já faço”. Qualquer melodia você encaixa aí, nessa forma fixa, com o seguinte esquema de rimas: ABBAACCDDC. Mesmo quando você está improvisando, quando você diz o primeiro verso já sabe que o quarto e o quinto versos vão ter que rimar com aquele, então você diz o primeiro verso terminando em ão ou ar, por exemplo.

Uma curiosidade dessa letra é que tanto a palavra oxigênio como

tungstênio ganham uma sílaba a mais para caber na métrica, como se verá no

capítulo 4.2.5.35

Isso é um jogo que você tem que fazer. Você cria hiatos quando eles não existem, manipula os ditongos e as coisas todas. Muitas vezes, você distorce a pronúncia de uma palavra para seguir a cadência, porque as notas musicais seguem aquela cadência, e para cada nota tem que ter uma sílaba. Isso é uma lei da música.

Sobre o deslocamento da sílaba tônica, nas ocasiões em que ela não

coincide com o tempo forte da melodia – como galope e cavalo, por exemplo,

35 Tal expediente de liberdade na utilização de rimas aparece na poesia brasileira desde o século XIX em autores como Gonçalves Dias, citado por Souza da Silveira (1934) em Lições de português, ao registrar que o escritor maranhense, na poesia Como eu te amo, rima “jamais” com “voraz”, por exemplo.

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que se transformam em *gálope e *cávalo na letra de Viagem maravilhosa –,

Bráulio conta que isso é feito constantemente:

Há um cantador que termina um verso assim: “Ainda guardo as saudades do sabor dos beijos (pronuncia-se ‘beijus’) dela.” O outro responde: “Cantador não sabe o verso que produz / O ouvido é quem comanda / A toada é quem conduz / Quando vai falar em beijos / Finda dizendo beijus.” Porque muitas vezes, para se referir aos beijos, de acordo com a melodia, você acaba dizendo beijus. É que você quer dizer uma coisa e a melodia não se encaixa. Aí entra o chamado jogo da prosódia. Na hora em que está cantando, você tem que ficar numa região limítrofe entre a pronúncia gramatical e a pronúncia melódica. Você tem que fazer o deslocamento, quando está cantando, de modo a acentuar ambas as sílabas. Em vez de acentuar só a primeira ou a segunda, eu acentuo a que vem primeiro e a seguinte também. Você acende uma vela a Deus e outra ao Diabo. O caso mais famoso na música popular brasileira é de Adelino Moreira quando fez A volta do boêmio: “Boemia, aqui me tens de regresso...” Por causa desse verso com um deslocamento da sílaba tônica, reforçou-se o uso da palavra boemia no lugar da clássica forma “boêmia”.

No caso de Viagem maravilhosa, nos versos “Nesse momento mais um

galope (“*gálope”) se ouviu / outro cavalo (“*cávalo”) surgiu passando perto da

gente”, ele diz que canta o “ca” com a acentuação normal da melodia e abre a

vogal da sílaba tônica da palavra para mostrar que ela também tem um peso ali

dentro. Então fica: “mais um *gálópe se ouviu, / outro *cáválo surgiu”.

É como o contratempo no ritmo: é um aparente erro, mas se você volta para o lugar certo, mostra que não errou. Você sabe o que está acontecendo. E depois que você canta tudo certinho, diz: “Vou flutuar um pouco em cima disso, não preciso ser tão exato assim! Vou dançar um pouco em cima disso.” É o swing. Então quando você já domina a cadência básica, fica fácil. É o que o músico de jazz faz o tempo todo.

Para quem considera isso um erro, ele diz que pode até ser uma visão

correta, mas muito limitada.

Se você seguir essa visão, vai ser contra o enjambement num poema, quando você começa uma frase na primeira linha e termina na segunda; faz um ponto e no meio da segunda linha começa uma outra frase. A arte do sonetista, no caso do enjambement, é fazer com que orações gramaticais não coincidam exatamente com os versos. As orações gramaticais vão se distribuindo no interior do poema independentemente da cesura, aquele corte ou pausa aparente, no final

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de cada verso. Terminou a linha, mas a frase continua. Inclusive as regras para leitura de poesia dizem assim: “Não faça pausa no fim de cada linha.” A pausa você faz quando tiver uma vírgula ou um ponto.

Profundo conhecedor de poesia, Bráulio recita de duas maneiras os

versos iniciais de Via Láctea, de Olavo Bilac, para exemplificar a possibilidade

de mais de uma leitura para o poema:

“Ora, direis, ouvir estrelas? Certo / perdeste o senso e eu vos direi no entanto”; “Ora, direis, ouvir estrelas? / Certo perdeste o senso e eu vos direi no entanto.” Você tem duas opções. Há gente que prefere ler fazendo uma pausa no final de cada verso para marcar a rima, destacando as unidades gráficas dos versos. Outras pessoas preferem a leitura gramatical, seguindo o fluxo da oração que está sendo dita, como se fosse um texto em prosa. É a mesma coisa que seguir a acentuação natural da palavra ou a acentuação imposta pela melodia e pelo ritmo da canção.

Com relação à letra de Viagem maravilhosa, Nóbrega queria fazer uma

viagem que fosse um superespetáculo, com coisas engraçadas. “Wilson deu a

partida, fez uns 30% da letra. Eu fiz os 70% finais”, conta Bráulio.

Destaquem-se os versos “Aí, um dia, / eu sentado na cadeira, / um

estalo-de-Vieira / clareou a minha mente. / Eu percebi / que tinha de procurar /

descobrir e encarar / minha terra e minha gente”. Os hifens na expressão

“estalo-de-Vieira” – a qual se refere ao Padre Antônio Vieira e é citada por

Antenor Nascentes no Tesouro da fraseologia brasileira36 – foram

acrescentados por Bráulio. “Eu uso o hífen toda vez que crio uma expressão

que, como se diz tecnicamente, é um sintagma inteiro.” Ele chama de “hífen

evidenciador de sintagma”, para dizer que “estalo-de-Vieira” é uma palavra só,

como guarda-chuva.

36 “Sentir o estalo de Vieira. Ficar inteligente de uma hora para outra. Conta João Francisco Lisboa na Vida do Padre Antônio Vieira que o grande orador fez grandes progressos intelectuais depois que sentiu na cabeça um estalo em ocasião em que pedia à Virgem em oração que o iluminasse” (Nascentes, 1966: 119).

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Já que se falou no uso do hífen, a pontuação é algo primordial para

Bráulio:

Eu pontuo muito as coisas que escrevo. Letra minha é sempre muito pontuada, os encartes dos discos é que são descuidados. Não é um excesso de purismo. É que às vezes as frases ficam ininteligíveis por falta de pontuação, e eu não gosto de frases escritas em caixa-alta nos encartes. Dá a impressão de que a pessoa está gritando. Uma coisa de que eu gosto, e isso tem muito a ver com Nóbrega e o Barroco, são as “maiúsculas simbólicas”. Ao escrever “O meu Lunário perpétuo / é meu Livro precioso”, com a palavra Livro em letra maiúscula você está dando um peso especial àquilo, é algo bem barroco, esse uso das maiúsculas, porque eu não estou me referindo a um simples livro, mas é “O Livro”. Eu uso muito isso nas coisas que escrevo, incluindo as letras de música.

Voltando a Meu foguete brasileiro, Bráulio conta que Nóbrega sugeriu

que os dois fizessem um outro navio brasileiro em forma de galope-à-beira-

mar. Aí ele disse: “Toinho, vamos fazer o seguinte. Em vez de outro navio,

vamos fazer uma coisa diferente, um avião ou um foguete, porque eu coloco o

meu lado de ficção científica, que eu gosto muito.” Aí a criatividade entrou em

jogo: “Eu disse a ele: vamos fazer um galope-à-beira-mar de ficção científica!

Em vez de dizer ‘cantando galope na beira do mar’, a gente diz: ‘cantando

galope e voando no ar’. Você vai mais longe do que todos os outros.”

A letra tem oitenta versos e sua realização foi muito simples, segundo

Bráulio, porque existe um repositório de imagens em sua cabeça. E como ela

foi criada para Tonheta interpretar, os versos têm um jeito galhofeiro,

exagerado, brincalhão. À medida que ele apresentava os versos, Nóbrega ia

fazendo as “correções de rumo”. “Eu fazia duas estrofes num dia e mandava

para ele. No outro dia ele me dizia: “Está ótimo. Mas vamos dizer que ele está

levando coisas para vender.” Muitos versos ficaram de fora. A letra final de Meu

foguete brasileiro tem 70% do que foi feito. “Fiz uma estrofe dizendo que

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Tonheta não está viajando sozinho, que encheu o foguete de mulheres de

todas as raças para povoar os outros planetas, mas essa estrofe não ficou na

versão final”, conta Bráulio.

Assim como Wilson Freire relata que Nóbrega mexe alguma coisa em

seus versos, com Bráulio não é diferente. “Às vezes ele me diz: ‘Olha, não

gostei de tal palavra.’ Aí eu digo: ‘Mas Toinho, que besteira!’ E ele responde:

‘Não, eu não gosto!’ Aí troca.”

Um bom exemplo está em Meu foguete brasileiro, nos versos “mas eu

que não minto não quero falar, / e o resto eu só conto aqui pra você / no

próximo espetáculo ou em outro CD, / cantando galope e voando no ar”. O

verso original era “no próximo show ou em outro CD”, mas Nóbrega não gosta

da palavra show, como Ariano também não, porque é uma palavra

americanizada, então para eles lembra Broadway – no caso de Nóbrega,

também por considerar que a palavra show está atrelada mais a apresentações

musicais, e o que ele apresenta vai além de um simples show musical. “Eles

dizem: ‘O que eu faço não é um show, é um espetáculo”, conta Bráulio.

“Eu respeito, mas não tenho esse tipo de coisa; pelo contrário, também tenho

bastante influência da cultura americana. Esse lado mais pop, por exemplo,

uso em minhas parcerias com Lenine,37 que gosta muito disso.”

Toinho tem, assim como Ariano, não vou dizer que uma rejeição

cega, mas um certo afastamento de coisas americanas em geral. Não é um preconceito cego, radical, mas uma falta de afinidade. Você conta nos dedos as coisas do cinema americano de que Nóbrega gosta: Chaplin, por exemplo. Nóbrega é louco por Chaplin, tem todos os seus filmes e os estuda.

37 Cantor, compositor e violonista pernambucano, um dos outros parceiros poético-musicais de Bráulio Tavares.

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Bráulio não se acha tão “nacionalista” porque tem forte influência da

cultura americana, gosta de rock, blues, jazz, do cinema de Hollywood. Escreve

ficção científica, se acha mais cosmopolita, muito mais voltado para as coisas

de fora do que Nóbrega e Ariano, principalmente as norte-americanas.

“Nóbrega não gosta de palavras inglesas; tudo bem. Quando estou escrevendo

para ele, procuro evitar palavras que remetam à cultura de massas norte-

americana, porque sei que ele não simpatiza com elas”, esclarece. “É que nem

a dança: você procura se adaptar à parceira ou ao parceiro.”

Voltando ao encarte do CD, ficou a palavra “show” (apesar de Nóbrega

ter gravado “espetáculo”) porque não foi feita a correção da letra impressa que

Bráulio enviara a ele. No verso, o polissílabo “espetáculo” faz as vezes do

monossílabo “show” e encaixa-se na métrica. “O engraçado é que no meio de

um verso que tem uma contagem exata de sílabas você tira um monossílabo e

bota uma palavra de cinco sílabas e o verso não quebra”, acentua Bráulio.

“Você tem que dizer: ‘no próxim’espetáclouem outro CD’. Utilizar as elisões é

uma das artes que você tem ao alcance e que não é todo cantador ou cantor

que faz com espontaneidade.”

*******

Ao longo dos anos da bem-sucedida parceria, Bráulio diz ter observado

que Nóbrega tem um modo mais “civilizado” de falar do que ele.

Eu sou do interior (Campina Grande-Paraíba), minha mãe é do Cariri. Falo de maneira muito indisciplinada. Só me acostumei a botar “os plurais das palavra” (enfatiza o “palavra” no singular) depois de adulto, quando vim morar no Rio de Janeiro. Porque eu era analfabeto, ignorante? Não, porque era um modo totalmente informal de falar na rua.

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O resultado de tal prática reflete-se na fluência das letras que escreve

para Nóbrega.

Quanto mais a fala é informal, mais há elisão de sílabas, criação de hiatos, fusão de ditongos. E quanto mais a fala vai se formalizando na direção da gramática, do dicionário, da academia, mais as sílabas vão ficando duras. Você distingue uma pessoa bem-educada pela nitidez das sílabas que ela emite. São diferenças de falar. De acordo com a necessidade do canto, você pode utilizar uma técnica de escandir as sílabas com mais nitidez ou misturar tudo e falar de modo quase incompreensível.

Sobre os temas das canções, às vezes Nóbrega sugere o mote. “O rei e

o palhaço, por exemplo, foi uma sugestão dele, que disse querer aquele tipo de

verso que diz ‘você é isso, eu sou aquilo’”, conta Bráulio, “com cada verso

respondendo ao anterior: ‘Você é glorioso, poderoso, forte; eu sou

pequenininho, descontraído, brincalhão’”. A inspiração veio da dicotomia entre

o rei e o palhaço feita por Ariano Suassuna.38 É a décima dos cantadores, só

que em cada estrofe do samba de maracatu rural (ou de baque solto) o

cantador apresenta seis versos, o povo repete os dois últimos, e depois ele

canta os quatro versos finais. Tal é a estrutura de O rei e o palhaço, também

chamada de samba em dez. O esquema de sílabas é sempre o mesmo:

ABBAACCDDC.

Sobre o uso tão comum do verso de sete pés, a redondilha maior,

Bráulio lembra a influência de Portugal e diz ser um tamanho bom em

versificação analisando-se do ponto de vista técnico, porque nem é muito

pequeno, de modo a comprimir demais as idéias, nem é muito longo, de

maneira a se ter de inventar coisas demais. “Parece que o verso de sete

38 Ver Newton Júnior (1999), Santos (1999), Moraes (2000) e Nogueira (2002), especialistas na obra de Ariano Suassuna.

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sílabas se incorporou de tal maneira na música e na poesia brasileiras que a

fala brasileira de certa forma já se metrifica inconscientemente nesse formato”,

afirma. “A redondilha já está dentro do ritmo natural da fala do brasileiro.”

Bráulio é tão envolvido com o trabalho que realiza como criador de

versos em formas fixas que está sempre atento a motes que possam ser

glosados, ou seja, desenvolvidos.

Outro dia fui a um restaurante e li no cardápio: fetuttine; embaixo, “com tomate, ricota e camarão”. Pronto! “Com tomate, ricota e camarão” é um verso de martelo, conforme o número e a acentuação das sílabas! Então eu disse: “Eu prefiro comer um fetuttine / com tomate, ricota e camarão” (dois versos de martelo). Os amigos até brincam comigo. Você acha motes se tiver o ouvido ligado naquilo. Por que um cantador de viola improvisa tanto? Porque ele fica com o ouvido ligado. Um fotógrafo também faz isso. Opa! Há aqui uma coisa que obedece àquela configuração. Você fica com o filtro ligado enquanto as coisas vão passando, é o filtro do pensamento. Aí você percebe: isso aqui é um mote, isso aqui é um verso.

*******

Outra canção criada por Nóbrega e Bráulio, incluindo a parceria de

Zezinho Pitoco (na melodia), é Estrela-d’alva.

É uma cadência que eu chamo de 4-4-4: “Caixa-de-guerra, maracá, porta-bandeira, / rainha negra batendo palma de mão”. Todas as linhas têm essa cadência, menos a última, que é 4-4-2: “bombo profundo ressoou trovão”, por exemplo. Aí não tem uma forma fixa necessariamente, foi algo sugerido pela música. Esse formato é livre, “nosso”, arranjado para essa canção especificamente.

A letra inicial era sobre carnaval, descrevendo os maracatus do Recife,

mas Nóbrega disse a ele que era um assunto já muito explorado, era lugar-

comum. Pediu a Bráulio para aproveitar o segundo verso (“rainha negra

batendo palma de mão”) e puxar para o lado das cerimônias religiosas: mouros

e cristãos, andor, procissão, romaria. “É isso que Nóbrega faz. É como você

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empurrar um carrinho de supermercado: às vezes dá só um toquezinho e o

desvia para outra direção”, afirma.

O formato da canção Lunário perpétuo (parceria a seis mãos: Nóbrega,

Bráulio e Wilson Freire) foi inventado por Nóbrega. Ele quis fazer um formato

diferente, como se fosse uma septilha com quatro versos de sete pés, dois

versos de galope (11 sílabas, divididas em 2-3-3-3, acentuação na segunda, na

quinta, na oitava e na décima primeira) e mais um verso de sete sílabas. “Eu só

ouvi essa música quando estava pronta”, conta Bráulio, referindo-se ao fato de

que não conhecia a melodia, mas fez a letra com base na forma proposta por

Nóbrega.

A se observar o “jeitinho” poético do seguinte verso (de galope): “De

Norte a Sul, de Pai para Filho”; não há elisão em “Norte a Sul” e, a rigor,

deveria ser “De Norte a Sul e de Pai para Filho”, para completar 11 sílabas. No

entanto, como Bráulio explica, por ser uma música muito difícil de ser cantada,

o “e” fica subentendido pela vírgula como espaço para a respiração do cantor,

não deixando de transmitir assim a intenção de um verso de 11 sílabas. Bráulio

diz que, nas primeiras apresentações do espetáculo Lunário perpétuo, Nóbrega

recitava a letra antes de cantá-la porque a música ficou veloz demais e

acabava-se não distinguindo as palavras.

Assim como Nóbrega criou uma relação poético-afetiva com o Lunário

perpétuo, Bráulio diz ter uma relação afetiva e vontade de fazer um disco, um

livro ou alguma outra coisa com o Almanaque do pensamento, o Lunário da

sua geração, que seu pai colecionava. Vendido nas bancas, era um almanaque

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astrológico cheio de charadas, piadas, palavras cruzadas. Tratava-se de um

sucedâneo do Lunário perpétuo tradicional, lançado pela Editora Pensamento.

Quanto à gênese da canção Lunário perpétuo, Nóbrega mandou a

melodia tanto para Bráulio quanto para Wilson escreverem simultaneamente os

versos, cada um fazendo a sua parte em sua cidade, independentemente.

Quando um fazia uma estrofe mandava para o outro.

Isso é bom porque espicaça você a dizer assim: “Vou superar o outro.” É um desafio entre dois caras que se gostam, que se admiram. Porque você gosta muito do que o outro escreve e vai querer fazer algo melhor do que ele. É um desafio sem agressividade, sem antagonismo.

Dessa forma, o compositor propôs um desafio, no bom sentido, entre

seus dois fiéis letristas. Ao falar sobre como seria a letra, Nóbrega disse que

deveria elogiar o Lunário, falar sobre sua importância, seu trajeto histórico para

as comunidades “séculos a fio”.

*******

Assim como Nóbrega trocou a palavra show por espetáculo na letra de

Meu foguete brasileiro, ele também mexeu em outra letra de Bráulio, Carrossel

do destino. Originalmente, era: “Enquanto eu puder sentir / o mundo com a

minha mente / o tempo estará presente / passando sem resistir.” Segundo

Bráulio, Nóbrega disse que não gostava do segundo verso porque a palavra

“mente” dá impressão de uma coisa muito intelectual, e ele queria falar da

emoção, do coração... “Mas Toinho! O coração é um mero músculo propulsor

do sangue. Ele não sente nada”, disse Bráulio na época ao seu parceiro.

“Quando o cérebro sente alguma coisa, o coração se acelera ou não. Mas

quem sente tudo, a sede da emoção, é o cérebro. O coração é o eco de uma

emoção sentida pelo cérebro.”

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Apesar do argumento de Bráulio, o verso teve de ser mudado e ficou:

“Enquanto eu puder viver / tudo o que o coração sente, / o tempo estará

presente / passando sem resistir.”

A canção tem para mote um verso do poeta popular Zé Limeira: “Adeus

que eu já vou rodar / no carrossel do destino”. Uma das estrofes ficou de fora,

por ser datada com relação à guerra do Afeganistão, daí a referência a

Kandahar:

Quero deixar de ser eu / porque ser eu é ser muitos / eu sou tantos outros juntos / que nenhum prevaleceu / Eu tenho um lado judeu, / tenho outro palestino / um lado nova-iorquino / e outro de Kandahar / Licença, que eu vou rodar / no carrossel do destino.

*******

Bráulio e Wilson se encontram praticamente uma vez por ano; mesmo

assim, sentem ter grande afinidade poética. O primeiro nunca trabalhou com o

segundo sem ter Nóbrega no meio; este é o catalisador dos dois poetas.

Na condição de co-criador de Tonheta, Bráulio ressalta que Nóbrega tem

algo que chama de “Universo Tonhetânico”, um Ideário no qual cabem algumas

coisas referentes ao personagem e outras não. “É quando muitas vezes a

gente entra em choque. Às vezes eu penso em alguma coisa que acho a mais

genial do mundo, mas ele diz: “Não pertence ao ‘Universo Tonhetânico’”,

afirma. “E ele é o dono do personagem. Eu estou servindo ao personagem.”

Sobre o trabalho de Nóbrega, o que Bráulio acha mais interessante é a

proposta de brasilidade total.

Essa proposta de brasilidade é muito importante porque são poucos artistas na música brasileira que têm alguma proposta estética de pensar o Brasil, que tem uma “genealogia” estética para o Brasil. Caetano Veloso e Gilberto Gil têm a deles, Chico Buarque também, pois existe uma coerência temática poética, cultural, antropológica. A maioria dos artistas da música popular brasileira dança conforme o ritmo, nada

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para onde a onda leva, vai surfando nas ondas. Nóbrega é um cara que cria a sua própria onda, vai surfando na onda criada por ele. Ele fez o seu próprio estilo. Caetano, Gil e os tropicalistas de modo geral surfam até hoje na onda criada por eles nos anos 60. Chico Buarque surfa numa onda própria. Os outros surfam em ondas coletivas, ondas feitas pelo inconsciente coletivo, pelo mercado e pelo talento.

O letrista chega a fazer uma comparação entre a homeopatia unicista e

pluralista39 e a linguagem de Nóbrega. “O unicista olha para você e só lhe dá

um remédio em diferentes dosagens ao longo da sua vida”, diz. “O outro lhe dá

uma série de coisas: ‘três gotas disso, quatro daquilo, dois papeizinhos disso’ e

assim por diante.” Daí vem uma definição que ele dá ao trabalho de seu

parceiro:

Nóbrega é unicista porque entende de cultura de uma forma geral, se propõe a dar uma visão unificada e intensamente nacionalista; e é pluralista na forma, porque captura elementos da música popular e da erudita, da dança, da cultura popular como um todo. Nesse ponto ele é multimídia.

De acordo com Bráulio, o trabalho de Nóbrega tem grande importância

para a cultura brasileira, em primeiro lugar, porque ele é um artista que pensa o

Brasil, tem uma teoria própria da cultura e da estética brasileiras.

Não são todos os artistas que têm isso. Muita gente dá a impressão de ter porque o seu trabalho sugere as idéias de uma interpretação de Brasil, mas são artistas intuitivos. Se você for discutir com eles, não se mostram teóricos, são artistas. São pessoas que não têm leitura, não têm base teórica, não se interessam em teorizar. Não é o caso de Nóbrega, que é um erudito, uma pessoa que lê muito, tem uma biblioteca maravilhosa em casa. É uma pessoa que passou muitos anos se preparando para fazer o que hoje faz, lendo Câmara Cascudo, Sílvio Romero, Euclides da Cunha. Nóbrega é, num certo sentido, uma cria de Ariano.

O criador da letra de Meu foguete brasileiro lembra uma frase do

jornalista e escritor paraibano José Nêumanne Pinto, radicado em São Paulo,

que diz que um dos grandes triunfos de Ariano é Nóbrega: “Ele afirma que

39 Não cabe aqui detalhar esses conceitos. O que merece atenção é a comparação feita por Bráulio.

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Ariano tem três grandes obras, três grandes contribuições para a cultura

brasileira: o Auto da compadecida, o Romance d’a Pedra do Reino e Antonio

Nóbrega.” E Bráulio acrescenta:

O próprio Nóbrega não diz “Tudo que eu sou devo a Ariano”, mas sim: “Foi Ariano que me jogou nesse universo onde estou até hoje.” E de fato foi, porque ele tinha 17 anos quando conheceu Ariano. Já tocava violino muito bem na Escola de Música da Universidade Federal de Pernambuco. Era uma pessoa de classe média, e foi Ariano quem o apresentou à cultura popular. Nóbrega tem uma relação emotiva filial com Ariano.

Para concluir este capítulo, destaque-se também a forte influência de

Ariano na trajetória artística de Bráulio, sem deixar de lado cantadores e poetas

que ele faz questão de citar, como Ivanildo Villa-Nova – com quem compôs

Nordeste independente e de quem diz ter aprendido as “manhas” da poesia

popular –, Geraldo Amâncio, Zé Gonçalves e José Alves Sobrinho. Quando

Bráulio estudava cinema em Belo Horizonte (MG), na década de 70, passou a

receber do pai recortes de jornal sobre o Movimento Armorial e ficou fascinado.

Começou a pesquisar sobre cantoria de viola e poetas populares nas

bibliotecas mineiras, aprofundando-se em Câmara Cascudo. Ao retornar a

Campina Grande, leu o Romance d’a Pedra do Reino, de 1972 para 1973.

Foi uma revelação. A figura de Ariano sempre foi muito importante para mim. Ele é um mestre. Comecei a escrever meus martelos agalopados após ouvir Ariano recitando e sendo acompanhado pelo Quinteto Armorial. Mas ao mesmo tempo tenho influências do Tropicalismo. Então tenho uma visão mais híbrida das coisas.40

Devidamente apresentados os parceiros de Nóbrega e ouvidos os “ecos”

do Movimento Armorial na sua obra, serão introduzidos a seguir os

pressupostos teóricos estilísticos, semânticos e dialetológicos que servirão

40 O que lembra o conceito de hibridismo de Stuart Hall (2003), citado em capítulo anterior.

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como ponto de partida para o estudo da expressão lingüístico-poético-musical

desse brincante pernambucano, com base na análise do repertório de seus

cinco CDs lançados no período de 1996 a 2002.

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3 – Pressupostos teóricos

Este capítulo reúne os principais elementos teóricos relacionados à

estilística, à semântica e à dialetologia que servirão de base para o estudo da

expressão lingüístico-poético-musical de Antonio Nóbrega sob um viés cultural,

como salientado na Introdução.

3.1 – Aspectos estilísticos

(em que se apresentam as ferramentas ou os princípios teóricos que ajudarão

a traduzir o estilo ou os principais traços estilísticos de nosso brincante)

Quem nunca viu amor assim tão roxo... Vai fazer fuxico quando “ver” Minervina.

“Desvergonhada”, não conhece alvoroço, na hora H é minha estrela matutina.

(Minervina – Na pancada do ganzá / Pernambuco falando para o mundo)

Aqui são apresentados os principais parâmetros levados em conta para

uma abordagem teórica de aspectos estilísticos na obra de Antonio Nóbrega.

Como ponto de partida, leve-se em conta a idéia de que o sentido de um termo,

dentro de um enunciado, mantém estreita relação com o contexto (relação

sintagmática) e com as classes morfológica e semântica a que pertence

(relação paradigmática). Ao mesmo tempo internas e externas ao enunciado, a

rede dessas relações é extremamente complexa e passível de uma infinidade

de variações. São esses caracteres que dão a qualquer mensagem organizada

e a qualquer texto literário a sua qualidade única (Cressot, 1980).

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O texto musical de Nóbrega – chamemos desta forma o texto das

canções interpretadas por ele, ainda que sejam versos não somente de sua

autoria, mas criados também por seus parceiros – conserva uma unidade

estilística em função dos elementos que o inspiram e lhe servem de base,

tendo no caráter regional um aspecto indissociável. É a relação entre o que

podemos nomear de elementos teóricos estilísticos e sua aplicação no texto

artístico desse brincante pernambucano que é investigada neste trabalho.

Antes de prosseguir, no entanto, destaquem-se aqui as principais idéias do que

disseram importantes teóricos sobre estilo e estilística.

Charles Bally (1951), em seu Traité de stylistique française, cuja primeira

edição é de 1902, já definia o objeto da estilística da expressão, que é o

conteúdo afetivo da linguagem. Segundo ele, o que caracteriza o estilo não é a

oposição entre o individual e o coletivo, mas o contraste entre o emocional e o

intelectivo (Bechara, 2001). Quanto a exemplos de afetividade, eles não faltam

na linguagem poético-musical de Nóbrega, caracterizando seu modo de se

exprimir artisticamente. São referências que o músico e dançarino traz de toda

a sua formação cultural – fortemente caracterizada por manifestações regionais

ligadas à dança, ao canto, à poesia, ao teatro de rua – que se reúnem num

expressivo caleidoscópio no qual têm vez a ciranda, o frevo, a cantoria, o

martelo agalopado, o maracatu rural, a moda de viola, a nau-catarineta e tantas

outras formas características com que se expressa a criatividade popular,

conforme salientado no capítulo Considerações sobre a cultura popular

nordestina.

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Como nos ensina Joaquim Mattoso Câmara Júnior (1978: 13), “O estilo é

a definição de uma personalidade em termos lingüísticos”. Assim, uma

abordagem estilística deve ter como ponto de partida um traço lingüístico

peculiar do autor, o que pode se chamar de desvio estilístico que se aparta do

uso normal da língua, como escreve Luiz Toledo Machado, o prefaciador da

edição brasileira de A estilística (Guiraud, 1978). Segundo ele, enquanto o

estilo é uma linguagem autárquica, a qual mergulha suas raízes

exclusivamente na mitologia pessoal e secreta de um autor, a escrita

pressupõe um compromisso interpessoal que é definido nos seus limites de

classes, grupos sociais ou ideológicos. José Lemos Monteiro (1991: 12)

completa: “O estilo, em última instância, seria uma forma peculiar de encarar a

linguagem com uma finalidade expressiva.” Trata-se de um “conjunto objetivo

de características formais oferecidas por um texto” – Lemos cita Herculano de

Carvalho – “como resultado da adequação do instrumento lingüístico aos

propósitos específicos do ato em que foi produzido” (id. ibid.).

Mattoso Câmara, ao definir estilo, toma duas premissas como base: a

clássica dicotomia saussuriana langue – que é a língua, o lado social da

linguagem – e parole – que é a fala ou o discurso, o lado individual. Para ele,

estilo é um conjunto de processos que tornam a língua representativa um meio

de exteriorização psíquica e apelo, no sentido de Bühler. Por sinal, a respeito

das três funções primordiais da linguagem, foram elas depreendidas pelo

alemão Karl Bühler da seguinte forma: representação, expressão e apelo, que

correspondem, respectivamente, às faculdades de inteligência, sensibilidade e

desejo ou vontade. Como escreve Carvalho (2004: 87),

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A representação é a linguagem referencial e denotativa, operando linearmente no eixo sintagmático. A expressão é a exteriorização psíquica de nossos anseios e sentimentos, e o apelo é o meio pelo qual exercemos influência sobre nossos interlocutores ou leitores, no caso da língua literária.

Na obra Contribuição à estilística portuguesa, Mattoso Câmara (1978)

estabelece então sua concepção de estilística com base nas três funções da

linguagem propostas por Karl Bühler – correspondendo a representação à

linguagem intelectiva, e a expressão (ou manifestação psíquica) e o apelo (ou

atuação sobre o outro) à linguagem afetiva de Bally (Martins, 2000). Assim,

segundo Mattoso Câmara, a estilística estuda a língua como um meio de

exprimir estados psíquicos (função de expressão) ou então de atuar sobre o

interlocutor (função de apelo).

Castelar de Carvalho (2004), em artigo sobre o lado estilicista de

Mattoso Câmara, sintetiza a divisão básica de Guiraud para a disciplina que é

foco deste capítulo: estilística da língua ou da expressão (na linha estruturalista

de Charles Bally, que dá ênfase à expressividade latente no sistema) e a

estilística genética ou do autor (que é a corrente idealista de Vossler e Leo

Spitzer, a qual enfatiza a criação expressiva individual). Esta trabalha com

categorias básicas como funções da linguagem, estilo, escolha, desvio,

enunciação/enunciado. A estilística individual ou genética (new stylistics), de

Leo Spitzer (1968), procura anular a divisão entre o estudo da língua e o da

literatura. Destina-se basicamente à análise do estilo individual, expressão do

espírito do autor. E nessa corrente, também chamada de estilística literária,

merecem destaque aqui algumas idéias do poeta, filólogo e lingüista espanhol

Dámaso Alonso, o qual atribui a significado e significante conceitos diferentes

dos estabelecidos por Ferdinand de Saussure. Para Alonso, o significante,

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além da imagem acústica, é o som físico; e o significado não é apenas um

simples conceito, mas “uma complexa carga psíquica que pode incluir emoção,

afetividade, volição, intencionalidade, imaginação” (Martins, 2000: 9). Assim,

como “significantes totais” têm-se a obra, o poema, a estrofe, o verso, o

vocábulo; e como significantes parciais aparecem o ritmo, a entoação, a sílaba,

o acento. “O significado total é a representação da realidade e os significados

parciais são os múltiplos elementos sensoriais, afetivos e conceptuais que essa

representação comporta” (Martins, 2000: 9).

De acordo com Amado Alonso, estilo é o uso especial do idioma pelo

autor, mestria ou virtuosismo idiomático como parte da construção. É toda a

revelação do artista, é o homem – “le style c’est l’homme même”, como afirmou

Georges Buffon (apud Martins, 2000). E ainda segundo Amado Alonso, a

expressividade emocional não é obtida apenas pela seleção dos vocábulos,

mas também por sua colocação na frase (Monteiro, 1991).

Na escolha está a alma do estilo, conforme salienta Gladstone Chaves

de Melo (1976), em seu clássico Ensaio de estilística da língua portuguesa.

Como a língua oferece possibilidades, o sujeito elege uma e rejeita outra. Para

este autor, estilo “exige conhecimento, gosto, requinte, senso de proporção e

adequação, musicalidade, ritmo, novidade, poder de surpresa, constante

reinvenção” (Melo, 1976: 24). Ele prossegue: “Acho que conseguiu caracterizar

bem ‘estilo’ Sílvio Elia, quando diz: ‘Estilo significa o máximo de efeito

expressivo que se consegue obter dentro das possibilidades da língua’” (id.

ibid.), reproduzindo trecho de Orientações da lingüística moderna, do filólogo

citado (Elia, 1955). Pode-se dizer, assim, que o efeito estilístico também resulta

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de uma escolha diante das virtualidades oferecidas pelo sistema lingüístico, em

face dos aspectos apresentados até aqui.

Uma vez que as normas obrigatórias pertencem à gramática e as

facultativas à estilística, justificam-se as liberdades no uso da língua

portuguesa encontradas numa obra regional tão rica como a de Antonio

Nóbrega. Afinal, “falar bem ou escrever bem não é só ater-se às normas da

gramática: é escolher com justeza as palavras, as construções, o ritmo” (Melo,

1976: 25). E é também Melo (1976: 29) quem diz que cabe à estilística estudar

“as funções ou valores expressivos e impressivos, ligados a esta ou àquela

forma, a esta ou àquela combinação, a este ou àquele sintagma, a esta ou

àquela seqüência sonora, a este ou àquele ritmo”.

Ao lembrar que, para Mattoso Câmara, estilo é um conjunto de

processos que fazem da língua representativa um meio de exteriorização

psíquica e apelo, Carvalho (2004) destaca que este autor chamava a atenção

para o fato de que o desvio só é tolerável quando a serviço de uma finalidade

estética. José Lemos Monteiro (1991), ao estudar o desvio estilístico, salienta o

papel desempenhado por metaplasmos (alterações ou desvios que incidem na

forma das palavras, em sua constituição sonora; ex.: aférese, síncope,

apócope, prótese, epêntese e paragoge), metataxes (desvios que afetam a

estrutura sintática), metassememas (figuras que substituem um semema por

outro, ou seja, que modificam os conjuntos de semas do grau zero; ex.:

sinédoque, metáfora, oximoro), metalogismos (figuras de pensamento que

rompem com os aspectos lógicos do discurso; ex.: hipérbole, antítese,

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eufemismo, ironia, paradoxo). Algumas dessas figuras serão vistas no capítulo

4, na análise das letras do repertório de Nóbrega.

Já tem-se, portanto, o aval de especialistas no assunto para se

compreender (ou aceitar) os desvios que vierem a ser encontrados nos textos

musicais de Antonio Nóbrega. Só que,

para que o desvio produza efeito estilístico, é necessário que esteja impregnado de uma carga afetiva partida do autor (lado individual) e partilhada com o leitor (lado social), o qual, por sua vez, precisa ter um mínimo de sensibilidade e percepção estético-lingüística para poder fruir o achado estilístico que ele tem em mãos (Carvalho, 2004: 90).

Os admiradores do trabalho de Nóbrega, tanto ouvintes quanto

espectadores, costumam preencher esses pré-requisitos; mesmo para os que

não conhecem sua obra, não é difícil adquiri-los ao assistirem pela primeira vez

a um espetáculo do artista.

Ainda falando sobre estilo, numerosas outras definições podem ser

encontradas em obra exemplar de Nilce Sant’Anna Martins (2000), assim como

um consistente apanhado dos principais estudiosos da estilística e de suas

diversas correntes de análise. Uma vez que não se trata aqui da elaboração de

um tratado de estilística, recomenda-se a obra em questão para um estudo

pormenorizado dessa disciplina.

Como o objeto de estudo deste trabalho é uma obra musical, vale

destacar a importância da estilística do som ou fônica, também chamada

fonoestilística, que

trata dos valores expressivos de natureza sonora observáveis nas palavras e nos enunciados. Fonemas e prosodemas (acento, entoação, altura e ritmo) constituem um complexo sonoro de extraordinária importância na função emotiva e poética (Martins, 2000: 26).

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Também as tonalidades emotivas das palavras são levadas em conta

para uma análise estilística: seu significado afetivo, o julgamento que

exprimem, as palavras evocativas (estrangeirismos, arcaísmos, regionalismos

e gírias, ainda de acordo com Martins, 2000). Aqui, naturalmente, para o

estudo empreendido interessam mais os regionalismos, que

permitem a evocação de certos aspectos de determinada parte do País, produzindo efeitos diferentes conforme o ouvinte ou leitor seja ou não dessa região. Se for, o regionalismo, por comum e natural, pode passar despercebido; caso ele esteja distante do seu torrão, ouvindo a expressão aprendida na infância, poderá ela despertar-lhe várias reminiscências. Se o ouvinte-leitor não for da região, ouvindo a expressão que não lhe é habitual, sentirá o sabor de algo pitoresco ou exótico (Martins, 2000: 87-88).

Esta mesma autora lembra que nos textos de escritores classificados

como regionalistas encontram-se formas populares que têm a função de evocar

o nível cultural das personagens ou marcar a língua arcaica das zonas rurais

ou do sertão. Ela cita, naturalmente, o exemplo de Guimarães Rosa na

literatura, com seu estilo inconfundível de tratar as suas Minas Gerais. Pode-se

acrescentar: também o Nordeste, especialmente Pernambuco, é traduzido de

forma bastante sugestiva na expressão lingüístico-poético-musical de Antonio

Nóbrega.

Para a análise aqui empreendida, um aspecto que também se torna útil

é a harmonia imitativa: combinações peculiares de fonemas, repetições de

fonemas, palavras, sintagmas ou frases, do ritmo do verso ou da frase (Melo,

1976; Martins, 2000). Gladstone Chaves de Melo assinala que o valor

expressivo de um som ou conjunto de sons depende do contexto, está ligado

ao sentido da frase e ao significado da palavra. E o vocábulo pode ainda ser

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tratado na condição de massa sonora, segundo um capítulo deste autor (1976:

79-87) dedicado ao assunto.

No entender de Cressot (1980), a estilística não tem por função elaborar

um inventário, mas destacar razões e conseqüências quanto à criação de

palavras, os neologismos. Ele diz que é conveniente “tomar em consideração a

psicologia do neologismo, o desejo que o utente tem desse neologismo” (id.

ibid.: 79). Ao mesmo tempo, acrescenta: “A renovação das expressões é talvez

mais importante do que a construção de palavras novas” (id. ibid.: 80).

Já que se está no plano da criação de palavras, Joaquim Mattoso

Câmara Júnior (1978: 52) diz ter chegado a uma conclusão inicial sobre

estilística léxica: a de que existe uma tonalidade afetiva para as palavras,

decorrente de uma natureza mais ou menos convencional atribuída às coisas

designadas: “A função informativa as evita ou procura empregá-las de maneira

a reduzi-las ao seu significado neutro. A expressividade, ao contrário, faz delas

instintivamente cabos elétricos da mais alta tensão.”

Estilisticamente falando, nenhum termo escolhido para expressar

determinada coisa ou situação é melhor que outro. “Tudo depende das

circunstâncias e da temperatura da frase. Quando a palavra satisfaz todas

estas condições, pode dizer-se que é exata” (Cressot, 1980: 55). Ele cita La

Bruyère, lembrando que dentre todas as diferentes expressões que podem

traduzir um pensamento há somente uma adequada, mas nem sempre a

encontramos, seja na fala, seja na escrita; no entanto, “não deixa de ser

verdade que ela existe, que tudo o que não é ela é fraco e não satisfaz um

homem de espírito que quer fazer-se entender” (Cressot, 1980: 55). Ao abordar

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o que chama de estética do termo próprio, este autor enfatiza: para qualquer

coisa que pretendamos dizer, há apenas uma palavra para exprimi-la, aquela

que traduz o pensamento com uma exatidão a um tempo qualitativa e

quantitativa.

Ressalte-se, como acréscimo às idéias apresentadas, que a frase não

só tem ritmo como também volume. A frase periódica e a frase curta

apresentam características próprias, segundo Cressot (1980). É o sentido da

palavra que leva à procura de um efeito musical num grupo de sons.

Para encerrar este capítulo, lembre-se o filósofo Theodor Adorno (1983:

194): “só entende aquilo que o poema diz quem escuta em sua solidão a voz

da humanidade”. A obra de Nóbrega tem as características próprias do artista,

é certo; mas também traz referências inequívocas do universo cultural à sua

volta. A “solidão” do artista ganha, assim, contornos da “humanidade” que ele

representa. E são os efeitos prismáticos de sua obra, para usar uma expressão

de Joaquim Mattoso Câmara Júnior (1978: 3), que se tornarão motivo de

estudo no capítulo 4, segundo o ângulo de observação aqui escolhido: um viés

cultural que tem como um de seus principais objetivos reunir os traços

estilísticos do autor.

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3.2 – Aspectos semânticos

(em que se reúnem elementos que possam servir de “chão” para estudar

significados da obra do criador de Tonheta)

Eu, viandante, de um chão poento. Dias queimosos, vida sem idílio.

Preces voltadas para sóis ardentes, luares claros a buscar o Auxílio.

Para os meus olhos, confusão pasmosa, batalha surda, secular martírio.

Ai, desatino! Ai, meu penar! Ai, velho medo!

Sombra e malpassar! (Canudos – Madeira que cupim não rói)

Uma vez que à gramática cabe especificar e determinar os mecanismos

utilizados pelos indivíduos para criarem um número infinito de seqüências

sonoras que tenham algum sentido, com base num mesmo repertório

lingüístico, a semântica tem como papel justamente explicitar os mecanismos

que tornam possível produzir e interpretar, intuitivamente, o sentido dessas

seqüências sonoras. Qual o sentido das seqüências sonoras encadeadas por

Nóbrega, contando com o auxílio de seus parceiros? Difícil responder “qual”,

mas pode-se arriscar a sugerir “quais” sentidos e significados estão implícitos

em sua obra, em que letra e música – e por que não dizer também a dança? –

se amalgamam e se complementam. Na busca dos sentidos da obra desse

brincante pernambucano, tome-se como ponto de partida o estudo do

significado.

No plano lingüístico estrito, os estudos do significado costumam

distribuir-se em três domínios básicos: o da semântica lexical, o da semântica

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da sentença (independentemente de condicionamentos contextuais ou

situacionais) e o da semântica do texto (relativo ao uso concreto da língua em

textos falados ou escritos, contextual e/ou situacionalmente condicionados)

(Marques, 2001). É a semântica do texto de Nóbrega que interessa aqui,

relativa ao uso concreto da linguagem do artista em seu texto poético-musical,

contextual e/ou situacionalmente condicionado.

Aristóteles definia as palavras como as menores unidades significativas

da fala; na lingüística contemporânea, tais unidades são chamadas de

morfemas.41 Uma palavra é definida pela associação de um determinado

sentido a um determinado conjunto de sons, susceptível de um emprego

gramatical determinado. Para Leonard Bloomfield, a palavra é a “forma livre

mínima”; e uma frase pode ser definida como uma forma livre, inteiramente

formada por duas ou mais formas livres menores (Ullmann, 1970).

Na epígrafe de seu Tratado de semântica brasileira, Silveira Bueno

(1965) cita o Frei Pedro de Poyares (Dicionário lusitano-latino, Lisboa, 1657):

“Nada digo de minha cabeça e sempre sigo bom autor ou autores e se errar

seguindo-os, errare honestum.” Os bons autores seguidos por Nóbrega, assim

como por Wilson Freire e Bráulio Tavares, são os incontáveis artistas populares

que povoam suas vidas desde a infância, fermentando seu trabalho até o ponto

em que se vê hoje nos palcos e se ouve nos CDs, no caso do intérprete de

41 O termo morfema tem mais de um uso. Em Morfologia portuguesa, Monteiro (2002: 13-14) reúne cinco definições para morfema: “Os morfemas são os elementos mínimos das emissões lingüísticas que contêm um significado individual” (Charles Hockett); “Um morfema é a unidade mínima no sistema de expressão que pode ser correlacionada diretamente com alguma parte do sistema do conteúdo (H. A. Gleason Jr.); “Um morfema pode ser definido como ‘unidade gramatical mínima distintiva’, uma subunidade da palavra, que não pode ser significativamente subdividida em termos gramaticais” (Mervyn F. Lang); “Os morfemas são as menores unidades significativas que podem constituir palavras ou partes de palavras” (Eugene A. Nida); “Morfema

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Tonheta. Só que, adaptando-se a afirmação de Frei Pedro de Poyares,

Nóbrega muito diz de “sua cabeça”, uma vez que é por meio da forma como ele

pensa e entende a cultura popular nordestina, traduzindo a linguagem popular

através de sua própria linguagem, que dá unidade e individualidade ao seu

trabalho, reelaborando artisticamente o universo cultural no qual nasceu e foi

criado.

Ao abordar a relação entre língua e fala, pode-se dizer que a língua é

um veículo de comunicação, enquanto a fala é o uso desse veículo por um

dado indivíduo numa determinada ocasião (Ullmann, 1970). Segundo este

autor, a língua é potencial, ao passo que a fala é atualizada.

A fala é o uso que uma pessoa faz da língua numa situação específica; é um ato individual. Por seu lado, a língua transcende o individual: é propriedade da sociedade em geral. Só pode servir como meio de comunicação se for substancialmente a mesma para todos os que a falam; é, nas palavras de Saussure, uma “instituição social” (...). Por outras palavras, a língua é a súmula total dos sistemas lingüísticos que os membros individuais da comunidade têm na memória (1970: 44-45).

O seguinte quadro traçado por Ullmann (1970) destaca as diferenças

entre língua e fala:

Língua Fala

Código Codificação de uma mensagem Potencial Atualizada Social Individual Fixa Livre Move-se lentamente Efêmera Psicológica Psicofísica

A divisão anterior estabelece o contraste entre o atual e o potencial,

entre o individual e o social. Entra aí o que se poderia chamar de língua

é a menor parte indivisível da palavra que, por sua vez, tem uma relação direta ou indireta com a significação” (Milos Dokulil).

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individual ou idioleto, conforme designação de lingüistas como Charles F.

Hockett e Robert A. Hall Jr., em destaque na obra de Ullmann:

Este novo termo fica a meio caminho entre os dois pólos de Saussure: é individual como a fala, em oposição à língua, que tem um caráter social; ao mesmo tempo, é potencial como a língua, em oposição à fala, que é, por definição, actual. Também de outro ponto de vista ele representa um termo médio: o sistema lingüístico, tal como existe na memória de um indivíduo, é menos concreto, menos diretamente acessível ao observador que os atos particulares da fala, mas é mais concreto e de mais fácil acesso que a língua de uma comunidade inteira (1970: 48).

Em Saussure (1972), langue e parole são dois aspectos

complementares de uma entidade mais ampla, le langage. E é de uma

linguagem comum a todos (no caso, o povo brasileiro, para não ampliar a idéia

aos povos falantes de língua portuguesa, uma vez que Nóbrega usa termos

caracteristicamente regionais do Nordeste do Brasil) que o criador de Tonheta

se serve para estabelecer uma forma bastante individual de utilizar a língua em

seu trabalho artístico, como se verá em diversos exemplos ao longo do capítulo

4.2 (Análise do corpus). Essa atitude do indivíduo falante em relação à fala e à

língua é acentuada por Ullmann (1970), para quem ele, indivíduo, é o senhor

absoluto da sua fala e é apenas dele que depende o que quer dizer, da mesma

forma como o dirá e até mesmo quando o dirá. O indivíduo pode, se assim o

desejar, desviar-se do uso vulgar e criar uma língua especial para si. Segundo

Barthes (1977), constituem a fala as combinações graças às quais o falante

pode usar o código da língua visando exprimir o pensamento pessoal.

Também pode-se dizer que a fala tem dois aspectos diferentes: um físico,

outro psicológico. “Os sons efetivos são acontecimentos físicos, enquanto que

os significados por eles expressos são fenômenos psicológicos” (Ullmann,

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1970: 47). Há, portanto, uma relação definida entre a língua e a personalidade.

Assim, ao se abordar o universo lingüístico de Nóbrega, deve-se lembrar que

A língua é um produto social, um conjunto de convenções, sistema de signos (código) potencial, que permite aos indivíduos o exercício da faculdade da linguagem. A fala é o uso individual, momentâneo, concreto da língua. Enquanto a língua é relativamente estável e se situa no plano psicológico, a fala é variada, circunstancialmente condicionada, de natureza psicofísica e motora (Marques, 2001: 44).

Ao historiar a semântica e suas tendências, Maria Helena Duarte

Marques (2001: 23) ressalta, com base em estudos desenvolvidos

recentemente, “o interesse pelas características semânticas dos atos concretos

de fala, no nível da ‘parole’ e do desempenho ou ‘performance’, em textos

inerentemente condicionados contextual e circunstancialmente”. É necessário

que se levem em conta os contextos lingüísticos e os extralingüísticos, os

intervenientes no discurso, seus conhecimentos e sua experiência, porque são

as condições históricas, culturais e sociais que tornam pertinentes

determinados segmentos lingüísticos. É por isso que as palavras, muitas

vezes, se esvaziam de significado descritivo e ganham apenas valor

sociocomunicativo. É a justaposição de condições culturais, sociais, históricas

e mesmo afetivas que dará significado, por exemplo, a textos como o refrão de

Na pancada do ganzá (“Meu ganzá, meu ganzarino, / meu ganzarino real, / gira

o mundo, treme a terra, / e eu na pancada do ganzá”), como se verá na análise

constante no capítulo 4.2.1.

******* Ao abordar a diferença entre língua (langue) e fala (parole) feita por

Ferdinand de Saussure, Palmer (1979) acrescenta que essa distinção

reaparece nos trabalhos de Noam Chomsky e seus adeptos em termos de

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competence (competência) e performance (atualização). Ele lembra a distinção

entre enunciados (utterances) e frases (sentences):

...o que é importante é que um enunciado é um acontecimento no tempo – é produzido por uma pessoa qualquer num momento qualquer, ao passo que a frase é uma entidade abstrata, sem existência no tempo, mas fazendo parte do sistema lingüístico de uma língua (Palmer, 1979: 19).

Este autor destaca a importância da entoação para a tradução de fato

do que se está querendo dizer, pois muitas vezes a intenção é transmitir a idéia

oposta das palavras pronunciadas. Tanto Palmer (1979) quanto Ullmann (1970)

citam uma passagem de Alice através do espelho, de Lewis Carroll, que

ressalta a importância de se manejar bem as palavras. É quando o

personagem Humpty Dumpty diz, com ar de troça, que quando usa uma

palavra ela significa exatamente aquilo que ele quer que ela signifique, nem

mais nem menos. E não é exatamente isto o que faz Tonheta ao interpretar

canções como Minervina e Meu foguete brasileiro? Na primeira, ao referir-se à

personagem-título, ele canta: “É minzinguenta quando vai pra brincadeira, / não

dá bandeira na hora da cavilação.” “Minzinguenta” quer dizer implicante, que

faz pirraça; e “cavilação” é falsidade, fingimento, hipocrisia (Navarro, 2004). A

picardia desse personagem não fica mais bem traduzida pela escolha dessas

duas palavras do que pelo uso dos sinônimos indicados? Certamente que

sim.

No caso de Meu foguete brasileiro, há versos como estes: “Fiz logo uma

escala no chão marciano, / vendi rapadura, comprei tungstênio, / enchi os

meus tanques de oxigênio, / parti outra vez no começo do ano.” Cada verso

tem 11 sílabas e respeita uma determinada seqüência de rimas. Para caber na

métrica, tanto tungstênio quanto oxigênio ganham uma sílaba a mais do que

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sua divisão normal”: “tun-guis-tê-(nio)” e “o-qui-si-gê-(nio)”. É a liberdade da

palavra falada apropriando-se da palavra escrita para chegar a um objetivo

poético, como diz o autor da letra, Bráulio Tavares.42

*******

O mundo humano parece definir-se essencialmente como o mundo da

significação. E o mundo somente pode ser chamado “humano” na medida em

que significa algo, como diria Greimas (1971). Na busca de sentidos para o que

se deseja expressar, ninguém deve negar a importância crucial do contexto na

determinação do significado das palavras. Além do contexto verbal, deve-se

prestar atenção ao “contexto de situação”, conceito introduzido por Bronislaw

Malinowski que “significa, em primeiro lugar, a situação efetiva em que uma

expressão ocorre, mas leva a uma visão ainda mais ampla do contexto que

abrange todo o fundo cultural contra o qual é colocado um ato de fala”

(Ullmann, 1970: 106). Para este autor, a concepção de contexto deve

ultrapassar os limites da mera lingüística e transportar-se para a análise das

condições gerais em que uma língua é falada. Dessa forma, o estudo de

qualquer língua deve ser conduzido simultaneamente com o estudo da sua

cultura e do seu meio ambiente.

Outro fator que depende largamente do contexto é o aspecto emotivo do significado da palavra. Em princípio, praticamente qualquer termo pode adquirir tonalidades emotivas num contexto apropriado; inversamente, palavras com uma forte carga emotiva podem ocasionalmente ser empregadas de um modo puramente objetivo (Ullmann, 1970: 110).

A linguagem escrita pode, em grande parte e sem perdas, ser convertida

em discurso. No entanto, o inverso não é verdadeiro, porque se costuma

42 Ver capítulo 2.2.2.

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perder algo sempre que se escreve alguma coisa que foi dita, uma vez que a

linguagem falada tem características marcantes que não podem ser facilmente

representadas na linguagem escrita. Em particular, possui o que se chama de

elementos prosódicos e paralingüísticos. “Os elementos prosódicos incluem,

em primeiro lugar, tudo o que diz geralmente respeito à entoação e à

acentuação” (Palmer, 1979: 20). A entoação, assim, está inteiramente a serviço

do falante; sabemos quanto Tonheta “carrega” no seu deboche por meio da

forma como entoa determinadas palavras.

Também o significado é transmitido por elementos paralingüísticos como

o ritmo, o tempo, a altura do som (gritar ou falar em surdina, por exemplo, é

muito significativo).

Cumulativamente, quando falamos, usamos muitos sinais extralingüísticos (por vezes usa-se também, para os referir, o termo paralingüísticos) – um sorriso ou um piscar de olho podem ser uma indicação tão exata de que o que dissemos não deve ser tomado em sentido literal, como a entoação ‘sarcástica’” (Palmer, 1979: 21).

É o mesmo Palmer (1979) quem estabelece diferença entre sentido e

referência, destacando que a referência trata da relação entre os elementos

lingüísticos, palavras, frases etc. e o mundo da experiência, extralingüístico. Já

o sentido está relacionado ao complexo sistema de relações que os próprios

elementos lingüísticos (sobretudo as palavras) estabelecem entre si. Refere-se

apenas às relações internas da língua. Assim, a referência diz respeito às

relações entre a língua e o mundo extralingüístico da experiência; o sentido

ocupa-se das relações internas da língua.

Introduzir-se-ão agora três conceitos que se mostrarão úteis no capítulo

4: trata-se de palavras transparentes e opacas e frases idiomáticas. Costuma-

se classificar as palavras em transparentes e opacas, sendo transparentes

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aquelas cujo significado pode ser determinado a partir do significado das partes

que as compõem, e opacas aquelas que não permitem a utilização dessa

técnica (Ullmann, 1970). E frase idiomática é uma seqüência de palavras cujo

significado global não pode ser determinado a partir do significado das palavras

que a constituem. Trata-se de expressões como “fazer das tripas coração”.

Saussure (1972) dividiu as línguas em dois grupos: línguas “lexicológicas”, que

têm preferência por palavras opacas, e “gramaticais”, nas quais predomina o

tipo transparente.

Todos os idiomas contêm certas palavras arbitrárias e opacas,

sem qualquer conexão entre o som e o sentido, e outras que, pelo menos em certo grau, são motivadas e transparentes. Há três aspectos principais da motivação que agora podemos ver mais claramente: como funciona numa língua particular; como pode variar no decurso do tempo; finalmente, como varia o seu âmbito de uma língua para outra (Ullmann, 1970: 169).

Ressalte-se ainda que a etimologia popular pode fornecer motivação

semântica a um termo opaco:

A etimologia popular não difere essencialmente da sua irmã

culta, a etimologia dos filólogos. Mais viva, mais “operante” que esta última, faz instintivamente, intuitivamente e logo à primeira vista o que a outra faz intencionalmente, com grande reforço de livros e de verbetes (J. Orr, apud Ullmann, 1970: 217).

A Análise do corpus destacará exemplos de palavras transparentes e

opacas e de frase idiomática no repertório de Nóbrega, levando-se em conta

que em semântica não é possível considerar a existência de capacidade

lingüística desligada do conhecimento do mundo (Palmer, 1979).

*******

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O significado dos elementos lingüísticos pode ser considerado como

totalmente explicável em termos da situação em que é usado. Analisando

elocuções específicas, podemos identificar as unidades que formam a língua.

Em face da natureza mista, psicofísica, da fala, dois caminhos se nos abrem: podemos analisar um pedaço de discurso ligado, do ponto de vista físico, como uma cadeia de sons, e do ponto de vista psicológico, como um veículo de significado. Uma vez que a maioria das elocuções são formadas por mais que um elemento significativo, necessitaremos também de um terceiro critério: teremos que estudar as relações que existem entre as diversas unidades (Ullmann, 1970: 51).

Leve-se em conta que as alterações semânticas podem ser devidas a

três causas gerais (lingüísticas, históricas e sociais) provenientes de fatores

relacionados à imprecisão intrínseca do sentido das palavras, assim como à

perda progressiva das suas origens etimológicas e também à descontinuidade

do processo de transmissão da linguagem.

Assim, toda mudança de sentido é uma inovação semântica, que deve ser interpretada como um acontecimento histórico particular, que tem causas lingüísticas próprias, ocorre num momento histórico e num dado meio social, condicionada por um conjunto de circunstâncias que não só lhe dão origem, mas propiciam a sua difusão e generalização no uso da comunidade (Marques, 2001: 35).

A expressão lingüístico-poético-musical de Nóbrega também pode ser

analisada tendo como base um dos quatro tipos básicos43 de mudanças de

significados propostos por Léonce Roudet: alterações semânticas decorrentes

de semelhanças formais entre palavras (etimologia popular, homonímia,

paronímia) (Marques, 2001).

É preciso ainda levar em conta aspectos psicológicos ligados à

afetividade que podem explicar as alterações de sentido e a criação vocabular.

43 Os outros três tipos básicos de mudanças de significados apresentados por este autor são: alterações semânticas decorrentes de semelhança entre duas noções (metáforas); alterações semânticas decorrentes de contigüidade entre duas noções (metonímias); e as alterações semânticas decorrentes de contigüidade entre palavras (elipses) (Marques, 2001: 36).

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Assim, de modo a dar vazão à afetividade e à emoção centradas num dado

tema, é possível tomá-lo como núcleo de expansão semântica para a criação

de novos significados por meio de comparações mentais, referências indiretas

e processos metafóricos em geral. Em razão dos mesmos motivos de

afetividade e emoção centradas num dado tema, é possível tomá-lo como

núcleo de atração semântica, através de meios diversos de nomeá-lo ou a ele

fazer referência, em processos sinonímicos, metonímicos e designações

figuradas indiretas, por exemplo.

Numa dada comunidade, circunstâncias históricas individuais ou coletivas se tornam, em determinado momento, os focos de atração de expansão afetiva, dos quais se originam motivações psíquicas que, de um lado, produzem inovações e criações vocabulares que caracterizam as alterações semânticas e, de outro lado, permitem apreender os centros de interesse afetivo, intelectual e moral daquela comunidade, num dado momento de sua história. Adquirem particular importância, nesse duplo movimento de expansão e atração, os fenômenos ligados à origem de tabus, eufemismos, disfemismos, evoluções pejorativas e valorativas de palavras e criações lexicais, locucionais etc. (Marques, 2001: 36).

Ao longo das letras que formam o repertório de Nóbrega, as inovações

lingüísticas e as alterações de significado podem ser interpretadas como

resultado de um permanente esforço de ajuste entre a expressão, o

pensamento e o sentimento, com base em associações entre a forma e o

sentido das palavras. É nessa incessante busca por uma expressão adequada

de idéias e emoções por meio da linguagem que atuam fatores internos e

externos, os quais desencadeiam mudanças de significados das palavras em

relação aos conceitos básicos ou aos referentes que evocam para os falantes e

os ouvintes (Marques, 2001).

Edward Sapir (1961) não via a linguagem como fenômeno independente

de condicionamentos históricos, culturais, sociais e aspectos psicológicos dos

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indivíduos que a falam. Para ele, estudar o significado é estudar a própria

linguagem, já que a língua serve não só para exprimir idéias como também

para veicular uma representação e uma determinada interpretação da

realidade. A linguagem torna-se, no entender de Sapir, um fenômeno simbólico

inseparável da cultura, da filosofia e da psicologia; é um inventário complexo de

idéias, interesses e ocupações que mobilizam a atenção da comunidade.

Outro estudioso do assunto, John Rupert Firth, acentuou essa visão

contextual dos fenômenos lingüísticos, destacando a função social como o

traço mais importante da linguagem. Ao desenvolver o pensamento deste

teórico, Marques (2001: 42) assinala:

Cada enunciado numa língua ocorre num contexto de situação culturalmente condicionado, e o significado dos enunciados é a totalidade de traços que deles participam, para indicar os padrões culturais da sociedade em que o falante vive, o papel social e as características de personalidade desse falante, no seio da sociedade.

O universo regional de Antonio Nóbrega é aspecto indissociável de sua

obra, assim como o é de seus parceiros, os quais também são nordestinos.

*******

Para a Análise do corpus, também valerá a idéia da distinção feita por

Henry Sweet entre palavras-plenas e palavras-forma.

Palavras-plenas são essencialmente aquelas que podem ser tratadas com uma certa propriedade pelo dicionário, ao passo que as palavras-forma (apesar de virem sempre referidas no dicionário) têm de ser tratadas pela gramática da língua (apud Palmer, 1979: 131).

As palavras-plenas têm algum significado mesmo quando aparecem

isoladas, enquanto as palavras-forma não têm significado próprio

independente, sendo elementos gramaticais que contribuirão para o significado

da frase ou da oração, quando usados em conjunção com outras palavras.

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Segundo Ullmann (1970), as palavras plenas são “auto-semânticas”,

significativas por si próprias, enquanto que os artigos, preposições, conjunções,

pronomes, advérbios e outros são “sinsemânticos”, isto é, significativos apenas

quando aparecem acompanhados por outras palavras.

Ludwig Wittgenstein afirmou que o significado de uma palavra pode ser

definido como o seu uso na língua (apud Ullmann, 1970). Em sua

interpretação, a língua é um instrumento, assim como os seus conceitos são

instrumentos. Ele faz um paralelo com uma caixa de ferramentas, na qual há

utensílios como martelo, alicate, serrote, chave de parafusos etc. As funções

das palavras tornam-se diversas como as funções desses objetos. Pode-se

associar as ferramentas contidas nessa caixa à quantidade de utensílios que

Tonheta leva em sua nave, como relata a letra de Meu foguete brasileiro:

“Mandei buscar logo cem chapas de aço, / latão, alumínio, ferro de soldar, / dez

mil arrebites para reforçar / a parte de fora da infra-estrutura”, por exemplo; ou

então: “tem saca de açúcar, tonel de carvão, / baú de café, tora de madeira”;

“barraca de praia, caixa de bebida, / ganzá, cavaquinho, tantã, realejo...” Cada

palavra é uma ferramenta que compõe o universo fantástico desse

personagem. Nessa letra, parceria de Nóbrega com Bráulio Tavares, a escolha

de cada palavra deve-se não só à sua sonoridade, mas especialmente ao seu

significado, com a função de estabelecer o caráter rabelaisiano e multifacetado

desse “foguete brasileiro”. Assim, o verdadeiro significado de uma palavra deve

ser buscado na observação do que um homem faz com ela, não no que diz

acerca dela; e exemplifica-se claramente como a expressividade de certas

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combinações sonoras influencia um autor na escolha das palavras que utiliza

em sua obra.

Para encerrar esses pressupostos teóricos referentes à semântica,

deve-se dizer que qualquer palavra, mesmo a mais vulgar e prosaica, pode ser

rodeada de uma aura emotiva, conforme o contexto. Como diz H. Delacroix,

Toda a linguagem tem um certo valor emotivo: se o que eu digo me fosse indiferente, não o diria. Ao mesmo tempo, toda a linguagem aspira a comunicar qualquer coisa. Se não se tivesse absolutamente nada para dizer, não se diria nada (Ullmann, 1970: 265).

Nóbrega tem muito a dizer, com sua obra, de seu universo cultural. A

seus mestres, ele presta constante tributo, como esclarece Sambada dos

Mestres: “As sete chaves das artes / eu trago todas comigo. / Com elas na

minha mão / enfrento qualquer perigo. / As tenho como presentes / dos

Mestres, grandes amigos.” As palavras apresentam uma independência

relativa, mas o contexto é de fundamental importância na determinação do seu

significado (Ullmann, 1970). Os mestres que Nóbrega louva não são simples

mestres, mas Mestres, com inicial maiúscula. A eles muito deve sua inspiração

de brincante. E foi a arte desse nobre discípulo de tantos “Mestres” que deu o

mote para que se glosasse aqui essa série de considerações sobre o

significado de tão numerosos versos escritos e cantados, que serão estudados

canção a canção no capítulo Análise do corpus.

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3.3 – Aspectos dialetológicos

(em que se mostram elementos teóricos relacionados à influência da gênese

regional na obra de um artista popular brasileiro)

Me casei com uma mestiça, eu mestiço por inteiro.

Tivemos muitos mestiços cada vez mais verdadeiros, cada vez mais misturados, cada vez mais brasileiros.

(Mestiçagem – O marco do meio-dia)

No subtítulo deste capítulo, pensou-se em chamar Nóbrega de “artista

popular nordestino”, o que seria uma forma simplista de “classificá-lo”, uma vez

que o alcance de seu trabalho vai muito além de seu estado e sua região de

origem, extrapolando as linhas isoglóssicas44 – e até os limites territoriais – em

que foi gerado e ultrapassando mesmo as fronteiras do Brasil (em julho de

2005, por exemplo, o espetáculo Lunário perpétuo foi apresentado na França e

na Rússia; em 2003, já havia chegado a Portugal). Dessa forma, pretende-se

mostrar que o regionalismo pode influir decisivamente na formação de um

artista, mas de modo algum circunscrevê-lo à sua área de nascimento e

formação. É o que se verá neste capítulo, com base na reunião de elementos

teóricos com base em estudos dialetológicos.

Segundo Mattoso Câmara Júnior (2001: 94), a dialetologia é “o estudo

do arrolamento, sistematização e interpretação dos traços lingüísticos dos

dialetos”. Este autor apresenta duas técnicas para o desenvolvimento da

dialetologia: a da geografia lingüística, que busca a distribuição geográfica de

44 De acordo com Joaquim Mattoso Câmara Júnior (2001: 160), dá-se o nome de linha isoglóssica “a uma linha convencional que se traça no mapa de um território lingüístico para aí assinalar os pontos onde vigora um dado traço lingüístico”.

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cada traço lingüístico dialetal, consolidado nos atlas lingüísticos; e a da

descrição dos falares por meio de monografias dedicadas a uma dada região,

compondo gramáticas e glossários regionais. Assim, a dialetologia estuda as

variações lingüísticas delimitadas no espaço geográfico e nos agrupamentos

sociais dos diferentes sistemas lingüísticos ou dialetos que caracterizam as

diversificações de uma língua, restritas ao espaço geográfico que ocupa.

Conseqüentemente, tem como campo de estudos os falares regionais com

suas delimitações geográficas, caracterizadas por diferenças próprias na

fonética, no léxico e na gramática.

Jean Dubois (1978) reforça os dois aspectos enfocados na dialetologia:

a descrição dos diferentes sistemas ou dialetos em que se diversifica uma

língua e o estabelecimento dos limites de um espaço geográfico de uma fala

que pode ser tomada isoladamente, sem se preocupar com os falares vizinhos

ou com os que pertençam à mesma família lingüística.

A condição de mutabilidade da língua é abordada por Eugênio Coseriu

(1979), quando diz que ela é uma característica essencial e necessária, uma

vez que a língua não está feita, mas faz-se continuamente pela atividade

lingüística. No seu entender, a língua muda porque é falada; como o falar é

uma atividade criadora e livre, é sempre novo. Ressalte-se ainda que Coseriu

faz uma distinção entre a língua abstrata, aquela que não muda, e a língua

real, que muda. A primeira existe no interior de cada falante, onde se

encontram todas as possibilidades oferecidas pela estrutura interna da língua

que os falantes usam individualmente, provocando alterações e mudanças na

língua real em seu existir concreto. Tais alterações são lentas e progressivas e

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refletem uma tendência geral dos falantes, a de buscar se expressar

individualmente e de maneira clara. Dessa forma, qualquer alteração na língua

só existe quando parte dos seus usuários “impõe”, ainda que

inconscientemente, mudanças a que ela está sujeita. Essa criatividade e essa

liberdade no uso da língua aparecem nas letras de Nóbrega, Bráulio Tavares e

Wilson Freire, como será visto no próximo capítulo.

A geografia lingüística, ao mesmo tempo que revela variados

mecanismos de diferenças entre as línguas, por meio de dados fonéticos,

morfológicos, vocabulares e semânticos, permite a interpretação de valores

evocativos e afetivos no plano semântico-lexical (Marques, 2001). Muitas vezes

os dialetologistas ou os geógrafos lingüistas partem em busca de palavras que

possam designar objetos ou processos particulares em determinada área.

É na linguagem que se refletem a identificação e a diferenciação de cada comunidade e também a inserção do indivíduo em diferentes agrupamentos, estratos sociais, faixas etárias, gêneros, graus de escolaridade. A fala, assim, tem um caráter emblemático, que indica se o falante é brasileiro ou português (...) e, mais ainda, sendo brasileiro, se é nordestino, sulista ou carioca (Leite & Callou, 2002: 7).

Na vasta extensão do território brasileiro há uma unidade lingüística, a

língua portuguesa, o que é de conhecimento geral; no entanto, deve-se

destacar que dentro dessa unidade há uma grande diversidade, que são os

falares brasileiros. Apesar de se notarem grandes variações no léxico e na

pronúncia de uma região para outra do país, tal fato não prejudica a unidade

mais ampla de compreensão e comunicação entre os falantes brasileiros.

A grande variação lingüística brasileira é explicada, no entender do

filólogo Antônio Houaiss, pelo processo de colonização do país: “dialetação

horizontal por influxo indígena e diferenciação vertical entre a fala do luso e a

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fala do nascido e criado na terra” (Leite & Callou, 2002: 9). Da reunião dessa

variedade de componentes vem a máxima de que o português do Brasil

caracteriza-se, ao mesmo tempo, pela unidade na diversidade e pela

diversidade na unidade.

Como disse Sílvio Elia, o que se verifica na linguagem das diferentes

áreas em que se subdivide o português do Brasil é uma oposição entre o

campo e a cidade, entre as áreas rurais e as urbanas, as quais se

interinfluenciam continuamente. A seleção vocabular, a norma gramatical e o

“polimento do bem-dizer” são dados pelas cidades, ao passo que os campos

contribuem com o que o autor chama de força viva da linguagem, com as

grandes tendências coletivas e com o material intenso, no entanto genuíno e

despreocupado (Elia, 1976).

Os estudos dialetológicos no Brasil vêm se ampliando cada vez mais.45

De modo a filtrar, entre tantas informações constantes nas indicações dadas na

nota anterior, aquelas consideradas mais adequadas para a realização do

trabalho empreendido nesta tese, tome-se como ponto de partida o fato de que

numa língua histórica, como é o caso do português, há três tipos fundamentais

de diferenças internas: as de espaço geográfico (diferenças diatópicas);

aquelas entre os distintos estratos socioculturais de uma mesma comunidade

45 A intenção aqui é reunir elementos teóricos que sirvam para embasar o estudo dialetológico da obra de Antonio Nóbrega. Para um estudo mais profundo sobre a geografia lingüística no Brasil, ver, entre outros, os seguintes títulos: Brandão (1991), Ferreira & Cardoso (1994), Ferreira et al. (1994), Aguilera (1998), Castro (2001), Razky (2003). Leite & Callou (2002) traçam um sintético porém consistente panorama sobre o jeito de falar dos brasileiros. Com relação aos primórdios dos estudos dialetológicos em âmbito internacional, cite-se La géographie linguistique (Dauzat, 1922), obra que tem como foco a elaboração de um atlas lingüístico para a França, abordando fenômenos internos e externos à linguagem. Acresçam-se a esses títulos os clássicos estudos O dialeto caipira, de Amadeu Amaral (1920); O linguajar carioca e O idioma nacional, de Antenor Nascentes (1953, 1960); e o Guia para estudos dialectológicos, de Serafim da Silva Neto (1957), além de Dubois (1978) e Coseriu (1979).

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idiomática (diferenças diastráticas); e aquelas entre os tipos de modalidade

expressiva, de estilos distintos, de acordo com as circunstâncias em que se

realizam os atos de fala (diferenças diafásicas). Acrescentem-se a esses tipos

as diferenças de idades e de gerações (Ferreira & Cardoso, 1994).

Deve-se observar, no entanto, que dentro dessa variedade existe a

unidade em função de relativa homogeneidade garantida pela soma dos traços

lingüísticos comuns, o que nos leva à elaboração do seguinte quadro, com

base em Ferreira & Cardoso (1994):

Diferenças diatópicas

Diferenças diastráticas Diferenças diafásicas

Unidades sintópicas (dialetos: dialeto nordestino, dialeto de Pernambuco etc.)46

Unidades sinstráticas (linguagem culta, linguagem popular, de classe média etc.)

Unidades sinfásicas (estilo de língua: linguagem formal, familiar, literária etc.)

Em cada uma dessas unidades pode haver diferenças, como indicado a

seguir:

Unidade sintópica (dialeto de determinada região) � diferenças diastráticas

(socioculturais) ou diafásicas (de estilo).

Unidade sinstrática (como a linguagem popular) � diferenças diatópicas (regionais) e

diafásicas (de estilo).

Unidade sinfásica (como a linguagem familiar, literária, formal etc.) � diferenças

diatópicas (regionais) e diastráticas (socioculturais).

Retomando a idéia de isoglossas (linhas virtuais que marcam limites de

formas e expressões lingüísticas): elas não só podem delinear contrastes e

semelhanças em espaços geográficos (isoglossas diatópicas) como também

46 Aprofundar a questão teórica referente a dialeto não é objetivo desta tese.

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mostrar contrastes e semelhanças lingüísticas socioculturais (isoglossas

diastráticas), podendo ainda configurar diferenças de estilos (isoglossas

diafásicas) (Ferreira & Cardoso, 1994). Estas autoras também destacam que

uma isoglossa pode ser lexical (isoléxica), fônica (isófona), morfológica

(isomorfa) e sintática.

Veja-se agora o “caso” Antonio Nóbrega:

Unidade sintópica

Unidade sinstrática

Unidade sinfásica

“Dialeto” nordestino, especificamente o de Pernambuco.

Linguagem popular, sem descuidar da linguagem culta.

Estilo informal, familiar, simultâneo à utilização de um estilo literário, poético.

Tanto a entonação quanto a pronúncia, a escolha vocabular e a

preferência por determinadas construções frasais, assim como os mecanismos

morfológicos que lhes são peculiares, podem servir de índices que

identifiquem:

a) o país ou a região de que se origina [o falante]; b) o grupo social de que faz parte (seu grau de instrução, sua

faixa etária, seu nível socioeconômico, sua atividade profissional);

c) a situação (formal ou informal) em que se encontra (Brandão, 1991: 6).

Sem dúvida alguma, os aspectos históricos, sociais e culturais

subjacentes à região de onde se origina cada falante são fundamentais para

definir a sua forma de se exprimir lingüisticamente – e Antonio Nóbrega é um

grande exemplo dessas premissas. Exemplifique-se com um trecho da letra de

Nascimento do Passo: “No frevedouro / fiz um grande rebuliço, / preto, branco

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e mestiço, / eu chamei pro bafafá. / Azuretada, / a corriola destrambelha, /

sacoleja, se destelha, / no maior calunguejar.” Mais um exemplo, agora de

Pernambuco falando para o mundo: “Pitomba, preaca, pife e pandeiro / Esse é

o encontro, é essa emoção / (...) / Ascenso, arrecifes, angolas arteiros /

Maraca, mascates e maracatu.” Um leitor do Sul, do Sudeste ou do Centro-

Oeste do Brasil poderá ter dificuldade para compreender imediatamente

algumas das palavras usadas, o que um leitor ou ouvinte do Nordeste ou do

Norte do país fará com muito mais facilidade.

Os diversos termos regionais que formam o repertório lingüístico de

Nóbrega – como os apresentados nos versos reproduzidos há pouco – serão

destacados ao longo do próximo capítulo, de modo a se esmiuçar da melhor

maneira possível a forma como esse brincante nordestino se comunica com

seu vasto público, traduzindo perfeitamente a linguagem de sua região de

origem.

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4 – Corpus

(em que se tecem comentários sobre uma rede de versos que, casados com

determinadas melodias e aliados a um modo bastante particular de interpretá-

los, traduzem a expressão lingüístico-poético-musical de Antonio Nóbrega)

Dando início à jornada

de toques, loas e canções, celebrando a alegria

com o fervor das orações, licença peço pra entrar

em vossos bons corações. (Apresentação dos músicos – O marco do meio-dia)

4.1 – Apresentação

Tanto os espetáculos quanto os CDs de Antonio Nóbrega seguem uma

estrutura semelhante em seu roteiro, desde a saudação ao público até a

despedida, passando por gêneros musicais como romance, frevo, coco,

maracatu rural e ciranda (caracterizando o momento de bis dos espetáculos),

entre outros, além de números instrumentais. Tal é a estrutura dos espetáculos

populares nos quais ele se inspira, os reisados. No final de suas

apresentações, é comum praticamente toda a platéia se dar as mãos para

participar de uma ciranda, dançando um frevo em seguida. Nas palavras de

Walter Carvalho, cineasta e fotógrafo que dirigiu a gravação do DVD Lunário

perpétuo,47 Nóbrega tece, em seu trabalho, “uma renda a partir do romance

oral e do encontro das raízes mouras com o folclore do Nordeste”.48

47 Ver Referências Discográficas. 48 Jornal O Globo, 30/10/2003 (www.oglobo.com.br).

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A canção de abertura, seguindo a tradição de cantadores do Nordeste,

costuma trazer um pedido de licença para que o artista possa se apresentar

(Loa49 de abertura, Abrição de portas, Apresentação dos músicos), ou então

um convite ao público para assistir à cantoria e ao espetáculo (Vinde, vinde,

moços e velhos). Temas populares são recriados por Nóbrega, aproveitando a

diversidade de manifestações artísticas regionais como o cavalo-marinho e a

nau-catarineta.

Ele interpreta não só suas próprias canções, feitas com os parceiros

Wilson Freire, Bráulio Tavares (os dois mais freqüentes, conforme visto no

capítulo 2), Ariano Suassuna, Marcelo Varella, Zezinho Pitoco e Dimas Batista

Patriota, como também adaptações de temas de domínio público e obras de

outros autores. O artista ainda dedica momentos de seus discos e espetáculos

à apresentação de temas instrumentais, de sua autoria (Rasga do Nordeste,

Ponteio acutilado) ou de outros compositores, com a intenção de mostrar a

diversidade da música brasileira (Pagão, choro de Pixinguinha; Risada da

Chiquinha, polca de Jair Pimentel; os frevos Lágrimas de um folião, de Levino

Ferreira; Cocada, Corisco e Canjiquinha, de Lourival Oliveira; Formigão, de

Felinho; e Luzia no frevo, de Antonio Sapateiro). Também o 1º movimento do

concerto de Bach em ré menor para rabeca e flauta faz parte do repertório de

Na pancada do ganzá, assim como a guarânia Serenata suburbana, gênero

normalmente associado ao Centro-Oeste brasileiro, mas aqui uma composição

(letra e música) do pernambucano Lourenço Fonseca Barbosa, o popular

Capiba. O frevo Vassourinhas, de Matias da Rocha e Joana Batista, uma

49 “Discurso laudatório; elogio, apologia” (Ferreira, 1995: 1042); “discurso elogioso em que se enaltece o mérito de alguém, de algum feito, ou de algo” (Houaiss & Villar, 2001: 1775).

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espécie de hino do carnaval pernambucano, aparece em Pernambuco falando

para o mundo em ritmo de valsa, em arranjo do violonista Edmilson Capeluppi,

demonstrando o virtuosismo dos músicos que costumam acompanhar Nóbrega

nos espetáculos: além de Edmilson (violões de seis e de sete cordas, viola,

cavaquinho e bandolim), Zezinho Pitoco (clarinete, saxofone, percussão),

Antonio Bombarda (acordeom), Eugênia Nóbrega (flautas), Daniel Alain

(saxofone e flauta), Edson Alves (violão e viola), Gabriel Almeida (percussão),

Mário Gaiotto (percussão, incluindo o marimbau). Eugênia é irmã de Nóbrega e

Gabriel é filho dele. Uma presença mostra-se indispensável nas apresentações

e na carreira do artista: sua mulher, Rosane Almeida – que, além de dançar,

apresenta números de acrobacia. A filha dos dois, Maria Eugênia, faz

participações esporádicas como dançarina.

O roteiro dos espetáculos vai “esquentando” aos poucos: se no início

Nóbrega fica sentado em um banco (já ensaiando os primeiros passos de

dança) ou então diante do microfone, com o violão, a viola, a rabeca ou o

pandeiro, aos poucos ele passa a tomar conta de todo o palco e chega a dar

verdadeiras aulas de como dançar frevo – ritmo ágil por excelência – e coco.

Há espetáculos em que ele cede a vez para um entremez de seu “alter

ego” Tonheta, garantia de boas risadas da platéia. Em seguida, é a vez de um

número musical mais lírico que prepara o encerramento do espetáculo, com a

canção temática, espécie de fio condutor (Na pancada do ganzá, Madeira que

cupim não rói, Pernambuco falando para o mundo, O marco do meio-dia ou

Lunário perpétuo). No final, um tema de despedida, agradecendo a atenção do

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público e desejando um breve reencontro. No bis, é hora de todos dançarem

ciranda, coco e frevo.

A seguir, estão relacionadas as músicas de todos os CDs, cujas letras

aparecem completas no Anexo 1. Será feita uma análise, à luz dos elementos

teóricos apresentados no capítulo anterior, apenas das obras que levam a

assinatura de Nóbrega, incluindo suas parcerias e as adaptações que ele fez

de temas de domínio público. Eis a lista de músicas, cuja seqüência

normalmente é seguida à risca nos espetáculos:

Na pancada do ganzá

1 – Loa de abertura (Domínio público – Recriação musical de Antonio Nóbrega). 2 – Vinde, vinde, moços e velhos (Domínio público – Recriação musical de Antonio Nóbrega). 3 – Truléu da Marieta (Domínio público – Recriação musical de Antonio Nóbrega). 4 – A vida do marinheiro (Domínio público – Recriação musical de Antonio Nóbrega). 5 – Truléu, léu, léu, léu, léu (Domínio público – Recriação musical de Antonio Nóbrega). 6 – Serenata suburbana (Capiba). 7 – Marcha da folia (Raul Moraes). 8 – Boi Castanho (Getúlio Cavalcanti). 9 – O romance de Clara menina com Dom Carlos de Alencar (Domínio público – Recriação musical de Antonio Nóbrega). 10 – 1º movimento do concerto de Bach em ré menor para rabeca e flauta (Johann Sebastian Bach – Transcrição de Toninho Ferragutti e Edmilson Capeluppi) (Instrumental). 11 – Desassombrado (Antonio Nóbrega). 12 – Mexe com tudo (Levino Ferreira) (Instrumental). 13 – Minervina (Antonio Nóbrega e Marcelo Varella). 14 – Mateus Embaixador (Antonio Nóbrega). 15 – Na pancada do ganzá (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 16 – Despedida (Domínio público – Recriação musical de Antonio Nóbrega).

Madeira que cupim não rói

1 – Abrição de portas (Domínio público – Adaptação de Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 2 – Canudos (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).

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3 – Chegança (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 4 – Quinto império (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 5 – Olodumaré (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 6 – Nascimento do Passo (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 7 – Andarilho (Dalton Vogeler e Orlando Silveira). 8 – O vaqueiro e o pescador (Antonio Nóbrega e Dimas Batista Patriota). 9 – Quando as glórias que gozei... (Domínio público). 10 – Madeira que cupim não rói (Capiba). 11 – Corisco (Lourival Oliveira) (Instrumental). 12 – Monga (Domínio público – Adaptação de Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 13 – Coco da lagartixa (Domínio público – Adaptação de Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 14 – Maracatu Misterioso (Antonio José Madureira e Marcelo Varella). 15 – Rasga do Nordeste (Antonio Nóbrega) (Instrumental). 16 – Lição de namoro (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 17 – Sambada dos Mestres (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 18 – Vou-me embora (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).

Pernambuco falando para o mundo

1 – Vinde, vinde, moços e velhos (Domínio público – Recriação musical de Antonio Nóbrega). 2 – Festa da padroeira (Capiba). 3 – Chegança (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 4 – Olodumaré (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 5 – Cantigas de roda (Getúlio Cavalcanti). 6 – A dor de uma saudade (Edgard Moraes). 7 – Cocada (Lourival Oliveira) (Instrumental). 8 – Pau-de-arara (Luiz Gonzaga e Guio de Moraes). 9 – Mulher-peixão (Luiz de França). 10 – Minervina (Antonio Nóbrega e Marcelo Varella). 11 – Seleção Capiba (De chapéu-de-sol aberto, Oh! Bela, Cala a boca, menino, Frevo e ciranda, Trombone de prata). 12 – Vassourinhas (Matias da Rocha e Joana Batista). 13 – Formigão (Felinho) (Instrumental). 14 – Pernambuco falando para o mundo (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 15 – Despedida (Domínio público – Adaptação de Wilson Freire).

O marco do meio-dia

1 – Apresentação dos músicos (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 2 – Dança do mergulhão (Domínio público) (Toque instrumental de banda cabaçal).50 3 – Mestiçagem (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 4 – Viagem maravilhosa (Antonio Nóbrega, Bráulio Tavares e Wilson Freire).

50 Ver Glossário.

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5 – Zumbi (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 6 – Risada da Chiquinha (Jair Pimentel) (Instrumental). 7 – Coco da bicharada (Recriação de cantiga e versalhada popular por Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 8 – Nau (Antonio José Madureira) (Instrumental). 9 – Estrela-d’alva (Antonio Nóbrega, Bráulio Tavares e Zezinho Pitoco). 10 – Flecha fulniô (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 11 – Romance do Aleijadinho (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 12 – Galope beira-mar para Bispo do Rosário (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 13 – Dança dos arcos (Domínio público – Adaptação de Manuel Salustiano) (Tema de São Gonçalo e da “Pata piou”). 14 – Martelo d’o marco do meio-dia (Antonio Nóbrega e Ariano Suassuna).

Lunário perpétuo

1 – O rei e o palhaço (Antonio Nóbrega e Bráulio Tavares). 2 – Ponteio acutilado (Antonio Nóbrega) (Instrumental). 3 – Romance da filha do imperador do Brasil (Antonio Nóbrega e Ariano Suassuna). 4 – Carrossel do destino (Antonio Nóbrega e Bráulio Tavares). 5 – Romance da nau-catarineta (Romance tradicional recriado por Ariano Suassuna com base em toadas populares). 6 – Canjiquinha (Lourival Oliveira) (Instrumental). 7 – A morte do touro Mão de Pau (Antonio Nóbrega e Ariano Suassuna). 8 – Pagão (Pixinguinha) (Instrumental). 9 – Excelência (Recriação literária de Ariano Suassuna com base em toadas populares). 10 – Meu foguete brasileiro (Antonio Nóbrega e Bráulio Tavares). 11 – Luzia no frevo (Antonio Sapateiro) (Instrumental). 12 – Delírio (Antonio José Madureira e Marcelo Varella). 13 – Lágrimas de um folião (Levino Ferreira) (Instrumental). 14 – O romance de Riobaldo e Diadorim (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). 15 – Lunário perpétuo (Antonio Nóbrega, Wilson Freire e Bráulio Tavares).

Agora veja-se esta mesma relação de músicas dividida conforme os

parceiros, incluindo as obras adaptadas ou feitas só por Nóbrega:

Na pancada do ganzá Canções de domínio público com recriação musical de Antonio Nóbrega:

Loa de abertura Vinde, vinde, moços e velhos Truléu da Marieta A vida do marinheiro Truléu, léu, léu, léu, léu O romance de Clara menina com Dom Carlos de Alencar Despedida

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Letra e música só de Nóbrega: Desassombrado Mateus Embaixador

Nóbrega e Marcelo Varella:

Minervina Nóbrega e Wilson Freire:

Na pancada do ganzá

Madeira que cupim não rói

Canções de domínio público adaptadas por Nóbrega e Wilson Freire:

Abrição de portas Monga Coco da lagartixa

Nóbrega e Wilson Freire:

Canudos Chegança Quinto império Olodumaré Nascimento do Passo Lição de namoro Sambada dos Mestres Vou-me embora

Poema de Dimas Batista Patriota musicado por Nóbrega:

O vaqueiro e o pescador Canção indicada apenas como de domínio público no encarte do CD:

Quando as glórias que gozei... Tema instrumental de Nóbrega, original do Quinteto Armorial:

Rasga do Nordeste

Pernambuco falando para o mundo Indicada apenas como de domínio público no encarte do CD:

Vinde, vinde, moços e velhos Nóbrega e Wilson Freire:

Chegança Olodumaré Pernambuco falando para o mundo

Nóbrega e Marcelo Varella: Minervina

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Domínio público com adaptação de Wilson Freire: Despedida

O marco do meio-dia

Nóbrega e Wilson Freire:

Apresentação dos músicos Mestiçagem Zumbi Flecha fulniô O romance do Aleijadinho Galope beira-mar para Bispo do Rosário

"Recriação de cantiga e versalhada popular por Antonio Nóbrega e Wilson Freire":

Coco da bicharada Nóbrega, Wilson Freire e Bráulio Tavares:

Viagem maravilhosa Nóbrega, Bráulio Tavares e Zezinho Pitoco:

Estrela-d'alva Nóbrega e Ariano Suassuna:

Martelo d'o marco do meio-dia

Lunário perpétuo Nóbrega e Bráulio Tavares:

O rei e o palhaço Carrossel do destino Meu foguete brasileiro

Nóbrega e Wilson Freire:

O romance de Riobaldo e Diadorim Nóbrega, Wilson Freire e Bráulio Tavares:

Lunário perpétuo Tema instrumental de Antonio Nóbrega, original do Quinteto Armorial:

Ponteio acutilado Nóbrega e Ariano Suassuna:

Romance da filha do imperador do Brasil A morte do touro Mão de Pau (aboio)

Romance tradicional recriado por Ariano Suassuna com base em toadas populares:

Romance da nau-catarineta Recriação literária de Ariano Suassuna com base em toadas populares:

Excelência

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Quatro canções aparecem em dois CDs: Vinde, vinde, moços e velhos,

Chegança, Olodumaré e Minervina. Nóbrega também aproveita temas

instrumentais que compôs no período em que integrou o Quinteto Armorial,

como Rasga do Nordeste (chamada então apenas de Rasga) e Ponteio

acutilado. O romance do Aleijadinho, que recebeu letra de Wilson Freire,

também é daquela época (aparece no disco Sete Flechas, do grupo citado,

com a autoria de Antonio José Madureira, inspirado em tema popular), assim

como a Excelência (tema nordestino de canto fúnebre), já interpretada pelo

quinteto em adaptação de Antonio José Madureira e que depois passou a ser

cantada por Nóbrega, em adaptação de Ariano Suassuna. Composições de

outros autores da época armorial também são aproveitadas, como Cocada e

Marcha da folia.

Vamos agora às considerações sobre os textos poéticos criados por

Nóbrega, sozinho ou com seus parceiros. Neste capítulo são citados

fragmentos de letras (eventualmente, letras integrais). Apesar de a análise se

deter nas composições de Nóbrega (estudar as dos outros autores estaria além

dos limites deste trabalho), no Anexo 1 aparecem as letras integrais de todas

as músicas dos cinco CDs, como já dito, incluindo as que não foram compostas

por ele.

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4.2 – Análise do corpus

Com base nos pressupostos teóricos apresentados até aqui, será feito

um estudo das letras das músicas à luz de elementos da estilística, da

semântica e da dialetologia, sem deixar de lado comentários sobre o léxico,

com o propósito de caracterizar o universo em que se situa a arte de Antonio

Nóbrega para que se determinem traços estilísticos que identifiquem a

expressão lingüístico-poético-musical desse brincante pernambucano. Este

item subdivide-se conforme os roteiros dos CDs-espetáculos.

Lembre-se inicialmente que, nos estudos estilísticos, como diz Ullmann

(1970), um dos métodos mais freqüentes é a investigação do emprego de

palavras de determinado escritor de modo a averiguar o que é único e

idiossincrático no seu manejo da língua. Ele cita Schopenhauer, que, fazendo

eco da famosa fórmula de Buffon, “Le style, c’est l’homme même”, definiu estilo

como “a fisionomia da mente”, e tal fisionomia pode ser captada melhor

examinando-se o “idioleto” do autor conservado nos seus escritos de forma

mais ou menos estilizada.

Como os constituintes sonoros ou gráficos das formas lingüísticas

“adquirem valores simbólicos por associação de seu significado e de seus sons

a outras formas ou pela sua reiteração, total ou parcial, em novas seqüências

discursivas” (Marques, 2001: 154), procurar-se-á mostrar como se verificam

essa associação e essa análise tendo como ponto de partida o trabalho de um

artista popular do Nordeste brasileiro.

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4.2.1 – Na pancada do ganzá

Com a Loa de abertura (domínio público – recriação musical de Antonio

Nóbrega), o artista pede licença para entrar na “casa” dos

ouvintes/espectadores51 e dar início à cantoria. É uma prática bastante comum

entre os cantadores nordestinos: saudar seu público e, por meio dessa

louvação, conquistar sua simpatia logo no início da apresentação, para a qual é

pedida a devida licença.

Senhores desta sala licença eu vou chegando, eu vou. A voz e a rabeca, o coração cantando, eu vou.

Nóbrega apresenta duas de suas ferramentas básicas como artista: a

rabeca e a voz. Sem falar no caráter metafórico contido no verso “o coração

cantando, eu vou”, coração visto aqui como uma espécie de instrumento que o

músico também apresenta a quem o ouve ou a quem assiste a seu espetáculo,

na intenção de demonstrar a autenticidade dos sentimentos que impregnam o

seu trabalho artístico, instigando desde então, por meio da simplicidade e da

singeleza, a cumplicidade de todos que estão diante dele.

Ao ouvi-lo, com seu jeito característico de cantar, com a melodia ou

musicalidade peculiar de seu sotaque, não é difícil para um falante de língua

portuguesa familiarizado com os diferentes jeitos brasileiros de falar,52

conforme as diferentes regiões desse país de dimensões continentais,

51 Ao se utilizar a expressão ouvintes/espectadores, pensa-se tanto em quem escuta o CD, em sua própria casa, quanto em quem assiste ao espetáculo. 52 Para aprofundar a questão sobre como falam os brasileiros, ver Leite & Callou (2002) e Ferreira & Cardoso (1994).

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perceber de imediato a presença de um artista nordestino, por meio de traços

característicos de sua fala. “Em geral a entonação do falar nordestino, no

interior, principalmente, segue uma orientação descendente. As vogais são

marcadas e abertas. Daí a fama de falarmos cantando”, acentua Mário

Marroquim (1996: 25).

Ao cantar os versos, pode-se dizer que Nóbrega decompõe a melodia

com o texto, mas recompõe o texto com a entoação, de acordo com a idéia de

cancionista elaborada por Luiz Tatit (1996) e apresentada aqui na Introdução.

Com sua dicção própria (também aproveitando conceito deste teórico), ou seja,

com seu modo particular de compor/interpretar canções, Nóbrega insinua na

Loa de abertura os primeiros elementos que servirão como tentativa de definir

o seu estilo ao longo desta tese.

O próximo tema é Vinde, vinde, moços e velhos (domínio público –

recriação musical de Antonio Nóbrega), que também serve para abrir

Pernambuco falando para o mundo. De forma imperativa, o artista faz um

convite irresistível a toda a platéia para apreciar o espetáculo a ser

apresentado: “Como isso é bom, como isso é belo. / Como isso é bom, é bom

demais. / Olhai, olhai, admirai, / como isso é bom, é bom demais.” É tema

bastante conhecido no Nordeste por fazer parte das apresentações do pastoril,

dança dramática de origem européia e ainda hoje comum naquela região

brasileira durante os festejos de Natal (Andrade, 1982, 1989; Câmara Cascudo,

s.d.). Apesar do caráter eminentemente popular da composição, note-se o uso

da segunda pessoa do plural: não se diz “venham, venham, moços e velhos”,

“olhem, olhem, admirem”, mas sim “vinde, vinde, moços e velhos”, “olhai, olhai,

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admirai”, buscando desse modo enfatizar o convite à platéia por meio do

rebuscamento da linguagem na escolha da forma verbal. “É curiosa a

persistência, entre o povo, do tratamento familiar na segunda pessoa do plural”,

já dizia Mário Marroquim na década de 40 em estudo clássico sobre a língua

do Nordeste (Marroquim, 1996). Ao recriar esse tema em seu espetáculo,

conservando a forma original de expressão lingüística, Nóbrega preserva a

essência da comunicação entre o brincante do pastoril e o seu público.

Seguindo o roteiro, Truléu da Marieta, A vida do marinheiro e Truléu, léu,

léu, léu, léu (todas de domínio público com recriação musical de Antonio

Nóbrega) compõem uma trilogia inspirada na manifestação cultural de origem

portuguesa chamada nau-catarineta, que narra uma travessia no Atlântico em

circunstâncias trágicas.53 Participam figuras como o gajeiro (que será visto no

capítulo 3.2.5, na análise do Romance da nau-catarineta, que faz parte do

repertório de Lunário perpétuo) e a saloia (camponesa portuguesa, em geral

rude).

Um elemento caracteriza de imediato a busca por uma definição do

estilo da linguagem de Antonio Nóbrega aqui empreendida: a unidade temática.

O Nordeste é sua inspiração, as manifestações culturais locais o estimulam a

recriá-las, gravá-las e levá-las para o palco. É por meio da unidade constituída

por essas letras que ele vai contando a seu modo a história de seu povo, de

sua gente, dos brincantes que contribuíram sobremaneira para a sua formação

cultural.

53 Frise-se que não é intenção esmiuçar aspectos referentes à nau-catarineta. Para aprofundar o assunto, ver Andrade (1982), Câmara Cascudo (s.d.) e Romero (1977). Aspectos referentes à linguagem contida nas letras é que serão aqui privilegiados.

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Paralelamente a essa unidade temática tem-se a unidade sintópica, o

“dialeto” nordestino, especificamente o de Pernambuco, como visto no capítulo

3.3 (Aspectos dialetológicos); a unidade sinstrática, que é o uso da linguagem

popular; e a unidade sinfásica, que é o estilo informal ou familiar da linguagem

de Nóbrega, sem se descuidar do caráter literário e poético na forma de se

expressar. Pode-se dizer que todos esses aspectos estão presentes em toda

letra aqui analisada, cada qual sendo parte de um mosaico poético-lírico-

musical característico do artista estudado.

Sobre as figuras de linguagem utilizadas nas letras dos cinco CDs em

questão, nessa trilogia referente à nau-catarineta aparece a aliteração:

“Quando o mar balança a barca”; “no porto de Portugal”; “Ó, marujo, lá do

leme”; “eu tenho recordação / do meu bem que está em terra” (Truléu da

Marieta); “e a minha nau naufragar” (A vida do marinheiro). Os versos em geral

têm sete sílabas, ou pés, típicos da lírica popular nordestina, o que caracteriza

ainda mais a unidade temática (já referida há pouco) em função da sua forma

poética.

Quanto ao universo lingüístico utilizado, diante dos versos “Em risco de

uma tormenta, ô ipá / e a minha nau naufragar, / as feras do oceano / vão o

meu corpo estragar” (A vida do marinheiro), não parecem próximos os riscos

enfrentados pelos marinheiros da nau-catarineta aos narrados por Luís de

Camões (1970) nas apaixonadas navegações dos Lusíadas, devido ao seu

caráter épico, assim como à melancolia que perpassa as aventuras marítimas

contidas em Mensagem, de Fernando Pessoa (1995)? As “feras do oceano”

são os antagonistas dos nossos “heróis” marinheiros, ameaçando estragar

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seus corpos, como assinala a letra em questão. Dessa forma, além do contexto

verbal, leva-se em conta o contexto de situação (Ullmann, 1970) ao se

analisarem os termos e as expressões constantes no repertório lingüístico que

é objeto desta tese.

Como esclarecido na Introdução, estudam-se aqui as canções

compostas por Nóbrega, sozinho ou em parceria, mas ao longo da análise é

indicada a entrada das composições de outros autores, de modo a se ter em

mente a ordem em que constam no roteiro, tanto de cada espetáculo como de

cada CD. Assim, agora vêm Serenata suburbana, de Capiba; Marcha da folia,

de Raul Moraes; e Boi Castanho, de Getúlio Cavalcanti.54

A próxima canção, O romance de Clara menina com Dom Carlos de

Alencar, foi recriada por Nóbrega com base em tema de domínio público e

apresenta a estrutura básica do romance cantado de inspiração ibérica. O

romance é um poema em versos octossílabos pela versificação castelhana e

setissílabos ou heptassílabos pela nossa, de acordo com Câmara Cascudo

(s.d.: 788-790),

refundidos e recriados nos sécs. XV e XVI, com rimas assonantes nos pares, e os ímpares livres, vindos dos sécs. X, XI, XII, como as canções de gesta, registrando as façanhas guerreiras de espanhóis e franceses. Foram poemas feitos para o canto nas cortes e saraus aristocráticos, e não a poesia democrática e vulgar, feita para o povo. (...). O séc. XVI foi a época do romance em Portugal e justamente a fase do povoamento do Brasil. Os romances vieram, cantados, e resistiram até, possivelmente, o séc. XVIII, quando foram esquecidos no uso, mas não nas memórias coloniais.

Também são classificadas como romances as publicações de poemas

narrativos com 24, 32, 48 ou 64 páginas, extrapolando os limites dos folhetos.

54 Ver letras completas no Anexo 1.1.

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Los romances son, además, piezas de inestimable valor literario: poesía pura, sin artificios, en la que late el alma de la raza y la gracia y el misterio que viven en la verdadera poesía (Fermín Estrella Gutiérrez, História de la literatura española; apud Weitzel, 1995: 85).

Por ser uma típica narrativa em verso, cantada ao som de algum

instrumento, o romance é bastante aproveitado por Nóbrega em seu repertório,

especialmente pelo caráter teatral que oferece. Esta forma lítero-musical data

do século XIV e remonta às canções de gesta, poemas que narravam feitos

valorosos de heróis nacionais. Seu apogeu foi nos séculos XV e XVI, na

Espanha, na época dos reis católicos, quando se difundiu por toda a Península

Ibérica. Chegou à América com as grandes navegações, tendo gozado aqui de

grande prestígio (Weitzel, 1995). O seu texto pode ser narrativo ou dialogado,

caso este do Romance de Clara menina com Dom Carlos de Alencar, em que

Nóbrega, ao som da sua viola de dez cordas, instrumento típico do

acompanhamento da cantoria nordestina, interpreta (por meio da variação de

sua voz) cinco personagens: o narrador, Clara menina, Dom Carlos de Alencar,

o rei e o caçador.

Sílvio Romero (1977) relaciona variantes sergipanas deste romance,

intituladas Dom Carlos de Montealbar e Dona Branca (versões do município de

Lagarto), com destaque para a semelhança da estrutura de versos entre a

primeira versão citada e o texto aqui estudado. São histórias de procedência

européia que falam de reis, príncipes, princesas, cavalheiros e donzelas. O

Romance de Clara menina com Dom Carlos de Alencar também aparece no

entremez O homem da vaca e o poder da fortuna, que Ariano Suassuna

escreveu, baseado num folheto popular, para sua peça Farsa da boa preguiça.

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Nesse romance cantado por Nóbrega, há 14 estrofes totalizando 103

versos de sete sílabas cada, sem refrão. A aliteração reaparece como recurso

estilístico: “e isto que estou vendo aqui”; “isto que tu viste”; “porque o que eu vi

aqui”; “me mandaram me calar”. A sonoridade das palavras é bastante

explorada, reforçada pela variedade de vozes emitida pelo intérprete conforme

o personagem que está “em cena”. Por meio da acentuação de determinadas

palavras no momento em que as pronuncia, valendo-se do ritmo, do tempo e

da altura do som, que funcionam como elementos paralingüísticos (Palmer,

1979), Nóbrega reforça o ponto de vista do personagem que está com a

palavra, dando “cores” particulares aos diversos momentos da história

contada/cantada. A entoação, assim, torna-se decisiva para determinar o

significado – mais do que isso, a intenção – das palavras da canção; é um

“comentário perpétuo” da palavra, segundo Charles Bally (1957). Para este

autor, os movimentos da entoação constituem fenômeno de extrema

delicadeza e complexidade, correspondendo assim às mais variadas emoções.

Veja-se agora o caso de um vocábulo específico que aparece nessa

letra. No verso “estava nua pra enjambrar”, o uso do termo enjambrar

caracteriza o regionalismo da linguagem, pois essa palavra é de uso comum

em Pernambuco e significa envergonhar, embaraçar, acanhar (Navarro, 2004).

Este autor, por sinal, na obra indicada (Dicionário do Nordeste), ilustra o

verbete justamente com essa passagem do Romance de Clara menina com

Dom Carlos de Alencar, assim como exemplifica diversos verbetes com outras

passagens do repertório de Nóbrega. Ferreira (1995) também aponta

Pernambuco como a região de uso da palavra enjambrar. Na letra em questão,

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seu duplo sentido permite uma interpretação de cunho nitidamente sexual,

devido ao contexto em que aparece. Vale ressaltar aqui parte da definição dos

verbetes “brinquedo, brincadeira” do Dicionário do folclore brasileiro, de

Câmara Cascudo (s.d.: 188), que destaca uma variante da letra interpretada

por Nóbrega, citando o Folclore pernambucano, de Pereira da Costa:

Nos velhos romances, brincar é a junção carnal: “Apanhei a Claralinda / com D. Carlos a brincar, / De braços e boquinhas, / Não podiam desgarrar, / Da cintura para baixo, / Não tenho que lhe contar”.

Com relação à fusão da preposição de com o pronome pessoal ela antes

do infinitivo falar (“depois dela assim falar”), trata-se de uma prática

perfeitamente comum na linguagem coloquial tanto falada quanto escrita. Basta

imaginar como soaria antinatural o rei, pai de Clara menina, dizer “depois de

ela assim falar” por meio de seu intérprete Antonio Nóbrega.

Após o instrumental 1º movimento do concerto de Bach para rabeca e

flauta (Johann Sebastian Bach), transcrição de Toninho Ferragutti e Edmilson

Capeluppi, Desassombrado (letra e música de Nóbrega) dá seqüência ao

roteiro. A canção é permeada por termos que caracterizam bem a região de

seu autor/intérprete: “azouguei”, “farofa de embuá” (azougado significa irritado

e embuá é o mesmo que lesma),55 “Bruzacã” (a “coisa ruim”, uma das formas

do Demônio segundo Quaderna, personagem mítico de Ariano Suassuna em

seu Romance d’a Pedra do Reino [2004b]; pode-se interpretar também como

uma variação de “bruaca”, mulher feia e velha, como consta em Bernardino

1996), “bacamarte”, “fui ponteando a rabeca”, “e galopando / no chitão de

55 As definições para “azougado” e “embuá” são de Bernardino (1996).

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minha burra”, “no trote de Caluzinha” (Caluzinha é a burra ou burrinha56 usada

por Tonheta, que interpreta a canção). Logo no começo, a palavra “odisséia” dá

bem a idéia do caráter épico das narrativas e das aventuras desse personagem

de inspiração rabelaisiana,57 como se verá novamente em Meu foguete

brasileiro (4.2.5).

Nessa letra aparece uma figura de estilo ainda não explorada no

repertório em questão: a onomatopéia. “Eu vi os jatos / pelos céus fazendo

zum! / Ouvi as bombas, tebedum! / Os fuzis, taratatá!” Três onomatopéias em

seguida: zum, tebedum e taratatá, ilustrando o desassombro do personagem

diante do panorama de guerra encontrado em “Saravejo”. Aqui a ordem dos

fonemas da palavra original (“Sarajevo”) é invertida propositalmente numa

espécie de metátese58 para atingir o efeito estilístico “ver em Saravejo“ nos

seguintes versos: “nas ruas de Saravejo / vi o mundo se acabar.” Mais um

exemplo de onomatopéia já aparecera no trecho “eu carrego um bacamarte, /

quando quero atiro: pá!”. O “pá” rima com “desanuviar” em “me lembrei de

minha terra / pra eu me desanuviar”, demonstrando a criatividade do autor na

formação de rimas inspiradas na poesia popular nordestina.59

Nessa como em outras narrativas do repertório analisado, observe-se

que, após as situações dramáticas presenciadas por Tonheta, ele passa ileso

por elas e prossegue seu caminhar, retornando a sua terra e reencontrando a

56 “Figura do bumba-meu-boi: armação de madeira, semelhante a uma alimária, que o brincante põe em volta da cintura, de modo que parece montado nela” (Ferreira, 1995). Ressalte-se que Calu é o nome típico da burra no cavalo-marinho (Andrade, 1989). 57 Ver capítulo 1, quando se fala sobre a relação entre Rabelais e o trabalho de Nóbrega, com base em Bakhtin (1999). 58 Metátese é a mudança fonética que consiste na transposição de um fonema dentro de um vocábulo (Câmara Júnior, 2001). 59 Grande número de exemplos de versos criados especialmente para cantorias pode ser visto em Sobrinho (2003).

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manga-espada, a manga-rosa e a manga-roxa. Essa é a sua “trouxa”, isto é,

sua sina: ir por aí desassombrar, ou seja, clarear as coisas, serenar,

desanuviar. É um “herói” bufão mas essencialmente lírico, na linha mesma de

Gargântua e Pantagruel (Bakhtin, 1999). A letra de Desassombrado,

inteiramente de Nóbrega, é motivo de elogios de seu parceiro Bráulio Tavares,

como visto no capítulo 2.2.2.

A seguir vêm o frevo instrumental Mexe com tudo (Levino Ferreira) e

Minervina (Antonio Nóbrega e Marcelo Varella), que é o nome da

“companheira” de Tonheta (na verdade, uma boneca com quem ele dança e

contracena). A letra é uma das menores do repertório (apenas dez versos),

mas contém bons exemplos de regionalismos, como “desvergonhada”,

“minzinguenta”, “cavilação”. Sem falar na “provocação” de rimas que soa

perfeitamente natural na poesia falada ou cantada, como acontece aqui com o

par “roxo/alvoroço”. E é Tonheta quem está cantando, ressalte-se; portanto, a

liberdade no uso das palavras e das rimas é maior ainda, configurando-se

assim a sua peculiar dicção como “cancionista” (Tatit, 1996).

“Desvergonhada”, por meio de uma síncope,60 perdeu o a original e

conseqüentemente uma sílaba, para adequar-se à métrica do verso. Note-se

que o verbete “desvergonhado” consta em Houaiss & Villar (2001), porém seu

uso não é comum no Brasil fora da Região Nordeste.

“Minzinguenta” é a pessoa implicante, que faz pirraça, de acordo com o

pernambucano Navarro (2004), que ilustra o verbete justamente com essa

passagem da letra de Minervina, caracterizando assim o regionalismo do

60 Perda do fonema medial de um vocábulo, como ensina Joaquim Mattoso Câmara Júnior (2001).

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termo. “Cavilação” quer dizer falsidade, fingimento, hipocrisia, como visto no

capítulo 3.2 (Aspectos semânticos). Por extensão, “caviloso” “no Nordeste é

pessoa fingida, falsa, cocório, que agrada com a intenção de conseguir algo em

troca. A acepção nacional é fraudulento, capcioso, desonesto” (Navarro, 2004:

105). Segundo a mesma fonte, “cocório” significa hipócrita, fingido ou sonso,

em Pernambuco.

Note-se ainda, no segundo verso, a conjugação errada do verbo ver no

futuro do subjuntivo: “vai fazer fuxico quando ‘ver’ Minervina”. O “vir”, forma

correta segundo a norma culta da língua portuguesa,61 dá lugar ao popular

“ver” nesse tipo de situação, forma mais utilizada na linguagem coloquial.

Portanto, como a letra é de cunho eminentemente popular, em função mesmo

do personagem que a interpreta, o uso do “ver” pelo “vir” fortalece a unidade

sinfásica que caracteriza a linguagem utilizada no repertório de Antonio

Nóbrega.

Mateus Embaixador (Antonio Nóbrega) é uma figura típica do cavalo-

marinho, como é chamado o bumba-meu-boi em Pernambuco. Em ritmo de

maracatu,62 o personagem se apresenta como um brincante que chega não só

para brincar, mas também para “invocar” ou impressionar a platéia com sua

dança. Ao mesmo tempo que sua roupa de chita (representando a

simplicidade) é seu lírio (traduz a poesia, a paz), ela é também seu gibão (no

sentido de que ele está pronto para a guerra). Portanto, não o provoquem, não

mexam com ele, pois o próprio personagem diz ser ainda uma “onça-tigre”.

61 Aprofundar os conceitos de padrão culto e padrão coloquial da língua portuguesa não é objetivo desta tese. 62 Para mais informações sobre o maracatu, ver Andrade (1989), Câmara Cascudo (s.d.), Santos & Resende (2005) e o sítio http://www.recife.pe.gov.br/especiais/brincantes.

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Ao contrário do que a rabeca representava para o cantador que, na Loa

de abertura, pedira licença para entrar com ela na casa dos ouvintes ou

espectadores, de forma suave e poética, a rabeca para Mateus é um azougue,

um punhal, reforçando o caráter brincante/brigão do personagem. Note-se a

marca regional na escolha do termo azougue; em Desassombrado, já

aparecera “azougado”.

Presepeiro, Mateus identifica-se com figuras míticas do universo literário

popular nordestino, como Cancão de Fogo, João Grilo, Benedito, Tira-Teima e

Tiridá, algumas delas mencionadas no capítulo 1. No cavalo-marinho, Mateus

faz par com Sebastião ou Bastião, duas espécies de palhaços que se vestem

com roupas e chapéus extravagantes, pintam os rostos de preto e carregam

duas bexigas de ar que batem seguidamente no chão e às vezes nos

espectadores, demonstrando como os dois são azougados, inquietos. Em meio

ao grande número de figuras que participam de uma apresentação do cavalo-

marinho, são os dois que ficam em cena o tempo todo, buscando garantir a

animação do espetáculo e da platéia. Ao encerrar o canto de Mateus

Embaixador, Nóbrega solta o grito agudo de seu personagem, assim como

acontece nas apresentações de rua desse folguedo popular.

Com relação à letra, observe-se o termo “pedra-lispe”, cuja forma oficial

nos dicionários Aurélio e Houaiss é “pedra-lipes”, que quer dizer vitríolo azul,

sulfato de cobre (Ferreira, 1995; Houaiss & Villar, 2001). A transformação de

“lipes” em “lispe” por meio da metátese, fenômeno comum no linguajar popular

do Nordeste brasileiro, demonstra a força no jeito de falar do povo e já consta

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do Vocabulário ortográfico da língua portuguesa (Academia Brasileira de

Letras, 2004).

Após Mateus Embaixador, o disco e o espetáculo chegam ao seu clímax

com a música que dá título a ambos, homenagem a Chico Antônio e a Mário de

Andrade, a qual traz um diálogo entre o cantador e seu instrumento de fé. Para

frisar a importância simbólica do ganzá, o próprio instrumento servia como

programa das músicas a serem apresentadas no espetáculo, podendo ser

adquirido pelos espectadores. Tal fórmula se repetiria nas apresentações de

Madeira que cupim não rói.

Por se tratar da composição que sintetiza o tributo que Nóbrega presta a

seus dois mestres, a quem dedica tanto o espetáculo quanto o CD, aqui serão

tecidas considerações mais extensas sobre o universo lingüístico abordado.

No coco intitulado Na pancada do ganzá, primeira parceria de Antonio

Nóbrega e Wilson Freire, depara-se com uma valiosa amostra da linguagem

com que o cantor, compositor e dançarino trabalha em seus discos e

espetáculos musicais e teatrais, tendo sempre como base a cultura popular

brasileira. Sobre a escolha do nome, já foi explicado no capítulo 1. Acrescente-

se um trecho das “Explicações” iniciais do livro Os cocos (Andrade, 1984: 9),

em que Oneyda Alvarenga diz que

parece ter havido um momento, talvez ainda em meio às pesquisas, em que a intenção de Mário foi dedicar um livro à música folclórica do Rio Grande do Norte, exclusivamente. No verso de uma carta (...) datada do Recife em 5-1-1929 e guardada entre “Cantos de Trabalho”, achei quatro desenhos parecendo rabiscados por Mário, dos quais dois, francamente capas de livros, registram: “Mário de Andrade / Populário Musical Potiguar / 1929”; “Populário Musical Potiguar / Mário.” O segundo foi cancelado; e em ambos se vê um ganzá.

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Verifica-se aí como o instrumento tão difundido no Nordeste passou de

símbolo gráfico a símbolo verbal do conteúdo do livro. Na escolha de ambos,

ganzá desenhado e ganzá título, Oneyda supunha que estivesse implícita a

admiração de Mário pelos cantadores de cocos e em especial uma

homenagem, consciente ou não, ao coqueiro potiguar Chico Antônio, alvo da

sua mais calorosa admiração, a quem ainda em viagem lhe dedicou três

crônicas de O turista aprendiz (Andrade, 1983), datadas de 10, 11 e 12 de

janeiro de 1929, e um artigo publicado em A República (Natal, 27-1-1929); em

1944 faria dele o motivo de 12 rodapés do “Mundo Musical” da Folha da

Manhã, de São Paulo. “Tudo que o deliciava no nome escolhido era o que para

ele constituía também o encanto da arte de Chico Antônio, ‘loucura, tolice,

divinização’” (Andrade, 1984: 9). Ressalte-se que a vida e a obra desse

coquista são o tema de dois recentes lançamentos literários: O canto sedutor

de Chico Antônio, de Gilmara Benevides Costa (2005), e Usina brasileira:

centenário de Chico Antônio, de João Natal (2005).

No estudo da letra de Na pancada do ganzá,63 de imediato vejam-se

algumas acepções dadas por Ferreira (1995) e Houaiss & Villar (2001) para o

substantivo feminino “pancada”: embate, batida, baque, bordoada, pulsação,

choque que um corpo dá e recebe no instante em que se encontra com outro;

batimento. Com base em tantas acepções, pode-se dizer que a “pancada” da

letra não deixa de representar um somatório de todas elas, pensando-se de

uma forma poética. Essa palavra data do século XIII, segundo Houaiss & Villar

(2001).

63 Ver a letra completa no Anexo 1.1.

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Completando o título da música, a próxima palavra a ser estudada é

ganzá: espécie de chocalho de folha-de-flandres e formas diversas, tendo por

variação a forma canzá e por sinônimos amelê (Bahia), pau-de-semente,

xeque, xeque-xeque, xaque-xaque, xique-xique, reco-reco (Ferreira, 1995;

Houaiss & Villar, 2001). Alguns destes termos resultam de onomatopéias em

função do som produzido pelo instrumento (xaque-xaque, xeque-xeque e

xique-xique, por exemplo). Com relação a essa motivação fonética, ou

onomatopéia, é condição sine qua non que exista qualquer semelhança ou

harmonia entre o nome e o sentido, no entender de Ullmann (1970). Para ele,

os sons não são expressivos por si mesmos; só quando se ajustam ao

significado é que as suas potencialidades onomatopaicas se destacam.

Antônio Geraldo da Cunha (1986) esclarece a etimologia deste

substantivo masculino: vem do quimbundo nã’za ‘cabaça’, século XX. Houaiss

& Villar (2001) dão 1938 como o ano do registro histórico da palavra, tomando

como fonte o Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa, editado

naquele ano no Rio de Janeiro. Esses dois autores também registram ganza

como variante de ganzá e, na etimologia, dão “origem obscura” para aquele

termo.

Ainda sobre a palavra ganzá, escreveu Mário de Andrade (1989: 239):

Instrumento de percussão de origem africana muito difundido no Brasil em duas formas de construção bastante distintas, também conhecidas como anzá, canzá, gazá e pau de semente. O termo é sem dúvida de origem africana.

Já com referência à forma variante “ganzarino”, que aparece na letra de

Na pancada do ganzá, o Dicionário musical brasileiro (Andrade, 1989: 240)

esclarece:

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Mário de Andrade no diário do Turista Aprendiz (11 de janeiro de 1929) estuda a palavra. “O curioso é de ganzá terem os do povo feito ganzarino. Isso prova bem que nos verbos e palavras em ar ditas popularmente casá, amá, má, etc., subsiste virtualmente a noção do r final. Essa noção ou lhes fez confundir, imaginando que a palavra era ganzar e formarem por isso ganzarino; ou de fato inicialmente o ganzá se chamava ganzar.

Abrindo-se o leque para o sentido das letras compostas para o gênero

musical coco, no Turista aprendiz está registrado:

No geral as emboladas são mesmo assim. As mais das vezes não têm sentido (...). (...) Isto é: não é que não tenham sentido propriamente. Não se trata do verso “nonsense” feito pra dar habilidade rítmica. É um painel de sonho que passa, feito de frases estratificadas, curiosas como psicologia: “Bela mandou me chamar” ou “Porto de Minas Gerais” ou “Meu ganzá, meu ganzarino”, etc., etc., às quais se juntam verbalismos, frases tiradas do trabalho quotidiano, do amor; referências aos presentes e aos acontecimentos do dia; desejos, ânsias... Todos os coqueiros são assim (Andrade, 1983: 278).

Dessa forma justifica-se a utilização de vários termos nas letras dos

cocos que muitas vezes não fazem sentido para o observador, mas cuja razão

de ser está na sonoridade da palavra, que se torna mais importante do que o

seu próprio significado. Esse poético jogo de palavras é que atrai o interesse

dos ouvintes para o diálogo entre o coquista e o seu ganzarino. O próprio verso

“Meu ganzá, meu ganzarino”, lido há pouco no texto de Mário, encabeça o

refrão e aparece como fio condutor da letra de Na pancada do ganzá.

Dando prosseguimento ao estudo das palavras-chave que compõem o

microcosmo lingüístico de Na pancada do ganzá, fale-se agora sobre o coco.

“No Nordeste há o coco de ganzá, cantado pelo coqueiro, quase sempre meio

improvisação, meio memoriado, no ritmo de um ou dois ganzás, balançados

nas mãos”, ensina Câmara Cascudo (s.d.: 424). “Coqueiro”, aqui, ou coquista,

como aparece na letra da música, nada mais é que o cantador de coco.

Houaiss & Villar (2001) trazem dois verbetes referentes ao assunto que não

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constam de Ferreira (1985): tirador-de-coco e cantador-de-ganzá (ambos

regionalismos do Nordeste do Brasil), indicando a datação do século XX para

esta última expressão. Desse modo, constata-se como o léxico vai se

ampliando e pelo menos um dicionário já registra os termos que, a princípio,

ficariam circunscritos a determinados segmentos da população brasileira – no

caso, os praticantes e admiradores do coco.

Ressalte-se que a letra em questão inclui diálogos entre o coquista e o

ganzá; o instrumento é personificado. O coquista dirige-se ora ao ouvinte, ora

ao ganzá. Conversa até mesmo com uma estrela cadente que o apresenta a

“um instrumento real / que ela chamava ganzá”. A linguagem utilizada é

sempre coloquial, com grande aproveitamento de termos regionais,

fortalecendo a unidade sinfásica já abordada neste capítulo. No trecho

Sou um instrumento / Pequeno, feio, chinfrim, / que trago dentro de mim / basculho pra ‘saculejar’, / garrafa velha, / qualquer coisa reciclada / dou beleza ritmada / quando vem me balançar,

o instrumento diz “basculho pra ‘saculejar’”, em que sobressai a forma variante

“basculho”, menos comum que a tradicional “vasculho”. A idéia de vasculhar

(varrer com vasculho, espécie de vassoura), com a conseqüente sonoridade

associada ao ato, é bem aplicada aqui em comparação ao movimento realizado

pelo tocador de ganzá. E “saculejar”, devidamente entre aspas no encarte do

disco, destaca a pronúncia habitual dos falantes em detrimento do vernáculo

sacolejar, segundo o padrão culto da língua portuguesa. Assim, a ação de

sacudir ou agitar o ganzá é perfeitamente representada pela escolha do verbo

“saculejar” (por sacolejar), o qual parece lhe conferir ainda mais musicalidade.

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Mais algumas referências à cultura popular nordestina que aparecem na

conversa entre o coquista e o seu instrumento merecem destaque:

Fomos cantando / o país do futebol, / da Amazônia, praia e sol / do Babau, do boi-bumbá, / do carnaval, do São João, da cavalhada, / do repente, da congada, / da catira, do guará.

Babau (personagem do cavalo-marinho), boi-bumbá, carnaval, festa de

São João, cavalhada, repente, congada, catira... Mais uma vez a cultura

popular impregna a inspiração de Nóbrega e Wilson Freire na construção de

suas composições, caracterizando o seu universo regional lingüístico.

Observe-se agora um trecho da letra que confere importância histórica

ao contexto regional da conversa entre o coqueiro e o ganzá:

E disse mais: / “Meu cantor, meu menestrel, / eu conheço esses céus / antes de Cabral chegar; / pode ir me ver / onde eu fui desenhado: / pelo homem pré-datado / lá na Pedra do Ingá.

A Pedra do Ingá fica a aproximadamente oitenta quilômetros de João

Pessoa, capital paraibana, e contém grande número de inscrições rupestres

que remontam à pré-história. Essas inscrições são também chamadas de

Itaquatiaras do Ingá. Trata-se de um dos monumentos arqueológicos mais

representativos da Região Nordeste e conseqüentemente de todo o Brasil. Tais

inscrições teriam sido feitas há mais de 6 mil anos e representam répteis,

pássaros, frutas tropicais, figuras humanas, constelações e até a Via Láctea.

Assim, a referência à Pedra do Ingá realça a importância do ganzá não só para

o tirador-de-coco como também para a própria cultura popular nordestina,

fortalecendo poeticamente o vínculo do instrumento com seus tocadores e

ouvintes. Mais do que elemento-chave para se compreender o alcance da letra

da canção analisada, o ganzá simboliza aqui um ícone de toda uma cultura

regional.

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A onomatopéia, figura de estilo bem aproveitada em Desassombrado,

volta a aparecer na letra dessa composição, quando o cantador expressa o que

sentiu ao apertar o ganzá em sua mão: “Fazia assim / tum, tum, tum, tum, tum,

tum, tum, / como no peito o baticum / que tá pronto para amar.” E já que se

falou em baticum, destaque-se uma das definições desse termo, que sintetiza

bem a natureza da atividade do coquista: pulsação forte do coração e das

artérias. É essa pulsação que deve percorrer não só a leitura como também a

audição de Na pancada do ganzá, um microcosmo lingüístico que reúne

referências regionais e apaixonadas dos autores Antonio Nóbrega e Wilson

Freire à nossa cultura popular, aliadas à arte e aos ensinamentos que nos

deixaram Câmara Cascudo, Mário de Andrade e o admirável Chico Antônio,

cujo nome é louvado pelo próprio Nóbrega no final da gravação de Na pancada

do ganzá.

Despedida (domínio público com recriação musical de Antonio Nóbrega)

é a canção que encerra tanto o espetáculo quanto o CD. O cantador deseja

boa sorte aos ouvintes e espera um reencontro em ocasião oportuna: “Tenho

saudades dessa noite tão bonita / o meu coração palpita / que eu não posso

tolerar.” A seqüência de versos iniciais (“Até para o ano / Se eu vivo for”),

presente na primeira estrofe, é muito usada nas danças dramáticas

nordestinas, de acordo com Mário de Andrade (1982, I: 42), que registrou a

variante “Até para o ano / Si nós vivo fô...” nos reisados a que assistiu. Da

mesma forma como saudou o público na entrada, delicadamente o artista

popular anuncia sua saída, completando um ciclo de canções cujo roteiro se

assemelha ao dos próximos trabalhos de Nóbrega, como se verá em seguida.

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4.2.2 – Madeira que cupim não rói

Assim como Na pancada do ganzá começou com a Loa de abertura, o

segundo espetáculo-CD estudado inicia-se com Abrição de portas (domínio

público – adaptação de Antonio Nóbrega e Wilson Freire): “Salve esta casa, /

nobre morada. / Nova jornada / vamos começar.” Trata-se de uma transcrição

musical e uma adaptação literária de uma Cantiga de Santa Maria, grupo de

cantigas compiladas pelo rei Afonso X, o Sábio, de Castela, antiga Espanha.

O termo abrição, ausente de Ferreira (1995), já consta em Houaiss

(2001: 27): “ato ou efeito de abrir; abrimento”. É o momento em que o cantador

pede licença ao dono da casa para começar a cantoria. São apresentados

termos comuns ao universo musical nordestino, como instrumentos (rabecas,

bombos e violas) e um tipo de manifestação folclórica: o reisado (que é uma

"dança dramática popular com que se festeja a véspera e o Dia de Reis", de

acordo com Ferreira (1995: 1477); "tipo de auto natalino surgido no final do

s.XIX, difundindo-se no Norte e Nordeste, constituído de um figurante

acompanhado por um coro cantando peças em seqüência", segundo Houaiss &

Villar (2001: 2420).

Ressalte-se que na capa desse CD Nóbrega aparece tocando um

instrumento chamado urucungo, espécie de ancestral do berimbau.64 Esse

instrumento, nada comum, já havia sido aproveitado literariamente no Martim

Cererê, de Cassiano Ricardo: “E o urucungo que é um resmungo ... / E o

cabelo enrediço ... do feitiço”, conforme aparece num dos numerosos exemplos

64 Ver Glossário.

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utilizados por Nilce Sant’Anna Martins (2000: 67) em seu aprofundado estudo

sobre a estilística.

Na Abrição de portas, canta-se: “Nossa festa vai principiar / Com

rabecas, bombos e violas. / Hoje, aqui, viemos festejar, / render graças à vida

nessa hora”, tomando-se o “viemos” pela forma verbal “vimos” (conjugação

correta do verbo vir na primeira pessoa do plural do presente do indicativo),

prática bastante usual entre os falantes brasileiros. A coloquialidade aqui ocupa

o lugar da forma culta, em prol da comunicação imediata com os

ouvintes/espectadores, caracterizando a unidade sinfásica verificada no jeito de

o artista se expressar, como visto no capítulo 3.3 (Aspectos dialetológicos).

Segue-se Canudos (Antonio Nóbrega e Wilson Freire), música dedicada

a “Mestre Ariano” [Suassuna], conforme consta no encarte, na qual é

apresentado o árido universo do sertão norte baiano onde aconteceu a revolta

liderada por Antônio Conselheiro, líder messiânico do Arraial de Canudos. A

cantiga (excluindo-se o refrão) é tema de um guerreiro alagoano,65 espécie de

guerreiro do maracatu rural de Pernambuco, só que do estado vizinho, como o

próprio nome indica. Na busca de traduzir a expectativa de um mundo melhor

prometido por Antônio Conselheiro, as dificuldades do sertanejo e o drama da

batalha são narrados por esse viandante, sem deixar de apontar a esperança

em dias melhores. Retirando-se os quatro versos centrais que compõem o

refrão, as duas estrofes apresentam seis versos com dez sílabas, rimando

ABCBDB, esquema rítmico da sextilha ou do repente.

Eu, viandante, de um chão poento. Dias queimosos, vida sem idílio. Preces voltadas para sóis ardentes,

65 Ver Glossário.

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luares claros a buscar o Auxílio. Para os meus olhos, confusão pasmosa, batalha surda, secular martírio. Ai, desatino! Ai, o meu penar! Ai, velho medo! Sombra e malpassar! Vi mamelucos, pardos, vi cafuzos. Rostos marcados, um Santo Sudário. Em Bom Conselho, Bendegó, Pontal, vi Conselheiro rezar solitário. E anunciando o inverno benfazejo, em Monte Santo subiu pro calvário.

O próprio título da canção, Canudos, topônimo do Estado da Bahia, pode

ter seu alcance ampliado para designar a região conhecida por “sertão de

Canudos”. Encontra-se em seguida “viandante”, o que caminha, anda, segue

por caminhos diversos. Através do viandante, surgem elementos que vão

povoando o universo cantado pelo artista, por meio de unidades léxicas que

caracterizam:

– Tempo/espaço: (chão) poento; (dias) “queimosos”, os “teimosos dias

quentes”; (sóis) ardentes; (luares) claros.

– Intenção: (buscar o) Auxílio.

– Condições objetivas e subjetivas: confusão, pasmosa (uma confusão

que deixa todos pasmos ao redor), batalha, surda, martírio, secular,

desatino, penar, medo, sombra, malpassar.

– Habitantes da região: mameluco, pardo, cafuzo.

– Sofrimento: (rosto) marcado, Santo Sudário, calvário.

– Topônimos da região: Bom Conselho, Bendegó, Pontal, Monte Santo.

– Antropônimo: Conselheiro.

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– Redenção: anúncio, inverno, benfazejo.

Com sua sofrida mas ao mesmo tempo esperançosa caminhada, esse

viandante de Canudos povoa o universo dos personagens criados pelo

imaginário de Nóbrega – aqui juntamente com Wilson Freire, para quem essa

letra é uma das mais significativas na parceria da dupla, conforme visto no

capítulo 2.2.1 – ao longo da trajetória de Madeira que cupim não rói.

As três canções a seguir (Chegança, Quinto império e Olodumaré)

pertencem ao grupo que Nóbrega chama de “Cantigas do descobrimento do

Brasil”. Toadas de reisados do Cariri e cantos dos emboladores do Recife são

as fontes de inspiração.

Chegança (Antonio Nóbrega e Wilson Freire) é uma composição inspirada

nos caboclinhos,66 criada na época em que se comemoravam os quinhentos

anos do descobrimento do Brasil (2000), e retrata essa “descoberta” do ponto

de vista de um índio. Os autores mencionam os nomes de várias tribos e

entendem que, para o índio, o fato de que "o Brasil vai começar" significa a

perda da própria terra para os portugueses. Essa música também consta do

repertório de Pernambuco falando para o mundo. Ela é dedicada a Zé Alfaiate,

do Caboclinho Sete Flechas, tradicional manifestação cultural pernambucana, e

em memória de Galdino Jesus dos Santos, índio que morreu queimado vivo em

função de um ato selvagem de cinco adolescentes irresponsáveis de classe

média em Brasília, em 1997, os quais atearam fogo no corpo dele, enquanto

dormia num ponto de ônibus. A letra cita diversas tribos indígenas brasileiras e

66 Ver Glossário.

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fala sobre a “surpresa” trazida pelos “brancos de barba escura” que aqui

chegaram em 1500.

No plano léxico e estilístico da letra dessa canção,67 deve-se levar em

conta:

a) Povos indígenas citados: pataxó, xavante, cariri, ianomâmi, tupi,

guarani, carajá, pancararu, carijó, tupinajé, potiguar, caeté, fulniô, tupinambá.

b) Espaço: mar, continente, terra (diferente), mundo (novo), horizonte.

c) Intento ou modo de vida: rede (balançante), espreguiçar-se, porto

(seguro), céu (azul), paz, ar (puro), pernas (pro ar), paraíso, sonhar.

d) Novos elementos: esquadra (portuguesa), nau, branco (de barba

escura), barba (escura), escuro, armadura, apontar, pegar.

e) Novo estado ou modo de vida: assustado, pulo (da rede), forma, sede,

acabar (no sentido de morrer), levantar, borduna.

f) Conclusão: Brasil, começar.

Pode-se interpretar que o Brasil estava começando não para os índios,

mas para os portugueses, ansiosos por novas conquistas no período das

grandes navegações, como conta a letra da próxima música, Quinto império

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire). Agora são os portugueses rumo aos

descobrimentos que inspiram os compositores. A travessia do Atlântico, o

destino de navegar, a missão de descobrir – o imaginário sebastianista

português deixando sempre para trás um mundo velho e seguindo em busca

de um novo mundo: “Iaiá, me dá teu remo, / Teu remo pra eu remar. / Meu

67 Ver letra completa no Anexo 1.2.

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remo caiu, quebrou-se, iaiá, / Lá no alto-mar.” O tema é inspirado em canções

populares como Me dá teu remo, registrada por Mário de Andrade (1984).

Termos como “mouros”, “lusitanos”, “dunas”, “pedras”, “oceanos”,

“Netuno” e “leme”, palavras-plenas (Palmer, 1979) que aparecem na letra,

preparam o ambiente para a pergunta-chave da canção: “O que será que além

daquelas águas agitadas, turvas, calmas, eu irei lá encontrar?” É o mundo

velho descobrindo um mundo novo.

Olodumaré (Antonio Nóbrega e Wilson Freire) encerra a trilogia sobre o

descobrimento. Desta vez é o negro quem dá sua versão, falando sobre a dor

de deixar a África e chegar numa terra desconhecida – onde, mesmo assim,

nova raça fez brotar. Essa música completa, assim, o trinômio racial

característico formador do povo brasileiro. Olodumaré, ou Olodumarê, é o

“título atribuído a Ifá, orixá da adivinhação e do destino” (Houaiss & Villar, 2001:

2061), o “deus supremo, entre os iorubas, que mora no Orum, o Além, o Infinito

(Ferreira, 1985), “Deus, Divino Espírito Santo; etimo. [em iorubá]: Oló (Senhor)

– Odú [sic] (Destino) – Maré (Supremo): Senhor do Destino Supremo”

(Fonseca Júnior, 1995: 487-488).68

O negro traz, desde então, a religião africana como forte elemento

identificador, marcando assim a singularidade de sua presença na terra recém-

descoberta. O Nação Pernambuco, a quem a canção é dedicada como consta

no encarte do disco, é um grupo de maracatu nação, ou maracatu de baque

68 Informações mais aprofundadas sobre Olodumaré podem ser obtidas na célebre obra Orixás, de Pierre Fatumbi Verger (1997, especialmente p. 21-22).

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virado,69 do Recife. A música também consta do repertório de Pernambuco

falando para o mundo.

Nascimento do Passo (Antonio Nóbrega e Wilson Freire), a próxima

canção, homenageia o famoso dançarino e professor de frevo no Recife (PE).

O amazonense Francisco do Nascimento Filho (Nascimento do Passo) é um mestre passista famoso, atualmente professor e vice-diretor de uma escola de frevos para formar passistas, mantida pela prefeitura da cidade do Recife no bairro da Encruzilhada (Navarro, 2004: 89, grifos no original; informações contidas no verbete “calunguejar”).

Os compositores aproveitam para citar nomes de passos desse gênero

musical pernambucano, muitos deles sistematizados por Nascimento.70 Foi ele

quem introduziu o uso da sombrinha (que deve ter oitenta centímetros de

diâmetro) no frevo, em substituição aos pesados guarda-chuvas que eram

utilizados. Pela importância que tem na divulgação e na sistematização do

frevo como dança, o nome Nascimento do Passo associa-se à própria idéia de

que com ele os passos do frevo nasceram de fato e também por ele foram

batizados. No entender de Antonio Nóbrega,71 foi Nascimento quem codificou

os passos do frevo.

Na letra aparece o regionalismo “despranaviado”, vocábulo ausente em

Aurélio (1995) e Houaiss (2001), mas que consta como “agitado” em

Bernardino (1994).

Nesse passou eu vou, despranaviado. Eu sou o abre-alas, vou no meu gingado. (...)

69 Ver Glossário. 70 Ver Dicionário do frevo (Carvalho, Mota & Paes Barreto, 2000), que traz numerosas definições de passos e diversas informações sobre esse gênero musical. 71 Ver entrevista no Anexo 2.

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Entrei no passo do morcego e do saci, tramelei no do siri, cruzei tesoura no ar. Na dobradiça, eu peguei minha sombrinha, passeando na pracinha, chutando de calcanhar. No frevedouro, fiz um grande rebuliço, preto, branco e mestiço, eu chamei pro bafafá. Azuretada, a corriola destrambelha, sacoleja, se destelha, no maior calunguejar.

Vejam-se os termos regionais que aparecem: “despranaviado”,

“frevedouro”, “azuretada”, “calunguejar” e os nomes de diversos passos de

frevo, em geral sugeridos por algum movimento que lembra o substantivo em

questão: morcego, siri, tesoura, dobradiça. “Frevedouro” junta à palavra frevo o

sufixo -douro com a função de indicar o local em que se passa a noção

expressa pelo primeiro termo, ou seja, o local onde se dança o frevo; também

pode ser analisado como uma metátese de fervedouro, ou seja, efervescência,

traduzindo a idéia de movimento similar ao da ebulição de um líquido.

“Azuretar” traduz-se por provocar ira, deixar bravo, enraivecer (Bernardino,

1994). “Calunguejar” é “balançar que nem um calunga”, ou seja, que nem um

ajudante que anda em cima de caminhão (Navarro, 2004). “Calungas” também

se chamam as bonecas do maracatu nação, que têm origem religiosa e são

carregadas no desfile por mulheres de destaque na agremiação. Ressalte-se

ainda que, no final da letra, “destrambelha” ganha o e aberto para rimar com

“destelha”.

No roteiro de Madeira que cupim não rói vêm então Andarilho (Dalton

Vogeler e Orlando Silveira) e O vaqueiro e o pescador, poema de Dimas

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Batista Patriota – um dos “três irmãos cantadores do Pajeú” (PE), ao lado de

Otacílio e Lourival, segundo Carlos Newton Júnior (1999)72 – sobre o qual

Nóbrega colocou melodia. Trata-se de um galope com versos de 11 sílabas,

em três estrofes. Tanto o vaqueiro quanto o pescador, figuras simbólicas do

universo do trabalho nordestino, são aqui vistos de forma lírica, sem a angústia

de Canudos.

O tema de domínio público Quando as glórias que gozei... dá

continuidade ao roteiro para em seguida vir a canção-tema do espetáculo,

dedicada no encarte à lembrança de Chico Science.73 Madeira que cupim não

rói é o nome de um dos mais famosos frevos de Capiba, feito em homenagem

à agremiação carnavalesca pernambucana Madeira do Rosarinho. Representa

os anseios de todo bloco de carnaval: ser o campeão do desfile a todo custo,

por considerar de antemão o seu desfile o mais belo. E mesmo que

oficialmente não seja o campeão, moralmente assim se considera – afinal, é

mesmo “madeira de lei que cupim não rói”, expressão que se interpreta aqui

como uma frase idiomática (Ullmann, 1970).

Apesar de não ser uma composição de Nóbrega, Madeira que cupim

não rói merece essas considerações porque esse lema é igualmente

apropriado por Ariano Suassuna em sua trajetória de “paladino” da cultura

popular nordestina,74 num sentido que a preserve de qualquer influência

estrangeira que a descaracterize, e também – por que não fazer a associação?

72 Esses três irmãos influenciaram fortemente Wilson Freire, conforme visto no capítulo 2.2.1. 73 Para mais informações sobre a obra de Chico Science e a polêmica estabelecida com Ariano Suassuna, ver a dissertação de mestrado “O encontro do Velho do Pastoril com Mateus na Manguetown ou as tradições populares revisitadas por Ariano Suassuna e Chico Science”, de Anna Paula de O. Mattos Silva (2004). 74 Ver capítulo 2.1.

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– pelo próprio criador de Tonheta, pois não foi à toa que escolheu o famoso

frevo de Capiba como elemento-síntese de seu disco e espetáculo, cujo

subtítulo é Na pancada do ganzá II:

Queiram ou não queiram os juízes O nosso bloco é de fato o campeão. E se aqui estamos cantando esta canção Viemos defender a nossa tradição. E dizer bem alto que a injustiça dói, Nós somos madeira de lei que cupim não rói.75

Pela segunda vez no repertório do artista aparece a forma verbal

“viemos” por “vimos”, como na Abrição de portas, caracterizando o uso popular

consagrado, para o verbo vir, da primeira pessoa do plural do pretérito perfeito

do indicativo fazendo as vezes do presente.

Monga (domínio público – adaptação de Antonio Nóbrega e Wilson

Freire) representa um momento do espetáculo em que é valorizada a arte

circense – aqui, com a simplicidade dos circos do interior do Brasil. Monga é

uma mulher vestida de macaca, que usa de todos os artifícios ao seu alcance

para agradar a platéia. Rosane Almeida, mulher de Nóbrega, é quem a

interpreta em cena, fazendo malabarismos e divertindo o público. Ressalte-se

que a cantiga que anima a chegada de Monga é a mesma cantada para

apresentar o Velho Faceta, artista popular que inspirou Nóbrega inclusive na

criação do nome de seu personagem Tonheta.

Em seguida, o Coco da lagartixa (domínio público – adaptação de

Antonio Nóbrega e Wilson Freire) apresenta um típico gênero musical

nordestino que favorece o improviso. Aqui aparece traduzido em 11 estrofes,

75 Ver letra completa no Anexo 1.2.

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com o coro repetindo a mesma frase (“redondo, sinhá!”) constantemente, numa

espécie de resposta ao cantador. A inspiração vem de temas populares como

Lagartixa – Redondo, sinhá, conforme Mário de Andrade (1984: 156-159)

registrou em sua viagem à Paraíba em 1928-1929.

Na última estrofe (“Quem ver uma lagartixa / ‘redondo, sinhá!’ / no

sertão, mata ou no mar”), note-se outra vez o uso da forma verbal “ver” pelo

futuro do subjuntivo, “vir”, que seria o correto. A forma de uso corrente, ainda

que errada gramaticalmente, é sempre a preferida, por uma questão de

fidelidade de Nóbrega e Wilson Freire ao tema popular. Assim também

ocorrera com Minervina, de Na pancada do ganzá.

Segue-se o Maracatu Misterioso, de Antonio José Madureira

(companheiro dos tempos do Quinteto Armorial) e Marcelo Varella (parceiro em

Minervina), homenageando figuras importantes de manifestações culturais

pernambucanas, como Mateus, Catirina, Capitão Pereira e o boi (no caso, o

Boi Misterioso de Afogados). O intérprete canta “Sou Mateus, sou Catirina, / na

bexiga eu sou o tal” porque a bexiga é o objeto portado por Mateus ao longo

das apresentações do cavalo-marinho. Quem interpreta Mateus fica batendo

uma bexiga no chão durante a apresentação de todas as personagens do

folguedo. A se observar ainda a forma verbal amostrar (“Ê boi, ê boi, ê Boi

Maravilhoso / Ê boi, ê boi, venha logo se amostrar”), variante muito utilizada

pelas camadas populares para o infinitivo do verbo mostrar.

Vem então o tema instrumental Rasga do Nordeste, que apresenta um

caráter musical hindu na primeira parte, lembrando um pouco os ragas

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indianos,76 e segue-se Lição de namoro (Antonio Nóbrega e Wilson Freire), que

os compositores dedicam a suas mulheres, respectivamente Rosane e Lúcia.

Em sua preocupação de valorizar os ritmos nordestinos, Nóbrega e Freire

apresentam uma ciranda bastante lírica, convidando a platéia a fazer uma roda

para dançá-la, de mãos dadas: “Menina, vou te ensinar / como é que se

namora: / põe a alma no sorriso, / e o sorriso põe pra fora.”

Figuras emblemáticas do universo musical nordestino são

homenageadas na Sambada dos Mestres, também de Nóbrega com Wilson.

“Sambada” é a apresentação do maracatu rural, gênero em que o mestre (que

se apresenta portando uma espécie de cetro) canta determinado número de

versos e é seguido pelo coro. Referências primordiais para a formação cultural

e pessoal de Nóbrega se fazem presentes na letra de Wilson: Dona Santa,

Pinto de Monteiro, Cego Aderaldo, Capitão Antônio Pereira, Leandro de

Barros,77 Pastinha, Zé Alfaiate. Os autores agradecem a seus antecessores e

inspiradores. Nóbrega afirma aqui sua condição de brincante, ou seja, um

artista popular nordestino. A música é dedicada a Mestre Salustiano,

rabequeiro e ícone do maracatu rural pernambucano, da região de Nazaré da

Mata.

Na louvação aos mestres, a letra conta que foi com Faceta, do pastoril,

que Nóbrega aprendeu a ser “mungangueiro”, regionalismo o qual designa

aquele que faz “muganga” ou “munganga”, isto é, careta, trejeito, palhaçada

76 Ver entrevista no Anexo 2. 77 A obra desse cordelista pode ser apreciada no tomo V da Antologia Literatura Popular em Verso, dedicado a ele (Barros, 1980), com estudo introdutório do professor José Maria Barbosa Gomes, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba, que confronta duas edições do folheto A força do amor. A vida e a obra desse folheteiro também são contadas em versos por Antônio Klévisson Viana (2005) em Leandro Gomes de Barros – 140 anos.

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(Navarro, 2004). Na arte de embolar com um ganzá, o mestre foi Chico

Antônio; com Leandro de Barros, doutorou-se folheteiro; com o Capitão

Pereira, do Boi Misterioso de Afogados, diplomou-se menestrel. Diante de

tantas referências, a conclusão surge como uma homenagem a todos os

Mestres no último verso: assim como eles, a sina de Nóbrega também é ser

brincante.

Depois de sua viagem musical por diversos gêneros e situações,

prestadas as devidas reverências na Sambada dos Mestres, é a hora de

anunciar a despedida, fechando um ciclo de histórias e aventuras contadas em

Madeira que cupim não rói. Com Vou-me embora (Antonio Nóbrega e Wilson

Freire), o brincante dá adeus – pelo menos até a próxima “abrição de portas”.

O verso “vou-me embora, vou-me embora” é um “verso-feito luso brasileiro”

apresentado em dezenas de variantes, segundo Mário de Andrade (1982, I:

23). O plano de referência léxico abrange os seguintes termos ou idéias: ir

embora (quatro vezes); adeus (nove vezes) com os vocativos mana, palco,

platéia, calor, vento, sombra, claridade, cidade; rabeca; ganzá; pandeiro; viola;

bandolim; companheiros; ir (para outro terreiro); partir; (levar) lembrança;

saudade. É mais um ciclo que se fecha para o brincante, da Abrição de portas

até a partida, levando lembrança e muita saudade. Como consta no encarte do

CD, Nóbrega espera que os ouvintes naveguem no rio das alegrias que ele

teve ao criá-lo, “madeiramente” – neologismo criado pelo próprio artista,

inspirado não só no título do frevo-de-bloco de Capiba como também em outra

de suas grandes influências: Guimarães Rosa, cujas imagens servem de mote

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para o Romance de Riobaldo e Diadorim, que será visto na análise de Lunário

perpétuo.

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4.2.3 – Pernambuco falando para o mundo

A primeira música é Vinde, vinde, moços e velhos, vista em Na pancada

do ganzá. Nesse disco, são composições de Nóbrega apenas Chegança,

Olodumaré, Minervina (as três já abordadas) e Pernambuco falando para o

mundo (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). As demais são obras de outros

compositores. Portanto, analisar-se-á aqui a última canção citada.

Pernambuco falando para o mundo Tenho um gogó de ouro, meu cantar é meu tesouro (BIS)

Pitomba, preaca, pife e pandeiro Esse é o encontro, é essa emoção Rainhas e reis, reisado e rojão Negros nagôs, navios negreiros Ascenso, arrecifes, angolas arteiros Maraca, mascates e maracatu Baião, berimbau, batuque, bantu Usina, umbigada, umburana, umbuzal Capiba, calunga, calor, carnaval Oxóssi, Obá, Oxum, Olodu

(Refrão)

Sou braço de mar, um rio caudaloso No sertão sou seco, na mata estourado Eu, nos arrecifes, sou um mar furado A cova dos rios, salgado e formoso E nesse meu céu azul luminoso ao sul de estrelas Cruzeiro avistei Por ele à noite no mar me guiei Eu sou Paranã, sou Paranabuco Falando pro mundo eu sou Pernambuco a ler meu Brasil aqui comecei.78

(Refrão)

Se alguém me escutar tinindo a garganta verá que meu canto desvenda segredos. Acaba mistérios, destrói todos medos Herdeiro da voz sou de Dona Santa Meu canto é sangue, é pedra que encanta

78 No encarte do CD Pernambuco falando para o mundo, consta a informação de que esta estrofe é inspirada em poema do livro Romançal de Pernambuco [sic], na verdade o Romançal Paranambuco, de Marcos Cordeiro (1995).

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desterra o tesouro no chão mais profundo Eu sou um brincante, eu sou vira-mundo Se estou azougado, ninguém me segura Acima de mim, só Deus nas alturas Eu sou Pernambuco falando pro mundo.

(Refrão)

Vêem-se na letra anterior diversos elementos associados à cultura

popular pernambucana: pitomba (fruta), preaca, pife, pandeiro, maraca,

berimbau (instrumentos musicais), rainhas, reis, Dona Santa (figuras do

maracatu e uma de suas principais incentivadoras), baião, batuque (gêneros

musicais), Oxóssi, Obá, Oxum, Olodu (entidades da Umbanda e do

Candomblé), Ascenso [Ferreira] e Capiba – o primeiro, poeta, e o segundo,

compositor, ícones da criatividade artística de Pernambuco que conquistaram

reconhecimento nacional. Note-se o uso do termo “bantu” em vez da forma

dicionarizada “banto”, de forma a rimar com Olodu, redução de Olodumaré ou

Olodumarê.

O título da música faz referência a um antigo bordão da Rádio Jornal do

Commercio do Recife, a qual, inaugurada em 3 de julho de 1948, durante muito

tempo foi a emissora brasileira de radiodifusão de maior alcance.

Com modernos transmissores e operando em cinco faixas de onda, as suas transmissões eram captadas na Europa, na América do Norte e em grande parte da América do Sul, fazendo jus ao seu slogan: “Pernambuco falando para o Mundo” (trecho inicial do texto do pesquisador, historiador e carnavalesco recifense Leonardo Dantas Silva escrito especialmente para o encarte do CD Pernambuco falando para o mundo [BR 0003], de Antonio Nóbrega).

Além da citação a elementos que caracterizam fortemente a cultura

pernambucana, a homenagem dos autores a seu estado natal é reforçada pela

utilização, na primeira estrofe, do acróstico, “composição poética na qual o

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conjunto das letras iniciais (e por vezes as mediais ou finais) dos versos

compõe verticalmente uma palavra ou frase” (Ferreira, 1995: 40). O ritmo,

característico do “léxico musical” do artista, é o coco, tendo como referências

inspiradoras primordiais a arte do coquista ou coqueiro Chico Antônio e um

vasto trabalho desenvolvido por Mário de Andrade nas obras O turista aprendiz

e Os cocos (respectivamente, Andrade, 1983, 1984). Em seu Dicionário

musical brasileiro (Andrade, 1989), Mário desenvolve amplas considerações a

respeito do coco.

A riqueza lingüística com que trabalha Nóbrega (no caso de Pernambuco

falando para mundo ao lado de seu parceiro Wilson Freire) é associada à sua

expressividade sonora, a qual tem como influência decisiva o Movimento

Armorial, fundamental em sua formação artística. Como visto no capítulo 2.1,

esse movimento foi estudado recentemente por Newton Júnior (1999), Santos

(1999), Moraes (2000) e Nogueira (2002). Santos ressalta a importância da

“poética da voz” no trabalho dos músicos armoriais, respeitando rigorosamente

estruturas preconizadas pelos cantadores populares nordestinos.

Na letra que dá título ao CD e ao espetáculo, observem-se termos

regionais como “preaca” (no Nordeste, é o conjunto de arco-e-flecha usado

pelos caboclinhos, grupos de pessoas que se vestem de índios e desfilam no

carnaval, tendo inspiração religiosa africana), “pife” (instrumento musical: pífaro

ou pífano) e “azougado” (inquieto, irritadiço), caracterizando as variantes

diatópicas utilizadas pelos compositores.

A se registrar ainda a série de aliterações em cada verso da primeira

estrofe, aproveitando as iniciais da palavra Pernambuco: pitomba, preaca, pife,

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pandeiro; esse, encontro, essa, emoção; rainhas, reis, reisado, rojão; negros

nagôs, navios negreiros; Ascenso, arrecifes, angolas arteiros; maraca,

mascates, maracatu; baião, berimbau, batuque, bantu; usina, umbigada,

umburana, umbuzal; Capiba, calunga, calor, carnaval; Oxóssi, Obá, Oxum,

Olodu. Nesse conjunto de palavras transparentes (Ullmann, 1970) reaparece a

figura de estilo já verificada, por exemplo, em Truléu da Marieta e no Romance

de Clara menina com Dom Carlos de Alencar, do repertório de Na pancada do

ganzá. Com o canto e o ritmo que embala a música, o efeito poético e sonoro

torna-se ainda mais proeminente, demonstrando novamente como a estilística

fônica é uma característica primordial no trabalho de Nóbrega. É que

“a matéria fônica desempenha uma função expressiva que se deve a

particularidades da articulação dos fonemas, às suas qualidades de timbre,

altura, duração, intensidade”, como diz Martins (2000: 26).

Assim como na Sambada dos Mestres de Madeira que cupim não rói, na

canção-síntese de Pernambuco falando para o mundo o brincante assevera a

sua condição de artista popular, de vira-mundo. Se ele estiver azougado,

regionalismo para irritado, ninguém o segura; afinal, acima dele só Deus nas

alturas, e sua voz assume o papel de representante do próprio estado de

Pernambuco falando para o mundo.

Despedida (Domínio público – adaptação de Wilson Freire) encerra o

roteiro do espetáculo e do CD, reforçando a estrutura apresentada em Na

pancada do ganzá e Madeira que cupim não rói.

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4.2.4 – O marco do meio-dia

Câmara Cascudo ensina:

[Marco] É uma construção imaginária, que os cantadores do Nordeste dizem ter mandado erguer, cheia de armas invencíveis, espécie de fortaleza inexpugnável, com segredos defensivos e forças mágicas, a que ninguém poderá resistir. Os velhos cantadores de outrora, no embate do desafio, descreviam os assombros do marco, cabendo ao adversário, no ímpeto da improvisação, desarmar o arsenal, num combate de viva imaginação (s.d.: 556).

O cantador e poeta popular José Alves Sobrinho (2003: 109) acrescenta:

são “fortalezas imaginárias com que os poetas marcavam os limites do seu

domínio na ribeira de seu nascimento ou onde residiam”. É o universo

particular do poeta, com suas idiossincrasias e com a intenção de ser

inconquistável, o que estimula o poeta “adversário” a tentar derrubá-lo, de

acordo com Wilson Freire.79

Tal qual uma sessão de cantoria, Nóbrega aqui canta histórias, fatos,

mitos e peculiaridades que fazem parte da historiografia do Brasil e do seu

fabulário coletivo. Como o próprio artista acentua no encarte do CD,

esse Marco é a semente de um povo em formação, ele é um canto de graças, um louvor à Criação. No centro aqui deste palco, o Marco fica plantado; o sonho e a alegria humana foram aqui celebrados.

Trata-se de um Marco com letra maiúscula, traduzindo a sua importância

como peça de resistência da cultura brasileira para quem o ostenta. Essa é a

idéia central que move o espetáculo e o disco, em que são homenageadas

figuras emblemáticas da cultura popular brasileira: o jogador de futebol

Garrincha (em Flecha fulniô), o mestre entalhador mineiro Antônio Francisco

Lisboa, o Aleijadinho (Romance do Aleijadinho), e o artista plástico Arthur Bispo

79 Ver 2.2.1.

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do Rosário (Galope beira-mar para Bispo do Rosário), que foi interno em

manicômios e teve o despertar de sua arte incentivado pela psiquiatra Nise da

Silveira. Esses três homenageados são ícones de uma homenagem ainda

maior: aos quinhentos anos de “descobrimento” do Brasil.

O roteiro começa com a Apresentação dos músicos (Antonio Nóbrega e

Wilson Freire), quando o artista saúda um a um os companheiros

instrumentistas com quem divide o palco e as gravações. Ressalte-se que pela

primeira vez Nóbrega trabalha com uma letra recitada, sem melodia, porém

respeitando a métrica (em seis estrofes) de seis versos com sete sílabas, com

o seguinte esquema de rimas: ABCBDB. São apresentados os percussionistas,

os músicos das cordas, dos sopros, do fole (acordeom), constituindo uma

espécie de família musical. No final, o cantador avisa: “Dando início à jornada /

de toques, loas e canções, / celebrando a alegria / com o fervor das orações, /

licença peço pra entrar / em vossos bons corações”. Estabelece-se novamente

a estrutura dos espetáculos populares em que Nóbrega se inspira, só que aqui

ele festeja os músicos em vez do público, mantendo no entanto a tradição de

pedir licença para se apresentar e para entrar “em vossos bons corações”.

Imediatamente após Nóbrega encerrar a recitação da letra de

Apresentação dos músicos segue-se a Dança do mergulhão (domínio público),

que é um toque instrumental de banda cabaçal. Depois é a vez de Mestiçagem

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire), exaltando a mistura de raças na

homenagem explícita aos quinhentos anos de descobrimento do Brasil.

Aparecem os elementos negro, branco e índio que procriaram entre si,

resultando mulatos, mamelucos, cafuzos, crioulos, mazombos (filhos de pais

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estrangeiros, sobretudo portugueses, nascidos no Brasil). Também são citados

o japonês, o sírio-libanês e a “alemoa” como componentes dessa mistura

racial. Assim como na Apresentação dos músicos, são seis estrofes, cada uma

com seis versos de sete sílabas no esquema de rimas ABCBDB. O início da

última estrofe com o verso “Me casei com uma mestiça”, em vez do rigoroso

“casei-me” da língua padrão, caracteriza uma vez mais a unidade sinfásica que

permeia o estilo da linguagem utilizada por Nóbrega.

Viagem maravilhosa (Antonio Nóbrega, Bráulio Tavares e Wilson Freire)

é a mais longa letra apresentada nos cinco CDs: 176 versos, como anunciado

no capítulo 2.2. A comilança narrada tem nítida inspiração rabelaisiana:80

Fiz um almoço lá no Buraco da Jia, começou ao meio-dia, terminou pela manhã: cuscuz com fava, bode assado, dobradinha, macaxeira com farinha, codorniz e ribaçã.

Bolo de milho, marisco no vinagrete, feijoada com croquete, quitute e baião-de-dois. Comi de tudo sem pressa, sem me cansar, só para me preparar para o que vinha depois...

Arroz de polvo, risoto de camarão, maionese e macarrão, salpicão, frutos do mar, feijão-macassa, galinha de cabidela e um bife de panela bem leve, pra descansar.

80 Bakhtin (1999) fala especialmente num capítulo sobre o banquete (a comilança) em Rabelais e na comédia popular.

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Um ensopado de carne com batatinha, feijão-verde e farofinha, sanduíche de peru. Pra terminar um conhaque, um cafezinho, mais um cálice de vinho e três doses de Pitu.

O exagero é tanto que parte desses versos é recitada, como se o cantor

estivesse de fato empanturrado após a ingestão de tanta comida, ainda mais

com as exóticas combinações de alimentos indicadas, com base na cozinha

nordestina. E tudo isso no Buraco da Jia, um restaurante muito conhecido na

cidade de Goiana, em Pernambuco, pela fartura com que serve a comida

regional.

Esta letra apresenta uma particularidade de Bráulio Tavares que aqui se

ajusta ao estilo lingüístico-poético de Antonio Nóbrega. No verso “Aí, um dia, /

eu sentado na cadeira, um estalo-de-Vieira clareou a minha mente”, a

expressão estalo-de-Vieira com hífen (referindo-se ao padre e escritor Antônio

Vieira) representa o que Bráulio chama de “hífen evidenciador de sintagma”. “É

para dizer que estalo-de-Vieira é uma palavra só, como guarda-chuva”, ressalta

o letrista.81

O esquema poético de Viagem maravilhosa inova em relação ao

repertório mostrado até então. Suas 22 estrofes têm oito versos cada, no

seguinte esquema métrico: quatro sílabas, sete, sete, sete; quatro sílabas,

sete, sete, sete. Eis a estrutura de rimas: ABBCDEEC. O refrão “Cavalgar,

cavalgar, / eu cavalguei. / No país dos brasileiros / conheci o mundo inteiro / e

81 Ver capítulo 2.2.2.

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por ele eu passeei” assume uma forma livre nos dois primeiros versos, com os

três últimos apresentando a tradicional medida de sete sílabas cada.

Destaque-se a associação poética de idéias entre o trote da burrinha do

personagem-cantador com a melodia do tradicional chorinho Brasileirinho, de

Waldir Azevedo: “E mesmo antes / do sol, do cantar do galo, / do sino bater

badalo, / eu saí pelo caminho... / Os cascos dela / velozes matraqueavam, /

pareciam que estavam / tocando Brasileirinho”. Na homenagem aos quinhentos

anos do Brasil, o subtexto de Viagem maravilhosa louva um gênero musical

essencialmente brasileiro por meio do maior sucesso de um de seus mais

importantes instrumentistas.

Em seu encerramento, essa canção prepara a entrada da próxima

música, Zumbi (Antonio Nóbrega e Wilson Freire), que fala sobre um mito da

negritude brasileira e de sua resistência, “primeiro sonho / brasileiro de

igualdade, / fraterno, de liberdade”. Segundo o próprio Nóbrega,82 a estrutura

utilizada aqui é a da carretilha, uma estrofe em que o primeiro verso tem quatro

sílabas e os três restantes tem sete, rimando o segundo com o terceiro e o

último sempre em -ar, que fará par com a palavra que encerra a próxima

seqüência de quatro versos: “Zumbi, um negro, / respirando rebeldia, / foge pra

mata um dia / à procura do Lugar. / Era um quilombo, / a terra dos ex-escravos,

/ todos livres, sem os travos, / sem ter dono pra ferrar”. Note-se a palavra

“Lugar” em letra maiúscula, reforçando a idéia de paraíso do local procurado

por Zumbi e pelos quilombolas. Lembre-se de que o uso das maiúsculas

acentua o peso de determinadas palavras para o letrista Wilson Freire.83

82 Ver entrevista no Anexo 2. 83 Como em Sambada dos Mestres, de Madeira que cupim não rói. Ver 2.2.1.

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A polca instrumental Risada da Chiquinha e o Coco da bicharada

(recriação de cantiga e versalhada popular por Antonio Nóbrega e Wilson

Freire) dão seqüência ao roteiro. Nesta última, os autores humanizam os

bichos citados na letra, imaginando-os em situações inusitadas:

Vi mosca de camisola, vi cavalo num debate, vi uma traça alfaiate, guaxinim tocar viola, um siri jogando bola, vi um pica-pau ferreiro, um veado arruaceiro, vi um mosquito tossindo, vi uma gata parindo e o cachorro era o parteiro.

É uma décima de sete sílabas, com o esquema rítmico ABBAACCDDC.

Vem então Estrela-d’alva (Antonio Nóbrega, Bráulio Tavares e Zezinho

Pitoco). O letrista Bráulio Tavares fala sobre essa toada:84 “É uma cadência

que eu chamo de 4-4-4: ‘Caixa-de-guerra, maracá, porta-bandeira, / rainha

negra batendo palma de mão’.” Todas as linhas têm essa cadência, menos a

última, que é 4-4-2: “bombo profundo ressoou trovão”, por exemplo. “Aí não

tem uma forma fixa necessariamente, foi uma coisa sugerida pela música.” A

letra inicial era sobre carnaval, descrevendo os maracatus do Recife, mas

Nóbrega disse a ele que era um assunto já bastante explorado, como visto no

capítulo 2.2.2. Pediu-lhe então para aproveitar o segundo verso (“rainha negra

batendo palma de mão”) e levar para o lado das cerimônias religiosas, com

mouros e cristãos, andor, procissão, romaria. Quanto ao formato, ele é livre,

“nosso” – como diz Bráulio –, arranjado para essa canção especificamente.

84 Ver 2.2.2.

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No verso “Anjos-meninos, de olhos pretos e asas brancas”, em “anjos-

meninos” note-se o “hífen evidenciador de sintagma” tão característico do estilo

de Bráulio, assim como visto no “estalo-de-Vieira” de Viagem maravilhosa.

Flecha fulniô (Antonio Nóbrega e Wilson Freire) homenageia Garrincha,

como dito há pouco. O jogador não é caro somente a Nóbrega e Freire: Ariano

Suassuna anunciou em agosto de 2005 que pretende incluir o atleta na

primeira parte do livro que escreverá sobre os povos que originaram a nação

brasileira. O famoso craque do Botafogo e da Seleção Brasileira deverá figurar

na primeira parte, dedicada aos índios. "Garrincha representou o que o Brasil

tem de mais verdadeiro. E por meio dele quero homenagear a presença

indígena no Brasil, antes até da chegada dos portugueses", afirmou o

entusiasmado Ariano com relação a seu personagem.85 O criador do Auto da

compadecida, dessa forma, dá continuidade à homenagem que Nóbrega e

Freire já haviam prestado a Garrincha, como um dos ícones do jeito brasileiro

de ser, um “anjo torto” com as “pernas mágicas”.

Sumaúma grande brotou curumim. Ave miúda nasceu passarim.

Sangue fulniô, pegadas toré, um arco no corpo, a flecha Mané.

Fogo na galera delira a aplaudir, um anjo torto barroco a sorrir.

Garrincha no nome, nas pernas garruchas,

85 O Estado de S.Paulo, 27/8/2005.

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no chute um morteiro, um canhão de buchas.

Um deus nos estádios abrindo as retrancas, um desengonçado que as redes balança

Mandinga, catimba, a lógica, a tática, de nada valiam para as pernas mágicas.

Mais um gol de letra, de placa, um golaço, a bola lhe adora, e corre pro abraço.

Malasartes do jogo, driblando zagueiros, um bobo pra corte, um herói brasileiro.

Sem Maracanã, sem drible na área, na noite sem grito, estrela solitária.

Partiu, foi morar na constelação, deixou pátria órfã, sem circo a nação.

Garrincha é comparado à subaúma, árvore frondosa, de grande estatura

e raízes fortes, que funciona aqui como a própria imagem do povo brasileiro

que Nóbrega e Wilson homenageiam por meio do craque das pernas tortas,

contando a seu modo a sua história, do nascimento até a morte. Suas pernas

eram garruchas (uma espécie de pistola) e ele era um malasartes86 do jogo,

uma espécie de trapalhão, no bom sentido, apresentando ao mesmo tempo o

caráter de um anjo torto barroco a sorrir, com sua ingenuidade. Era um perfeito

86 A grafia constante do Vocabulário ortográfico da língua portuguesa (Academia Brasileira de Letras, 2004), assim como em Ferreira (1995) e Houaiss & Villar (2001), é malas-artes.

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artista de circo que fazia do campo de futebol o seu picadeiro – até partir,

estrela solitária, para ir morar na constelação.

O Romance do Aleijadinho (Antonio Nóbrega e Wilson Freire) aproveita

o tema instrumental Cantiga, de Antonio José Madureira, presente no disco

Sete Flechas, do Quinteto Armorial. A idéia de alçar o artista plástico Antônio

Francisco Lisboa à condição de um dos ícones do povo brasileiro aparece clara

nos versos a seguir, com sete sílabas e encadeados no esquema ABCBDB:

Do seu talhe então surgia uma nova identidade da nação que se formava, mestiça, sim, de verdade. Riscou na pedra e madeira carminhos da liberdade. À medida que seu corpo ia se desfigurando, e com as chagas crescentes ia se despedaçando, o que caía no chão nova terra ia formando. Talhando gente e frontões, nas Minas ele vagava, visionário, itinerante, uma nação, inventava. Era um mestiço, meu Deus, que um Brasil profetizava.

Em seguida vem Galope beira-mar para Bispo do Rosário (Antonio

Nóbrega e Wilson Freire):

Então, meia-noite, anjos emissários, em conta de sete, de aura azulada, falaram pra ele, “punhando” as espadas: “És tu O escolhido, Bispo do Rosário. Terás de fazer o teu inventário e reconstruir o Universo sem par, pra diante de Deus tu te apresentar vestido em teu manto vermelho-centelha.” Entrou no hospício da Praia Vermelha cantando galope na beira do mar.

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Obedece-se à estrutura do galope: dez versos com onze sílabas, no

esquema rítmico ABBAACCDDC. Note-se o verso “Terás de fazer o teu

inventário”, em que uma respiração (após “Terás de fazer”) vale por uma sílaba

para inteirar o total desejado de 11 sílabas. Mais um exemplo da liberdade

autoral na hora de adaptar a linguagem oral à forma fixa da poesia popular.

Após o número instrumental Dança dos arcos (domínio público –

adaptação de Manuel Salustiano – tema de São Gonçalo e da Pata piou), muito

conhecido em Pernambuco por estar associado ao cavalo-marinho, segue-se a

canção-síntese Martelo d’o marco do meio-dia (Ariano Suassuna e Antonio

Nóbrega), que encerra o CD e o espetáculo. A letra segue fielmente a estrutura

de rimas ABBAACCDDC. Os versos são decassílabos, característicos do

gênero martelo:

A bandeira do sol estrala ao vento [A] e ressoa a minha voz de cantador, [B] num protesto do sonho contra a dor, [B] a pobreza do povo e o sofrimento. [A] Nas estrelas do canto, o pensamento [A] ergue um marco que é só anunciado. [C] Nossa sorte de povo injustiçado [C] é vencida por nós ao som da luta, [D] e no meio do palco o que se escuta [D] é o sol da justiça do sonhado. [C] Ao final desta dança bela e forte [A] eu que sou o cantador, dono da casa, [B] e com versos de sangue, fogo e brasa, [B] forjo o marco e celebro a minha sorte. [A] Na viola, eu vou batendo a morte [A} e assumindo a coroa do guerreiro. [C] Ao cantar meu país, sou o lanceiro, [C] olho o sangue ferido do meu povo [D] e sonho, ao meio-dia, um canto novo, [D] levantando este marco brasileiro. [C]

No arranjo da música Martelo do marco d’o meio-dia, surge uma

sonoridade típica em pelo menos uma de cada faixa dos CDs de Nóbrega: a do

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maracatu rural, também chamado de baque solto, de orquestra ou, ainda, de

trombone.87 Entre as duas estrofes e no final da música, os sons dos metais e

da percussão evocam essa referência musical tão característica no trabalho

desse brincante.

Aliada à sonoridade própria do maracatu de baque solto, deve-se

observar na letra dessa música a potencialidade expressiva dos fonemas,

seguindo-se as idéias registradas por Monteiro (1991: 99-100):

Cada ordem de sensações é sugerida por fonemas específicos, em virtude de correspondências articulatórias ou impressões acústicas. (...) Fixemos de imediato que os efeitos expressivos se distinguem segundo a divisão dos fonemas em vocálicos e consonantais. Enquanto aqueles se prestam basicamente a intensificar as sensações visuais (forma, cor etc.) e os traços afetivos que delas decorrem, os consonantais se relacionam às demais espécies (auditivas, cinéticas, tácteis etc.). Ressalte-se, porém, que as vogais servem de apoio às consoantes e, por isso, prolongam ou acentuam o que estas são capazes de conotar.

Assim, note-se a expressividade sonora alcançada pelos versos do

Martelo do marco d’o meio-dia, especialmente dos que compõem as rimas:

vento-sofrimento-pensamento [A]; cantador-dor [B]; anunciado-injustiçado-

sonhado [C]; luta-escuta [D] (primeira estrofe); forte-sorte-morte [A]; casa-brasa

[B]; guerreiro-lanceiro-brasileiro [C]; povo-novo [D] (segunda estrofe). Essas

palavras acentuam a idéia de uma “pequena epopéia” – se é que se pode

chamar assim – contida nesse martelo, que resume em duas estrofes uma

situação bastante comum ao povo nordestino, especialmente no sertão:

pobreza, dor, sofrimento, falta de perspectivas. No entanto, por meio de uma

série de ações heróicas anunciadas pelo protagonista desse Marco, novas

esperanças anunciam-se para alterar o dramático panorama apresentado. O

87 Ver Glossário.

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povo injustiçado terá sua sorte mudada por meio de uma luta em que o sol,

mais do que visto, é ouvido (sinestesia); afinal, trata-se do sol da justiça do

sonhado, o próprio reino de Deus.

Com o pensamento na “construção imaginária” que é esse Marco, a luta

do cantador contra a difícil situação de seu povo – cantada/contada no Martelo

do marco d’o meio-dia – ganha novo vigor; as palavras revestem-se de uma

carga emocional mais profunda; o sofrimento que compõe o pano de fundo da

situação narrada recebe o alento, logo no primeiro verso, do vento. E com

versos de sangue, fogo e brasa, o protagonista-narrador-autor assume sua

viola, sua lança e sua coroa de guerreiro para tornar-se o paladino de seu

povo.

Assim, o sofrimento da primeira estrofe cede definitivamente a vez à

esperança apregoada no final da letra. Afinal, como diz M. Rodrigues Lapa

(1988: 47), “o homem com tudo brinca, nas suas horas de desenfado; até com

as palavras, que dão forma ao seu pensamento”. No canto e nas ações de

nosso protagonista, mesmo se estas não forem bem sucedidas, está a

esperança de um canto e de um mundo novos, em pleno sol do meio-dia, no

qual é forjado esse Marco, “a que ninguém poderá resistir”, lembrando a

citação de Câmara Cascudo.

Por meio da reunião de gêneros musicais e textuais apresentados em O

marco do meio-dia, Nóbrega busca mostrar que, no caso do Brasil,

especialmente no ano das comemorações dos quinhentos anos de seu

descobrimento, a diversidade talvez seja a maneira mais vigorosa de afirmar a

sua unidade como nação.

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4.2.5 – Lunário perpétuo

O poeta popular, cantador e pesquisador paraibano José Alves

Sobrinho, em sua obra Cantadores, repentistas e poetas populares, classifica

os folhetos de cordel em 19 categorias88 e faz menção ao Lunário perpétuo na

categoria que intitula “Conselhos”. Segundo ele, há dois tipos de conselhos: o

moralizante e o de gracejo; é neste caso que cita o seguinte exemplo, tirado de

Conselho aos solteiros, de autoria atribuída a Manoel Camilo dos Santos:

Em um Lunário perpétuo, Depois de muito estudar O sistema planetário Posso agora aconselhar Com o meu conhecimento Aos jovens no casamento Para nenhum se enrascar (Sobrinho, 2003: 114).

Rabelais, com seu estilo desabrido de retratar sua época, além dos

clássicos Gargântua (As grandes crônicas de Gargântua, 1532) e Pantagruel

(escrito no mesmo ano), chegou a escrever o Prognóstico pantagruelino,

referindo-se a seu irreverente personagem, e um Almanaque. O Prognóstico

pantagruelino “é uma alegre paródia dos livros de predições do ano-novo,

muito em voga na época. Essa breve obra, que só compreendia algumas

páginas, teve várias reedições” (Bakhtin, 1999: 135). Já o Almanaque foi um

calendário popular que circulou, em mais de uma versão, em meados do

século XVI. “Esses dois tipos de obra, o Prognóstico e os almanaques, estão

88 Sobre a literatura de cordel, Sobrinho (2003: 109) diz que os folhetos têm 8, 12 ou 16 páginas; se têm 24, 32, 48 ou 64, são romances ou histórias, conforme o conteúdo e o assunto. Eis as 19 categorias propostas por ele: 1 – peleja, debate, discussão e encontro; 2 – marcos e vantagens; 3 – história de inspiração popular; 4 – história de inspiração não-popular; 5 – fabulação; 6 – gracejos e espertezas; 7 – religião e beatismo; 8 – profecias; 9 – avisos; 10 – castigos e exemplos; 11– política, sociedade e ciência; 12 – reportagens; 13 – heroísmo; 14 –

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ligados muito diretamente ao tempo, ao ano-novo, e afinal ao chão da feira”,

afirma Bakhtin (1999: 136), que acrescenta em sugestiva nota na mesma

página: “O fato de que uma única e mesma personagem fosse ao mesmo

tempo um sábio erudito e um autor popular é típico da época.”

O texto desta nota remete imediatamente ao caráter multifacetado do

personagem Tonheta; e a que nos remetem o teor do Prognóstico

pantagruelino e o dos almanaques senão ao conteúdo do Lunário perpétuo?

Esta espécie de cartilha popular nordestina reúne orações, informações sobre

a Lua, épocas para plantio etc. e inspirou Nóbrega na criação de um

espetáculo que, além do respectivo CD, daria origem a seu primeiro DVD.

De acordo com Câmara Cascudo, o Lunário perpétuo foi

durante dois séculos o livro mais lido nos sertões do Nordeste, informador de ciências complicadas de astrologia, dando informações sobre horóscopos, rudimentos de física, remédios estupefacientes e velhíssimos. (...) Foi um dos livros mestres para os cantadores populares, na parte que eles denominavam “ciência” ou “cantar teoria”, gramática, história, doutrina cristã, países da Europa, capitais, mitologia. Decoravam letra por letra. É o volume responsável por muita frase curiosa, dita pelo sertanejo, e que provém de clássicos dos sécs. XVI, ou XVIII. A primeira edição é de Lisboa, em 1703, na casa de Miguel Menescal. O título inteiro, depois amputado nos volumes editados na última década do séc. XIX, denuncia o plano da “ciência popular”: “O Non Plus Ultra do Lunário e Prognóstico Perpétuo, Geral e Particular para Todos os Reinos e Províncias, Composto por Jerônimo Cortez, valenciano, emendado conforme o Expurgatório da Santa Inquisição, e traduzido em português (s.d.: 524).

Nenhum trecho do Lunário propriamente dito é musicado por Nóbrega,

mas a publicação serve de inspiração para um novo mergulho do artista na

alma do povo brasileiro, no que ele chama de “pedras do seu céu e estrelas do

seu chão”, como afirma no espetáculo e está registrado no DVD.89

proezas; 15 – miscelânea; 16 – profanação; 17– depravação; 18 – conselhos; 19 – escândalo e corrupção. 89 Cf. Referências Discográficas.

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Composição baseada na estrutura do maracatu rural (décimas de sete

sílabas), em que alguns versos do cantador são repetidos pela audiência, O rei

e o palhaço (Antonio Nóbrega e Bráulio Tavares) abre o CD e fala sobre a

dicotomia entre o lado “rei” e o lado “palhaço” de todo ser humano, a partir de

inspiração de Ariano Suassuna. Uma das estrofes acentua:

Você vem com a arma erguida, eu vou abaixando a guarda. Você vem vestindo a farda, eu de roupa colorida. Você disputa corrida, (BIS) eu corro pra relaxar. Sua marcha é militar, a minha é de carnaval. Seu traje é de general, eu visto pena e cocar.

Essa série de oposições permeia toda a canção, em imagens que

pontificam claramente a polaridade entre o cantador e o seu “adversário”, na

estrutura ABBAACCDDC.

Ponteio acutilado (tema instrumental de Nóbrega, já gravado pelo

Quinteto Armorial), segunda música do CD, abre o espetáculo e o encerra,

após fundir-se com os acordes finais de Lunário perpétuo. Dos cinco CDs, o

único que tem a ordem alterada das canções no palco é este (O rei e o

palhaço, por exemplo, é a penúltima música apresentada no espetáculo). Esse

ponteio foi o primeiro tema que o artista compôs para o quinteto, inspirado em

um toque de banda cabaçal (conjunto musical também conhecido por ternos-

de-pífaros ou pífanos) dos Irmãos Aniceto, o qual ele ouviu no Crato (Ceará),

conforme consta no programa do CD Lunário perpétuo.

A canção a seguir é o Romance da filha do imperador do Brasil (Antonio

Nóbrega e Ariano Suassuna), tema de origem ibérica, recriado literariamente

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por Ariano e musicado por Nóbrega. Está no Romance d’a Pedra do Reino

(Suassuna, 2004b). Apresenta um tom brincalhão, também de certa forma

rabelaisiano, com insinuações de fundo sexual, no final da história, mas sem

cair jamais num caráter chulo. “A linguagem familiar converteu-se, de uma

certa forma, em um reservatório onde se acumularam as expressões verbais

proibidas e eliminadas da comunicação oficial”, disse Bakhtin, acrescentando:

“pode-se afirmar que as grosserias são um gênero verbal particular da

linguagem familiar” (1999: 15).

Carrossel do destino é uma lírica ciranda composta por Antonio Nóbrega

inspirada em versos de Bráulio Tavares. São décimas de sete sílabas, que

terminam com os dois versos: “Licença que eu vou rodar / no carrossel do

destino”.

Romances e epopéias me pedindo pra brotar e eu tangendo devagar a boiada das idéias. Sempre em busca das colméias onde brota o mel mais fino, e um só verso, pequenino, mas que mereça ficar... Licença que eu vou rodar no carrossel do destino.

O Romance da nau-catarineta (romance tradicional recriado por Ariano

Suassuna com base em toadas populares) está presente no folheto XXXIV do

Romance d’a Pedra do Reino (Suassuna, 2004b). As melodias cantadas por

Nóbrega são as mesmas utilizadas por Antônio José Madureira na versão

instrumental dos tempos do Quinteto Armorial. Entre as personagens citadas

na letra, destaca-se o gajeiro, marinheiro que, nos navios a vela, tem a seu

cargo um dos mastros, zela por ele e dirige os trabalhos que nele se executam,

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e a quem outrora competia, ainda, subir ao cesto da gávea, nas proximidades

de terra, a fim de procurar avistá-la antes dos demais elementos da tripulação

(Ferreira, 1995).

Seguem-se o frevo Canjiquinha, de Lourival Oliveira, e A morte do touro

Mão de Pau (Antonio Nóbrega e Ariano Suassuna), que é um dos primeiros

poemas publicados do criador do Auto da compadecida e data do final dos

anos 40. O poema foi escrito em memória do pai do escritor, assassinado em

1930 por motivos políticos, episódio bastante traumático na vida de Ariano,

conforme visto no capítulo 2.1. Como Nóbrega escreve no encarte do CD, o

poema, por sua vez, foi inspirado no folheto O boi Mão de Pau, do poeta e

rabequeiro rio-grandense-do-norte Fabião das Queimadas.

O roteiro prossegue com mais um número instrumental, o choro Pagão,

de Pixinguinha. Chega a vez de Excelência (recriação literária de Ariano

Suassuna com base em toadas populares), canto de recomendação de almas,

ainda muito cantado no meio rural nordestino. Na composição interpretada por

Nóbrega há duas partes: a primeira em forma de lamento e a segunda em

forma de abecê, que é uma composição poética popular (às vezes de cunho

satírico) em que se celebram vidas de santos, cangaceiros, feitos heróicos e

personagens famosos, na qual as estrofes começam sucessivamente pelas

letras do alfabeto em sua ordem natural, inclusive o til. Os versos costumam

ser quadras (os mais antigos eram sextilhas ou hendecassílabos), com rimas

simples (Câmara Cascudo, s.d.; Houaiss, 2001).

O esquema rítmico é ABCB. Na primeira quadra (“Diz o A... Ave-Maria /

Diz o B... Brandosa e bela / Diz o C... Cofrim da Graça / Diz o D... Divina

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Estrela”), a rima “bela” com “estrela” demonstra novamente a liberdade que o

cantador popular encontra na hora de ajustar os seus versos. Observe-se o uso

de termos como “brandosa”, reforçando o caráter de branda para Nossa

Senhora, e “cofrim”, diminutivo que ressalta uma intimidade com a santa.

A se destacar ainda o que dizem o K (“Coro dos Anjos”) – em que o k

vale como fonema, e não como letra; o P (“Por vossos filhos”) – em que a

preposição por é valorizada no abecê e dá início a um verso; e o Z (“Zelai o

mundo”) – forma em que o verbo zelar aparece como transitivo direto e não é

tão usual quanto seria “zelai pelo mundo”.

Vem em seguida o “tonhetânico” Meu foguete brasileiro (Antonio

Nóbrega e Bráulio Tavares), cujos detalhes sobre sua criação são dados pelo

próprio autor da letra.90

O roteiro prossegue com o instrumental Luzia no frevo (Antonio

Sapateiro), o frevo-canção Delírio (de Antônio José Madureira e Marcelo

Varella, mesma dupla que compôs o Maracatu Misterioso, constante do

repertório de Madeira que cupim não rói) e outro frevo instrumental, Lágrimas

de um folião (Levino Ferreira). Segundo Nóbrega assinala no encarte do CD, o

pernambucano Levino “foi provavelmente o maior compositor de frevos de

todos os tempos”.

Chega então O romance de Riobaldo e Diadorim (Antonio Nóbrega e

Wilson Freire), de franca inspiração rosiana.91 Conta o episódio em que

Riobaldo descobre a verdadeira identidade de Diadorim na “Noite-grande-fatal”

de Grande sertão: veredas (Rosa, 1994).

90 Ver capítulo 2.2.2. 91 Ver entrevista no Anexo 2.

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Sob as roupas de jagunço, corpo de mulher eu via. A Deus já dada, sem vida, o vau da minha alegria. Diadorim, Diadorim... Minha incontida sangria.

Na freqüente alteração na sílaba tônica das palavras no canto e na

poesia popular nordestinos, “incontida” vira proparoxítona e soa aqui como

“*incôntida”, deslocamento que é muito comum, como visto no capítulo 2.2.2.

Inspirados pelo mineiro Guimarães Rosa, os compositores aproveitam inclusive

a palavra “vau” – baixio, local raso de um rio, mar, lagoa, por onde se pode

passar a pé ou a cavalo (Houaiss & Villar, 2001) –, comum no universo

lingüístico do autor de Grande sertão: veredas.

Lunário perpétuo (Antonio Nóbrega, Wilson Freire e Bráulio Tavares)

encerra tanto o CD quanto o espetáculo – neste caso, emendando com a

retomada do tema instrumental Ponteio acutilado, que servira de abertura.

Meu Lunário tem antigas alquimias de almanaques. Já enfrentou intempéries, roubos, incêndios e saques: dos homens, das traças, das garras, das eras, carrega segredos, decifra quimeras. Venceu todos os ataques. O meu Lunário perpétuo sob o sol é luzidio. Meu Lunário foi forjado num fogo de desafio que vibra, esquenta, atiça, aperreia, faísca, enlouquece, que pega na veia. Pelos séculos a fio. O meu Lunário perpétuo guarda as vozes seculares do Profeta de Canudos e do Mártir dos Palmares. Sonhando com o Reino do Espírito Santo na terra, no céu, em todo recanto. Nos terreiros e altares.

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O meu Lunário perpétuo é meu Livro precioso, minha Cartilha primeira, minha Bíblia de Trancoso. João Grilo, Chicó, Malasartes, Mateus, os órfãos da terra, os filhos de Deus! Heróis do Maravilhoso! Meu Lunário é a memória de um país que vai passando diante dos nossos olhos, rindo, mexendo, cantando. Mestiço, latino, caboclo, nativo, é velho, é criança, morreu e tá vivo... Presente, mas até quando? Meu Lunário é conselheiro. é meu folheto, é meu missal, atravessando os milênios, cada ponto cardeal. De Norte a Sul, de Pai para Filho,92 de lá para cá, meu livrinho andarilho. Fabuloso Romançal!

A estrutura do Lunário já foi abordada no capítulo 2.2.2 (septilha com

quatro versos de sete pés, dois versos de galope – 11 sílabas, divididas em 2-

3-3-3, acentuação na segunda, na quinta, na oitava e na décima primeira – e

mais um verso de sete sílabas).

Concluindo aqui o corpus analisado, cabe salientar a riqueza de imagens

descritas na letra que, aliada à sonoridade da melodia, reúne elementos que

povoam e caracterizam o universo lingüístico-poético-musical de Antonio

Nóbrega: referências a “heróis” regionais, como o Mártir dos Palmares (Zumbi)

e o Profeta de Canudos (Antônio Conselheiro). O próprio Lunário perpétuo

funciona como uma metáfora de brasilidade para o que Nóbrega – escudado

por Wilson Freire e Bráulio Tavares – entende por sua própria nação, definindo-

a por meio de expressões que remetem a outras canções, ressaltando a

92 Sobre a possível “falta” de uma sílaba neste verso, ver análise na página 50.

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variedade racial (Mestiçagem), as dificuldades ou intempéries (também

enfrentadas pelo viandante de Canudos), o caráter de andarilho (há uma

canção com este nome, de autoria de Dalton Vogeler e Orlando Silveira, no

repertório de Madeira que cupim não rói), o sonho com o Reino do Espírito

Santo (o “sol da justiça do sonhado”, do Martelo d’o marco do meio-dia), Zumbi,

também tema de uma canção em O marco do meio-dia. São imagens, portanto,

recorrentes ao longo dos cinco CDs. A título de explicação, ressalte-se que a

expressão Bíblia de Trancoso, como explica o letrista Bráulo Tavares, refere-se

às histórias de Trancoso, contos de fadas e histórias populares que no século

XIX foram escritas pelo português Gonçalo Fernandes de Trancoso, intituladas

Histórias de proveito e exemplo, que são contos morais populares colhidos em

Portugal. Essas histórias se tornaram assunto para o Lunário perpétuo

propriamente dito, um livro lido por gerações e gerações sucessivas. “Eu cresci

ouvindo muito essa expressão no Nordeste: ‘Vamos contar histórias de

Trancoso!’ Equivalem às histórias da Carochinha.”93

Ressalte-se ainda que o Lunário perpétuo é não somente um livro

precioso, uma cartilha, mas também os órfãos da terra, os filhos de Deus, não

importa se os “Heróis do Maravilhoso” são reais ou imaginários, como Mateus,

Malasartes, João Grilo e Chicó. O Lunário vem sendo transmitido de “Norte a

Sul, de Pai para Filho” desde os tempos do valenciano Jerônimo Cortez por

gerações a fio, até chegar a Ariano, que metaforicamente o passou ao

Movimento Armorial, a Nóbrega e por extensão a Wilson Freire e Bráulio

93 Informação dada por Bráulio Tavares ao autor desta tese em entrevista realizada no dia 15 de agosto de 2005, no Rio de Janeiro.

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Tavares, de modo que seu conteúdo, sua ideologia, continue atravessando

milênios, cada ponto cardeal.

Encerre-se este capítulo com palavras do próprio Antonio Nóbrega no

encarte de Lunário perpétuo, definindo a importância dos artistas populares

para ele, no CD e no espetáculo em que comemorou trinta anos de carreira:

Ao longo desses últimos trinta anos, aprendi loas, toadas e cantigas de cirandeiros, aboiadores e cantadeiras; aprendi choros, música de Banda Cabaçal e ponteados de violeiros, pifeiros e chorões; passos, gingados e mugangas de sambadores, dançarinos e brincantes. Esses cantos, toques e danças são as pedras do meu Céu e as estrelas do meu Chão. Com eles soletro, penso e esperanço meu sonho humano. Através deles aprendi a amar o meu país e o seu povo. Eles são o meu Lunário perpétuo.

Que esse Lunário continue guardando tantas vozes seculares e

importante parte da memória de um país que vai passando “diante dos nossos

olhos, rindo, mexendo, cantando”.

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5 – Conclusão

(em que se pede licença para a despedida e se faz um balanço da expressão

lingüístico-poético-musical de Antonio Nóbrega após uma longa visita a parte

de sua obra)

Meu Lunário é a memória de um país que vai passando

diante dos nossos olhos, rindo, mexendo, cantando.

Mestiço, latino, caboclo, nativo, é velho, é criança, morreu e tá vivo...

Presente, mas até quando? (Lunário perpétuo – Lunário perpétuo)

A língua dispõe de toda uma gama de variantes fonoestilísticas, entre as

quais se distinguem efeitos como onomotopéia e aliteração, além dos efeitos

por evocação: acentos de classe, província, pronúncia etc. Como diz Pierre

Guiraud (1978: 83), “há palavras foneticamente motivadas, nas quais existe um

vínculo entre o som e o sentido. (...) Os efeitos de evocação constituem o

domínio por excelência da semântica do estilo”.

De acordo com Spitzer (1968), toda obra constitui um todo, em cujo

centro se encontra o espírito de seu criador, que é o princípio de coesão

interna da obra. O espírito do autor é uma espécie de Sistema Solar para cuja

órbita são atraídas todas as coisas. A linguagem e o enredo, ou seja, as

histórias contadas por meio dos signos que compõem essa linguagem, nada

mais são do que satélites dessa entidade que é o espírito do autor.

O centro de tudo que se viu até aqui chama-se Antonio Carlos Nóbrega

de Almeida, rabequeiro, cantador, dançarino, ator, brincante – o qual, por sua

vez, recebeu forte influência de um “Sistema Solar” (para aproveitar a

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expressão de Spitzer) mais amplo ainda, pode-se dizer assim, chamado Ariano

Suassuna, uma vez que é inegável a referência deste para o trabalho daquele.

Como inspiração de ambos os sistemas, o universo infinito da cultura popular

brasileira, pelo qual perpassam Chico Antônio, Capitão Pereira, Pinto de

Monteiro, Leandro Gomes de Barros, Zé Alfaiate, Mestre Salustiano,

Nascimento do Passo e tantos outros. E ao redor do criador de Tonheta

circulam “astros” fundamentais para a constituição do seu próprio universo,

como Wilson Freire e Bráulio Tavares. Sem falar na importância singular de

Rosane Almeida, Gabriel e Maria Eugênia para a perfeita realização de seu

trabalho.94

Nóbrega pode ser visto como um tradutor de tradições, uma vez que

aproveita o universo popular tão decantado por Ariano e amplia a sua

dimensão na posição de verdadeiro astro da música brasileira que é hoje,

lotando casas de espetáculos, apesar de não se considerar um artista popular,

uma vez que recria as manifestações musicais que o inspiram e lhes dá um

toque sofisticado. Devido ao numeroso público que atrai atualmente, a ponto de

o reduzido espaço na platéia do Teatro Brincante não comportá-lo mais, pode-

se dizer que Nóbrega conquistou o status de artista pop, com sua extensa

legião de admiradores. Até mesmo chegar a ele por meio de sua produção é

tarefa difícil, o que o autor desta tese conseguiu por influência de seu parceiro

Bráulio Tavares, entrevistado primeiramente.

Hoje, informações sobre o passo a passo de sua carreira podem ser

obtidas no endereço eletrônico http://www.antonionobrega.com.br (bilíngüe:

português e inglês). Há ainda o sítio (forma que se preferiu aqui a site, por

94 Ver entrevista no Anexo 2.

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inspiração de Ariano Suassuna) http://www.teatrobrincante.com.br, sobre as

atividades do espaço cultural mantido pelo artista em São Paulo.

Em Nóbrega, o erudito e o popular aparecem como híbridos,

aproveitando um conceito estudado por Stuart Hall. A cultura popular, como

afirma este autor, é uma arena profundamente mítica.

É um teatro de desejos populares, um teatro de fantasias populares. É onde descobrimos e brincamos com as identificações de nós mesmos, onde somos imaginados, representados, não somente para o público lá fora, que não entende a mensagem, mas também para nós mesmos pela primeira vez (2003: 348).

Em uma cultura oral, que serve como fonte de inspiração para o trabalho

de Nóbrega, o público costuma ser resistente a novidades, uma vez que a

conservação de produções intelectuais depende exclusivamente da memória,

criando uma propensão ao conservadorismo, ao tradicionalismo. “Novidade e

repetição, individualidade e tradição constituem o espaço no qual o poeta se

move” (Abreu, 1999: 117). Com base na série de repetições que fazem parte

de sua formação cultural e pessoal, Nóbrega vai criando suas próprias

novidades, com o apoio decisivo de seus parceiros Bráulio Tavares e Wilson

Freire. São as raras variações que adquirem um destaque excepcional e um

estatuto poético novo numa estrutura imutável (Santos, 1999), partindo das

regras da cantoria que são complexas e incluem, além da definição estrófica e

rítmica, modos de construção por variação de um mesmo verso ou de uma

mesma estrofe.

Se Ariano tem seu romanceiro, Nóbrega tem seu cancioneiro. A base

dos dois, independentemente de definições, é a cultura popular brasileira,

como se afirmou há pouco. E o que ambos obtêm como resultado de suas

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formas de se expressar artisticamente está próximo da seguinte reflexão de

Paul Zumthor (1993: 216).

Nossa velha poesia – em maior ou menor grau segundo suas partes, mas sempre fundamentalmente – é rito: sua função primordial é operar um feitiço, capaz de tornar presente aquilo que não o é, inserir essa ausência num simbolismo não apenas evocador mas também criador de outra coisa.

As palavras são “multimoduladas”, já disse Stuart Hall (2005). Sempre

carregam ecos de outros significados que elas colocam em movimento, apesar

de nossos melhores esforços para cerrar o significado. Tudo que dizemos tem

um “antes” e um “depois”, espécie de “margem” na qual outras pessoas podem

escrever. É o sentido da palavra que leva à procura de um efeito musical num

grupo de sons. Trata-se da busca e do encontro das palavras com a

temperatura exata (Cressot, 1980). A expressividade faz das palavras,

instintivamente, cabos elétricos da mais alta tensão, conforme lembra Joaquim

Mattoso Câmara Júnior (1978). Esse uso expressivo leva a linguagem a tornar-

se um fenômeno simbólico inseparável da cultura, configurando um complexo

de idéias com significados próprios que traduzem realidades inseridas nessa

cultura. Ao interpretar seu cancioneiro, alicerçado na poética popular

nordestina, Nóbrega reveste as palavras que canta com uma temperatura

peculiar, de modo a fortalecer o aspecto emotivo do significado dessas

palavras (Ullmann, 1970).

De Na pancada do ganzá ao Lunário perpétuo, passando por Madeira

que cupim não rói, Pernambuco falando para o mundo e O marco do meio-dia,

procurou-se mostrar como o repertório dos CDs e dos espetáculos de Antonio

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Nóbrega segue uma mesma trajetória que tem como refencial a estrutura dos

espetáculos populares – os reisados, como ele chama.95

Numa das imagens finais do DVD Lunário perpétuo, na parte referente

ao espetáculo (e não show), há uma significativa tomada de Ariano Sussuana,

como se estivesse conferindo a sua “cria” e aprovando com um sorriso discreto

o que ela faz. “Tem um significado simbólico essa coisa do mestre e do

aprendiz. É algo medieval, renascentista e popular. É aquela história: ‘Eu sou o

mestre, e não quero morrer sem passar adiante o que eu sei’”, diz Bráulio

Tavares. “E morre mais tranqüilo quando vê que o aprendiz o superou. O

sonho de cada mestre é ser superado pelo seu aprendiz.”96

Para o letrista, Ariano se realiza muito em seu “aprendiz” não só pela

visão de Brasil, pela visão de cultura nacionalista, mas também pela fusão de

artes, pelo lado multimídia de Antonio Nóbrega. “É isso o que Ariano gostaria

de ver os artistas brasileiros fazendo”, afirma.

Como escreveu Mário de Andrade no Ensaio sobre a música brasileira,

é com a observação inteligente do populário e aproveitamento dele que a música artística se desenvolverá. Mas o artista que se mete num trabalho desses carece alargar as idéias estéticas senão a obra dele será ineficaz ou até prejudicial. Nada pior que um preconceito. Nada melhor que um preconceito. Tudo depende da eficácia do preconceito (Andrade, 1972: 27).

Preconceito Nóbrega não demonstra em seu trabalho, muito pelo

contrário; mas por meio desse trabalho ele busca “alargar as idéias estéticas”,

de modo que sua obra não é ineficaz (citando Mário), como se buscou mostrar

aqui. Identificando-se com as idéias do autor de Macunaíma, não é à toa que

95 Ver entrevista no Anexo 2. 96 Informação dada por Bráulio Tavares ao autor desta tese em entrevista realizada no dia 15 de agosto de 2005, no Rio de Janeiro.

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lhe dedica o CD e o espetáculo Na pancada do ganzá, assim como ao coquista

Chico Antônio.

Na unidade sintópica que é o “dialeto” nordestino, especificamente o de

Pernambuco, mostrou-se que a unidade sinstrática de Nóbrega é a linguagem

popular, mas sem se descuidar da linguagem culta; e a unidade sinfásica é o

estilo informal, familiar, simultâneo à utilização de um estilo literário, poético.

Por meio dos diversos elementos relacionados ao longo da Análise do corpus,

identificaram-se esses traços, que contribuíram para a caracterização da

expressão lingüístico-poético-musical do artista.

Entre todas as atividades que Nóbrega exerce no palco, inclui-se a de

contador de histórias – por meio do texto de suas canções – e,

conseqüentemente, guardião delas. “A vida de um guardião de histórias é uma

combinação de pesquisador, curandeiro, especialista em linguagem simbólica,

narrador de histórias, inspirador, interlocutor de Deus e viajante do tempo”

(Estés, 1998: 9-10). Nosso brincante não deixa de ser isso tudo. Essas

histórias compõem a sua linguagem, formam sua expressão lingüístico-poético-

musical.

No final do texto que escreveu para o encarte do DVD Lunário perpétuo,

Nóbrega afirma: “é dentro da unidade de nossa diversidade que habita o

coração do povo que somos”. Assim também ocorre no campo lingüístico: na

vasta extensão do território brasileiro há uma unidade, a língua portuguesa,

dentro da qual há uma grande diversidade, que são os falares brasileiros, como

exemplificado neste trabalho com o estudo da obra desse artista.

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Encerram-se aqui as considerações sobre a expressão lingüístico-

poético-musical do brincante pernambucano Antonio Nóbrega – pelo menos até

o Lunário perpétuo, uma vez que tal tarefa continua em função do dinamismo

do trabalho que o artista realiza, pois está sempre no preparo de novos

reisados. Afinal, como conclui a letra de Sambada dos Mestres (parceria com

Wilson Freire), ele vive e brinca com seu povo, é um cavaleiro andante; nesse

nosso mundaréu, sua sina é ser brincante. Nos terreiros e altares. Pelos

séculos a fio.

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Referências Discográficas (CDs e DVD) ANTONIO NÓBREGA. CD Na pancada do ganzá. Selo Brincante. Brasil, BR 0001,

1996. ANTONIO NÓBREGA. CD Madeira que cupim não rói. Selo Brincante. Brasil, BR

0002, 1997. ANTONIO NÓBREGA. CD Pernambuco falando para o mundo. Selo Brincante. Brasil,

BR 0003, 1998. ANTONIO NÓBREGA. CD O marco do meio-dia. Selo Brincante. Brasil, BR 0004,

2000. ANTONIO NÓBREGA. CD Lunário perpétuo. Selo Brincante. Brasil, BR 0005, 2002. ANTONIO NÓBREGA. DVD Lunário perpétuo. Direção de Walter Carvalho e direção

musical de Antonio Nóbrega. Filmado em película cinematográfica no Teatro da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Recife, em fevereiro de 2003 (além do espetáculo, inclui cenas extras). Brincante Produções Artísticas (São Paulo) e Central do Brasil Cultura e Meio Ambiente (Brasília). Brasil, BR 0006-5, AA 5000, 2003.

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Anexos Anexo 1 – Letras

Aqui estão transcritas todas as letras constantes dos cinco CDs de

Antonio Nóbrega lançados no período de 1996 a 2002, incluindo as

composições de outros autores. Neste anexo, as letras aparecem da forma

como Nóbrega as canta nos discos, podendo ser verificadas diferenças entre

os versos aqui registrados e o que se encontra reproduzido nos encartes dos

CDs.

Anexo 1.1 – Na pancada do ganzá

Loa de abertura

(Domínio público – recriação musical de Antonio Nóbrega)

Senhores desta sala licença eu vou chegando, eu vou A voz e a rabeca, o coração cantando, eu vou

Vinde, vinde, moços e velhos (Domínio público –

recriação musical de Antonio Nóbrega)

Vinde, vinde, moços e velhos, (BIS) vinde todos apreciar! Como isso é bom, como isso é belo! Como isso é bom, é bom demais! Olhai, olhai, admirai! (BIS) Como isso é bom, é bom demais!

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Truléu da Marieta

(Domínio público – recriação musical de Antonio Nóbrega)

Truléu, léu, léu, truléu da Marieta, que nós somos marinheiros desta nau-catarineta, que nós somos marinheiros desta nau-catarineta. “Ó marujo, lá do leme”, grita o piloto na proa, “orça a barca para o norte que temos na frente ‘croa’”. Nós saímos de Espanha com destino a Portugal, oh, que alegria teremos quando Lisboa avistar. Quando o mar balança a barca eu tenho recordação do meu bem que está em terra, chave do meu coração. Nossa Senhora da Guia, ela nos queira guiar, que chegamos todos vivos no porto de Portugal.

A vida do marinheiro (Domínio público –

recriação musical de Antonio Nóbrega) A vida do marinheiro, ô ipá, é uma vida de labor, quando pensa que é descanso, ô ipá, é quando chega o vapor. Ô ipá, ô ipá... Olha as ondas do mar vão quebrar (BIS) Em risco de uma tormenta, ô ipá, e a minha nau naufragar, as feras do oceano vão o meu corpo estragar. Vou terminar o meu canto, ô ipá, a maré está a preamar. Ouço o choro da toninha, ouço a baleia roncar.

Truléu, léu, léu, léu, léu

(Domínio público – recriação musical de Antonio Nóbrega)

Truléu, léu, léu, Truléu, léu, léu, léu, léu, Truléu, léu, léu, Tira o pau do mastaréu. Truléu, léu, léu, Alevanta e vira o léu. Na saída de Lisboa quase que morro de sede. (BIS) A Saloia me deu água na folha da sarça verde. Rua acima, rua abaixo, com o meu chapéu na mão, pra avisar o meu benzinho, chave do meu coração... Marinheiros, não embarquem que o mar é traidor. O mar levou a minha amada, nunca mais ela voltou...

Serenata suburbana

(Capiba)

Levo a vida em serenatas, somente a cantar. Quem não me conhece tem a impressão de que eu sou tão feliz. Mas não é isso não. Se eu canto em serenatas é para não chorar. Ninguém sabe a dor que eu sinto dentro de [mim. Ninguém sabe por que eu vivo tão triste [assim. Seu eu fosse realmente muito feliz não chorava quando canto não cantava para abafar meu pranto.

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Marcha da folia (Raul Moraes)

Bloco das Flores, por onde passa, semeia com tal graça ao som de lindas canções. E os esplendores desta alegria que as almas extasia e apaixona os corações. Viva a folia do carnaval (BIS) intensa alegria sem outra igual. Que olvidar faz a dor ferina que nos ensina a sorrir e amar. Temos na vida só dissabores, tristezas e amargores e a desilusão final. Mas de vencida o mal levemos esqueçamos que sofremos divertindo o carnaval. Viva a folia do carnaval (BIS) intensa alegria sem outra igual. Que olvidar faz a dor ferina que nos ensina a sorrir e amar.

Boi Castanho (Getúlio Cavalcanti)

Eu sou da Estrada Real do Poço, da Casa Forte, sou Boi Castanho, sou do Reino do Meio-Dia, trazendo alegria, coração desse tamanho...

Vejam vocês: Burra Calu, o Bastião e o Mateus Cavalo-marinho e o Capitão Mané Pequenino e o Sacristão. Ê figural! É a Dona da Ema, o Padre e o Fiscal, o Doutor Penico Branco e o Rabequeiro, Mané Batateiro, vão brincar o carnaval.

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O romance de Clara menina com Dom Carlos de Alencar

(Domínio público – recriação musical de Antonio Nóbrega)

Estava Clara menina com Dom Carlos a brincar, nua da cintura pra cima, nua da cintura pra baixo, namoro pra se casar! Mas passou um caçador que não devia passar... Esta é Clara menina com Dom Carlos a brincar porque o que eu vejo aqui a meu Rei eu vou contar! A meu Rei eu vou contar e um bom posto eu vou ganhar! Isto que tu viste aqui a meu Rei não vais contar! Que eu te dou léguas de terra que não possas caminhar e a minha prima carnal para contigo casar! Não quero léguas de terra que eu não possa caminhar, nem tua prima carnal para comigo casar, porque o que eu vi aqui a meu Rei eu vou contar, a teu Pai eu vou contar e um bom posto eu vou ganhar! Isto que tu viste aqui a meu Rei não vais contar! Que eu te dou o meu cavalo, arreado como está: com trezentos cascavéis ao redor do peitoral, cem de ouro, cem de prata, cem do mais fino metal! Não quero o teu cavalo arreado como está: com trezentos cascavéis ao redor do peitoral, cem de ouro, cem de prata, cem do mais fino metal, porque o que eu vi aqui a meu Rei eu vou contar!

Ao Pai dela eu vou contar e um bom posto eu vou ganhar! Ó meu Rei, meu alto Rei, vim aqui pra vos contar que encontrei Clara menina com Dom Carlos a brincar, nua da cintura pra cima, nua da cintura pra baixo, namoro pra se casar! Por que tu não falas logo como tens que me falar? Se ela estava como dizes, com Dom Carlos de Alencar, nua da cintura pra cima, nua da cintura pra baixo, estava nua pra enjambrar! Eu seria um atrevido se assim fosse começar! Mas aqui vai a verdade: ela quis me subornar. Ela quis me dar as terras que ainda vai herdar e a sua prima carnal para comigo casar! O que foi que respondeste quando ela assim falou? Disse: “O que eu vi aqui a meu Rei eu vou contar! Ao teu Pai eu vou contar e um bom posto eu vou ganhar!” Tu fizeste muito mal em isso aqui contar, na frente de todo mundo, para todo mundo escutar! Devia ter me chamado para um particular! Eu estava só brincando quando disso vim falar! Não era Clara menina nem Dom Carlos de Alencar! Ela estava bem vestida, lá na igreja, a rezar!

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Tu terias ganho o posto falando em particular, mas na frente deste povo, o que mereces ganhar é o cepo do carrasco que está a te esperar pra essa tua cabeça de um só golpe degolar!

E comigo e com Dom Carlos que ação vais praticar? Menina desmiolada, eu devia te matar! Mas morrias difamada e assim, é melhor casar! Vou te casar com Dom Carlos, com Dom Carlos de Alencar!

Desassombrado (Antonio Nóbrega)

Desassombrado, eu desassombrei. Eu pensei que o mal-assombro fosse maior do que eu. Ói, meus senhores, vou contar minha odisséia: viajei no pé da idéia pra tecer este cantar. E galopando no chitão de minha burra fiquei preso numa furna sem poder mais cavalgar. Eu tive medo, vi tudo da cor da noite, um ente com uma foice querendo me degolar. Eu me azouguei e disse pra ele se tremer: mando pro Diabo comer com farofa de embuá. No outro dia, a Bruzacã apareceu, minha alma estremeceu, eu fiquei pra me acabar. Aí pensei: me valei, Nossa Senhora, não me leve nessa hora, ainda quero vadiar. Devagarinho, fui ponteando a rabeca, me lembrei de minha terra pra eu me desanuviar. E descansei! Mas não pense que sou covarde, eu carrego um bacamarte, quando quero atiro, pá!

Corri as terras no trote de Caluzinha, não pensei que o mundo tinha tanta coisa pra ajeitar. Fui à Chechênia, dei um pulo lá na China, estava na Conchinchina tentaram me despachar. Mais viajando vi branco matando negro, nas ruas de Saravejo vi o mundo se acabar. Eu vi os jatos pelos céus fazendo zum...! Vi as bombas, tebedum! Os fuzis ta-ra-ta-tá! E refreando a pisada do meu trote vou findar o meu galope com os olhos na beira-mar. Eu vi um anjo no cordão das bonitezas me dizendo miudezas que era para eu sossegar. Limpei a vista, sacudi o meu calvário, nas contas do meu rosário prossegui meu caminhar. É manga-espada, é manga-rosa, é manga-roxa, essa é a minha trouxa, vou por aí desassombrar.

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Minervina

(Antonio Nóbrega e Marcelo Varella)

Quem nunca viu amor assim tão roxo vai fazer fuxico quando “ver” Minervina. “Desvergonhada”, não conhece alvoroço, na hora H é minha estrela matutina. É minzinguenta quando vai pra brincadeira, não dá bandeira na hora da cavilação. É majestosa, topa tudo a noite inteira, Quando me arrocha faz das tripas coração.

Oi, Minervina! Oi, Minervina! (BIS) “Rebola-bola” no consolo das meninas.

Mateus Embaixador

(Antonio Nóbrega)

Mateus Embaixador, estrela alva do dia, que sonho é esse? Que sina é essa?

Meu povo, meus senhores, aqui estou no meu destino, tô no meu desatino, vim brincar neste lugar.

Sou Mateus presepeiro, sou Cancão, sou o João Grilo, eu sou o Benedito, Tira-Teima e o Tiridá.

Minha volta é essa, sou ligeiro, pedra-lispe, também sou Onça-Tigre, minha dança é de invocar.

Minha roupa de chita é meu lírio, é meu gibão. E a rabeca na mão é o azougue, é o meu punhal.

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Na pancada do ganzá

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Eu estava em casa mastigando o pensamento, olhando pro firmamento, que era noite de luar. E de repente uma estrela cadente, piscando na minha frente, parou pra me falar. Ela me disse: meu poeta camarada, tome aqui quero lhe dar um presente magistral. E foi tirando do seu peito colossal um instrumento real que ela chamava ganzá. Meu ganzá, meu ganzarino, meu ganzarino real, gira o mundo, treme a terra, e eu na pancada do ganzá. (Refrão) Quando eu peguei meu ganzá pra cantar coco eu pensei que estava louco, eu não pude acreditar, pois na primeira batida da minha mão meu ganzá caiu no chão e deitou logo a falar: “Salve o coquista que chegou de longe agora você veio bem na hora de poder me resgatar da solidão onde eu tenho vivido, onde eu tenho me escondido pra poder me me revelar.” “Sou um instrumento Pequeno, feio, chinfrim, que trago dentro de mim basculho pra saculejar, garrafa velha, qualquer coisa reciclada dou beleza ritmada quando vêm me balançar.” “Dou marcação

pro samba, pro foxtrote, pro baião, forró e xote e o que mais venham a inventar. O que vier, até som do outro mundo, sou primeiro, sem segundo na arte de ritmar.” E o ganzá se colou na minha mão, apertei ele bem forte e senti forte um balançar. Fazia assim: tum, tum, tum, tum, tum, tum, tum, como no peito o baticum que está pronto para amar. E fui cantando, fui dizendo ao ganzarino: “Te conheço de menino mas hoje fui te encontrar.” Ele falou: “Te conheço há bem mais tempo mas não vai ter contratempo que possa nos separar.” E disse mais: “meu cantor, meu menestrel, eu conheço esses céus antes de Cabral chegar; pode ir me ver onde eu fui desenhado: pelo pré-homem datado lá na Pedra do Ingá.” Eu aprendi sobre ele e ele de mim, e tem sido sempre assim e assim sempre será, pois nessa vida quem ensina sempre aprende e a gente mais entende o que foi e o que virá. Fomos cantando o país do futebol, da Amazônia, praia e sol do Babau, do Boi-Bumbá, do carnaval, do São João, da Cavalhada, do Repente, da Congada, da Catira, do Guará.

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Esse país, feio, rico, pobre, lindo, que eu não sei pra onde tá indo mas eu sei que chega lá. Fomos ouvir a floresta tropical, o sertão e o litoral, ver a seca, a preamar.

Por isso eu digo, meu amigo, camarada, se não está fazendo nada por que cê não vem pra cá? Tire a gravata do pescoço, solte o nó, abra o peito e o gogó, eu, você e meu ganzá.

Despedida

(Domínio público –

Recriação musical de Antonio Nóbrega)

Eu já estou de retirada é madrugada, dou lembranças aos senhores. Sinto uma dor, dono da casa, até para o ano se eu vivo for. Adeus, boa sorte para todos, eu já me vou, já vou me retirar. Tenho saudades desta noite tão bonita, o meu coração palpita que eu não posso tolerar.

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Anexo 1.2 – Madeira que cupim não rói

Abrição de portas

(Domínio Público – Adaptação: Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Para Péo,

para Lydia97 Salve esta casa, nobre morada. Nova jornada vamos começar. Nossa festa vai principiar Com rabecas, bombos e violas. Hoje, aqui, viemos festejar, render graças à vida nessa hora. Abram as portas pro meu Reisado, cantos e loas vamos entoar.

Canudos

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Para Mestre Ariano

Eu, viandante, de um chão poento. Dias queimosos, vida sem idílio. Preces voltadas para sóis ardentes, luares claros a buscar o Auxílio. Para os meus olhos, confusão pasmosa, batalha surda, secular martírio. Ai, desatino! Ai, o meu penar! Ai, velho medo! Sombra e malpassar! Vi mamelucos, pardos, vi cafuzos. Rostos marcados, um Santo Sudário. Em Bom Conselho, Bendegó, Pontal, vi Conselheiro rezar solitário. E anunciando o inverno benfazejo, em Monte Santo subiu pro calvário. 97 Aparecem aqui as dedicatórias de cada música conforme constam no encarte do CD.

Chegança

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Para Zé Alfaiate, do Caboclinho Sete Flechas. Em memória de Galdino Jesus dos Santos.

Sou pataxó, sou xavante e cariri, ianomâmi, sou tupi, guarani, sou carajá. Sou pancaruru, carijó, tupinajé, potiguar, sou caeté, fulniô, tupinambá.

Depois que os mares dividiram os continentes, quis ver terras diferentes, eu pensei: "Vou procurar um mundo novo, lá depois do horizonte, levo a rede balançante pra no sol me espreguiçar."

Eu atraquei num porto muito seguro, céu azul, paz e ar puro, botei as pernas pro ar. Logo sonhei que estava no paraíso, onde nem era preciso dormir para se sonhar.

Mas de repente, me acordei com a surpresa, uma esquadra portuguesa veio na praia atracar. Da grande nau, um branco de barba escura, vestindo uma armadura me apontou pra me pegar.

E assustado, dei um pulo lá da rede, pressenti a fome e a sede, eu pensei: "Vão me acabar!" Me levantei, de borduna já na mão, ai, senti no coração, o Brasil vai começar.

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Quinto império

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Iaiá, me dá teu remo, teu remo pra eu remar. Meu remo caiu, quebrou-se, iaiá, lá no alto-mar. Meu sangue é trilha dos mouros, dos lusitanos, dunas, pedras, oceanos rastreiam meu caminhar. E sendo eu, que a Netuno dei meu leme, com a voz que nunca treme fiquei a me perguntar: "O que será que além daquelas águas agitadas, turvas, calmas, eu irei lá encontrar?"

Ai, mundo velho, novo mundo hei de achar! Eu decifrei astros e constelações, conduzi embarcações, destinei-me a navegar. Atravessei a Tormenta, a Esperança, até onde o sonho alcança minha fé pude cravar. Rasguei as lendas do oceano tenebroso para el-rei, o Glorioso, não há mais trevas no mar.

Olodumaré

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Para o pessoal do Nação Pernambuco

Vou-me embora dessa terra, Olodumaré, para outra terra eu vou, Olodumaré. Sei que aqui eu sou querido, Olodumaré, mas não sei se lá eu sou, Olodumaré. O que eu tenho pra levar, Olodumaré, é a saudade desse chão, Olodumaré. Minha força, meu batuque, Olodumaré, heranças da minha nação, Olodumaré. Ainda me lembro do terror, da agonia, como um louco eu corria, para poder escapar.

E num porão de um navio, dia e noite, fome, sede e o açoite conheci, posso contar. Que o destino quase sempre foi a morte, muitos só tiveram a sorte, da mortalha ser o mar. Na nova terra, novos povos, novas línguas, pelourinho, dor, à míngua, nunca mais pude voltar. E mesmo escravo, nas caldeiras das usinas, nas senzalas e nas minas, nova raça fiz brotar. Hoje, essa terra tem meu cheiro, minha cor, o meu sangue, meu tambor, minha saga pra lembrar.

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Nascimento do Passo

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Nesse passou eu vou, despranaviado. Eu sou o abre-alas, vou no meu gingado. Eu vou, eu vou, eu vou. Na crista dessa onda, vou puxando o arrastão. A marcha buliçosa sacudindo a multidão. Esquentando a multidão. Balançando a multidão. Agitando a multidão.

Entrei no passo do morcego e do saci, tramelei no do siri, cruzei tesoura no ar. Na dobradiça, eu peguei minha sombrinha, passeando na pracinha, chutando de calcanhar. No frevedouro, fiz um grande rebuliço, preto, branco e mestiço, eu chamei pro bafafá. Azuretada, a corriola destrambelha, sacoleja, se destelha, no maior calunguejar.

Andarilho

(Dalton Vogeler e Orlando Silveira)

Caí do céu por descuido. Se tenho pai, não sei, não. Venho de longe, seu moço, lugar chamado sertão. Vivo sozinho no mundo, zombei da sede, zombei. Cortei com minha peixeira todo o mal que encontrei. Fui caminhando, enfrentando as terras que o sol secou, até chegar à cidade dos homens que Deus olhou. Que o santo padre perdoe a triste comparação, melhor viver no cangaço que a tal civilização. Brinquei com o mal, brinquei, sorri quando matei. Eu vim pra ser melhor, cheguei aqui, chorei.

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O vaqueiro e o pescador

(Antonio Nóbrega e Dimas Batista Patriota)

Para Suzy e Marcos Magalhães

Nasci no sertão desfrutando as virtudes dos tempos de inverno, fartura e bonança. Depois veio a seca, fugiu-me a esperança diante de cenas cruéis e tão rudes. Vi secos os rios, as fontes e açudes, e eu que gostava tanto de pescar, saí pelo mundo tristonho a vagar. Fui ter numa praia de areias branquinhas, e olhando a beleza das águas marinhas, cantei meu galope na beira do mar. Ali na cabana de alguns pescadores, olhando a beleza do mar e do arrebol, bonitas morenas, queimadas de sol, alegres me ouviam cantar seus amores. A brisa soprava com leves rumores, o pinho a gemer e depois a chorar. Aquelas morenas, à luz do luar, me davam a impressão de que fossem sereias, risonhas, sentadas nas alvas areias, ouvindo os meus versos na beira do mar. Eu sempre que via, lá no meu sertão, caboclo vaqueiro de grande bravura, num simples cavalo, na mata mais dura, com roupa de couro pegar o barbatão, dizia, abismado, com aquela impressão: "Não há quem o possa em bravura igualar." Mas depois que eu vi um praiano pescar, numa frágil jangada ou barco veleiro, achei-o tão bravo tal qual o vaqueiro, merece uma estátua na beira do mar.

Quando as glórias que gozei...

(Domínio Público)

Quando as glórias que gozei, vou na idéia revolver, vou na idéia revolver. Sinto a força da saudade, (BIS) meu triste pranto correr. Os que já tive doces momentos (BIS) são hoje a causa dos meus tormentos.

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Madeira que cupim não rói

(Capiba)

Na lembrança de Chico Science

Madeira do Rosarinho vem à cidade, sua fama mostrar. E traz, com seu pessoal, seu estandarte tão original. Não vem pra fazer barulho, vem só dizer, e com satisfação: "Queiram ou não queiram os juízes, o nosso bloco é de fato o campeão!" E se aqui estamos, cantando esta canção, Viemos defender a nossa tradição e dizer bem alto que a injustiça dói, nós somos madeira de lei que cupim não rói.

Monga

(Domínio Público – Adaptação: Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

O palco é da grande vedete, a maior estrela da companhia. Aplausos e luzes pra ela, que a grande beldade é só simpatia. Quando ela aparece, o mundo estremece, balança todo o coreto. Rainha e valete, é a dama-curinga, seu trunfo é a sua ginga. Olhem, ela está chegando, já roubou a cena, mostrando toda a classe de grande ciclista. Trapézios, malabares, rebolados ela faz. É a saltimbanco, é a grande artista. Olhem só como ela baila! Que coisa mais fina... Que graça e que leveza... Ai, que bailarina! Quando ela se balança, a macacada se agita, assovia, geme e grita.

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Coco da lagartixa

(Domínio Público – Adaptação: Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Para Joaquim, Léo, Dolores, Jaime e Terezinha, lagartixando...

Eu vi uma lagartixa "Redondo, sinhá!" E ela era comportada. "Redondo, sinhá!" Saia à boca da noite, chegava de madrugada, com a saia na cabeça, soluçando embriagada. Com a saia na cabeça "Redondo, sinhá!" e soluçando embriagada. "Redondo, sinhá!" Eu vi outra lagartixa "Redondo, sinhá!" num coco de embolada. "Redondo, sinhá!" Negava ser mulher-dama, mas depois de três bicadas, me pegou assim de um jeito, me matou de umbigada. Me pegou assim de um jeito "Redondo, sinhá!" e me matou de umbigada. "Redondo, sinhá!" Eu vi outra lagartixa, "Redondo, sinhá!" ai, tava numa janela. "Redondo, sinhá!" Ai, dizendo que era honrada, que era moça donzela. Vi quatro calangos verdes, todos eram filhos dela. Vi quatro calangos verdes, "Redondo, sinhá!" e todos eram filhos dela. "Redondo, sinhá!" Eu vi outra lagartixa, "Redondo, sinhá!" essa era uma senhora. "Redondo, sinhá!" Passava a noite no samba, cachimbava a toda hora, dizia pro seu marido: "É duro trabalhar fora!" Dizia pro seu marido: "Redondo, sinhá!" "É duro trabalhar fora!" "Redondo, sinhá!"

Eu vi outra lagartixa "Redondo, sinhá!" que na lagoa morou, "Redondo, sinhá!" Que sonhava ser princesa, por um sapo apaixonou-se, beijou ele a vida inteira, ele não desencantou. Beijou ele a vida inteira, "Redondo, sinhá!" e ele não desencantou. "Redondo, sinhá!" Eu vi outra lagartixa "Redondo, sinhá!" tomando banho de açude. "Redondo, sinhá!" O açude estava cheio, fui banhar-me, mas não pude. Ela sujou toda a água, ainda ficou cheia de grude. Ela sujou toda a água, "Redondo, sinhá!" ainda ficou cheia de grude. "Redondo, sinhá!" Eu vi outra lagartixa "Redondo, sinhá!" enganar pato e guiné. "Redondo, sinhá!" Teve um filho de uma pulga, outro de um bicho-de-pé, doze de uma cobra-d'água, vinte e três de um jacaré. Doze de uma cobra-d'água, "Redondo, sinhá!" e vinte e três de um jacaré. "Redondo, sinhá!" Eu vi outra lagartixa "Redondo, sinhá!" que queria se casar. "Redondo, sinhá!" Me pediu em casamento, mas mamãe jurou não dar, ela fugiu com papai, suas filhas fui criar. "Redondo, sinhá!" Ela fugiu com painho, "Redondo, sinhá!" E suas filhas fui criar. "Redondo, sinhá!"

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Eu vi uma lagartixa, "Redondo, sinhá!" Ai, tava no meio da feira. "Redondo, sinhá!" Tinha pra mais de cem netos, jurava que era solteira. Perguntei a sua idade, me negou a vida inteira. E perguntei a sua idade, "Redondo, sinhá!" me negou a vida inteira. "Redondo, sinhá!" Eu vi outra lagartixa "Redondo, sinhá!" na varanda de um sobrado. "Redondo, sinhá!" Ela tava namorando,

junto com seu namorado, assentada na cadeira e o rabão dependurado. Assentada na cadeira "Redondo, sinhá!" e o rabão dependurado. "Redondo, sinhá!" Quem “ver” uma lagartixa "Redondo, sinhá!" no sertão, mata ou no mar, "Redondo, sinhá!" entregue logo pra ela um pandeiro ou um ganzá, que ela canta esse coco do jeito que eu ouvi lá... "Redondo, sinhá!"...

Maracatu Misterioso

(Antonio José Madureira e Marcelo Varella)

Quem, quem vem, quem vem lá? Quem, quem vem, quem vem lá? Que cortejo é aquele, senhor? (REFRÃO) Vindo aqui vou perguntar, quem vem lá? Sou de casa, vim do Norte. Sou bonito, original. Sou de paz, não sou de guerra, vim brincar o carnaval. Quem, quem vem, quem vem lá?... (REFRÃO) Eu sou Misterioso como és Imperial. Sou Mateus, sou Catirina, na bexiga eu sou o tal. Quem, quem vem, quem vem lá?... (REFRÃO) Sou o Capitão Pereira, sou madeira, sou fiel. Esse boi que chega agora vem de lá dançar no céu. Quem, quem vem, quem vem lá?... (REFRÃO) Ê boi, ê boi, ê Boi Maravilhoso. Ê boi, ê boi, venha logo se “amostrar”. Ê boi, ê boi, ê Boi Misterioso. Ê boi, ê boi, chegue logo pra dançar.

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Lição de namoro

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Para Lúcia, para Rosane

Menina, vou te ensinar como é que se namora: (BIS) põe a alma no sorriso, e o sorriso põe pra fora. Olhe nos olhos, olhe dentro da pupila, veja bem se ela brilha ou se quer se apagar. Pois o olhar é ele quem denuncia se está quente ou se está fria (BIS) a paixão, o bem-amar Pegue na mão, sinta dela seu calor, veja dela seu rubor, sua força, seu pulsar. Porque a mão é ela quem anuncia se o namoro nasce e cria (BIS) ou se nasce e vai murchar. Menina, vou te ensinar como é que se namora: (BIS) põe a alma no sorriso, e o sorriso põe pra fora. Quanto ao beijo, tem que ser bem de mansinho, permitido com carinho, pra poder não machucar. Porque o beijo é ele quem amacia, quem dá paz e é o guia (BIS) para o novo amor chegar. E num abraço, apertado, mas com jeito, sinta como bate o peito, se é forte ou quer falhar. Pois coração é fonte de alegria, é ele quem prenuncia (BIS) se o amor há de jorrar. Menina, vou te ensinar como é que se namora: (BIS) põe a alma no sorriso, e o sorriso põe pra fora.

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Sambada dos Mestres Vou-me embora

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire) (Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Para Salustiano, Na lembrança do o Mestre Salu falado Capitão Pereira e de Guariba

Para Leda Alves

As sete chaves das artes Vou-me embora, (BIS) eu trago todas comigo. Vou-me embora, Com elas na minha mão, adeus, mana! enfrento qualquer perigo. Senhores, não canto mais. As tenho como presentes (BIS) Lê-lê-ô! dos mestres grandes amigos. Meu mestre Salustiano Adeus, mana! me deu lá na Mata Sul uma garganta de ouro Vamos embora, rabeca, pra eu cantar maracatu. meu ganzá e meu pandeiro, minha viola de prata, Embolar com um ganzá bandolim, meus companheiros! aprendi com Chico Antônio. Adeus, palco! Adeus, platéia! Tocar tudo com a rabeca, Eu vou para outro terreiro. Cego Aderaldo e Sinfrônio. Com esses dois instrumentos (BIS) Adeus, calor! Adeus, vento! faço o maior pandemônio. Adeus, sombra e claridade! No improviso da viola A quem ficou, dou adeus! de todos sou o primeiro Adeus também à cidade! porque sou cobra criada Eu vou partir, mas eu levo pelo Pinto de Monteiro. lembrança e muita saudade! Faceta no pastoril me ensinou ser mungangueiro. Com Dona Santa aprendi a batucar num terreiro e com Leandro de Barros (BIS) me doutorei folheteiro. Com o Capitão Pereira me diplomei menestrel, bumba-meu-boi ressuscito igual a Cristo no céu. Eu louvo os mestres das danças, lhes dou todo o meu carinho, Pastinha e Zé Alfaiate, capoeira e caboclinho. Eu louvo Mateus Guariba (BIS) do meu cavalo-marinho. Vivo e brinco com meu povo, sou um cavaleiro andante, nesse nosso mundaréu minha sina é ser brincante.

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Anexo 1.3 – Pernambuco falando para o mundo

Vinde, vinde, moços e velhos98

(Domínio público – recriação musical de Antonio Nóbrega)

Vinde, vinde, moços e velhos, vinde todos apreciar! Vinde, vinde, moços e velhos, vinde todos admirar! Como isso é bom, como isso é belo! Como isso é bom, é bom demais! Olhai, olhai, admirai! (BIS) Como isso é bom, é bom demais!

Festa da padroeira

(Capiba)

Quando a passarada passa em revoada e a charanga vai tocando e sem querer eu vou cantando. É dia de festa, dia de bandeira. Bandeira de novena, novena da padroeira. Quando estou sozinho e ouço esse dobrado que recordações das moças do sobrado... Vejo a meninada pulando e gritando, e o fogueteiro os seus foguetes espoucando. Era chique ver todo mundo na rua a vibrar e a passear, a charrete e o fordeco, a mulher, o coronel e o seu chofer em direção à igreja, onde o povo cantava em louvor à santa quando a festa começava.

98 Repetem-se aqui as letras das canções gravadas mais de uma vez – além de Vinde, vinde, moços e velhos, aparecerão Chegança, Olodumaré e Minervina – para registrar a importância que elas apresentam e o papel que desempenham, por meio de seus respectivos textos, no roteiro formado por cada CD ou espetáculo, como indicado na Introdução.

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Chegança

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Para Zé Alfaiate, do Caboclinho Sete Flechas. Em memória de Galdino Jesus dos Santos.

Sou pataxó, sou xavante e cariri, ianomâmi, sou tupi, guarani, sou carajá. Sou pancararu, carijó, tupinajé, potiguar, sou caeté, fulniô, tupinambá.

Depois que os mares dividiram os continentes, quis ver terras diferentes, eu pensei: "Vou procurar um mundo novo, lá depois do horizonte, levo a rede balançante pra no sol me espreguiçar."

Eu atraquei num porto muito seguro, céu azul, paz e ar puro, botei as pernas pro ar. Logo sonhei que estava no paraíso, onde nem era preciso dormir para se sonhar.

Mas de repente, me acordei com a surpresa, uma esquadra portuguesa veio na praia atracar. Da grande nau, um branco de barba escura, vestindo uma armadura me apontou pra me pegar.

Assustado, dei um pulo lá da rede, pressenti a fome e a sede, eu pensei: "Vão me acabar!" Me levantei, de borduna já na mão, ai, senti no coração, o Brasil vai começar.

Olodumaré

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Para o pessoal do Nação Pernambuco

Vou-me embora dessa terra, Olodumaré, para outra terra eu vou, Olodumaré. Sei que aqui eu sou querido, Olodumaré, mas não sei se lá eu sou, Olodumaré. O que eu tenho pra levar, Olodumaré, é a saudade desse chão, Olodumaré. Minha força, meu batuque, Olodumaré, heranças da minha nação, Olodumaré.

Ainda me lembro do terror, da agonia, como um louco eu corria, para poder escapar. E num porão de um navio, dia e noite, fome, sede e o açoite conheci, posso contar. Que o destino quase sempre foi a morte, muitos só tiveram a sorte, da mortalha ser o mar.

Na nova terra, novos povos, novas línguas, pelourinho, dor, à míngua, nunca mais pude voltar. E mesmo escravo, nas caldeiras das usinas, nas senzalas e nas minas, nova raça fiz brotar. Hoje, essa terra tem meu cheiro, minha cor, o meu sangue, meu tambor, minha saga pra lembrar.

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Cantigas de roda

(Getúlio Cavalcanti)99

Quantas cantigas eu recordo ainda da meninada onde me criei... A cirandinha dando meia volta e o pau no gato que eu atirei. Ainda escuto a ponte da aliança que todos passam e eu nunca passei. O Pai Francisco quando entrou na roda e a rica-rica-de-marré-descer. Sabem que o cravo só brigou com a rosa por ser mais formosa a bela do buquê. E a Terezinha de Jesus caiu com a machadinha que vai ser seu par. E hoje eu fico a relembrar encantos de delírios tantos que não vão voltar.

A dor de uma saudade

(Edgard Moraes)100

A dor de uma saudade vive sempre no meu coração ao relembrar alguém que partiu deixando a recordação, nunca mais... Hão de voltar os tempos felizes que passei em outros carnavais. Cantar! Oh! Cantar! É um bem que dos céus nos vem. Se algumas vezes nos faz chorar ante os reveses nos faz rir também. Cantar! Oh! Cantar! Com expressão de uma emoção que nasce d’alma e vem dizer ao coração que a vida é uma canção.

99 A obra poético-musical de Getúlio Cavalcanti, um dos mais férteis e respeitados compositores pernambucanos carnavalescos dos últimos tempos, está compilada em Paes Barreto (2000): Getúlio Cavalcanti: o menestrel do frevo-de-bloco. A letra de Cantigas de roda está na página 84 desta obra. 100 Também importante compositor pernambucano carnavalesco (1904-1973).

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Pau-de-arara

(Guio de Moraes e Luiz Gonzaga)

Quando eu vim do sertão, seu moço, do meu Bodocó, a maleta era um saco e o cadeado era um nó. Eu trazia a coragem e a cara, viajando num pau-de-arara. Eu penei, mas aqui cheguei. Eu penei, mas aqui cheguei. Trouxe o triângulo (no matolão) Trouxe o gonguê (no matolão) Trouxe o zabumba dentro do matolão. Xote, maracatu e baião, tudo isso eu trouxe no meu matolão.

Mulher-peixão

(Luiz de França)

Ele gosta dela e não maltrata ela, não desfaz dela, trata-a muito bem. (BIS) Foi à capela e casou com ela, não repara nela os defeitos que tem.

O que mata ela é uma perna torta, e a outra morta de uma congestão. Tem um braço seco que furou no prego, tem um olho cego e só tem uma mão.

Já foi operada de apendicite e de sinusite, foi até feliz.

No pé do cabelo nasceu uma espinha e a coitadinha perdeu o nariz. Só tem uma orelha mas não é defeito, já perdeu um peito numa operação. Quebrou a espinha e ficou marreca, ela é careca e só tem um pulmão. Ela tem na cara uma queimadura, sofre de loucura e do coração. O vento passou, entortou-lhe a boca, é fanhosa e mouca mas é um peixão.

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Minervina

(Antonio Nóbrega e Marcelo Varella)

Quem nunca viu amor assim tão roxo vai fazer fuxico quando “ver” Minervina. “Desvergonhada”, não conhece alvoroço, na hora H é minha estrela matutina. É minzinguenta quando vai pra brincadeira, não dá bandeira na hora da cavilação. É majestosa, topa tudo a noite inteira, quando me arrocha faz das tripas coração. Oi, Minervina! Oi, Minervina! (BIS) “Rebola-bola” no consolo das meninas.

Seleção Capiba

De chapéu-de-sol aberto De chapéu-de-sol aberto pelas ruas eu vou. A multidão me acompanha, eu vou.101 Eu vou e venho pra onde não sei. Só sei que carrego alegria pra dar e vender. Espero o ano inteiro até ver chegar fevereiro para ouvir o clarim clarinar e a alegria chegar. Essa alegria em mim parece que não terá fim, mas se um dia o frevo acabar juro que vou chorar.

Oh! Bela

Você diz que ela é bela, ela é bela, sim, senhor! Porém poderia ser mais bela se ela me desse o seu amor.

101 Falta este verso da música no texto do encarte que acompanha o CD Pernambuco falando para o mundo.

Bela é toda a natureza (Oh! Bela!) Belo é tudo o que é belo (Oh! Bela!) O perfume de uma rosa, o sorriso da criança, o que fica na lembrança. Belo é ver o passarinho (Oh! Bela!) Indo em busca do seu ninho (Oh! Bela!) Todo mundo se amando com amor e com carinho uns chorando e outros sorrindo de amor.

Cala a boca, menino!

Ouvi dizer que numa mulher não se bate nem com uma flor. Loura ou morena, não importa a cor, não se bate nem com uma flor. Já se acabou o tempo que a mulher só dizia então: “Xô, galinha! Cala a boca, menino! Ai, ai, não me dê mais não!”

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Frevo e ciranda

Eu fui à Praia do Janga pra ver a ciranda no seu cirandar. O mar estava tão belo e um peixe amarelo eu vi navegar. Não era peixe, não era, era Iemanjá, Rainha, dançando a ciranda, ciranda, no meio do mar.

Trombone de prata

Ouvi dizer que o mundo vai se acabar, que tudo vai pra cucuia, o sol não mais brilhará. Mas se me derem um bombo e uma mulata, e um trombone de prata, o frevo bom viverá. Pode acabar o petróleo, pode acabar a vergonha, pode acabar tudo, enfim, mas deixem o frevo pra mim!

Vassourinhas

(Matias da Rocha e Joana Batista)102

Se essa rua fosse minha eu mandava ladrilhar, com pedrinhas de brilhantes (BIS) pra Vassourinhas passar.

Somos nós, os Vassourinhas, todos juntos em borbotão. Vamos varrer nossa cidade com cuidado e precisão.

102 Esta composição é um dos frevos de maior sucesso do carnaval pernambucano de todos os tempos, original do Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas do Recife. Nóbrega a interpreta em ritmo de valsa, num arranjo do violonista Edmilson Capelupi, que integra o grupo de músicos que o acompanha.

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Pernambuco falando para o mundo Despedida

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire) (Domínio público – Adaptação de Wilson Freire)

Pernambuco falando para o mundo Às cinco horas da manhã, Tenho um gogó de ouro, (REFRÃO) quando vem rompendo a aurora, meu cantar é meu tesouro. os anjos cantam no céu e as pastorinhas vão embora. Pitomba, preaca, pife e pandeiro Esse é o encontro, é essa emoção Com saudades eu me retiro, Rainhas e reis, reisado e rojão que eu não vim para ficar. Negros nagôs, navios negreiros As moças são deliciosas, Ascenso, arrecifes, angolas arteiros belas e formosas, Maraca, mascates e maracatu lindas como as rosas. Baião, berimbau, batuque, bantu Usina, umbigada, umburana, umbuzal Já falta pouco para o Sol Capiba, calunga, calor, carnaval vir nos braços da aurora, Oxóssi, Obá, Oxum, Olodu. vem pra ficar com vocês (REFRÃO) para levar-nos embora.

Sou braço de mar, um rio caudaloso Vivendo de palco em palco, No sertão sou seco, na mata estourado entre chegadas e partidas, Eu, nos arrecifes, sou um mar furado estamos nós, outra vez, A cova dos rios, salgado e formoso na hora da despedida. E nesse meu céu azul luminoso ao sul de estrelas Cruzeiro avistei Nós, brincantes, nos retiramos, Por ele à noite no mar me guiei não viemos pra ficar. Eu sou Paranã, sou Paranabuco A vida de um menestrel Falando pro mundo eu sou Pernambuco é sem porto e ao léu, a ler meu Brasil aqui comecei. sempre a caminhar. (REFRÃO)

Se alguém me escutar tinindo a garganta verá que meu canto desvenda segredos. Acaba mistérios, destrói todos medos Herdeiro da voz sou de Dona Santa Meu canto é sangue, é pedra que encanta desterra o tesouro no chão mais profundo Eu sou um brincante, eu sou vira-mundo Se estou azougado, ninguém me segura Acima de mim, só Deus nas alturas Eu sou Pernambuco falando pro mundo. (REFRÃO)

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Anexo 1.4 – O marco do meio-dia

Apresentação dos músicos

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Conduzindo a minha voz nesta cadência pulsante, pra quem escuta meu canto, aqui, em casa ou distante, chamo pra me acompanhar os músicos, nesse instante.

Viva os percussionistas, pandeirista e batuqueiro, bombo, tarol e ganzá vão tocar neste terreiro. Eu não sei se eles ou o som qual dos dois nasceu primeiro.

Os homens que tocam cordas esticadas, leves, finas, que harmonizam o meu canto, voz que não desafina, com dedos debulham notas do bordão à corda prima.

Viva as flautas e flautistas, os sopristas, os pifeiros, quem tira som de canudos, de metais e bambuzeiros, quem é pai e mãe do vento, de Pã, o deus dos gaiteiros.

Viva o homem do fole, nosso mestre sanfoneiro, animador de festejos por esse Brasil inteiro. Em palcos, bares, metrôs, forrós, sambadas e terreiros.

Abrindo aqui a jornada de toques, loas, canções, celebrando a alegria com o fervor das orações, licença peço pra entrar em vossos bons corações.

Mestiçagem

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Uma negra com um branco vi casar na camarinha, um branco com uma índia vi casar lá na matinha, um negro com uma índia vi casar na capelinha.

Um negro com uma negra vi casar atrás do muro, um branco com uma branca vi casar lá no escuro, um índio com outra índia casaram em Porto Seguro.

Eu vi nascer um mulato do casal da camarinha, vi nascer um mameluco do casal lá da matinha, eu vi nascer um cafuzo do casal da capelinha.

Eu vi nascer um crioulo do casal de atrás do muro, eu vi nascer um mazombo do casal lá do escuro, eu vi nascer outro índio do casal Porto Seguro.

Uma mulata moleca vi casar com um japonês, uma catita cafuza com um sírio-libanês, crioulo com alemoa vejo casar todo mês.

Me casei com uma mestiça, eu mestiço por inteiro, tivemos muitos mestiços cada vez mais verdadeiros, cada vez mais misturados, cada vez mais brasileiros.

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200

Viagem maravilhosa

(Antonio Nóbrega, Bráulio Tavares e Wilson Freire)

Nosso Brasil, acompanhe a minha idéia, foi Atlântida e Pangéia, um sertão que já foi mar. Já foi Rodínia, foi Panótia e Gonduana, era belo e bacana antes de Cabral chegar. Também foi Ilha do Brasil, de São Brandão, Vera Cruz, nome cristão trazido de além-mar. Foi Pindorama, foi Terra de Santa Cruz, Papagalis, meu Jesus, depois de Cabral chegar. Nosso país tem tesouros, tem arcanos, tem mais de trinta mil anos de histórias pra contar. São trinta mil em que o índio teve vez, quinhentos que o português e o negro chegaram cá. Aí, um dia, eu sentado na cadeira, um estalo-de-Vieira clareou a minha mente. Eu percebi que tinha de procurar descobrir e encarar minha terra e minha gente. E sem demora minha burra eu selei, pus um cabresto e montei, pus espelho e um radar. Pus uma bússola, astrolábio e luneta, diário, mapa e caneta, e falei: “Vou viajar!” E mesmo antes do sol, do cantar do galo, do sino bater badalo, eu saí pelo caminho...

Os cascos dela velozes matraqueavam, pareciam que estavam tocando Brasileirinho.

Cavalgar, cavalgar, eu cavalguei. No país dos brasileiros (REFRÃO) conheci o mundo inteiro e por ele eu passeei. No meu galope, mais veloz que um corisco, eu cruzei o São Francisco, mergulhei no Iguaçu. Fui despertar no sol da Zona da Mata, vestido de ouro e prata, sambando maracatu. Passei por todas as ladeiras de Olinda, e muita morena linda ainda se lembra de mim... Cantei seresta, tirei versos da ciranda, toquei tuba numa banda, na outra toquei flautim. No meu caminho enchi o Brasil de pernas, até chegar nas cavernas das Grutas de Maquiné. Voltei de lá com um papiro na mão, trazendo a decifração dos segredos de Sumé. Eu vi xamãs dominando tempestades, cavando Sete Cidades, separando Marajó... Vi o profeta puxando com sua cruz cada órfão de Jesus que cruzou Cocorobó.

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Cavalgar, cavalgar, eu cavalguei. No país dos brasileiros (REFRÃO) conheci o mundo inteiro e por ele eu passeei. Fiz um almoço lá no Buraco da Jia, começou ao meio-dia, terminou pela manhã: cuscuz com fava, bode assado, dobradinha, macaxeira com farinha, codorniz e ribaçã. Bolo de milho, marisco no vinagrete, feijoada com croquete, quitute e baião-de-dois. Comi de tudo sem pressa, sem me cansar, só para me preparar para o que vinha depois... Arroz de polvo, risoto de camarão, maionese e macarrão, salpicão, frutos do mar, feijão-macassa, galinha de cabidela e um bife de panela bem leve, pra descansar. Um ensopado de carne com batatinha, feijão-verde e farofinha, sanduíche de peru. Pra terminar um conhaque, um cafezinho, mais um cálice de vinho e três doses de Pitu. Cavalgar, cavalgar, eu cavalguei. No país dos brasileiros (REFRÃO) conheci o mundo inteiro e por ele eu passeei. Porém, um dia eu cruzei em meu caminho com um cavalo-marinho que era gêmeo como o meu.

Puxei a rédea, fiquei olhando pra ele, ele achou que eu era ele, eu achei que ele era eu. Nesse momento mais um galope se ouviu, outro cavalo surgiu passando perto da gente. Uma figura semelhante e parecida, mas como tudo na vida tinha algo diferente. E mais dois outros chegaram no mesmo instante, e logo mais adiante outro ainda apareceu. E eu que pensava que era único no mundo, encontrei num só segundo muitos outros como eu. Saí puxando a Cavalhada-Marinha, parecia idéia minha, parecia carnaval. Fomos dançando na ponte do arco-íris, e quando rodei o pires apurei quase um real. Eu virei noite galopando esse país, de metrópoles febris e esquecida imensidão. Vi a coragem de quem enfrentou a morte, vi um vento lá do norte, vi a vela em minha mão. Vi uma luz branca, azul, aparecida, e uma mulher parecida com aquela lá do céu. Vi tantas luzes que lembrá-las é revê-las, tantas luas e estrelas entre as rendas do seu véu. E da mão dela uma luz se projetava, e essa luz me apontava uma Tróia no sertão. Uma muralha, dentro dela uma cidade,

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fora dela a crueldade, a morte e a escravidão. Era o Quilombo lá da Serra dos Palmares, erguendo alto nos ares a bandeira de Zumbi. Saltei da burra, devagar fui caminhando,

me cheguei, fui escutando o que acontecia ali. Cavalgar, cavalgar, eu cavalguei. No país dos brasileiros (REFRÃO) conheci o mundo inteiro e por ele eu passeei.

Zumbi

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Zumbi, um negro, respirando rebeldia, foge pra mata um dia à procura do Lugar. Era um Quilombo, a terra dos ex-escravos, todos livres, sem os travos, sem ter dono pra ferrar. Vinham mestiços, índios chegavam do eito, todos lá tinham direito, preto, branco, sarará. Uma nação de iguais sem oprimidos, de homens livres nascidos, crescidos sem apanhar. O sol, o sol lá vem. (REFRÃO) Eu namoro uma morena, que sou moreno também. Chegaram ali brancos pobres, mamelucos, com pau, pedra e trabuco pra liberdade ganhar. Todos queriam ser é mais um quilombola não viver pedindo esmola a quem não queria dar. Uma cruzada contra os povos livres, bravos, para mantê-los escravos, correram então a formar.

E a batalha derradeira aconteceu, jamais dela se esqueceu quem nasceu nesse lugar. O sol, o sol lá vem. (REFRÃO) Eu namoro uma morena, que sou moreno também. Vi preto livre lá na Serra da Barriga enfrentar bala e urtiga para não se escravizar. Como uma praga, saída dos Evangelhos, vi Domingos Jorge Velho Palmares incendiar. Eu vi foi tiro, eu vi corte de peixeira, pernada de capoeira, vi corpo no chão rolar. Eu vi Zumbi ser preso, ser torturado, violado e humilhado por querer se libertar. O sol, o sol lá vem. (REFRÃO) Eu namoro uma morena, que sou moreno também. Eu vi seu corpo ser à faca esquartejado,

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como um bicho ser sangrado, eu vi o seu degolar. Vi a cabeça enfiada numa vara, eu vi toda a sua cara no sol quente descarnar. Primeiro sonho brasileiro de igualdade, fraterno, de liberdade,

ali veio se acabar. Mas foi semente e deixou ensinamento que ainda está em tempo de viver pra se sonhar. O sol, o sol lá vem. (REFRÃO) Eu namoro uma morena, que sou moreno também.

Coco da bicharada

(Recriação de cantiga e versalhada popular por Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Vou contar, que eu conheço, e você nem acredita: uma cidade esquisita onde tudo é pelo avesso. Se quiser dou o endereço para visitá-la um dia, gente lá não tem valia, como bicho é tratada, lá o homem não é nada só que manda é a bicharia. Avoa, meu caboré, peneira, meu gavião. Palmatória quebra dedo, (REFRÃO) palmatória faz vergão. Quebra tudo, quebra pedra, só não quebra opinião. Vi mosca de camisola, vi cavalo num debate, vi uma traça alfaiate, guaxinim tocar viola, um siri jogando bola, vi um pica-pau ferreiro, um veado arruaceiro, vi um mosquito tossindo, vi uma gata parindo e o cachorro era o parteiro. (REFRÃO) Vi um peixe de chocalho, Uma perua discreta, jabuti que era atleta, mais veloz que um atalho,

calando jogar baralho, formiga tapando furo, a lagartixa no muro dando uma de alpinista, e um preá capitalista emprestar dinheiro a juro. (REFRÃO) Eu vi um jumento escrevendo, vi preguiça trabalhando, vi a besta reclamando, eu vi um morcego lendo, caranguejeira tecendo, porca em água-de-cheiro, vi um cururu faceiro, coruja no oculista, vi tatu ser maquinista lá no metrô de Pinheiros. (REFRÃO) Vi a pulga se coçando, avestruz tirar encosto vi barata ter bom gosto, um bode se barbeando, um gambá se perfumando, seriema ser modelo, vi minhoca de cabelo, vi cobra de suspensório, macaco no escritório organizando desmantelo. (REFRÃO)

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Vi onça vegetariana, piolho coçar cabeça, vi um burro prestar queixa, leão comendo banana, vi uma zebra de pijama, eu vi um peba engenheiro,

guariba tocar pandeiro, tanajura usando tanga, vi o cão chupando manga, batendo bombo em terreiro. (REFRÃO)

Estrela-d’alva

(Antonio Nóbrega, Bráulio Tavares e Zezinho Pitoco)

Ó estrela-d’alva, olha a luz do dia. Ó estrela-d’alva, olha a luz do sol. (REFRÃO) Ó estrela-d’alva, não me deixe sem meu guia. Ó estrela-d’alva, não me deixe só.

Caixa de guerra, maracá, porta-bandeira, rainha negra batendo palma de mão. Baque virado fez tremer o chão do mundo, bombo profundo ressoou trovão. Ladeira acima os cortejos vão seguindo, Brasil afora vai cantando a procissão... Nos estandartes os emblemas do Divino, olhos na altura e os pés no chão. (REFRÃO) Num mar de gente os andores navegando, santos de barro e resplendores de papel,

ramos e palmas verdejando a rua inteira, e a padroeira a flutuar no céu.

Anjos-meninos de olhos pretos e asas [brancas, e a banda toca um hino triste e triunfal, cristãos e mouros cruzam lanças na avenida e se ajoelham frente à catedral. (REFRÃO) Cacos de vidro são rubis e diamantes, e cada crente nesse instante é um Jesus, cada promessa conta o drama de uma vida, e cada vida se transforma em luz. Blocos desfilam seus calungas e brincantes, bichos gigantes, jaraguá, cobra-coral. Reis maltrapilhos vão cantando Ave-Maria, e a romaria puxa o carnaval. (REFRÃO)

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Flecha fulniô (Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Sumaúma grande brotou curumim. Ave miúda nasceu passarim.

Sangue fulniô, pegadas toré, um arco no corpo, a flecha Mané.

Fogo na galera delira a aplaudir, um anjo torto barroco a sorrir.

Garrincha no nome, nas pernas garruchas, no chute um morteiro, um canhão de buchas.

Um deus nos estádios abrindo retrancas, um desengonçado que as redes balança

Mandinga, catimba, a lógica, a tática, de nada valiam para as pernas mágicas.

Mais um gol de letra, de placa, um golaço, a bola lhe adora, e corre pro abraço.

Malasartes do jogo, driblando zagueiros, um bobo pra corte, um herói brasileiro.

Sem Maracanã, sem drible na área, na noite sem grito, estrela solitária.

Partiu, foi morar na constelação, deixou pátria órfã, sem circo a nação.

O romance do Aleijadinho

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

No tempo Brasil Colônia, terra de brancos barões, surgia um povo mestiço já filhos desses torrões. Desejos de pátria livre tomavam seus corações.

Dentre esses brasileiros, chamados de desraçados, um filho de escrava negra, mulato, pobre e bastardo, virou mestre-entalhador, ofício o mais respeitado.

Mas um dia uma doença com o destino combina, destrói-lhe as mãos e os pés,

todo o seu corpo em surdina. Cheio de chagas e dor passa a cumprir sua sina. Tinha a missão de fazer, com dois formões afiados, bem amarrados aos punhos, homens, santos, lapidados, da pedra e da madeira tal um filho livre gerado. Eram os santos que esculpia mineiros inconfidentes. Num apóstolo se via as feições de Tiradentes, um sonhador luminoso com a terra independente.

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Do seu talhe então surgia uma nova identidade da nação que se formava, mestiça, sim, de verdade. Riscou na pedra e madeira os carminhos da liberdade.

À medida que seu corpo ia se desfigurando, e com as chagas crescentes

ia se despedaçando, o que caía no chão nova terra ia formando.

Talhando gente e frontões, nas Minas ele vagava, visionário, itinerante, uma nação, inventava. Era um mestiço, meu Deus, que um Brasil profetizava.

Galope beira-mar para Bispo do Rosário

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire) Então, meia-noite, anjos emissários, De enorme tarefa e tudo à mão, em conta de sete, de aura azulada, só tinha sucata para começar. falaram pra ele, “punhando” as espadas: Sem barro de Adão para ele soprar, “És tu o escolhido, Bispo do Rosário. só cacos de vidro e tacos de telha, Terás que fazer o teu Inventário ali no hospício da Praia Vermelha e reconstruir o Universo sem par, cantando galope na beira do mar. pra diante de Deus tu te apresentar vestido em teu manto vermelho-centelha.” Juntando pedaços de pano, caixotes, Entrou no hospício da Praia Vermelha com pregos, botões, colheres, canecos, cantando galope na beira do mar. flanelas, lençóis, agulhas, chinelos, brinquedos, moedas, um velho holofote, Aí agarrou-se àquela missão, lutou contra todos, virou Dom Quixote, mas todos diziam que era loucura. com lixo a empreitada pôde terminar, Sozinho a sentir a dor, a agrura, até que um anjo o veio buscar. de ter que fazer a reconstrução. E aí, com meu Deus fizeram parelha, saiu do hospício da Praia Vermelha cantando galope na beira do mar.

Martelo do marco d’o meio-dia (Antonio Nóbrega e Ariano Suassuna)

A Bandeira do Sol estrala ao vento Ao final desta Dança bela e forte e ressoa a minha voz de Cantador, eu que sou o Cantador, dono da Casa, num protesto do Sonho contra a Dor, e com versos de sangue, fogo e brasa, a pobreza do povo e o sofrimento. forjo o Marco e celebro a minha sorte. Nas estrelas do Canto, o pensamento Na viola, eu vou batendo a Morte ergue um Marco que é só anunciado. e assumindo a coroa de Guerreiro. Nossa sorte de Povo injustiçado Ao cantar meu país, sou o Lanceiro, é vencida por nós ao som da luta, olho o sangue ferido do meu povo e no meio do palco o que se escuta e sonho ao meio-dia um canto novo, é o sol da justiça do Sonhado. levantando este Marco brasileiro.

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Anexo 1.5 – Lunário perpétuo

O rei e o palhaço

(Antonio Nóbrega e Bráulio Tavares)

Sua coroa é de ouro, o meu chapéu é de palha. A sua cota é de malha, o meu gibão é de couro. Sua justiça é no foro, (BIS) minha lei é o consenso. O seu reinado é imenso, minha casa é o meu país. Você é preso ao que diz, eu digo tudo o que eu penso. Você vem com a arma erguida, eu vou abaixando a guarda. Você vem vestindo farda, eu de roupa colorida. Você disputa corrida, (BIS) eu corro pra relaxar. Sua marcha é militar, a minha é de carnaval. Seu traje é de general, eu visto pena e cocar. Você liga a motosserra, eu planto flor no cerrado. Você só anda calçado, eu piso com o pé na terra. Você quer vencer a guerra, (BIS) eu quero ganhar a paz. Você busca sempre mais, eu quero só o que é meu. Você se acha europeu, eu sou dos canaviais. Você vem com a força bruta, eu vou com a ginga mansa. Você vem erguendo a lança, e eu erguendo a batuta. Você me traz a cicuta, (BIS) eu lhe dou chá de limão. Você diz que é capitão, eu sou só um mensageiro. Você é um brigadeiro, eu sou só um folgazão.

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Romance da filha do imperador do Brasil

(Antonio Nóbrega e Ariano Suassuna)

O Imperador Dom Pedro tem uma filha bastarda, a quem quer tanto do bem que ela ficou malcriada! Queriam casar com ela barões de capa e espada. Ela, porém, orgulhosa, a todos que recusava: – Este é menino! Esse é velho! Aquele lá não tem barba! O de cá não tem bom pulso pra manejar uma espada! Dom Pedro falou, se rindo: – Ainda serás castigada! Não vás tu de algum Vaqueiro terminar apaixonada! E na fazenda de seu Pai, já no fim da madrugada, um dia, numa janela, a Infanta se debruçava. Viu passar três moradores que trabalhavam de enxada. O mais garboso dos três era o que mais trabalhava. Tanto plantava algodão como do gado cuidava. Vestia gibão de couro, fortes sapatos calçava, na aba do chapéu de couro fina prata se estrelava. Pois logo desse Vaqueiro a Infanta se apaixonava. E o Vaqueiro só cavando: ele sabe o que cavava! A Princesa chama a Velha em que mais se confiava: – Estás vendo aquele Vaqueiro trabalhando ali, de enxada? Condes, Duques, Cavaleiros,

por nenhum eu o trocava! Vai chamá-lo aqui, depressa, e ninguém saiba de nada! A Velha vai ao Vaqueiro que na terra trabalhava: – Vem comigo, meu Vaqueiro! Aí, deixa dessa vista baixa... Levanta os olhos, que vês a Estrela da Madrugada! Entraram pelo portão, que a porta estava fechada, na camarinha da Moça o Vaqueiro já chegava: – Senhora, o que é que me manda? Eu vim por vossa chamada! – Quero saber se te atreves a queimar minha coivara! – Atrever, me atrevo a tudo, Que um homem não se acovarda! Dizei-me, porém, Senhora, onde está vossa coivara! – É abaixo dos dois montes, na fonte das minhas águas, abaixo do tabuleiro e da furna da Pintada, na linha da perseguida, no corte da desejada! Passavam o dia folgando, o mais da noite passavam, e o Vaqueiro socavando, ele sabe o que cavava! À meia-noite a Princesa pediu tréguas, por cansada: – Basta, basta, meu Vaqueiro! Queimaste mesmo a coivara! Não sei se por varas morro ou com ela incendiada! E assim a filha do Rei do orgulho foi castigada!

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Carrossel do destino

(Antonio Nóbrega e Bráulio Tavares)

Deixo os versos que escrevi, as cantigas que cantei, cinco ou seis coisas que eu sei e um milhão que eu esqueci. Deixo este mundo daqui, selva com lei de cassino, vou renascer num menino, num país além do mar... Licença, que eu vou rodar (BIS) no carrossel do destino. Enquanto eu puder viver tudo o que o coração sente, o tempo estará presente passando sem resistir. Na hora em que eu for partir

para as nuvens do Divino, que a viola seja o sino tocando pra me guiar... Licença, que eu vou rodar (BIS) no carrossel do destino. Romances e epopéias me pedindo pra brotar, e eu tangendo devagar a boiada das idéias. Sempre em busca das colméias onde brota o mel mais fino, e um só verso, pequenino, mas que mereça ficar... Licença, que eu vou rodar (BIS) no carrossel do destino.

Romance da nau-catarineta

(Romance tradicional recriado por Ariano Suassuna – as toadas são populares)

Ouçam, meus Senhores todos, uma história de espantar! Lá vem a nau-catarineta que tem muito que contar. Há mais de um ano e um dia que vagavam pelo Mar. Já não tinham o que comer, já não tinham o que manjar! Deitam sortes à ventura, a quem se havia de matar: logo foi cair a sorte no Capitão-General!

– Tenham mão, meus Marinheiros! Prefiro ao Mar me jogar! Antes quero que me comam ferozes peixes do mar do que ver gente comendo carne do meu natural! Esperemos um momento, talvez possamos chegar.

“Assobe”, “assobe”, Gajeiro, naquele Mastro real! Vê se vês terra de Espanha e areias de Portugal! – Não vejo terras de Espanha e areias de Portugal! Vejo sete Espadas nuas que vêm para vos matar! – Vai mais acima, Gajeiro, sobe no Tope real! Vê se vês terra de Espanha, Gajeiro, Areias de Portugal! – Alvíssaras, Capitão, meu Capitão-General! Já vejo terras de Espanha, areias de Portugal! Enxergo mais três Donzelas, debaixo de um Laranjal! Uma sentada a coser, outra na roca a fiar. A mais chiquitita de todas

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está no meio a chorar! – Todas três são minhas filhas, ah, quem me dera as beijar! A mais chiquitita de todas, Gajeiro, contigo a hei de casar! – Eu não quero a vossa Filha, que vos custou a criar! – Dou-te o meu Cavalo branco, que nunca teve outro igual! – Não quero o vosso Cavalo, meu Capitão-General! – Dou-te a nau-catarineta tão boa em seu navegar! – Não quero a Catarineta, que Naus não sei manobrar! – Que queres, então, Gajeiro? Que alvíssaras hei de dar? – Capitão, eu sou o Diabo

e aqui vim foi vos tentar! O que eu quero é vossa Alma, para comigo a levar! Só assim chegais a porto, só assim eu vou vos salvar! – Renego de ti, Demônio, que estavas a me tentar! A minha Alma eu dou a Deus, e o meu corpo eu dou ao Mar! E logo salta nas águas o Capitão-General! Um Anjo o tomou nos braços, não o deixou se afogar! Dá um estouro o Demônio, acalmam-se o Vento e o Mar, e à noite a Catarineta chegava ao Porto do Mar!

A morte do touro Mão de Pau

(Antonio Nóbrega e Ariano Suassuna)

Corre a Serra Joana Gomes galope desesperado: um Touro se defendendo, homens querendo humilhá-lo. Um Touro com sua vida, os homens em seus Cavalos. Cortava o gume das Pedras um bramido angustiado, se quebrava nas Catingas um Galope surdo e pardo, e os Cascos pretos soavam nas pedras de Fogo alado, enquanto o clarim da Morte, ao Vento seco e queimado, na poeira avermelhada envolvia os velhos Cardos. Rasgavam a Serra bruta aboios mal arquejados e nas trilhas já cobertas pelo Pó quente e dourado, um gemido de desgraça, um gemido angustiado: – Adeus, Lagoa dos Velhos! Adeus, vazante do gado!

Adeus, Serra Joana Gomes e cacimba do Salgado! O Touro só tem a vida: os homens têm seus Cavalos! O galopar recrescia: brilhavam Ferrões farpados e Algemas de baraúna para o Touro preparados. Seu Sabino tinha dito: – Ele há de vir amarrado! Miguel e Antônio Rodrigues, de guarda-peito e encourados, na frente do grupo vinham, montados em seus Cavalos de pernas finas, ligeiras, ambos de prata arreados. E logo à frente, corria um grande Touro marcado, manquejando Sangue limpo nos caminhos mal rasgados, cortadas as bravas ancas por Ferrões ensangüentados. A Serra se despenhava nas asas de seus penhascos,

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e a respiração fogosa dos dois fogosos Cavalos já requeimava, de perto, as ancas do Manco macho quando ele, vendo a Desonra tentando subjugá-lo, mancando da mão preada subiu num Rochedo pardo. Num grito, todos pararam, pelo horror paralisados, pois sempre ao rebanho espanta que um Touro do nosso Gado às teias da Fama-negra prefira o gume do Fado. E mal seus perseguidores esbarravam seus cavalos viram o Manco selvagem saltar do Rochedo pardo:

– Adeus, Lagoa dos Velhos! Adeus, vazante do Gado! Adeus, Serra Joana Gomes e cacimba do Salgado! Assim vai-se o Touro manco, morto mas não desonrado! (Aboio) Silêncio. A Serra calou-se no Poente ensangüentado. Calou-se a voz dos aboios, cessou o troar dos Cascos. E agora, só, no silêncio deste Sertão assombrado, o Touro sem sua vida, os homens em seus Cavalos.

Excelência

(Recriação literária de Ariano Suassuna – as toadas são populares)

Uma excelência da Virgem, oh, Mãe de Deus, rogai por ele, Mãe de Deus! Uma excelência da Virgem, oh, Mãe de Deus, rogai a Deus por ele. Mãe de Deus, Mãe de Deus, oh, Mãe de Deus, rogai a Deus por ele! Mãe de Deus, Mãe de Deus, oh, Mãe de Deus, rogai a Deus por ele! Diz o A... Ave-Maria Diz o B... Brandosa e Bela Diz o C... Cofrim da Graça Diz o D... Divina Estrela Diz o E... Esperança Nossa Diz o F... Fonte de Amor Diz o G... Guia do Povo Diz o H... Honesta Flor

Diz o I... Incenso d’Alma Diz o J... Jóia Mimosa Diz o K... Coro dos Anjos Diz o L... Luz Formosa Diz o M... Mãe dos Mortais Diz o N... Nuvem de Brilho Diz o O... Orai por Nós Diz o P... Por Vossos Filhos Diz o Q... Querida Mãe Diz o R... Rainha da Paz Diz o S... Socorrei Sempre Diz o T... Todos Mortais Diz o U... Uma Esperança Diz o V... Vale Profundo Diz o X... Xis dos Mistérios Diz o Z... Zelai o Mundo.

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Meu foguete brasileiro

(Antonio Nóbrega e Bráulio Tavares)

Eu fiz um foguete de andar pelo espaço, igual um que eu vi pela televisão: não sei se era coisa da França ou Japão, mas basta ver gringo fazer, eu já faço! Mandei buscar logo cem chapas de aço, latão, alumínio, ferro de soldar, dez mil arrebites para reforçar a parte de fora da infra-estrutura: cem metros de longo, trinta de largura, e dez de galope voando no ar. Botei no foguete diversas antenas para captar raios infravermelhos. Na parte de cima, um sistema de espelhos que amplia as imagens de estrelas pequenas. Motores na popa que servem apenas pra tudo aquecer e pra refrigerar. Movidos a pura energia solar, tem computadores, TVs virtuais: mil inteligências artificiais que cantam galope voando no ar! Maior do que tudo é a parte cargueira que leva produtos de exportação: tem saca de açúcar, tonel de carvão, baú de café, tora de madeira. Tem pano de lenço, tem palha de esteira, xampu, querosene, bebida de bar, rede de dormir, colchão de deitar, cueca de seda, calcinha de renda... Achando quem compre, não tem quem não venda, cantando galope e voando no ar! Merece destaque o setor de varejo, com mercadorias de boa saída: barraca de praia, caixa de bebida, ganzá, cavaquinho, tantã, realejo... Lagosta, siri, corda de caranguejo, tem carne-de-sol e tem frutos do mar, cordão de ceroula, produtos do lar, catálogo novo, preço de primeira. Daqui do país só não vendo a bandeira que vai hasteada, voando no ar...

Criei no foguete diversos setores: indústria, comércio, serviços, lazer, fazendas de soja pra dar de comer aos meus tripulantes e navegadores, conjuntos de vilas pros trabalhadores e até “piscinão” com água de mar. Meu grande foguete é obra sem-par, maior do que a China, melhor que o Japão, tão belo de ver que parece o Sertão cantando galope e voando no ar... Depois de sentado no meu tamborete, puxei a alavanca, pisei no pedal, subi pro espaço com força total, fazendo tremer o motor do foguete. Passei bem por cima do Empire State, da Torre Eiffel e do Palomar, e vi pela tela se distanciar a mancha azulada do nosso planeta... Pensei: “Minha nossa! Aqui vai Tonheta, cantando galope e voando no ar!” Fiz logo uma escala no chão marciano, vendi rapadura, comprei tungstênio, enchi os meus tanques de oxigênio, parti outra vez no começo do ano. Passei por Saturno, passei por Urano, cheguei lá no fim do Sistema Solar. Desci em Plutão, tomei banho de mar, botei gasolina comum e azul, segui com destino ao Cruzeiro do Sul, cantando galope e voando no ar! Foi tanta Viagem, foi tanta Aventura, foi tanta Demanda, foi tanta Odisséia... Eu posso jurar à distinta platéia que tudo isso foi a verdade mais pura. Também teve um pouco de literatura, história inventada para relaxar. Mas eu que não minto não quero falar, e o resto eu só conto aqui pra você, no próximo espetáculo ou em outro CD, cantando galope e voando no ar...

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Delírio

(Antonio José Madureira e Marcelo Varella) Adormeci na pracinha do Diário Madeira do Rosarinho e despertei num disco voador. a Marcha da Folia entoou. Até pensei que eu estava louco. Louco, qual nada, o sonho começou. Rebeldes com Dona Moça, usando anéis de Saturno, Em Marte, encontrei Batutas, desfilava com grande nobreza em Vênus, Banhistas na rua. cruzando aquele espaço noturno. Inocentes, cheio de estrelas, Lira da Noite vindo em bando da Lua. O disco foi regressando, e com saudades chorei. O disco deu outra volta Um raio da luz do Sol e o Universo parou. desfez o sonho, acordei.

O romance de Riobaldo e Diadorim

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Quando eu vi aqueles olhos, verdes como nenhum pasto, cortantes palhas de cana, de lembrá-los não me gasto. Desejei não fossem embora, e deles nunca me afasto. Vivemos a desventura de um mal de amor oculto, que cresceu dentro de nós como sombra, feito um vulto. Que não conheceu afago, só guerra, fogo e insulto. Na Noite-grande-fatal, o meu amor encantou-se, desnudo o corpo inteiro desencantado mostrou-se. E o que era um segredo sem mais nada revelou-se. Sob as roupas de jagunço, corpo de mulher eu via. A Deus já dada, sem vida, o vau da minha alegria. Diadorim, Diadorim... Minha incontida sangria.

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Lunário perpétuo

(Antonio Nóbrega, Wilson Freire e Bráulio Tavares)

Meu Lunário tem antigas alquimias de almanaques. Já enfrentou intempéries, roubos, incêndios e saques: dos homens, das traças, das garras, das eras, carrega segredos, decifra quimeras. Venceu todos os ataques. O meu Lunário perpétuo sob o sol é luzidio. Meu Lunário foi forjado num fogo de desafio que vibra, esquenta, atiça, aperreia, faísca, enlouquece, que pega na veia. Pelos séculos a fio. O meu Lunário perpétuo guarda as vozes seculares do Profeta de Canudos e do Mártir dos Palmares. Sonhando com o Reino do Espírito Santo na terra, no céu, em todo recanto. Nos terreiros e altares. O meu Lunário perpétuo é meu Livro precioso, minha Cartilha primeira, minha Bíblia de Trancoso. João Grilo, Chicó, Malasartes, Mateus, os órfãos da terra, os filhos de Deus! Heróis do Maravilhoso! Meu Lunário é a memória de um país que vai passando diante dos nossos olhos, rindo, mexendo, cantando. Mestiço, latino, caboclo, nativo, é velho, é criança, morreu e tá vivo... Presente, mas até quando? Meu Lunário é conselheiro, é meu folheto, é meu missal, atravessando os milênios, cada ponto cardeal. De Norte a Sul, de Pai para Filho, de lá para cá, meu livrinho andarilho. Fabuloso Romançal!

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Anexo 2 – Entrevista com Antonio Nóbrega103

O universo literário, especificamente o da palavra, é aquele em que

Antonio Nóbrega diz não se sentir autonomamente um criador, um autor,

apesar da afirmação contrária de seu parceiro Bráulio Tavares.104 A maioria

das canções e dos textos dos seus espetáculos105 é criada e elaborada por

meio de parceria seja com Bráulio Tavares, seja com Wilson Freire, além de

outros parceiros menos regulares, como Ariano Suassuna, Marcelo Varella,

Zezinho Pitoco e até falecidos, como Dimas Batista Patriota.

No caso de Ariano, com exceção do Martelo d’o marco do meio-dia, todos os demais textos dele que musiquei já estavam presentes em suas obras, como A morte do touro Mão de Pau, o Romance da filha do imperador do Brasil, o Romance de Clara menina com Dom Carlos de Alencar, o Romance da nau-catarineta. Estes três últimos aparecem no Romance d’a Pedra do Reino (Suassuna, 2004b). São histórias de que me apropriei sem ter solicitado a ele uma parceria. As letras já estavam escritas. Já o martelo, não; ele escreveu especificamente para o meu espetáculo. Há ainda o Martelo agalopado que gravei nos tempos do Quinteto Armorial.106 É a música com que abro o meu espetáculo Figural.107 Eu entro pela platéia cantando esse poema.

103 O texto a seguir reúne informações e comentários com base em entrevista concedida por Antonio Nóbrega ao autor desta tese no dia 19 de outubro de 2005, no escritório da Brincante Produções, no bairro de Vila Madalena, na cidade de São Paulo. 104 Ver capítulo 2.2.2. 105 Merece destaque o uso recorrente da palavra “espetáculo” por Nóbrega ao longo da entrevista. Ele nunca diz “show”, assim como Ariano Suassuna. Tal opção deve-se a dois motivos: em seu entender, o tipo de apresentação que ele faz é mais bem definido pelo termo “espetáculo”, já que engloba música, dança, teatro e texto, do que pelo termo “show”, comumente mais associado a uma apresentação musical apenas, como afirma. O segundo motivo é de nítida inspiração suassuniana: o brasileirismo de “espetáculo” condiz muito mais com o seu trabalho do que o americanismo de “show”. 106 Está no último disco do quinteto, Sete Flechas, produzido por Marcus Pereira e gravado em 1980, pela EMI. Foi relançado em 1999 pela Copacabana Records na série Dois em um (Dois LPs em um CD), que reúne os discos Quinteto Armorial – Do romance ao galope nordestino e Quinteto Armorial – Sete Flechas. 107 Espetáculo-solo que Nóbrega estreou no início dos anos 90 e continua apresentando até hoje, em função de sua praticidade em termos de produção. O artista entra em cena cantando o Martelo agalopado há pouco citado e ao longo do espetáculo “encarna” diversos personagens, retirando roupas e adereços de um baú colocado no palco. Um desses personagens é Tonheta. No encerramento, ele deixa o palco cantando Patativa, de Vicente Celestino.

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Paralelamente a sua atividade artística, Nóbrega deu alguns passos

acadêmicos na área de letras:

Eu cheguei a cursar o primeiro ano de letras na Universidade Católica do Recife. Meu périplo universitário começou com o curso de direito, na Universidade Federal de Pernambuco, mas vi que seria uma carga muito pesada para mim ter que me submeter aos quatro ou cinco anos do curso. O primeiro ano foi suficiente para eu dizer que teria de procurar outro curso universitário. Também me recusei a fazer o curso superior de música, que talvez tivesse sido melhor. É que com o meu ingresso no Quinteto Armorial eu comecei a inclinar o meu fazer musical noutra direção e senti que os créditos do curso tradicional de música não iam muito ao encontro do que eu buscava como músico.

O curso superior de música não fez falta a ele:

Quando você estuda um instrumento, o resultado depende muito do seu desempenho pessoal. De modo que às vezes você cumpre uma jornada de execução além daquilo que é proposto no seu período oficial de estudo. No Recife, eu estudei com um professor muito bom de violino, Luís Soler, um catalão. Eu me devotava muito àquilo, para ser um virtuose solista de violino. Mas aí me encontrei com Ariano Suassuna, isso quer dizer com o Quinteto Armorial, e então...

Nóbrega começou a estudar violino por volta dos 15 anos.

Paralelamente ao seu grande interesse pela música clássica, na adolescência

ele participou de um conjunto em família. Eram os Irmãos Almeida, que

tocavam sucessos da música popular brasileira da época, como os da Jovem

Guarda, com destaque para Roberto Carlos. Pouco depois alguns primos se

chegaram, e o nome do conjunto ampliou-se para Irmãos Almeida e Paterson.

Sua irmã Eugênia, flautista, é sua parceira profissional até hoje, pois participa

do grupo que acompanha o artista em suas apresentações.

Ele entrou para a universidade aos 18 anos, em 1970. No final daquele

ano, entregou a prova da disciplina introdução à ciência do direito sem

responder às questões. E disse ao fiscal que ali abandonava o curso. No ano

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seguinte, fez vestibular para letras. Segundo conta, a especialização (se em

língua portuguesa ou literatura brasileira ou portuguesa, por exemplo) seria a

partir do segundo ano. “Comecei a fazer o curso de letras porque sempre

gostei muito de literatura. E continuo gostando”, afirma. “Eu tive a sorte de ter

um avô que gostava de escrever e era dono de uma biblioteca muito boa, a

qual eu gostava muito de visitar.”

Entre seus escritores favoritos, ele cita sobretudo os regionalistas, como

José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Américo de

Almeida. “Guimarães Rosa foi o que eu cheguei por derradeiro. Comecei por

Primeiras estórias, depois Sagarana”, salienta. “Também li muito Herman

Hesse, não só o de O lobo das estepes e Sidharta como o de O jogo das

contas de vidro, o livro que mais me marcou.” Ele conta que também lia poesia

e um pouco de Dostoiewski.

Escrever é outra atividade que sempre atraiu Nóbrega.

Confesso que até os 23 anos eu não sabia por onde a minha energia criadora se canalizaria melhor, se como músico, como escritor ou pesquisador. A dança viria depois. Mas eu gostava muito do curso de letras, apesar de ter deixado logo após acabar o primeiro ano. Eu gostava muito de lingüística, de Saussure...

Como a música o solicitava cada vez mais, ele conta que resolveu parar

o curso de letras, na verdade, para “dar um tempo”, viajar. Diz que não parou

em definitivo, mas esse “não em definitivo” foi semelhante a sua ida para São

Paulo. A idéia era passar um período, não era ficar.

Eu acho que são subterfúgios psicológicos que a gente cria para não-aceitação de uma medida, uma atitude, que já foi tomada e a gente não quer assumir. Talvez quando eu tenha assumido deixar a faculdade de letras, tenha assumido inconscientemente que não daria para eu cursar uma universidade. Ela não daria o conhecimento que eu buscava, porque ao mesmo tempo eu me encontrava com a rua, com os espetáculos populares, os dançarinos. Eu ficava dividido. Por mais

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que eu gostasse do curso de letras, eu gostava mais de ficar fazendo as minhas pesquisas sobre reisados e cantadores, e aquilo a universidade não poderia me dar. Quer dizer: eu adiava psicologicamente aquela decisão, mas acho que inconscientemente eu já sabia o que queria.

Por que ele deixou Recife rumo a São Paulo e não ao Rio de Janeiro?

“Porque eu já me encontrara108 com São Paulo através das minhas vindas aqui

para me apresentar com o Quinteto Armorial. É uma cidade que tinha me

acobertado de alguma maneira”, esclarece. “Acho que o meu espírito, em

termos de Sudeste, é mais paulistano do que carioca. Eu ia passar no máximo

um mês e acabei ficando.”

Em sua opinião, o Rio está para São Paulo assim como a Bahia está

para Pernambuco. Ele considera a Bahia como uma espécie de “hipertrofia” de

Pernambuco:

É a festa em sua exuberância quase no desregramento, em sua exorbitância maior, enquanto que em Pernambuco ela é um pouco mais contida. Traduzindo para os elementos da arte: os elementos classicizantes da arte ainda são mais apreensíveis em Recife. Se a gente tivesse de fazer uma dicotomia entre os elementos românticos ou clássicos da arte, os elementos masculinos ou femininos, eu diria que em Recife esse equilíbrio é mais bem realizado, enquanto que na Bahia o feminino, quase o desregramento, é maior, o que eu acho que é uma coisa que o Rio também tem, em menor escala. O Rio tem um excesso que para mim não é tão bom quanto São Paulo.

Qual é o ponto de partida do artista para criar? A melodia de uma

canção ou uma história a ser contada por meio de uma letra?

Eu acho que valem as duas ou mais hipóteses. Trabalho tanto com idéias de letras quanto de melodias. Tenho um caderno de anotações, que é o Ideário. Agora estou dividindo os cadernos por assunto. Abri até umas gavetas, para não haver confusão entre as idéias de músicas e de dança. Anoto idéias de bailados, faixas de discos. Estou escutando, por exemplo, um quarteto de cordas de Villa-Lobos. Num dos movimentos aparece a indicação “Saltando como um saci”, o que serve como idéia para desenvolver uma coreografia. Não sei se vou fazer, mas está lá, arquivado. Como estava dando muita

108 Registre-se o uso do pretérito-mais-que-perfeito na fala de Nóbrega, demonstrando sua forma culta de se expressar.

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confusão anotar tudo num caderno só, aí resolvi colocar um caderno para dança, um para isso, um para aquilo etc. Aí vou anotando motes, idéias de canções, de versos. Esse é um dos caminhos. Eu tenho também um Ideário musical, que é um gravador no qual registro idéias musicais, cantigas, solfas que me acometem. Dizem que não existe inspiração, mas sou ligado a ela.

Nóbrega diz que entra em fase de maior escuta musical durante o

preparo de um novo espetáculo. “Isso é natural para qualquer artista. A

memória fica mais ágil, as sinapses ocorrem com mais bonomia”, acentua.

Sobre seu Ideário musical, ele conta que tem vários registros.

Anoto também toques para violino, futuras peças para violino. Ocorre que às vezes consigo casar uma melodia dessas com uma idéia de canção para um espetáculo. Aí eu digo: “Wilson, estou com uma idéia aqui.” Então ele trabalha essa idéia literária. Depois tento colocar aquela canção numa melodia que eu acho que se case com aquela letra. Quando não cabe, parto para compor outra melodia sobre aquela letra. Um exemplo é Canudos. É o desenvolvimento de uma toada de um guerreiro alagoano, num tempo mais lento: “Eu viandante de um chão poento...” É uma temática comum lá, de domínio público. Eu fiz uma letra para aquela canção há muito tempo. Cantei num espetáculo chamado A arte da cantoria. Foi o segundo espetáculo que idealizei e foi criado em Recife, antes do Maracatu Misterioso. Eu cantava essa canção, mas a letra depois começou a não mais me dizer... Era menor do que a cantiga, a parte musical. Quando eu e Wilson estávamos fazendo Madeira que cupim não rói, achei que aquela melodia pedia uma letra que tratasse de Canudos. Aí ele fez uma letra que eu acho absolutamente inspirada. Era uma coisa sobre a qual a gente conversava muito, que era a utilização do léxico de Euclides da Cunha. Esse procedimento nós também utilizamos para a canção dedicada a Riobaldo e Diadorim, como no trecho “Na Noite-grande-fatal,109 o meu amor encantou-se...” São palavras caras a Guimarães Rosa.

Criador de reisados

O artista diz que raramente escreve canções fora da perspectiva de

criação de um espetáculo. Em função das fortes influências que recebeu,

sente-se um criador de reisados.

109 Forma grafada no encarte do CD Lunário perpétuo.

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Penso que sou um criador de reisados.110 O que quero dizer com isso? Acho que a forma do meu espetáculo se identifica com aquilo que eu chamo, para dar um nome genérico, de forma dos espetáculos populares brasileiros. O bumba-meu-boi, o guerreiro, o cavalo-marinho... As danças dramáticas, como Mário de Andrade111 chamou, são espetáculos que na verdade são suítes de peças cantadas, de danças, peças instrumentais, textos recitados. O que eu procuro fazer nos meus espetáculos, de certa maneira, é recriar um pouco essa mesma estrutura. Ou seja: eu reúno nos meus espetáculos canto, dança, pantomima, texto, tribuna – quando no final do Lunário perpétuo falo de forma poética, até dissimulada, e postulo a necessidade de o Brasil se olhar um pouco mais, de os coreógrafos e dançarinos brasileiros tomarem atenção naquilo que Mário de Andrade escreveu sobre as danças dramáticas. Como é possível que uma dança como o frevo esteja ausente da perspectiva de criação dos coreógrafos e bailarinos brasileiros?

Em cada espetáculo, portanto, ele procura fazer uma síntese de sua

música, sua dança, sua pantomima, espelhando-se na forma dos espetáculos

populares brasileiros.

Para mim, o boi-bumbá do Maranhão, o boi-de-mamão de Santa Catarina, o cavalo-marinho recifense, o boi-de-reis do Rio Grande do Norte, todos eles são grandes reisados. A estrutura de um espetáculo desses é o quê? Um grupo de músicos tocando, figuras dramáticas que entram – míticas, fantásticas ou humanas, regionais ou não –, que são apresentadas através de máscaras, danças, cantigas, peças instrumentais... Esse é o conjunto de fatores que cria, realiza, mostra, apresenta o boi-bumbá do Maranhão, o cavalo-marinho pernambucano, o boi-de-mamão de Santa Catarina. É claro que, em cada região dessas, elementos particulares se sobrepõem a outros que são mais valorizados em outras regiões. Mas em todos eles você vai encontrar: música cantada, dançarinos, máscaras. Todos esses elementos estão ali. É a mesma espinha dorsal. Aqueles elementos presentes são o alicerce, a base, o chão coletivo. Em alguns deles, como no cavalo-marinho pernambucano, a dança desenvolveu-se extraordinariamente, mais do que em qualquer outro. Em contrapartida, no bumba-meu-boi maranhense o universo plástico, visual, das máscaras cresceu muito mais do que no cavalo-marinho, por exemplo. Aí seria uma questão de se estudar um misto de antropologia com arqueologia para se entender por que isso se passou. Então essas são as bases do meu trabalho. É uma espécie de suíte de cantos e danças, na qual – diferentemente do reisado, onde há um corpo de integrantes, com músicos, dançarinos e atores – eu faço um pouco a síntese dos brincantes que não são músicos.

110 Ver Glossário. 111 Ver Andrade (1982), 3v.

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Nesses espetáculos, que podem reunir de dez a quarenta participantes,

há também aqueles que “botam as figuras”, salienta Nóbrega, explicando que

“botar a figura” é representá-la. Há os palhaços, que são os Mateus; há os que

vêm só para dançar. “Nos meus espetáculos, quando não estou sozinho

fazendo um pouco de cada um desses papéis, conto com a minha pequena

equipe, que inclui Rosane112 e os músicos”, ressalta. “Com exceção do Marco

do meio-dia, em que havia mais quatro jovens dançarinos e também músicos.”

Sobre as influências, ele diz que muito aprendeu tanto com Sílvio

Romero, Câmara Cascudo e Pereira da Costa, entre outros autores, quanto

com Mestre Olímpio Boneca, do Crato (CE), Mestre Kenura, de São Paulo,

com o Capitão Pereira e com Mateus Guariba, do Recife, artistas populares

que povoam o seu imaginário pessoal – e que certamente continuam

inspirando o seu Ideário, por meio de idéias para novos espetáculos e CDs,

com os quais ele procura traduzir a “alma coletiva” do Brasil, como ressalta.

Nóbrega lembra que já viveu um grande conflito entre ser músico ou

dançarino. “A minha exigência comigo mesmo é muito grande. Eu já tentei

resolver meu problema de ser ou músico ou dançarino, mas vi que não

conseguia. É um conflito que se resolve lentamente, mas se resolve”, salienta,

apontando a sua completa inaptidão para se dedicar somente a uma dessas

duas formas de manifestação artística. “Se eu me dedicasse somente à dança,

provavelmente chegaria mais longe de onde estou em relação a minha dança.

Como ela é um dos componentes de meus espetáculos...”

Ele exercita-se na dança diariamente, das 18h30min às 20h, em sua

própria casa; de manhã, pratica violino e canto. Ressalta que poderia ser

112 Rosane Almeida, sua esposa.

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melhor dançarino ou melhor violinista se dedicasse mais tempo a qualquer uma

dessas atividades artísticas.

Se eu praticasse dança também pela manhã, ao lado do que já pratico à noite, provavelmente minha dança iria se desenvolver mais rapidamente. A mesma coisa em relação ao violino. Se estudasse violino também à noite, somando ao trabalho realizado na manhã, me sentiria um violinista melhor. Eu poderia fazer essa opção: ou ser apenas um cantor ou um compositor, sem nenhum demérito nesse “apenas”. Mas sinto que isso não me deixaria quieto, nem feliz, e eu perderia talvez a minha função como artista. Então o que preciso fazer é otimizar, tentar ter uma consciência o mais possível rica e contundente para buscar no pouco – mas não tão pouco – que tenho da dança o que tenho de resolver dentro de mim. Qual é a dança que tenho de fazer, qual é a síntese que tenho de fazer... O violino é um instrumento maravilhoso, que requer técnica. Se eu tivesse tempo estudaria as partitas de Bach, um concerto de Mozart...

O fato de tocar rabeca permite que ele amplie o seu repertório com base

nos gêneros musicais populares.

Com a rabeca posso tocar frevos, choros, baiões, ou seja,

música que é compatível com a minha visão artística, com o meu universo de trabalho. Cada espetáculo é uma nova síntese que faço de tudo isso. Eu poderia dizer que é uma síntese que talvez tenha uma coisa comum em todos os espetáculos: uma pessoa que busca através de sua arte uma identidade criadora, que eu identifico nesse momento como a identidade brasileira. Meus espetáculos procuram traduzir um certo espírito brasileiro, em que eu possa afirmar e ao mesmo tempo negar a idéia de nacionalismo. Quer dizer: quando eu afirmo que está implícita a idéia de nacionalismo, há também uma busca de transgredir os limites do nacionalismo. O fim do meu trabalho não é uma idéia nacional de arte. Calha de coincidir, passa por isso. Mas acho que estão em jogo elementos que ainda acho superiores. Não sei se consigo responder à altura a esses elementos, mas não me satisfaz aprisionar o meu trabalho dentro de uma camisa-de-força de que é uma obra brasileira que procura afirmar o Brasil... Procura também, mas não é só isso.

Tonheta

Nóbrega conta que em 1976, paralelamente a seu trabalho com o

Quinteto Armorial, estreou um espetáculo em que já se expressava como

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dançarino, cantor e músico, que foi a Bandeira do Divino, no Recife. A figura de

Tonheta era o epicentro sobre o qual ele aglutinava o canto, a dança, a música,

a farsa etc. Nessa perspectiva foi criando A arte da cantoria, o Maracatu

Misterioso e depois outro espetáculo que apresentou no Rio de Janeiro,

chamado Mateus presepeiro. Sua perspectiva como criador, conta ele, era

sobretudo Tonheta, espécie de síntese por meio da qual ele reunia essas

diversas manifestações artísticas.

Tonheta é um personagem de temperamento dionisíaco,

farsesco, grotesco. Mas vi que eu tinha também uma natureza que ficaria de fora da arte, que é minha natureza apolínea, vamos chamar assim. E se eu me dedicasse só ao Tonheta, essa outra figura, ou seja, eu mesmo, querendo cantar, dançar ou representar sem ser farsescamente, ficaria de fora do palco. Você vê: os grandes cômicos, todos eles, se dedicam a um único personagem cômico. Por exemplo, entre brasileiros e estrangeiros: Oscarito, Grande Othelo, Ronald Golias, “Didi Mocó” (Renato Aragão), Chaves, Totó, Buster Keaton, Cantinflas, os palhaços... O palhaço raramente é um ator sem ser palhaço. Ele não divide a sua atividade de artista, como Carequinha. Isso começou a gerar um conflito em mim porque senti que eu não era uma figura que pertencia completamente ao universo de Tonheta. Se eu fosse, provavelmente nem estaria conversando agora, dessa maneira. Não sei se eu fosse somente um personagem cômico se teria necessidade de me explorar, refletir, pensar. Alguma coisa que bulia comigo dizia: não sou só o Tonheta. Para meu bem e para meu mal. Houve um momento em que pensei que eu era só o Tonheta. Foi quando criamos Brincante e Segundas histórias, que são dois espetáculos em que se conta, digamos, uma epopéia “bufônica” desse personagem. Mas eu já tinha a pulsação dentro de mim do elemento não-Tonheta, então criei três outros personagens, que foram o Mestre Sidurino. Este nome eu tomo de empréstimo de Guimarães Rosa. Sidurino é um nome muito bonito que encontrei certa vez em Grande sertão: veredas, quando a certa altura Riobaldo, ao liderar o bando, faz uma revista dos jagunços que tomavam parte e comenta uma coisinha de cada um. Aí fala: Sidurino, que alegrava a gente. Achei muito bonito esse nome e o papel dele no bando. Então criei uma dupla de contadores de histórias, que são João Sidurino e Rosalina de Jesus, interpretada por Rosane Almeida, os quais contam as aventuras de Tonheta. Esse personagem, o Mestre Sidurino, que é um mestre-de-cerimônias, um homem sério, se contrapõe ao Tonheta. Consegui assim dar vazão a essa minha necessidade de ir para um lado e para o outro em meus espetáculos.

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Ao perceber que já dera sua resposta ao apelo de Tonheta, personagem

que criou com a participação de Bráulio Tavares,113 Nóbrega conta que sentiu

vontade de voltar para a música, independentemente de seu personagem. Foi

quando criou Na pancada do ganzá, seu primeiro CD que registra sua primeira

parceria com Wilson Freire. “Mas sempre encontrei um modo de botar o

Tonheta lá, por meio de um coco-de-embolada ou da interpretação de um

romance, como o Romance de Clara menina com Dom Carlos de Alencar”,

acentua. “Ou seja, nos espetáculos, o ‘espírito tonhetânico’, o espírito farsesco,

está presente, ainda que dissimulado.”

Parcerias

Bráulio Tavares trabalhou com Nóbrega nos textos de Brincante e

Segundas histórias. “É um capítulo à parte, porque eu tinha a concepção de um

personagem, o Tonheta, que se chamava Mateus no princípio”, conta Nóbrega.

O novo nome representa a mistura de seu apelido, Toinho, com Faceta,

personagem popular do pastoril. “Foi um trabalho de muito jogo entre mim e

Bráulio. Foram dois espetáculos, com muitos textos, representando três anos

de muita ‘refrega’ criadora no bom sentido.”

Ao longo das últimas apresentações de Segundas histórias, Nóbrega

deu início à parceria com Wilson Freire, a quem já conhecia há algum tempo.

Como primeiro resultado, a canção Na pancada do ganzá, que deu nome ao

CD e ao espetáculo em que o artista apresentava músicas que “já havia

cantado aqui, acolá”, como conta.

113 Ver capítulo 2.2.2.

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Nos cinco CDs estudados aqui, há apenas duas canções com letras só

de Nóbrega (Desassombrado e Mateus Embaixador). Não é que ele precise

necessariamente de alguém para escrever as letras, mas como já tem os

afazeres de dançar, construir o espetáculo e ser o intérprete, seria mais uma

importante tarefa que teria de assumir. “E vi que encontrei parceiros que

poderiam resolver a questão das letras melhor do que eu e com os quais eu

tenho uma identidade muito grande, que são Bráulio e Wilson”, destaca.

Nóbrega fala um pouco sobre a idéia dos outros espetáculos, além de

Na pancada do ganzá, cujos repertórios são aqui estudados:

Em Madeira que cupim não rói, o nome diz a que veio o espetáculo. Ali eu já criei um pouco do Marco do meio-dia, porque apresentava o índio, com Chegança, e o negro, com Olodumaré, por exemplo. Pernambuco falando para o mundo foi um espetáculo que eu quis criar para mostrar um pouco o universo do carnaval, peguei umas músicas que eu já tinha gravado. Com O marco do meio-dia, criei um espetáculo em que eu falava dos quinhentos anos do descobrimento do Brasil. Procurei mostrar figuras do Brasil que eu admiro: Aleijadinho, Zumbi, Ariano, Arthur Bispo do Rosário, Mané Garrincha. Aí chega o Lunário perpétuo, que é o nome de um livrinho. No Lunário, eu nem gloso o livro. Não tenho nenhuma canção de um tema tirado do livro. O espírito do livro é que está presente, mas não é uma tradução linear, literal. Não musiquei o livro, mas me inspirei nele, na sua representação simbólica e metafórica.

Com referência ao último CD e espetáculo analisado aqui, Nóbrega

ressalta que não houve o aprisionamento de um tema como em O marco do

meio-dia. Para ele, uma canção como O rei e o palhaço talvez ficasse

deslocada no Marco.

Neste sentido, o Lunário foi mais fácil porque pôde reunir canções diversas. O Carrossel do destino, por exemplo, não tem nada a ver com O rei e o palhaço, nem com o Romance de Riobaldo e Diadorim. Fazem parte de uma pátria chamada Lunário perpétuo. A única música que eu quis fazer com maior apuro foi justamente o Lunário, e foi muito difícil de fazer, construída a três. Comecei com Wilson. Depois chamei Bráulio. Nesse caso eu não fiquei só como pivô; trabalhamos os três conjuntamente.

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Cada espetáculo, portanto, apresenta um tema específico ou glosa um

mote, como Nóbrega ressalta. Em Nove de frevereiro, previsto para estrear no

início de 2006, ele escolheu o frevo.

Nove de fevereiro é o dia do frevo, comemorado em Recife, apesar de na folhinha estar 14 de setembro. É um trabalho pouco autoral, no sentido das músicas. Eu me apresento sobretudo como recriador da dança do frevo, introduzindo o violino traduzindo esse gênero, dialogando com orquestra de metais, com regional de cordas. É o frevo em várias modalidades. De cada disco anterior, há duas obras no máximo, para dar vez mesmo aos compositores que criaram esse monumento nosso. O frevo em relação ao Nordeste tem a mesma dimensão que o choro em relação ao Brasil. Assim como temos Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Luís Americano, temos Capiba, Nelson Ferreira e tantos outros.

Independentemente do tema, todos os espetáculos de Nóbrega têm uma

unidade.

Em todos eles eu sempre canto, danço e toco rabeca, ou seja, busco me explorar. Provavelmente presto um serviço no sentido de mostrar: “Olha que gênero musical maravilhoso que nós temos e não conseguimos ver direito!” Estou prestando um serviço ao Brasil. Ao mesmo tempo, acho que há uma coisa no frevo que transcende os limites do Brasil na dança. Por exemplo: a comunhão de um corpo que dança com o ritmo, que é uma ausência na dança contemporânea. Há certos elementos que fazem uma ponte com a música popular lá atrás, que a gente não vê. Às vezes, nessa transliteração, na recriação da cultura popular, a gente se prende a categorias muito pequenas. Então cada espetáculo obedece a essa forma, eles são pequenos reisados. A forma é aquela. Se você observar direito, são também aqueles elementos que estão na origem do teatro grego, do teatro hindu, africano, dos teatros mais próximos do que parece ter sido a origem do teatro, porque o teatro burguês ocidental ficou muito refém da palavra. E quando ficou muito refém da palavra começou a perder elementos que faziam parte do caráter de festa do teatro, que era a comunhão com a dança... Porque se teatro não for assim, vira apenas uma obra de ficção colocada no palco, representada. E não é só isso. O teatro tem outros elementos que o diferenciam do romance, das obras literárias. O teatro de Molière, por exemplo, é muito bom você ler, mas ele era muito mais rico, assim como o de Sófocles. Era música, dança, aquela pulsação de vida que dialoga com o texto.

A dança é primazia em outro espetáculo que ele vem elaborando. “Há

uma aventura minha com a dança que acho que pode ser mais bem resolvida.

É algo que tenho mostrado na aula-espetáculo e no Figural, especialmente”,

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conta. “Para esse novo espetáculo pedi ajuda não só a Rosane como a

Eugênia, minha filha, e Luciano, que são dois dançarinos que participaram do

Marco do meio-dia e estão levando a dança um pouco mais à frente.”

No entender de Nóbrega, a dança brasileira está num patamar de

realização inferior ao dos criadores no campo da literatura, do cinema e da

música.

Em outras palavras: a gente ainda não tem uma dança com o mesmo patamar de expressão brasileira que teve, por exemplo, a obra de Guimarães Rosa na literatura, ou Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, no cinema, ou de Francisco Brennand ou Cândido Portinari nas artes plásticas. A gente não tem uma dança brasileira que contenha nela a mesma força que contêm essas obras, que expresse o Brasil na mesma dimensão. Esse trajeto a gente ainda não fez. A gente tem uma dança popular rica, de elementos nutrientes maravilhosos, e uma dança ainda muito subserviente ao modelo europeu da dança ocidental, que é a dança clássica, a dança contemporânea. Mas ainda não chegamos no estágio de uma dança mais próxima do nosso temperamento. Eu não me sinto ainda capaz de coreografar um conto de Guimarães Rosa, com o léxico, com o conhecimento que tenho e com o que pressinto que a dança brasileira um dia vai ter de fazer. Quando tento fazer, sinto que faço uma coisa menor, como se eu tivesse ainda de percorrer um caminho um pouco menos ousado, mas ainda para marcar os elementos que acho que fazem parte de uma dança brasileira. É como se a dança brasileira estivesse um pouco atrasada. Falta uma história com a dança, uma sedimentação das coisas. Parece que a dança ficou um pouco para trás. Parece que na história da arte a dança sempre vem um pouco atrás. A música e a literatura sempre chegaram na frente.

A dedicação e a preocupação de Nóbrega com relação à dança têm

como um de seus resultados a série Danças brasileiras, do Canal Futura (TV a

cabo), em que ele e Rosane apresentam diversas formas de dança no Brasil,

buscando “codificar os passos”, como ele diz, de modo a se elaborar um

repertório coreográfico com base nessas danças populares.

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Deslocamento da sílaba tônica no canto

Com relação ao deslocamento da sílaba tônica no canto, que é comum

na música nordestina114 e é verificado no trabalho de Nóbrega, como

exemplificado na Análise do corpus, o artista diz que procura atenuar o acento

musical dando primazia à compreensão da palavra. Isto leva à entonação de

palavras, no canto, com duas acentuações. Por exemplo: “O meu *lúnário

perpétuo”; “Já *enfrêntôu intempéries”; “O meu *chápéu”; “O meu *rêinádo”. É

algo consciente, segundo ele, porque há momentos em que não se encontra

outra palavra ideal, então a prosódia real é deslocada. Mais do que a licença

poética, é a licença musical. “Acho que, na minha execução, eu poderia ser um

pouco mais atencioso no sentido de conjugar melodia e letra. É que quando

você grava um CD, está no momento inicial de fixação das letras”, diz o artista.

“Então você está num momento ainda muito imaturo, num primeiro instante de

síntese. Há letras dos meus discos que hoje eu já canto um pouco melhor”,

salienta.

Uma vez que o repertório é caracterizado pela musicalidade nordestina,

Nóbrega e seus parceiros obedecem ao primado da estrofe.

Todas as minhas canções são de base estrófica. Como você repete uma mesma toada para seis ou sete versos, então é difícil ter um desempenho ótimo no sentido de casar sílaba tônica das palavras com acento musical num corpo de seis, sete estrofes. Você vai ter de encontrar seis ou sete vezes a palavra certa para aquela mesma sílaba tônica, musicalmente falando. Quando é uma toada que se repete ao longo de três, quatro ou cinco estrofes, então fica mais fácil.

Nóbrega antecipa que pretende fazer, futuramente, um espetáculo

apresentando a comunhão de formas e gêneros presentes na poética popular

114 Assunto já abordado no capítulo 2.2.2.

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em seu cancioneiro. Quanto a esses gêneros, ele se utiliza muito da carretilha,

que é uma estrofe em que o primeiro verso tem quatro sílabas e os três

restantes têm sete, rimando o segundo com o terceiro e o último sempre

terminando em -ar. É o caso de Desassombrado (“Ói, meus senhores, / vou

contar minha odisséia / viajei no pé da idéia / pra tecer este cantar”), Viagem

maravilhosa (“Este país / tem tesouros, tem arcanos, / tem mais de trinta mil

anos / de histórias pra contar”) e Zumbi (“Zumbi, um negro, / respirando

rebeldia, / foge pra mata um dia / à procura do Lugar”). Essas canções têm

essa configuração porque é um gênero muito utilizado pelos emboladores, os

quais o chamam de embolada de carretilha.

Na canção Lunário perpétuo, propomos uma dissolução da septilha. Há quatro versos de sete sílabas, dois de onze e mais um de sete. Rimamos o segundo, o quarto e o sétimo: “Meu Lunário tem antigas / alquimias de almanaques. / Já enfrentou intempéries, / roubos, incêndios e saques. / Dos homens, das traças, das garras, das eras, / carrega segredos, decifra quimeras, / venceu todos os ataques”. Isso é uma estrofe recriada. Foi uma coisa que eu disse a meus parceiros: “Agora vamos transgredir a estrofe.” Só que a estrofe é uma coisa muito bonita pra se trabalhar. Então mantemos a estrutura da estrofe, mas ao mesmo tempo buscando outras formas, outros ritmos.

O primeiro estágio, conta ele, é criar canções em cima de formas e

gêneros poéticos existentes, mas com temas e assuntos que não aqueles

habitualmente utilizados, até chegar a usar outra ordem harmônica nas toadas,

não só a melodia modal.

Por exemplo: o galope-à-beira-mar e o martelo agalopado são puramente modais, não saem daquela posição de Mi Maior ou Fá# Maior. Quando escrevi o Galope beira-mar para Bispo do Rosário ou O Vaqueiro e o pescador, propus uma organização harmônica um pouco mais rica. Não muito sofisticada, porque eu não quis entrar em outras paragens. Porque se eu entro numa sofisticação harmônica muito grande, termino por neutralizar um pouco, penso, o sentido do texto, que é uma coisa muito sábia utilizada pelos cantadores. Eles usam, por exemplo: “Quando as festas do céu vão começando / e o trovão vai bramindo nos espaços. / As correntes quais longos estilhaços / de metal em faíscas vão chispando. / Toda a ira do céu vai se acalmando / Todo

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o ar fica logo iluminado. / E se então eu agarro descansado / na viola

que há pouco estava muda / Treme o sol, treme a terra, o tempo muda, / e eu cantando martelo agalopado”. Se eu fosse botar aqui uma harmonia muito complexa, não daria certo. Perderia completamente a idéia melódica original. Então é a sabedoria dos cantadores que, conforme a canção que se está fazendo, tem-se que respeitar. O martelo agalopado (tatatá, tatatá, tatatatá) até se quebra um pouco na hora em que os poetas fazem a cantoria, mas o galope-à-beira-mar é mais difícil de quebrar: “Nasci no sertão desfrutando as virtudes / dos tempos de inverno, fartura e bonança. / Depois veio a seca, fugiu-me a esperança / diante de cenas cruéis e tão rudes.”115 Você transgredir uma forma dessas é complicado.

Apesar de seus longos anos de estudo e observação, Nóbrega diz que

improvisa muito pouco ao versejar, uma sextilha no máximo. É preciso ter

muita prática, como salienta. Outra coisa difícil, no seu entender, é colocar uma

palavra proparoxítona no corpo, no meio da música composta em forma

estrófica. Exemplo disso é a substituição de “show” por “espetáculo” em Meu

foguete brasileiro,116 que se deve à inspiração de Ariano Suassuna.

Estou muito consciente da influência de Ariano em meu trabalho. Procuro, dentro dela, respeitar aquilo que acho que tem de ser respeitado e prescindir daquilo que acho que são os excessos de Ariano. Na questão da língua, concordo com ele. Acho que a palavra espetáculo é mais adequada ao que fazemos. Show é associado só a música, em geral. O que eu faço é um espetáculo.

Além da escolha por uma palavra da língua portuguesa, portanto, trata-

se de um conceito estético – tanto de Nóbrega quanto de Ariano.

115 Versos de O vaqueiro e o pescador, do repertório de Madeira que cupim não rói. Ver letra completa no Anexo 1.2. 116 Como visto nos capítulos 2.2.2 e 4.2.5.

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Linhagem

Nóbrega diz seguir a linhagem dos grandes artistas populares, a quem

devota profundo respeito e admiração, considerando-se um “franco-

aprendedor” dos seus ensinamentos.

Com relação ao fato de ele próprio ser tachado de artista popular,

discorda desse conceito.

Às vezes as pessoas até dizem, de modo elogioso, que sou o maior artista popular brasileiro. Eu acho um conceito muito incorreto. Primeiro porque não me acho um artista popular. E depois não acho que existiria o “maior” artista popular. A gente tem sempre categorias para encaixar as pessoas, mas não tem categorias referentes à própria especificidade do trabalho. Então o meu trabalho fica considerado de um artista regional ou então não fica categorizado, porque como o meu trabalho não tem certos elementos que tem a MPB, teria de ser excluído dela. No campo da música, do texto especificamente musical, eu uso instrumentos que não batem com aquilo que se chama de sonoridade da MPB. Eu não uso guitarra, sintetizador, um tipo de desenvolvimento harmônico vindo um pouco do universo de Tom Jobim, João Gilberto, passando por essa escola... Então isso não me referenda como artista da MPB. Ao mesmo tempo, não me acho um artista regional porque o artista regional, no meu entender, é aquele que se utiliza da temática regional, das formas regionais e acentua esses elementos. Então quando proponho, por exemplo, em Chegança: “Sou pataxó, / sou xavante, cariri, / ianomâmi, sou tupi / guarani, sou carajá”. Um grupo de caboclinhos não desfilaria ao som de uma música com uma estrutura um tanto sofisticada como essa. Sem falar na letra extensa. Onde é que você vai encontrar na música regional aquele universo com o qual trabalho nessa canção? Onde é que você vai encontrar em Canudos o elemento que a gente poderia dizer que é de música regional? Se existe, esse elemento é o mesmo que está no samba de Paulinho da Viola, ou em alguma canção de Chico Buarque ou de Caetano Veloso.

O compositor nordestino diz que o samba é uma referência popular para

Paulinho da Viola e para Chico Buarque assim como o maracatu rural é para

ele: “Paulinho utiliza inclusive o instrumental tradicional do samba, nem

transgride. Usa cavaquinho, violão, não usa guitarra. Ele recria aquele

universo. E eu recrio o maracatu rural.” Assim, Nóbrega diz que fica num

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caminho não categorizado. “Então é muito mais cômodo para as pessoas me

categorizarem como regional, mas se você olhar direitinho, é uma coisa de

uma sofisticação até grande...”

Como exemplo de sofisticação musical, cite-se o tema instrumental

Rasga do Nordeste, gravado inicialmente pelo Quinteto Armorial em Do

romance ao galope nordestino e que depois aparece em Madeira que cupim

não rói. Ele apresenta um caráter hindu na primeira parte, que parece um

pouco com os ragas117 indianos, prosseguindo num andamento bastante

movido e dançante, ao som da rabeca. “E nós usamos muito essa expressão

em Pernambuco: rasga, rasgou, para algo meio contundente.”

Outro exemplo é lembrado pelo próprio Nóbrega, que cita um trecho do

Romance de Riobaldo e Diadorim, parceria sua com Wilson Freire: “Quando eu

vi aqueles olhos, / verdes como nenhum pasto, / cortantes palhas de cana, / de

lembrá-los não me gasto. / Desejei não fossem embora, / e deles nunca me

afasto.”

Veja a sofisticação que está ali. A canção tem o ritmo específico dos caboclinhos, que é o perré: uma melodia tocada por uma gaita abastece uma determinada dança. Nem melodia de gaita nem dança eu uso nessa música. Eu uso uma toada que não é popular; é uma toada harmonicamente de uma certa complexidade; uso um instrumental com várias vozes, incluindo saxofone, clarinete. O tema parte de uma história popular chamada Da donzela guerreira, utilizada por Guimarães Rosa no Grande sertão: veredas. Ele recria essa história no romance através da figura de Diadorim. Eu retomo esse tema e recrio uma canção. Veja o périplo disso. Quem não conhece a história não vai compreender. Então chamar isso de música regional? É incompreensível um negócio desses. Se eu me incomodo com isso? Eu me incomodo. Pelo seguinte: porque me coloca num patamar, num registro de categorias que é mal compreendido, que é subestimado e que é apequenado, como a palavra folclore. Se você disser: “Isso é uma coisa folclórica”, você está diminuindo; e se disser: “Isso é uma música regional”, está diminuindo também. Mas se a música regional fosse vista dentro de outra concepção, de outro entendimento, eu não

117 Raga é a fórmula melódica da música hindu.

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me incomodaria. Então há certas coisas que parecem dar uma nobreza: “faz parte da MPB”. Parece que dá nobreza, dá status. É como se diz: “Ele faz aula de clown.” Na verdade, ele está aprendendo técnica de palhaço de circo!

Em seu texto musical, ou em sua expressão lingüístico-poético-musical,

termos que serviram de mote para o trabalho aqui empreendido, ou glosado,

Nóbrega procura guardar certos elementos do que chama de uma tradição

popular, mas ao mesmo tempo buscando recriá-los dentro de uma dimensão

que não é apenas tomar de empréstimo esses elementos, plasmando-os pura

e simplesmente naquilo que se recria.

Para eu recriar um martelo agalopado, uma melodia, eu tenho primeiro que entender as constantes de uma toada que anima o martelo agalopado. Não basta simplesmente pegar a forma e recriar isso sem uma compreensão de como aquilo funciona, sem um estudo, digamos, um pouco vertical para minha recriação. A recriação para mim depende de uma compreensão muito profunda de como aquilo se processa. Vamos tomar, por exemplo, o choro. Para você improvisar dentro do choro, você pode obedecer a uma tradição trazida por aqueles que criaram o choro, mas você também pode improvisar um pouco em sintonia com o jazz, que tem outra configuração. Você pode pegar os standards do jazz e os aproximar da improvisação de uma determinada melodia brasileira. São dois caminhos diferentes. Não vou valorar. Mas o choro propõe um desenvolvimento de improvisação que lhe é peculiar, que tem suas leis, sua compreensão, sua história, enquanto que o jazz propõe uma improvisação que vai numa outra direção. Eu optei sempre por ouvir mais o desenvolvimento dessas formas. Quero ouvir o máximo para explorá-las ao máximo. Não quero tomar nada de empréstimo sem ter esgotado as possibilidades daquilo, sem exaurir aquilo. Porque seu eu for até as últimas conseqüências, vão me encontrar num patamar lá na frente.

Nóbrega diz que tenta descobrir dentro desse universo musical onde é

que pode transgredir, porque é transgredindo que chegará a ampliar os

significados desse universo.

Para mim, transgredir é ampliar os significados. Então, quanto mais significados eu puder dar à canção que faço, mais longe estarei indo. Essa transgressão pode chegar um dia até a dissolução da estrofe. Não sei onde ela pode chegar. Mas quero transgredir e ao mesmo tempo conservar dentro dela aqueles elementos que eu acho que são importantes para dignificar uma canção que seja compreendida

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no momento em que eu estiver cantando. Porque a minha canção é isso: quero que as pessoas entendam. Às vezes vou até um pouco mais longe do que deveria ir. Por exemplo: uma canção como o Romance de Riobaldo e Diadorim. Mesmo a Chegança. São canções que para você entender melhor tem de ter uma predisposição para a escuta. Às vezes uma introdução, falada na hora, conta um pouco a história de Riobaldo. Eu nunca poderia colocar uma canção daquelas num espetáculo sobre o carnaval, mas em compensação coloco a Mulher peixão, de Luiz de França. A canção, para mim, tem essa função: ser compreendida por meio do conjunto da melodia e da interpretação. Pode ser que eu não transmita a compreensão total de toda a letra de Riobaldo, mas em alguma instância do cidadão que está ouvindo eu tenho que tocar, tenho que mostrar para que existe essa canção.

Juntamente com essa transgressão, ele diz que busca ampliar o seu

campo semântico – no sentido das letras e do universo lingüístico com que

trabalha –, a sua consciência musical, os recursos da voz. “É todo um conjunto

de fatores que procuro explorar ao máximo, dentro dos meus limites de talento

e tempo”, destaca. “Em Riobaldo, há um agudo que faço, durante um aboio,

que pode ficar muito bonito, mas se eu estiver vindo de quatro ou cinco

espetáculos, não vai ficar tão bom assim.”

A maior exigência que Nóbrega tem num espetáculo é a presença do

intérprete inteiro dominando seu instrumento, seu corpo. “Para mim, o

momento do espetáculo é o momento maior do que eu faço. É o momento em

que eu me recrio. Esse é o momento maior da criação”, assegura.

Influências

Propôs-se a Nóbrega que falasse sobre algumas personalidades que

exerceram ou exercem algum tipo de influência em sua trajetória artística e

pessoal.

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Capitão Antônio Pereira, do Boi Misterioso de Afogados (homenageado em Sambada dos Mestres, a ele é dedicada a canção Vou-me embora)

Esse foi o começador de tudo. Foi o primeiro artista popular que conheci, com quem convivi, e tenho a ele uma gratidão imensa. Era meu amigo e morreu com 92 anos, no dia do meu aniversário.

Zé Alfaiate (além de ser citado em Sambada dos Mestres, a ele é

dedicada a canção Chegança) Três artistas populares estiveram muito presentes nos primeiros anos

de meu conhecimento da cultura popular. Foram o Capitão Antônio Pereira (Capitão Boca Mole), Zé Alfaiate e Nascimento do Passo. Zé Alfaiate é o fundador do Caboclinhos Sete Flechas. Eu considero esse pessoal quase que como marcos da fundamentação do Brasil. Muito dos fundamentos do Brasil está nas vozes desses homens. Ao longo dos 25 anos que conheço Zé Alfaiate, já o visitei em pelo menos 15 lugares. Porque ele morava aqui, acolá, não tinha dinheiro para pagar a casinha, aí saía. A casa dele funciona como sede do próprio folguedo. Ele ensaia na frente de casa. Você chega na casa dele, está escrito na frente: “Caboclinhos Sete Flechas...” e a data de fundação. É o lugar onde ele vive com a família, costura os adereços, os cocares dos caboclinhos. Em geral os caboclinhos ensaiam a partir de setembro nos domingos à noite. Como costumo ficar no Recife de dezembro até o carnaval, vou sempre lá nesse período.

Nascimento do Passo (homenageado com um frevo com seu próprio

nome) Acho que foi o maior codificador da dança popular brasileira através do

frevo. Porque essas danças ainda não foram codificadas. Veja os caboclinhos e o cavalo-marinho. Raros são os passos que têm nomes. No frevo já há uma codificação, uma nomenclatura, uma pequena pedagogia. E foi Nascimento do Passo quem criou.

Mestre Salustiano (citado em Sambada dos Mestres; a ele é dedicada

esta canção) Foi dos últimos que vim a conhecer, na década de 80, porque ele era

do meio rural e mudou-se para Recife. Morava em Aliança, na Zona da Mata. Chegou num momento melhor. Quando comecei com o Quinteto Armorial, a cultura popular não tinha a credibilidade, a compreensão de que começa a desfrutar hoje. Se ela ainda é mal ou pouco compreendida, na época do quinteto era absolutamente ignorada. Quando Mestre Salustiano apareceu, começou-se a ter uma visão diferente de cultura popular. O quinteto já tinha dez anos, Ariano foi secretário de cultura do Estado de Pernambuco e o convidou para ser assessor. Então Salustiano começou a ter um olhar um pouco mais amplo. Passou a ter um envolvimento não só com a cultura popular. Sobretudo a geração que veio depois dele agregou outros elementos que vieram a fortalecer aquela tradição que vinha com ele, como é o caso de Pedrinho Salustiano, seu filho, que conviveu com a gente, com outras pessoas. Isso veio trazer outros aportes que fizeram com que ele ampliasse o seu universo.

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Antônio José Madureira É o compositor que, para mim, é a referência maior no que eu escrevo.

Como músico, tenho nele uma de minhas grandes referências. Foi um parceiro durante o quinteto, embora depois não tenhamos feito mais parceria. Devoto a ele um respeito muito grande e um crédito de mestre para mim no campo da música.

Bráulio Tavares É um poeta irmão. Como ele mesmo diz, às vezes também é um

psicografador das minhas idéias. É genial. Wilson Freire Tanto ele como Bráulio são pessoas sem as quais não existiria o meu

cancioneiro. O meu cancioneiro só existe porque eu encontrei esses dois parceiros. A minha música instrumental, a minha dança existiriam. Mas o meu cancioneiro, não. Eles são figuras absolutamente fundamentais e vitais.

Ariano É o mestre maior. Da arte e do mundo. Rosane, Gabriel e Maria Eugênia Eu tive a graça de ter na minha família pessoas com as quais eu

compartilho não só afetos, mas idéias. Sou uma pessoa de muitos conhecidos, mas muito poucos amigos. Primeiro porque meu trabalho exige muito tempo, é um amante muito forte. Então para suprir a ausência de amigos, eu tenho a sorte de ter em casa pessoas com as quais há um encontro. Eu tenho um encontro com meus filhos e com minha mulher que não é só no campo afetivo. A gente compartilha idéias.

Para Nóbrega, todos esses são, absolutamente, pedras do seu céu e

estrelas do seu chão, aproveitando a imagem que o próprio artista criou em

texto que apresenta no espetáculo Lunário perpétuo. Como diz, são poetas,

homenageados e homenageadores em tudo o que ele faz.

E como o artista e cidadão Antonio Carlos Nóbrega de Almeida encontra

o equilíbrio entre o rei e o palhaço, nessa dicotomia tão cara a Ariano

Suassuna?

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A cada momento de minha vida eu procuro equilibrar o rei e o palhaço dentro de mim. É uma luta que tenho, acho que todos nós temos. Eu não sei o grau de intensidade que cada um tem. Eu procuro fazer com que esse grau de intensidade me dê cada vez menos ansiedade e um pouco mais de prazer em conviver com os dois, em saber qual a dimensão de um e de outro, para que a vida seja cada vez mais uma aventura – como é – agradável, bonita e que valha a pena.

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Anexo 3 – Glossário Alfaia: tambor utilizado no maracatu, gênero musical cultivado especialmente em Pernambuco. Pode apresentar mais de um tamanho, de modo a explorar regiões mais e menos graves do som. Banda cabaçal: trata-se de um conjunto instrumental de percussão e sopro, tocando marchas, galopes, modinhas, rodas e valsas pelos sertões de Pernambuco, Paraíba e Ceará, segundo Câmara Cascudo. “Constituem um cabaçal dois zabumbas, espécie de bombos ou tambores, e dois pifes, soprados verticalmente (gaita) ou horizontalmente” (s.d.: 202). Brincante: aquele que brinca; brincador; participante de folguedo ou auto popular, ou de qualquer folia, como o carnaval. São os artistas populares ou folgazões. Caboclinhos: ou cabocolinhos, grupos fantasiados de indígenas que, ao som de pequenas flautas (pífanos ou pífaros), percorrem as ruas durante o carnaval em cidades do Nordeste do Brasil (Câmara Cascudo, s.d.), especialmente Pernambuco, também utilizando as preacas, uma espécie de arco-e-flecha percutido seguidamente pelos brincantes. Os caboclinhos têm três toques: de perré (lento, cadenciado), baiano (mais movido) e de guerra (mais rápido, com passos mais difíceis e alguns movimentos no chão).

Cavalo-marinho: como o folguedo do bumba-meu-boi é conhecido em Pernambuco; personagem do folguedo, representado por um simulacro de cavalo montado numa armação sobre a qual se movimenta um homem; dança desse personagem cujos passos imitam movimentos de um cavalo. Coqueiro (ou coquista): “tirador de coco”, ou seja, intérprete do ritmo musical chamado de coco, no qual normalmente o cantor verseja acompanhado por um ganzá (espécie de chocalho de folha-de-flandres em formato cilíndrico) ou um pandeiro. Esse ritmo é muito conhecido e praticado especialmente no Nordeste brasileiro. Ganzá: “Canzá ou caracaxá, espécie de maracá indígena, é um cilindro de folha-de-flandres, fechado (...). Contém grãos ou seixos, que soam, agitando-se” (Câmara Cascudo, s.d.: 423). Guerreiros: “Auto popular no Estado de Alagoas. Pertence ao ciclo do reisado, aparecendo pela mesma época” (Câmara Cascudo, s.d.: 441) (v. Reisado).

Maracatu de baque virado: em linhas gerais, “dança em que um bloco fantasiado, bailando ao som de tambores (alfaias), chocalhos e gonguês, segue uma mulher, que leva na mão um bastão em cuja extremidade tem uma

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boneca ricamente enfeitada (a calunga) e executa evoluções coreográficas” (Houaiss & Villar, 2001). Para mais informações, ver indicações bibliográficas constantes no capítulo 1. Maracatu de baque solto: é o maracatu rural, também chamado de maracatu de trombone. Comum na região da Zona da Mata pernambucana, é composto pelos guerreiros de lança, que usam fantasias coloridas e fazem bastante barulho em seus desfiles. Quanto ao gênero musical, foi na sonoridade do maracatu de baque solto que Nóbrega se inspirou em composições como Sambada dos Mestres e O rei e o palhaço, em que o coro repete parte da letra interpretada pelo cantador antes de se ouvir um tema instrumental bastante movido. Marimbau: espécie de berimbau de lata tocado com o auxílio de um pedaço de vidro e uma baqueta. Instrumento característico da sonoridade do Quinteto Armorial, também pode ser definido como uma espécie de arame percutido sobre uma base de madeira. Nau-catarineta: “Xácara [v.] portuguesa de assunto marítimo, narrando uma travessia no Atlântico em circunstâncias trágicas” (Câmara Cascudo, s.d.: 609). Reisado: “É denominação erudita para os grupos que cantam na véspera e dia de Reis (6 de janeiro)” (Câmara Cascudo, s.d.: 774). Urucungo: “Orucungo, oricungo, uricungo, ricungo, rucungo. Instrumento de procedência africana, que consiste num arco de madeira, tendo um arame retesado, passado entre as pontas. Numa das extremidades, ou no centro do arame, é presa uma pequena cabaça, de forma arredondada, com uma abertura circular. O som é obtido pela percussão da corda com os dedos ou com uma vareta ou uma haste de metal; a cabaça funciona como caixa de ressonância, que o tocador coloca sobre o peito ou a barriga. (...)” (Câmara Cascudo, s.d.: 895). Xácara: [v. nau-catarineta] Romance caracteristicamente alegre que se canta acompanhado por viola.

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Anexo 4 – Imagens (reproduções de capas de CDs e DVD)

Nas páginas a seguir, as capas de CDs e DVD de Antonio Nóbrega

aparecem reproduzidas conforme a ordem de lançamento:

� Na pancada do ganzá (1996);

� Madeira que cupim não rói (1997), que traz o subtítulo Na

pancada do ganzá II;

� Pernambuco falando para o mundo (1998);

� O marco do meio-dia (2000);

� Lunário perpétuo (2002) – CD;

� Lunário perpétuo (2003) – DVD dirigido por Walter Carvalho.

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