ocupação antonio nóbrega

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Em sua 14ª edição, de abril a maio de 2013, o programa Ocupação homenageou o ator, dançarino, cantor e coreógrafo Antonio Nóbrega. O público teve contato com a capacidade do artista pernambucano de expressar a pluralidade da cultura popular brasileira, exaltando o lúdico e a síntese destas manifestações em sua obra.

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Sou um artista que, embora não pertença intrinsecamente a nenhuma família artística específica, se sente pertencente a todas elas.

Do circo à

sinto-me parte de todos esses universos. Não de uma forma superficial, mas também não de uma forma visceral. A minha única visceralidade, na verdade, é o Brasil, e digo que essa visceralidade é descompromissada com qualquer ideia ufanista.

Uma ausência de ufanismo, todavia, que não prescinde da

literatura,

presença

paixão. de

Antonio Nóbrega

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Que comece a jornada! Pegue sua carroça e vamos bo-tando dentro tudo o que nos forma − e nos transforma. A viagem pela música, pela dança, pelo teatro e pela litera-tura não tem hora para terminar.

A publicação que está em suas mãos traz conteúdos iné-ditos coletados com o artista, sua família e amigos. São ilustrações, depoimentos e fac-símiles dos cadernos de anotações que narram trechos da vida e das criações de Antonio Nóbrega.

A carroça que o acompanhará nas próximas páginas está cheia de influências, paixões, histórias e referências aos mo-mentos marcantes da vida de Nóbrega. Sua trajetória refle-te não apenas a criatividade, a didática ou a quantidade de informações transmitidas em seus trabalhos, mas também a abrangência da pesquisa que tem feito, por meio dos estu-dos, das vivências e das trocas, ao longo de sua vida.

Itaú Cultural

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Antonio Nóbregapor Walt er Carvalho

Quando era pequeno, minha mãe me levava para ver os folguedos po-pulares tão comuns na minha época. Assisti à Nau Catarineta e ao Bum-ba Meu Boi, entre tantos outros.

Um dia, ainda criança, andando nos canaviais, eu me deparei com o mara-catu; com os caboclos de lança; com o esplendor de cores e vestimentas brilhosas por todo corpo; com o som ao vento dos chocalhos de ferro nas costas e nas mãos; com as lanças en-feitadas com fitas coloridas. O céu estava bem azulzinho e a luz reverbe-rava em meus óculos. Tive a sensação de viver um delírio visual.

Anos depois, já morando no Rio de Janeiro, vi pela primeira vez Antonio Nóbrega representar. Foi um alumbramento. Nóbrega, da mesma origem que a minha, trazia para o espaço sagrado do palco tudo aquilo que fervilhava numa das gavetas da minha memória. Só que Nóbrega transcendia em tudo o que estava na minha imaginação de menino em um espetáculo universal.

Fiquei a imaginar como ele podia recriar todo aquele universo popular do Nordeste e de outras regiões do Brasil sem perder as características, elevando ainda o espetáculo para a dimensão da arte contemporânea.

Pensei cá comigo: “Um dia vou tra-balhar com Antonio Nóbrega”. E o sonho se realizou. Hoje, depois de tan-tos projetos juntos, aprendi um pouco mais de mim, o que me faz lembrar dos versos de Murilo Mendes:

“[...] ainda não estamos habituados com o mundo, nascer é muito comprido”.

Antonio ajudou-me a olhar para mim mesmo, na tentativa de com-preender a vida.

Walter Carvalho nasceu em João Pessoa (PB) em 1947 e mora no Rio de Janeiro. É fotógrafo e cineasta. Curador da Ocupa-ção Antonio Nóbrega, é responsável pela direção de Brincante, longa-metragem sobre a trajetória de Nóbrega, que será lançado ainda neste ano.

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1991

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Foi meu pai quem descobriu em mim a vocação musical. Nas refeições, ele no-tava que eu ficava tamborilando com os dedos na mesa. Para ele, aquela ação era coisa de quem levava jeito para a músi-ca. Na época, eu tinha 7 para 8 anos e ele era diretor de um centro de saúde onde um dos funcionários tinha uma irmã vio-linista da Orquestra Sinfônica do Reci-fe. Foi ela, essa senhorinha pequenina, corcunda, de “crecas” nos cabelos, dona Belinha, quem me introduziu na música, ensinando-me a tocar violino. Nunca en-tendi a ligação que meu pai havia feito entre o batuqueiro de mesa e o violinista.

Dos 12 aos 16 anos, eu já demonstra-va interesse pela dança, pelo teatro e por instrumentos musicais. Tinha um conjunto com as minhas irmãs, no qual tocava, fazia arremedos de dan-ça e cantava. Quem nos incentivava e promovia era o meu pai, que tinha um gosto muito grande pelo grupo.

Nessa época, eu me inscrevi nuns con-cursos de canto, declamação e orató-ria que aconteciam anualmente no colégio onde estudava. O diabo é que em todos que eu me metia me saía bem. É mole? Mas somente a partir do meu encontro com a cultura popular – já em 1970 – pude direcionar e poten-cializar melhor essa vocação de artista generalista, multidisciplinar ou multi-facetado, como alguns dizem. Ainda hoje eu não sei como me apresentar.

Meu universo artístico circulava entre a música erudita da Escola de Belas Artes (violino e teoria musical) e a que escutava nas rádios e nos programas de TV. Nessa ocasião, Ariano Suas-suna me viu tocando o “Concerto em Mi maior”, de J. S. Bach, em um recital numa igreja do Recife. E me convidou a integrar o Quinteto Armorial.

texto elaborado a partir de entrevista exclu-siva e depoimentos enviados pelo artista

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O convite era para que eu tocasse violi-no, tanto em sua versão tradicional quan-to em sua versão popular − a rabeca. A partir desse momento, passei a tomar co-nhecimento da chamada cultura popular.

Comecei a entrar em contato com esse universo pelas obras musicais que me eram apresentadas logo nos pri-meiros ensaios na casa de Suassuna. Na medida em que essas novidades chegavam, eu tentava descobrir de onde provinha tudo aquilo. E acabei batendo com o Bumba Meu Boi.

O Boi Misterioso de Afogados era praticamente o único do Recife. Afo-gados é uma região da periferia onde, em geral, aconteciam essas manifes-tações. Descobri o Capitão Antônio Pereira − cuja patente vem do Capitão Boca Mole, figura que representava no festejo. Aos 18, passei a acompa-nhar suas apresentações, realizadas na Casa da Cultura, no período do Natal até o Dia de Reis.

Fui tomando intimidade com o mestre Antônio Pereira, almoçava na casa dele, fazia anotações e tudo ia fluindo. E en-tão a figura do Mateus − outro perso-nagem do Boi − começou a me seduzir com micagens, trejeitos, pequenos pas-sos, caretas e chistes, que eu passei a tentar reproduzir. Mateus está presente em quase todo teatro popular brasileiro e tem no cômico corporal a base de seu jogo de atuação. Eu o vi pela primeira vez como Mateus Guariba − alcunha dada por causa das acrobacias que lem-bravam os movimentos de um macaco.

Mateus é um nome genérico. Não tem o palhaço Arrelia? Tem o Mateus Guari-ba, o Mateus Cravo da Noite, o Mateus Fulô do Dia. E no começo eu me cha-mava Mateus Tonheta. Depois comecei a aprender, também por imitação, o jogo das outras figuras dramáticas do Boi de Antônio Pereira, como as danças da Burrinha, do Morto Carregando o Vivo, do Valentão, do Babau e assim por dian-te. Assimilei os movimentos até decidir fazer meu próprio Bumba Meu Boi.

Criei o Boi da Boa Hora e o Boi Cas-tanho do Reino do Meio-Dia, com os quais me apresentei em ruas e praças do Recife no Carnaval e no Natal. Es-ses Bois só existiam por causa da mi-nha vontade. Ninguém estava muito impregnado e eu é que gerava e geria uma necessidade que, até aquela altu-ra, não tinha consciência de para onde me levaria. Aproveitava as ocasiões para treinar o Mateus, que me interes-sava profissional e artisticamente. Para as outras pessoas era coisa passageira; para mim, uma necessidade vital.

O Boi da Boa Hora foi criado quando eu fazia cursinho pré-vestibular. Na minha turma, havia um grupo de pessoas com um pensamento mais de esquerda. Hoje esse tipo de postura está mais dissolvi-do, mas naquela época a gente vivia em meio à ditadura militar. Eram pessoas da minha idade que tinham uma visão mais aguda da coisa e com as quais eu me en-contrava muito, por isso as convidei para fazer parte do Boi, apesar da ausência de ideologia dessa manifestação popular.

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Por outro lado, eu integrava o Quinteto Armorial, que era aparentemente des-politizado. A própria palavra “armorial” é sinônimo de “heráldica” [arte ou ciên-cia que estuda a origem, a evolução e o significado dos emblemas, assim como a descrição e a criação de brasões]. Co-mecei a conciliar minha visão de mun-do com a visão artística que não tinha esse input político. O movimento ar-morial é amplo, no sentido das artes, da recriação do universo popular por meio da assimilação de elementos da arte erudita, da procura de um casamento entre essas duas esferas culturais.

Ariano Suassuna queria um grupo que trouxesse o universo popular para o pal-co e convidou o Boi da Boa Hora para participar de um bailado. Meus amigos do Boi achavam que eu era reacionário por estar no movimento armorial – sem-pre malvisto e mal compreendido. Então o pessoal fez uma assembleia e decidiu não participar. Eu disse que não concor-

dava e pedi para sair do Boi da Boa Hora. “Quem quiser ir comigo vai”, eu disse. E o povo rachou: metade foi e outra ficou. Pedi apenas que me dessem o desenho do Boi da Boa Hora para eu guardar de recorda-ção [ver desenho na próxima página].

Foi então que decidi fundar outro Boi: o Boi Castanho do Reino do Meio-Dia, em outro bairro. Essa palavra foi retirada da Pedra do Reino [Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna], e “meio-dia” é uma antiga denominação dada aos povos do Hemisfério Sul, abaixo da linha do Equador. O grupo durou uns dois anos, até acabar naturalmente.

A primeira experiência com o Mateus To-nheta em palco foi com Bandeira do Divi-no (1976), uma releitura dessas folias ca-minheiras que chegam às casas pedindo permissão para comemorar o nascimento de Jesus e a chegada dos Reis Magos. Só que no meu espetáculo o dono da casa não dava essa permissão, então, eu criava uma série de situações com o Mateus até que a folia fosse acolhida.

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Reprodução da ilustração do Boi da Boa Hora que Nóbrega guardou de recordação. Autor desconhecido.

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As danças brasileiras se agrupam em três famílias principais. Os batuques, coreografi-camente, têm em comum a roda, o sapate-ado, as palmas e, sobretudo, a umbigada ou sua insinuação. Musicalmente, o canto e os tambores tocados com as mãos. Alguns gru-pos usam o ganzá, o reco-reco, o pandeiro, a alfaia e, por vezes, uma lata percutida com varetas. Essa família remonta às reuniões festivas, às práticas e às celebrações religio-sas – os ditos calundus – realizadas pelos negros em seus ajuntamentos, senzalas e quilombos durante o nosso largo processo de colonização. Com peculiaridades, esse gênero está presente em todo o país. Coco de roda, praiano ou simplesmente coco em Pernambuco, em Alagoas e na Paraíba; coco de zambê no Rio Grande do Norte; samba rural no interior baiano; tambor de crioula no Maranhão; jongo no Rio de Janeiro; batu-que em São Paulo; carimbó no Pará etc. É dessa família, ainda, o samba, derivado de “semba”, que quer dizer umbigada em banto.

Os cortejos são diretamente descendentes do procedimento colonial de coroação dos reis de congo. A um rei negro, na maioria das vezes escravo, era dado o poder de gover-nar determinada comunidade denominada “nação”. Essas coroações eram celebradas através de cortejos dramáticos marcados por cantos animados por robustos tambores e caixas de guerra (taróis). Coreograficamen-te, além dos movimentos no deslocamento do cortejo e do jogo dos bastões, havia simulações de combates (reminiscências

africanas). Nessa família estão, entre outras manifestações, moçambiques, maracatus, congadas, congos, cucumbis e taieiras. A mais vistosa das três famílias é a dos folguedos. Sua ascendência é ligada às janeiras e reisadas portuguesas: grupos que jornadeavam ao som de violas, rabecas, cavaquinhos e percussões cantando o nascimento do menino Jesus e a chegada dos Reis Magos na época da natividade cristã – solstício de verão europeu. No Brasil, incorporaram tipos e figuras do cancioneiro e do romanceiro, personagens populares, mitos etc. Esses grupos itinerantes ganham o nome de reisados, cada um intitulado a partir de suas figuras mais representativas (João do Vale, Pinica-Pau, Jaraguá, Cavalo-Marinho). Da aglutinação de vários reisados num só vão surgindo trupes de brincante que se fixam em determinada região para apresentação de sua numerosa galeria de tipos e figuras. Paulatinamente, se firmam com os nomes de Bumba Meu Boi, Cavalo-Marinho, Boi Bumbá, Boi de Mamão, Boi de Reis, Cordão de Bichos, Auto dos Guerreiros etc.

A persistência do nome “boi” é devida provavelmente ao significado mágico-religioso do animal e por ser a figura de maior sedução e encantamento graças às suas estripulias, investidas e galhofarias. Esses folguedos são, portanto, espetáculos hospedeiros totais, pois abrigam a dança, o canto, a música instrumental, a comédia, o drama, o recitativo, a pantomima etc. (Adaptação de excerto de texto do espetácu-lo Naturalmente – Teoria e Jogo de uma Dança Brasileira [2009].)

Passo a passopor An ton i o Nóbrega

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Durante algum tempo pensei que a rabeca e o violino fossem instrumen-tos diferentes. Estudando a história do desenvolvimento do violino des-cobri, entre outras inúmeras coisas, que era pelo nome de rabeca que o instrumento, até pouco tempo atrás, era conhecido em Portugal. Isso não é difícil de entender. A palavra rabe-ca é uma espécie de latinização de rebab, nome de instrumento árabe que chega à Península Ibérica junto com os árabes, como sabemos, por volta do século VIII.

Até esse momento ainda não havia na Europa, e consequentemente na Península Ibérica, instrumentos de cordas tocados com arco. Foram os árabes que trouxeram essa novida-de. O que havia eram os primitivos instrumentos de cordas dedilhadas.

A maioria fazia parte da família das violas (mas nada semelhante às atuais). É do encontro dessa fa-mília de instrumentos com o rebab que lentamente vai surgindo o que hoje conhecemos pelo nome violi-no. Não nos esqueçamos de que é dentro desse mesmo percurso que se constituem também a viola de arco (viola da braccio) e o violoncelo (viola da gamba). O que ocorreu é que, enquanto na maioria dos países europeus esse pequeno instrumen-to tocado sobre o ombro ganhava o nome de violino (violon na França e violin na Inglaterra), em Portugal era chamado de rabeca e com esse nome chegou ao Brasil.

Se fizermos uma pesquisa sobre esse nome vamos encontrá-lo em várias partituras de música clássi-

por An ton i o Nóbrega

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ca brasileira do século XIX. Seria natural, portanto, que o brasileiro em geral falasse em rabeca para se referir ao violino. A partir do come-ço do século XX, no meio musical, todavia, o nome violino começa a substituir o termo rabeca. No meio rural, diferentemente, a designação rabeca continua a ser usada. É aí que ocorre um fenômeno sociocul-tural importante: como nem sempre o povo tinha acesso à compra ou à aquisição do instrumento, usava o expediente de construí-lo. E como construí-lo? Com a madeira mais acessível. É por essa via que, como consequência, nasce uma espécie de luteria popular. Uma luteria pri-mitiva e artesanal cuja referência de construção era um vaguíssimo conhecimento (via olhar, foto, tra-dição oral etc.) do violino.

O fato é que esse instrumento, chamado de rabeca ou de violino, é composto de quatro cordas afina-das quase sempre em quintas sobre um cavalete curvo, excitadas através de um arco composto de crinas de cavalo, e tocado em cima do ombro ou peito esquerdos. O que ficou de interessante nessa história toda é que o povo imprimiu nesse violino rústico um modo, uma maneira de tocar identificada com os mesmos padrões e procedimentos da música popular brasileira (acentuações, fra-seados, impulsos) que se encontram tanto no choro quanto no baião, no frevo e assim por diante.

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Tonheta é um possível arquétipo de ar-tista de rua que começou a ser lapidado por Antonio Nóbrega muitos anos an-tes de ser reunida a equipe de criação da peça Brincante, formada pelo pró-prio Nóbrega, Rosane Almeida, Rome-ro de Andrade Lima e eu. Entre 1990 e 1992 trabalhamos, em surtos eventuais de grande intensidade, na criação de versos, cenas, indumentárias, piadas, adereços, diálogos, cenários e números de malabarismo ou de habilidades cê-nicas. O sucesso de Brincante, de 1992, e de Segundas Histórias, de 1994, deu ao personagem grande popularidade, que se ampliou quando Nóbrega fez uma transição gradual da peça de tea-tro com números musicais para o show musical ilustrado por pequenos entre-mezes cênicos. Tonheta está presente em praticamente todos os seus discos e espetáculos mais importantes, como um brasileirinho galhofeiro que, na sua ingenuidade astuciosa, cristaliza um pouco dos milhões de brasileiros (e não só brasileiros) que o inspiraram.

Os ancestrais de Tonheta são saltimban-cos de beira de estrada, prestidigitado-

res de paletó surrado desdobrando ba-ralhos de ouro para plateias sonolentas, rabequeiros roufenhos puxando cortejos em veredas batidas de sol, parelhas de palhaços virando bunda-canastra diante das câmaras, capoeiras empoeirados jo-gando rabos de arraia na praça da feira.

Muitos venderiam a alma ao diabo para ser Tonheta. O problema é que o diabo não negocia nesse ramo. Iludidos, ferveram poções mágicas, beberagens que incluíam asa de morcego, rabo de lagartixa, solado de bota de soldado de polícia, pneu de carro fúnebre, chave de cadeia, sapo barbudo, trevo-de-cinco-folhas, chifre de boi tungão, prepúcio de gorila, dentadura postiça de vampiro, lona de ringue de MMA, lençol de motel. Ferveram, coaram, beberam. Não adiantou.

Em suas andanças pela ciclovia periférica que rodeia os séculos, Tonheta teve numerosos encontros com homens notáveis. Com o escriba barroco Alcofribas Nasier ele destroçou rega-bofes acompanhados de vinho tinto e forró de alaúde. Com o amanuense

por Braul i o Tavares

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Albert Einstein tocou duetos ao violino e trocou ideias sobre a relatividade da escala diatônica. Com o grande Nijinski ele tomou um porre de caipirosca moscovita que os fez voltarem juntos para o hotel pulando de teto em teto. Com Luís Vaz de Camões ele exumou as estrofes censuradas da Ilha dos Amores e fez parceria em estrofes escarninhas contra a monarquia europeia. Ao lado de Villa-Lobos, coube-lhe inventar uma pianola musical automática capaz de colocar melodia em qualquer texto recitado à sua frente, e sua parceria com Santos Dumont produziu um para-raios que em vez de raios atraía chuva.

Tonheta vê com simpatia a prática da arte pela arte, mas, para poder praticar sua arte nas horas vagas, ele já foi vendedor de picolé, entregador de pizza, sapateiro, engraxate, porteiro de sinuca, cambista de senha bancária, flanelinha de engarrafamento, vigia de monumento em praça pública, vendedor de amendoim torrado em avião de empresa decadente, cortador de rolete de cana, empinador de pipa em tarde sem vento, desbloqueador de celular achado no lixo de um show de rock, procurador de cachorro perdido, vendedor de bolão vencido da Mega-Sena, contador de filme para quem não tinha o dinheiro do ingresso, puxador de palma em comício, garçom de carroça de angu.

Seu DNA histórico guarda cromosso-mos dos truões e das barregãs que se alojavam no Pátio dos Milagres da corte francesa; dos degredados e convictos que vieram em galés e grilhões povoar o Brasil de pequeninos caboclos bastar-dos; dos pícaros nômades que mendi-gavam e furtavam na beira de todas as estradas entre Santiago de Compostela e Gibraltar; dos tangerinos e tropeiros que chicoteavam suas alimárias nos contrafortes das serras nordestinas; dos carregadores de fardos das missões científicas europeias que se internaram nos cerrados insondáveis do Brasil pro-fundo; dos violinistas ciganos que ras-quearam zíngaras em volta das fogueiras do Oiapoque ao Chuí; dos canibais pin-tados que pularam de maracá em punho diante dos inimigos atados ao poste no centro da taba; dos amarelinhos, jecas--tatuzinhos, mulatinhos, cancãozinhos, caboclinhos, sararazinhos, malazartinhos, pivetinhos e zés-povinhos espalhados pelo sistema circulatório da nação, todos os filhos do lodo em cuja testa está escri-to: “Eles herdarão a Terra”.

Braulio Tavares nasceu em Campina Gran-de (PB) em 1950 e mora no Rio de Janeiro. Escritor e compositor, ganhou o Prêmio Ja-buti de Literatura Infantil com A Invenção do Mundo pelo Deus-Curumim (2008), em par-ceria com Fernando Vilela, e o Prêmio Shell de Melhor Texto com Brincante (1992), em parceria com Antonio Nóbrega.

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Posso dizer que eu, João Sidurino, epo-peísta, mestre de cerimônias, rapsodo, coreografador, cantador, homem-ban-da e encenador, só decidi-me a revelar ao mundo as extraordinárias façanhas do industrioso Tonheta, o carroceiro andante, depois que conheci Rosalina de Jesus, ex-rumbeira e malabarista do famoso circo Alakazan, hoje minha única, insuperável e inseparável partner e companheira de toda a vida. Só com a união de nossas qualidades e exube-rantes habilidades artísticas é que tal empresa seria possível. Mas quem é esse fabuloso Tonheta, cujas crônicas se acham dispersas em velhos alfar-rábios desaparecidos, cujas histórias a quintessência dos meus sentidos mal pode escutar das longínquas vozes da-queles que há séculos foram conduzi-dos para o outro-lado, amém?

Queridos amigos, Tonheta vive em mim como uma espécie de pedrinha-caroço (tais são as palavras que me ocorrem) que lateja sem parar no âmago profundológico da minha essência abismal recôndita! Será Tonheta então, por isso, um ser invisível? Vejamos. Quando rodamos, eu e Rosalina, com nosso Circo-Teatro Brincante pelas estradas do país, encontramos pelas feiras e praças velhos cantadores que contam as aventuras de João Grilo, Pedro Malazartes. Canção de Fogo, como se sabe, nomes menos usuais com que Tonheta é alcunhado. Aliás, um dia desses, ali perto do trevo que leva a Águas de Totorobó, encontramo-nos com Mestre Saúba, um folgazão completo, assim como eu, que brincava (atuava, para quem não é versado em nomenclatura tonhetânica) com o seu

por J oão S idur ino 1

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Benedito na sua tolda de mamulengos. Que nada! Aquele Benedito lá não era nada mais nada menos que uma transfiguração de Tonheta.

Mas, voltando à minha pedrinha-caroço que lateja, afirmo que o que me faz ver-dadeiramente relatar as bravatas e facé-cias do admirável Tonheta não é nada mais, nada menos do que um imponde-rável impulso que se transforma numa louca vontade de brincar com o mundo, de nele fazer cócegas, um desejo incon-trolável de lambuzar-me na desordem primitiva: dançando, pulando, cantando, piruetando, pinotando, mimicando, ber-rando, assobiando, gingando, mugan-

gando, até atingir o meu gozo no êxtase caótico da paz celestial endiabrada.

Às vezes as pessoas me dizem: “Tem-pos difíceis esses em que vivemos”. Concordo. Só que, em sendo mestre de cerimônias, epopeísta etc. e tal, eu, João Sidurino, também conhecido como Mestre Siduca, não posso calar--me. Mestre que é mestre ensina, acon-selha, serve para alguma coisa. Por isso digo sempre: queridos amigos meus, tonhetai-vos uns aos outros! 2

1 Personagem de Antonio Nóbrega que conta as aventuras de Tonheta.2 Texto publicado originalmente em COELHO, Marco Antônio; FALCÃO, Aluísio. Antônio Nóbrega: um artista multidisciplinar. Estud. av., São Paulo, v. 9, n. 23, abr. 1995, e revisto pelo autor para esta publicação.

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Eles cantam, dançam, versejam. Mas quem participa de folguedos populares Brasil afora, apesar de ensaiar, produzir figurino, conhecer coreografias, não se diz artista. É brincante. O termo nasceu no Nordeste e se aplica a quem participa de cavalos-mari-nhos, reisados, maracatus e uma infinidade de “brincadeiras”. Há muito tempo Antonio Nóbrega e Rosane Almeida se encantaram por essa visão lúdica do fazer artístico, os saberes atrelados a ela e a multiplicidade de linguagens utilizadas. Eles enxergam nesse universo uma possibilidade poderosa de melhorar as pessoas e a relação entre elas. Brin-cante é o espaço que criaram para dar luz a esse encantamento na tumultuada cidade de São Paulo, onde o brincar e a cultura popular parecem tão esquecidos. Trecho publicado originalmente na revista Instituto Brincante (2009).

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Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto; mas, fora dessa conseqüência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador – sua parte, que antes já foi inventada, num papel... Trecho retirado do livro Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, e utilizado no espetáculo Mátria – uma Outra Linha de Tempo Cultural (2011).

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EXPOSIÇÃOOcupação Antonio Nóbrega

quinta 4 abril a domingo 19 maio 2013terça a sexta 9h às 20hsábado domingo feriado 11h às 20h

Uma homenagem ao artista, que sabe reinventar a cultura de seu país ao absorver as tradições de diversas regiões e escolas do Brasil e do mundo. O visitante poderá viver o universo de Nóbrega passando por um túnel com objetos, figurinos e, no final, uma mostra de vídeos de seus espetáculos.

Os filmes serão exibidos na seguinte escala, repetidamente:

terças e sextas – Naturalmente

quartas e sábados – Nove de Frevereiro

quintas e domingos – Lunário Perpétuo

piso térreo[indicado para todas as idades]

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AULA ESPETÁCULOMátria, Uma Outra Linha de Tempo Cultural

sexta 5 abril 20h

Aula espetáculo sobre a formação e o desenvolvimento da cultura popular brasileira e a sua relação com a linha do tempo cultural ocidental ou europeia.

sala itaú cultural 219 lugares[indicado para maiores de 14 anos][distribuição de ingressos 30 minutos antes do início do evento]

Concepção e atuação | Antonio NóbregaIluminação | Marisa BentivegnaSom | Tuca Pradella

ESPETÁCULOTonheta e Companhia

sábado 6 abril 20h

Com participação de Rosane Almeida, Maria Eugênia e Marina Abib, viagens pelos es-petáculos teatrais e de dança de Nóbrega com esquetes do personagem Tonheta em sua saga épico-bufônica em Brincante e Segundas Histórias e sua procura por uma dança brasileira em Figural e Naturalmente.

sala itaú cultural 219 lugares[indicado para todas as idades] [distribuição de ingressos 30 minutos antes do início do evento]

Roteiro e atuação | Antonio Nóbrega eRosane AlmeidaElenco | Rosane Almeida, Maria Eugênia e Marina Abib

Produção | Thereza FreitasAssistência | Wanderley D. Lascko

Iluminação | Marisa BentivegnaOperação de luz | Jean MarcelContrarregra | Domingos CarneiroConvidadas | Maria Eugênia e Marina Abib

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SHOWMeu Cancioneiro

domingo 7 abril 19h

Show com maracatus, frevos, baiões, cirandas e peças instrumentais compostas por Antonio Nóbrega e em parceria com os poetas e letristas Braulio Tavares e Wilson Freire.

sala itaú cultural 219 lugares[indicado para todas as idades] [distribuição de ingressos 30 minutos antes do início do evento]

OFICINA PARA CRIANÇASBrincantinho – Cultura da Infância (Instituto Brincante)

domingo 7 abril 11h30 às 13h30

O Brincantinho é um trabalho dedicado à cultura da infância com atividades que integram a música, o canto e a dança, além de proporcionarem o contato com jogos, brincadeiras e com o universo mítico da cultura popular brasileira. Todos esses elementos atuam como ferramentas para um desenvolvimento que permita ao indivíduo tomar consciência e se apropriar de todo o potencial criativo que possui.

espaço educativo20 vagas (crianças e pais)[indicado para crianças de 2 a 11 anos][inscrições pelo telefone 11 2168 1876, a partir de 1º de abril]

Criação e atuação | Antonio NóbregaDireção musical, violão de sete cordas e cavaquinho | Edmilson CapelupiBateria | Cléber AlmeidaFlauta e sax | Daniel AllainBaixo e violão | Jardel CaetanoPandeiro e percussão | Leo RodriguesAcordeom | Olívio Filho

Sax e zabumba | Zé PitocoIluminação | Marisa BentivegnaSonorização | André Andrade e Tuca PradellaRoadie | Adilson Ramos SantosProdução | Thereza FreitasAssistência de produção | Wanderley Santos da Silva

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ENCONTROS COM ANToNIO NÓBREGAquartas 10, 17 e 24 abril, 1 e 8 maio 18h

Encontros informais e interativos sobre temas presentes na obra de Antonio Nóbrega ou relacionados ao seu trabalho.

piso térreo20 vagas[duração aproximada 45 minutos][indicado para maiores de 14 anos] [distribuição de ingressos 30 minutos antes do início do evento]

10 abril | Teatro e dança17 abril | Música e poesia24 abril | Leituras1 maio | Teatro e dança8 maio | Música e poesia

RODAS DE DANÇA

sábado 27 domingo 28 abril 14h30

Acompanhado por músicos e cantores, o artista convida o público a participar, tendo como inspiração a roda da ciranda. Nesse evento as pessoas poderão dançar, cantar, tocar e brincar artisticamente, passeando pela diversidade dos ritmos brasileiros.

piso térreo25 vagas[indicado para todas as idades] [duração aproximada 45 minutos][distribuição de ingressos 30 minutos antes do início do evento]

Violão | Alencar MartinsSanfona e voz | Cristiano MeirellesPercussão e voz | Flora PoppovicPercussão | Leonardo Gorosito e Saulo BortolosoDireção musical | Leonardo Gorosito

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ATENDIMENTO EDUCATIVOO público está convidado a conhecer a exposição Ocupação Antonio Nóbrega na compa-nhia da equipe de educadores do instituto. As visitas buscam despertar o olhar do visitante no contato direto com as obras.

Visitas educativas para público espontâneo em português e em Libras (língua brasileira de sinais)A equipe está à disposição para uma conversa em português e em Libras nos seguintes horários: portuguêsterça e quinta 18hsábado, domingo e feriado 14h librasquinta 14h e 17hsábado 13 e 27 14hdomingo 14 e 28 14h 20 vagas[duração aproximada 40 minutos][informações no balcão de atendimento ao público – piso térreo]

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FANZINE OCUPAÇÃO ANTONIO NÓBREGA

Concepção e coordenação editorialNúcleo de Comunicação

Coordenação de conteúdoNúcleo de Educação Cultural

Projeto editorial Gustavo Angimahtz (terceirizado)Maria Clara MatosRoberta Dezan

EdiçãoGustavo Angimahtz (terceirizado)Roberta Dezan

Projeto gráfico e designLiane Tiemi Iwahashi

IlustraçõesFernando Vilela

Revisão Ciça Corrêa (terceirizada)Karina Hambra (terceirizada)Polyana Lima

Produção editorial Cybele FernandesLívia G. Hazarabedian

Assistência administrativaIsabella Protta

OCUPAÇÃO ANTONIO NÓBREGA

CuradoriaWalter Carvalho

Assistência de curadoriaLeonardo Gudel

Projeto expográficoCassio AmaranteAssistência e projeto arquitetônicoAvelino Lós ReisEquipeAnatole Mirsky Juliana Andreatta Marcelo LaurinoSachais CoutoWagner Olino

ParceriaBrincante Produções Artísticas

Instituto Itaú Cultural

PresidenteMilú Villela

Diretor superintendente Eduardo Saron

Superintendente administrativo Sergio Miyazaki

Idealização e organização

Núcleo de Educação Cultural

GerênciaValéria Toloi

CoordenaçãoTatiana Prado

Produção executivaAna Paula Drudi MirandaTayná Menezes

Núcleo de Produção de Eventos

Gerência Henrique Iodeta Soares

Produção executiva do espaço expositivoCarmen FajardoProduçãoAline ArroyoEdvaldo Inácio da SilvaÉrica PedrosaVinícius RamosWanderley Bispo Coordenação de shows e espetáculosJanaina BernardesProduçãoJanuário SantisMarcos MirandaPriscila Moraes (terceirizada)Rafael Desimone (terceirizado)Rúbia Paião

Núcleo de Comunicação e Relacionamento

GerênciaAna de Fátima Sousa

Produção editorialCybele FernandesLívia G. Hazarabedian

Projeto gráficoLiane Tiemi Iwahashi

Comunicação visualRichner Allan SantosYoshiharu Arakaki

Edição Gustavo Angimahtz (terceirizado)Roberta Dezan

Revisão Ciça Corrêa (terceirizada)Karina Hambra (terceirizada)Polyana Lima

Produção de conteúdo on-lineMaria Clara Matos

Núcleo de Audiovisual e Literatura

GerênciaClaudiney Ferreira

CoordenaçãoKety Fernandes

Produção de imagensJahitza Balaniuk

Edição de imagensKarina FogaçaRodrigo Lorenzetti

Atendimento educativoBianca Selofite Claudia MalacoDébora FernandesIsabela QuattrerJosiane CavalcantiJuliana RicchettiLuísa SaavedraMaria  MeskelisOtávio Bontempo Paula PedrosoRafael AnacletoRaphael GianniniSamara FerreiraSylvia Regina SatoThiago Borazanian

AgradecimentosFernando Vilela, Maria Eugênia Nóbrega, Thereza Freitas e Wanderley D. Lascko

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/itaucultural itaucultural.org.br fone 11 2168 1777 [email protected] avenida paulista 149 são paulo sp 01311 000 [estação brigadeiro do metrô]

Realização

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