antologia (adélia prado)

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Adélia Prado ANTOLOGIA Impressionista Ensinamento Dia Objeto de Amar Pranto Para Comover Jonathan Parâmetro Poema Começado no Fim Exausto Explicação de Poesia sem Ninguém Pedir Casamento A Serenata Com Licença Poética Dona Doida A Maçã no Escuro Cantiga dos Pastores Cacos Para um Vitral Corridinho Dolores Moça na sua Cama No Presépio Os Componentes da Banda Rodando IMPRESSIONISTA Uma ocasião, meu pai pintou a casa toda de alaranjado brilhante. Por muito tempo moramos numa casa, como ele mesmo dizia, constantemente amanhecendo. CASAMENTO Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como "este foi difícil" "prateou no ar dando rabanadas" e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva. ENSINAMENTO Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento. Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo: "Coitado, até essa hora no serviço pesado". Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente. Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.

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Page 1: Antologia (Adélia Prado)

Adélia Prado

ANTOLOGIA

Impressionista • Ensinamento • Dia • Objeto de Amar • Pranto Para Comover Jonathan • Parâmetro • Poema Começado no Fim • Exausto • Explicação de Poesia sem Ninguém Pedir • Casamento • A Serenata •

Com Licença Poética • Dona Doida • A Maçã no Escuro • Cantiga dos Pastores • Cacos Para um Vitral • Corridinho • Dolores • Moça na sua Cama • No Presépio • Os Componentes da Banda • Rodando

IMPRESSIONISTA

Uma ocasião,

meu pai pintou a casa toda de alaranjado brilhante.

Por muito tempo moramos numa casa, como ele mesmo dizia,

constantemente amanhecendo.

CASAMENTO

Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque,

mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,

de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como "este foi difícil" "prateou no ar dando rabanadas"

e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez

atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa,

vamos dormir. Coisas prateadas espocam:

somos noivo e noiva.

ENSINAMENTO

Minha mãe achava estudo

a coisa mais fina do mundo. Não é.

A coisa mais fina do mundo é o sentimento. Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,

ela falou comigo: "Coitado, até essa hora no serviço pesado".

Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente. Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.

Page 2: Antologia (Adélia Prado)

DIA

As galinhas com susto abrem o bico

e param daquele jeito imóvel - ia dizer imoral -

as barbelas e as cristas envermelhadas, só as artérias palpitando no pescoço. Uma mulher espantada com sexo:

mas gostando muito.

OBJETO DE AMAR

De tal ordem é e tão precioso o que devo dizer-lhes

que não posso guardá-lo sem que me oprima a sensação de um roubo:

cu é lindo! Fazei o que puderdes com esta dádiva.

Quanto a mim dou graças pelo que agora sei

e, mais que perdôo, eu amo.

PRANTO PARA COMOVER JONATHAN

Os diamantes são indestrutíveis?

Mais é meu amor. O mar é imenso?

Meu amor é maior, mais belo sem ornamentos do que um campo de flores. Mais triste do que a morte,

mais desesperançado do que a onda batendo no rochedo,

mais tenaz que o rochedo. Ama e nem sabe mais o que ama.

PARÂMETRO

Deus é mais belo que eu.

E não é jovem. Isto sim, é consolo.

Poema Começado no Fim

POEMA COMEÇADO NO FIM

Um corpo quer outro corpo. Uma alma quer outra alma e seu corpo. Este excesso de realidade me confunde.

Page 3: Antologia (Adélia Prado)

Jonathan falando: parece que estou num filme.

Se eu lhe dissesse você é estúpido ele diria sou mesmo.

Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear eu iria.

As casas baixas, as pessoas pobres, e o sol da tarde,

imaginai o que era o sol da tarde sobre a nossa fragilidade.

Vinha com Jonathan pela rua mais torta da cidade.

O Caminho do Céu.

EXAUSTO

Eu quero uma licença de dormir, perdão pra descansar horas a fio,

sem ao menos sonhar a leve palha de um pequeno sonho.

Quero o que antes da vida foi o sono profundo das espécies,

a graça de um estado. Semente.

Muito mais que raízes.

EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR

Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,

atravessou minha vida, virou só sentimento.

(in Bagagem)

A SERENATA

Uma noite de lua pálida e gerânios ele viria com boca e mão incríveis

tocar flauta no jardim.

Estou no começo do meu desespero e só vejo dois caminhos: ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exprobo

o que não for natural como sangue e veias descubro que estou chorando todo dia,

os cabelos entristecidos, a pele assaltada de indecisão.

Page 4: Antologia (Adélia Prado)

Quando ele vier, porque é certo que ele vem, de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?

A lua, os gerânios e ele serão os mesmos - só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?

Como a fecharei, se não for santa?

COM LICENÇA POÉTICA

Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta,

anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir.

Não sou feia que não possa me casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza

e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

DONA DOIDA

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso, com trovoada e clarões,

exatamente como chove agora. Quando se pôde abrir as janelas,

as poças tremiam com os últimos pingos. Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema, decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.

Fui buscar os chuchus e estou voltando agora, trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.

A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha, com sombrinha infantil e coxas à mostra.

Meus filhos me repudiaram envergonhados, meu marido ficou triste até a morte,

eu fiquei doida no encalço. Só melhoro quando chove.

A MAÇÃ NO ESCURO

Era um cômodo grande, talvez um armazém antigo, empilhado até o meio de seu comprimento e altura

com sacas de cereais. Eu estava lá dentro, era escuro, estando as portas fechadas

Page 5: Antologia (Adélia Prado)

como uma ilha de sombra em meio do dia aberto. De uma telha quebrada, ou de exígua janela,

vinha a notícia de luz. Eu balançava as pernas, em cima da pilha sentada,

vivendo um cheiro como um rato o vive no momento em que estaca.

O grão dentro das sacas, as sacas dentro do cômodo, o cômodo dentro do dia dentro de mim

sobre as pilhas dentro da boca fechando-se de fera felicidade. Meu sexo, de modo doce, turgindo-se em sapiência,

pleno de si, mas com fome, em forte poder contendo-se,

iluminando sem chama a minha bacia andrógina. Eu era muito pequena, uma menina-crisálida.

Até hoje sei quem me pensa com pensamento de homem: a parte que em mim não pensa

e vai da cintura aos pés reage em vagas excêntricas, vagas de doce quentura de um vulcão que fosse ameno,

me põe inocente e ofertada, madura pra olfato e dentes, em carne de amor, a fruta.

CANTIGA DOS PASTORES

À meia noite no pasto, guardando nossas vaquinhas,

um grande clarão no céu guiou-nos a esta lapinha.

Achamos este Menino entre Maria e José,

um menino tão formoso, precisa dizer quem é?

Seu nome santo é Jesus, Filho de Deus muito amado, em sua caminha de cocho dormia bem sossegado.

Adoramos o Menino nascido em tanta pobreza

e lhe oferecemos presentes de nossa pobre riqueza: a nossa manta de pele,

o nosso gorro de lã, nossa faquinha amolada, o nosso chá de hortelã.

Os anjos cantavam hinos cheios de vivas e améns. A alegria era tão grande e nós cantamos também: Que noite bonita é esta

em que a vida fica mansa, em que tudo vira festa

Page 6: Antologia (Adélia Prado)

e o mundo inteiro descansa? Esta é uma noite encantada,

nunca assim aconteceu, os galos todos saudando: O Menino Jesus nasceu!

CACOS PARA UM VITRAL

No caderno de Glória: um romance é feito das sobras. A poesia é núcleo. Mas é preciso

paciência com os retalhos, com os cacos. Pessoas hábeis fazem com eles cestas,

enfeites, vitrais, que por sua vez configuram novos núcleos. Será este pensamento

vaidoso? Por certo. Quero ser um poeta extraordinário e desejo poder escrever um

teatro muito engraçado pra todo mundo rir até ficar irmão. Glória decifrou o garrancho na nota de um cruzeiro: "Ontem fiz quinze anos e fui a

primeira vez na Figueirinha. Dei Cr$ 50,00 pra mulher ela ainda me deu troco. Não

tava ruim nem bom." Juca entrou esfregando as mãos: — Tá um frio de matar velho! — Se quer capote, na

segunda prateleira da cozinha tem. Juca bebeu e saiu. Tivesse ou não, brigado com a

Naná, a cada dia ele bebia mais. Estará certo, pensou Glória, facilitar desse modo a

cachaça do Juca? Estarei sendo leviana? Estava. Ritinha: — Mãe, se eu morrer cê chora? Glória: — Ih! Choro até secar. Glória ouviu de relance os peões almoçando na obra: — Rico tinha que nascer tudo

morfético. — Tem rico legal, sô! — Tem não. Ritinha chegando da escola: — Mãe, eu laía e a Fostina envinha. Ela envinha aqui? —

Que é isso? Existe o verbo lair e envir? — A senhora também fala assim. — Falo

mesmo. — Então... — Então nada. É porque eu gosto muito da minha filhinha e

quando a gente gosta, chateia um pouquinho. Anselmo Vargas beijava Sônia Margot na novela das sete. O menininho de Matilde

pediu: mãe, muda o programa. Meu pintinho fica ruim. — Dona Glória, eu fiquei incurvida. — O quê? — É, sobrou pra mim a obrigação de

catar neste quarteirão as esmolas pro Natal dos pobres. — Ah! — O apostolado, cuja

eu sou membra é que me incurviu. — Entra, Fostina. — Não, se eu delatar, atrasa pra

mim. A placa indicava na estradinha de chão: Sítio do AU PURO. Alguém tinha consertado:

Sítio do AR PURO. Gabriel parou o carro e escreveu em baixo, sítio do AL PURO. No

lugar voava sem pressa uma linda borboleta amarela e preta. Copiado por Gabriel, do sanitário da rodoviária: PEDE NÃO HORINAR NO VÁS. Remexendo papéis, Glória achou uma notação com sua letra: "retalho de poesia dá

excelente prosa." Não se lembrava mais por que escrevera aquilo. "Retalho de poesia

dá excelente prosa, como retalho de hóstia dá excelente sopa", descobriu escrito mais

embaixo. Ainda: "Privada pública" é uma impropriedade. Empregada chama as amigas

Page 7: Antologia (Adélia Prado)

invariavelmente de colegas. Deus é fiel, no entanto vacilo, amo com reservas, deixo

que pequenas nódoas confundam minha alegria. Quando serei evangelicamente

generosa, confiante como um menino para quem o Reino está preparado?" Extraído do livro "Cacos Para Um Vitral", Editora Rocco, 1989.

CORRIDINHO

O amor quer abraçar e não pode. A multidão em volta,

com seus olhos cediços, põe caco de vidro no muro

para o amor desistir. O amor usa o correio, o correio trapaceia, a carta não chega,

o amor fica sem saber se é ou não é. O amor pega o cavalo, desembarca do trem,

chega na porta cansado de tanto caminhar a pé. Fala a palavra açucena, pede água, bebe café,

dorme na sua presença, chupa bala de hortelã.

Tudo manha, truque, engenho: é descuidar, o amor te pega,

te come, te molha todo. Mas água o amor não é.

Texto extraído do livro "Poesia Reunida", Siciliano 1991.

DOLORES

Hoje me deu tristeza, sofri três tipos de medo

acrescido do fato irreversível: não sou mais jovem.

Discuti política, feminismo, a pertinência da reforma penal,

mas ao fim dos assuntos tirava do bolso meu caquinho de espelho

e enchia os olhos de lágrimas: não sou mais jovem.

As ciências não me deram socorro, não tenho por definitivo consolo

o respeito dos moços. Fui no Livro Sagrado

buscar perdão pra minha carne soberba e lá estava escrito:

Page 8: Antologia (Adélia Prado)

"Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada, se tornou capaz de ter uma descendência..."

Se alguém me fixasse, insisti ainda, num quadro, numa poesia...

e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos... Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques,

das que jamais verão seu nome impresso e no entanto sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas

não recusam casamento, antes acham sexo agradável, condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo

e varrer a casa de manhã. Uma tal esperança imploro a Deus.

Extraído do livro " - Poesia Reunida", Editora Siciliano, 1991.

MOÇA NA SUA CAMA

Papai tosse, dando aviso de si, vem examinar as tramelas, uma a uma.

A cumeeira da casa é de peroba do campo, posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,

tomo a bênção e fujo atrás dos homens, me contendo por usura, fazendo render o bom.

Se me tocar, desencadeio as chusmas, os peixinhos cardumes.

Os topázios me ardem onde mamãe sabe, por isso ela me diz com ciúmes:

dorme logo, que é tarde. Sim, mamãe, já vou:

passear na praça em ninguém me ralhar. Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,

moa de moços no bar, violão e olhos difíceis de sair de mim.

Quando esta nossa cidade ressonar em neblina, os moços marianos vão me esperar na matriz.

O céu é aqui, mamãe. Que bom não ser livro inspirado o catecismo da doutrina cristã, posso adiar meus escrúpulos

e cavalgar no torpor dos monsenhores podados.

Posso sofrer amanhã a linda nódoa de vinho

das flores murchas no chão. As fábricas têm os seus pátios,

os muros tem seu atrás. No quartel são gentis comigo. Não quero chá, minha mãe,

quero a mão do frei Crisóstomo

Page 9: Antologia (Adélia Prado)

me ungindo com óleo santo. Da vida quero a paixão.

E quero escravos, sou lassa. Com amor de zanga e momo quero minha cama de catre,

o santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador.

Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.

Extraídos de "Poesia Reunida", Editora Siciliano, 1991.

NO PRESÉPIO Minha alma debate-se, tentada à tristeza e seus requintes. Meu pai morto não vai

repetir este ano: "Nada como um frango com arroz depois da missa". Minha irmã chora

porque seu marido é amarradinho com dinheiro e ela queria muito comprar uns

festões, uns presentinhos mais regalados, ô vida, e ele acha tudo bobagem e só quer

saber de encher a geladeira com mortadela e cerveja. Talvez, por isto, ou porque me

achei velha demais no espelho da loja, sinto dificuldades em ajudar Corália. Queria

muito chorar, deveras estou chorando, às vésperas do nascimento do Senhor, eu que

estremeço recém-nascidos. Estou achando o mundo triste, querendo pai e mãe, eu

também. Corália disse: você é tão criativa! E sou mesmo, poderia inventar agora um

sofrimento tão insuportável que murcharia tudo à minha volta. Mas não quero. E ainda

que quisesse, por destino, não posso. Este musgo entre as pedras não consente, é

muito verde. E esta areia. São bonitos demais! À meia-noite o Menino vem, à meia-

noite em ponto. Forro o cocho de palha. Ele vem, as coisas sabem, pois estão

pulsando, os carneiros de gesso, a estrela de purpurina, a lagoa feita de espelhos. Vou

fazer as guirlandas para Corália enfeitar sua loja. A radiação da "luz que não fere os

olhos" abre caminho entre escombros, avança imperceptível e os brutos, até os brutos,

banhados. Desfoco um pouco o olhar e lá está o halo, a expectante claridade, em

Corália, em Joana com seu marido e em mim, também em mim que escolho beber o

vinho da alegria, porque deste lugar, onde "o leão come a palha com o boi", esta

certeza me toma: "um menino pequeno nos conduzirá". Texto extraído do livro "Filandras", Editora Record, 2001.

OS COMPONENTES DA BANDA

O menino da vizinha dos fundos, trepado no muro como ele vive, deve ter investigado

bem o meu quintal, porque hoje me gritou: "do-o-na, do-o-na, a mãe falou se a

senhora quer vender umas panelas pra ela." Me desgostou muito a forma de pedir, o

pedido em si. Com tanto vizinho, porque Dona Alvina foi enxergar logo as minhas

panelas? A distância entre a casa dela e a minha é a mesma entre a casa dela e a do

Osmar Rico. É claro que percebeu minha fraqueza. Não posso esconder, está na minha

cara a atração que exercem sobre mim. São como diamantes no cascalho. Pobres, eu

os farejo, pressinto, me ofereço a eles como manjar. As panelas, se estavam no

barracão é porque estavam mesmo sobrando. O que não me falta é panela. Por que

então não fui capaz de pegar a melhor delas e dar para Dona Alvina com o coração

exultante de poder ajudar? De jeito nenhum. Primeiro disse ao menino, contrariada: as

panelas não são de vender não. Fiquei com raiva dela falar em comprar, já sabendo

Page 10: Antologia (Adélia Prado)

que eu não ia vender. Logo me arrependi, chamei o menino de volta e peguei a melhor

panela, mas não pense que mandei a tampa junto. Achei-a boa demais, servia pra

tampar o caldeirão onde gosto de cozinhar batatas. Dei a panela pura. Foi uma

bondade boba, pela metade, sem nenhum valor. Não descansei enquanto não inventei

um meio de visitar Dona Alvina. Com um mês só na casa velha, toda escorada, que o

dono do curtume deu para ela morar, já fez horta, jardim, os cacarecos são

limpíssimos. A menina pequetita, paninho na cabeça, brinquinho de ouro na orelha

desensebada. Fui com desculpa de comprar cebolinha e fiquei sabendo: ela faz faxina

nas casas, o marido trabalha fora e só vem fim de semana, eles não são daqui não.

Muito bem, pois saí sem ter coragem de dizer a ela a única coisa que meu coração

pedia que dissesse: olha, Dona Alvina, somos vizinhas e a senhora pode contar comigo

no que precisar, estou à sua disposição. Isto falei toda emproada pra Dona Leonor, pra

Dona Ester, porque no fundo sabia, são destas vizinhas que pedindo um dente de alho

pagam logo com uma réstia de cebolas, enfim, me serviriam quando eu precisasse

sem me dar amolação. Dona Alvina é diferente, porque é precisada mesmo. Se me

pedir cinqüenta cruzeiros vai demorar um ano pra pagar. Qual é o dinheiro que entra

lá que seus quatro crioulinhos não consomem num átimo? E ela deve pensar assim:

"Dona Violeta é rica, pode muito bem esperar." Posso mesmo. Por que então, meu

Deus, não sei ajudar a Alvina? Empresto o dinheiro, passam nem duas semanas fico

dizendo: ao menos satisfação eu merecia; não é por causa do dinheiro. E outras

bobagens mais que todo mundo fala nestas situações. O fato é que estou chateada

com a mudança deles pra cá. Antes era Dona Terezinha que, bem ou mal, eu vivia

acudindo. Passou mais de ano sem morador na casa, um verdadeiro descanso. Agora

envém Dona Alvina que, sem saber, é um ferrão na mão de Deus. Não chupo mais

uma bala sem pagar um dízimo de tristeza. Claro que está tudo errado, qualquer

sacristão bobo sabe disso, menos eu que não atino com a forma de gozar dos frutos da

terra, criados por Deus para todos comerem em perfeita alegria, eu inclusive.

Demoraram um dia só para descobrir minha mangueira de cinqüenta metros: "do-o-

na, a mãe falou se pode emprestar a mangueira pra nós aguar a horta?" Este batido

durou um mês. Pedro até botou um trapo no muro pra não esfolar a borracha. Depois

foi ficando chato. Queria lavar o carro, aguar nossa horta mais cedo, a mangueira com

Dona Alvina. Bibia falava: "mãe, que povo folgado, vai ser descansado assim! Acho a

senhora e o pai muito bobos." Não podia aplaudir a menina, mas por seguro

matutamos: a voz das crianças é a voz de Deus. De noite Pedro bateu na casa da

Alvina para bispar a situação. Se pudesse, falou o marido, mandava ligar a água, mas

onde vou arranjar dinheiro? Pedro foi na Companhia, pagou a taxa, acabou a questão

da mangueira. Nem assim sosseguei: será que foi correto? Não teria sido mais

edificante emprestar a mangueira com paciência até eles arranjarem modo de pagar a

taxa? Vejo o marido da Alvina passar aos sábados com umas mexericas que ele

arranjou pra vender e penso: nem pra dar uma satisfação, um sinal. Pedro nem se

lembra mais. É diferente de mim, nunca dá meia panela. Por isso a alegria dele é

inteira. Texto extraído do livro "Os componentes da banda", Editora Rocco, 1988

RODANDO

Depois de muita e boa chuva, Célia voltava de Belo Horizonte para sua casa no interior

do Estado. Era bom viajar de ônibus, vendo, parecia-lhe que pela primeira vez, o verde

rebrotando com força. Ouviu um passageiro falando pra ninguém: que cheiro de mato!

Sol farto e os moradores desses conjuntos habitacionais de caixa de papelão e zinco,

que brotam como grama à margem das rodovias, aproveitavam pra esquentar o couro

Page 11: Antologia (Adélia Prado)

rodeados de criança e cachorro. Os deserdados desfilavam, a moça e seu namorado

com bota de imitação de peão boiadeiro iam de mãos dadas, com certeza à casa de

uma tia da moça, comunicar que pretendiam se casar. Uma avó gorda com seu neto

também passou, ela de sombrinha, ele de calcinha comprida de tergal. Iam aonde?

Célia fantasiou, ah, com certeza na casa de uma comadre da avó, uma amiga dela de

juventude. O menino ia sentir demais a morte daquela avó que lhe pegava na mão de

um jeito que nem sua mãe fazia. Desceram três moços de bermuda e camisa do Clube

Atlético Mineiro, e um quarto com grande inscrição na camiseta: SÓ CRISTO SALVA!

Camiseta e bermuda não favorecem a ninguém, ela pensou desgostosa com a feiúra

das roupas. Bermudas principalmente, teria que se ter menos de dez anos pra se usar

aquela invenção horrorosa. Teve dó dos moços que só conheciam futebol e dupla

sertaneja. Foi um pensamento soberbo, se arrependeu na hora. Tinha preconceitos,

lembrou-se de que gostara muito de um jogo de futebol em Londrina, rodeada de

palavrões e chup-chup com água de torneira e famílias inteiras se esturricando

gozosamente entre pão com molho e adjetivos brutais, prodigiosamente colocados,

lindos e surpreendentes como as melhores invenções da poesia. Concluiu sonolenta, o

mundo está certo. Uma criança começou a chorar muito alto: quero ficar aqui não,

quero sentar com meu pai, quero o meu pai. A mãe parecia muito agoniada e pelo tom

do choro Célia achou que ela abafava a boca da criança com uma fralda ou a apertava

raivosa contra o peito, envergonhada de ter filha chorona. Suposições. Tudo estava

muito bom naquele dia, não sofria com nada, nem ao menos quis ajudar a mãe, botar

a menina no colo, estas coisas em que era presta e mestra. Assistia ao mundo, rodava

macio tudo, o ônibus, a vida, nem protagonista nem autora, era figurante, nem ao

menos fazia o ponto naquele teatro perfeito, era só platéia. Aplaudia, gostando

sinceramente de tudo. Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o planeta.

Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por

estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo

nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e hordas de

miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra,

os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobre

caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de

pedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira

da estrada. Porque um dia, e pode ser um único dia em sua vida, um deserdado

daqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio:

vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para

isto vale nascer. Extraído do livro "Filandras", Editora Record, 2001