anotações fenomenológicas i: fenômeno, fenomenologia e seu lógos

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Anotações fenomenológicas I: Fenômeno, fenomenologia e seu lógos O título desse trabalho soa “À coisa ela mesma, a fenomenologia”. “Zur Sache selbst”, à coisa ela mesma, é a divisa sob o qual a fenomenologia ficou conhecida, enquanto movimento filosófico. À coisa ela mesma evoca um retorno. Retorno a que? À coisa ela mesma. O que é, pois, a coisa ela mesma? De que coisa se trata, quando a coisa, ela mesma, é o ponto de partida, da qual nos afastamos e ao qual somos convocados a nos retornar? Essa pergunta, assim formulada, é precipitada. Pois o título apenas insinua que a coisa ela mesma a que tende a fenomenologia é a coisa, i. é, a causa dela mesma. À coisa ela mesma é a fenomenologia. Isto por sua vez significa que falar da fenomenologia é o mesmo que falar de que se trata, quando dizemos à coisa ela mesma. O título indica o tema. No nosso caso, o título “À coisa ela mesma, a fenomenologia?” não indica propriamente um tema, mas antes uma hipótese. A hypothese na sua significação literal grega é o que está posto debaixo de, a base sobre a qual se ergue o que quer que seja. É, pois, o pré-jacente, que sustenta, e dá firmeza e concreção ao andamento à série de reflexões que seguem. No entanto, no nosso caso, o que deveria ser a base para dar firmeza e concreção ao andamento das nossas anotações, está acompanhado de uma interrogação. Isto significa que em todas as nossas anotações nos ficamos interrogando acerca do que o título

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O título indica o tema. No nosso caso, o título “À coisa ela mesma, a fenomenologia?” não indica propriamente um tema, mas antes uma hipótese.

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Page 1: Anotações fenomenológicas I: Fenômeno, fenomenologia e seu lógos

Anotações fenomenológicas I: Fenômeno, fenomenologia e seu

lógos

O título desse trabalho soa “À coisa ela mesma, a fenomenologia”. “Zur Sache selbst”, à

coisa ela mesma, é a divisa sob o qual a fenomenologia ficou conhecida, enquanto

movimento filosófico. À coisa ela mesma evoca um retorno. Retorno a que? À coisa ela

mesma. O que é, pois, a coisa ela mesma? De que coisa se trata, quando a coisa, ela

mesma, é o ponto de partida, da qual nos afastamos e ao qual somos convocados a nos

retornar? Essa pergunta, assim formulada, é precipitada. Pois o título apenas insinua que

a coisa ela mesma a que tende a fenomenologia é a coisa, i. é, a causa dela mesma. À

coisa ela mesma é a fenomenologia. Isto por sua vez significa que falar da

fenomenologia é o mesmo que falar de que se trata, quando dizemos à coisa ela mesma.

O título indica o tema. No nosso caso, o título “À coisa ela mesma, a fenomenologia?”

não indica propriamente um tema, mas antes uma hipótese. A hypothese na sua

significação literal grega é o que está posto debaixo de, a base sobre a qual se ergue o

que quer que seja. É, pois, o pré-jacente, que sustenta, e dá firmeza e concreção ao

andamento à série de reflexões que seguem. No entanto, no nosso caso, o que deveria

ser a base para dar firmeza e concreção ao andamento das nossas anotações, está

acompanhado de uma interrogação. Isto significa que em todas as nossas anotações nos

ficamos interrogando acerca do que o título insinua, a saber, que fenomenologia não é

outra coisa do que à coisa ela mesma. Na Introdução foi dito que essas nossas

anotações são chutações. O que o título insinua como tema com interrogação é uma

hipótese, no sentido hodierno de suspeita. Só que no nosso caso a suspeita está no nível

de chutação. Chutação é modo de abordar uma coisa, jogando verde para colher

maduro. É esse modo de tratar a coisa da fenomenologia, “à la suspeita-chutação”, que

toca as nossas anotações.

A seguir, coisa jogada como um lance prévio, nas nossas próximas anotações, é a

suspeita de que nos termos que compõem a palavra fenomenologia, está dito o que quer

dizer à coisa ela mesma. As palavras que compõem a palavra fenomenologia são

fenômeno e logia. Assim, falemos do fenômeno, fenomenologia e lógos, do qual vem a

logia.

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1. Fenômeno e sua implicação

Usualmente entendemos por fenômeno algo ou alguém, cujo ser ou atuação aparece num aspecto extraordinário. A esse aspecto, gostamos de chamar de fantástico1. Nas palavras fenômeno e fantástico aparece o verbo grego phainésthai, que significa aparecer. Aparecer é mostrar-se, vir à luz.

1.1. Fenômeno

É comum representar o aparecer como movimento de algo que estava escondido, atrás ou dentro de uma outra coisa, dela sair e vir para frente ou para fora.

O aparecer do fenômeno, no entanto, não diz respeito ao relacionamento entre duas coisas: entre a fachada e o que se oculta atrás dela. Refere-se antes à autoapresentação ou autopresentação ou à intensificação de uma presença. Nesse sentido é algo como luzir, incandescer. É tomar corpo, crescer no sentido da expressão cresça e apareça. É, pois, surgir, crescer e consumar-se, vindo a si, tornando-se presença. Para podermos ver melhor de que se trata quando falamos do fenômeno como autopresença ou intensificação de uma presença, examinemos brevemente o que Ser e Tempo nos diz da expressão grega phainómenon:

“A expressão grega phainómenon, à qual remonta o termo “fenômeno”, vem do verbo phaínesthai, que significa: mostrar-se; assim, phainómenon quer dizer: o que se mostra, o se mostrando, o aberto; o próprio phaínesthai é uma forma medial do phaíno, trazer ao dia, colocar às claras; phaíno pertence à raiz pha- como phõs, a luz, a claridade, a saber, isto, no qual algo pode se abrir, tornar-se nele mesmo visível. Portanto, devemos constatar como a significação da expressão “fenômeno”: o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Os phainómena, “fenômenos” são então a totalidade disso que jaz ao dia ou pode ser trazido à luz, o que os gregos entrementes identificavam simplesmente com ta ónta (o ente)”2.

O verbo do qual deriva a expressão fenômeno é medial. Como em português não há a forma medial; phainómenon é traduzido ou no sentido passivo ou reflexivo: o mostrado, ou o que se mostra ou o em se mostrando. O modo de ser da ação do verbo medial não é nem ativo nem passivo. Não seria, porém, um meio termo, uma mistura meio a meio, neutra. Seria antes uma dinâmica toda própria, um médium atuante, anterior à divisão em disjunção ativa e passiva. Usualmente, quando falamos de ação e atuação, representamos alguém ou algo causando uma força sobre um alguém ou um algo. Assim quem causa uma ação e a própria força atuante são ativas; quem ou o que recebe, padece ou sofre a ação é passivo. Quando quem age (o ativo) atua sobre si mesmo (o passivo), se dá o reflexivo: o agente é ao mesmo tempo o paciente, mas, aqui, o agente enquanto ativo e o paciente enquanto passivo não coincidem. Aqui o ser da iteração entre ativo e passivo e reflexivo é de tal feitio que é sempre unidirecional, uma linha reta a modo de flecha. O modo de ser da ação do verbo medial não pode ser captado, reduzindo-o à unidirecionalidade de flecha na iteração ativo-passivo-reflexivo, mas captando-o, vendo-o a ele mesmo, de imediato. O que ali aparece de imediato é o que está dito na expressão: fenômeno, i. é, o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Outros modos de dizer esse imediato são: em vindo ao dia, à luz, em colocando-se às claras,

1 E interessante talvez observar que, para nós hoje, o fenômeno é entendido como à luz da ribalta, no esplendor de um show ou na publicidade!

2 HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. 8ª ed., Tübingen: Max Niemeyer, 1957, p. 28.

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em aparecendo ou aparente, em se abrindo, mostrando-se3. O abuso do gerúndio, na forma em <...>ndo, aqui, é de propósito. Tenta insistir na consideração de que é necessário captar esse modo de ser da ação medial sui generis nele mesmo. Esse captar imediato de ser da ação medial seria muito simples, por ser imediato e, imediato por ser simples. Só que o imediato e o simples não pode ser percebidos no seu ser, a não ser que a percepção, ou melhor, a recepção seja imediata e simples, a saber, pele a pele, de todo em todo, cada vez de uma vez. O modo medial de ser ação pede a captação imediata da realidade, antes da sua divisão e classificação em sujeito, objeto, ato, em ativo, passivo e reflexivo, de tal sorte que a ação ou ato é ‘anterior’ ao sujeito e objeto, é a dinâmica do todo, em sendo4. Ademais, aqui, o que nos pode dificultar a perceber de que se trata, é a conotação que todas essas expressões trazem consigo de visualização5. Aparecer, mostrar-se à luz, vir à claridade do dia, no entanto, não tem primariamente muito a ver com visualização. Aperceber o manifesto, o mostrado, a recepção do que é em se mostrando a ele mesmo, é anterior a toda e qualquer visualização. Visualização é a maneira projetiva da objetivação interpelativa, pela qual colocamos o fenômeno dentro de uma determinada perspectiva do inter-esse do ponto de vista.

Hoje, sujeitos e agentes operativos do modo de ser da objetivação interpelativa, não percebemos que o que nos vem ao encontro como objeto, coisa ‘em si’, ‘real’, não coincide com o que se mostra, ele mesmo, mas é algo como espectro do projeto do inter-esse de pontos de vista. Esse modo de ser chamado objetivação interpelativa é uma das modalidades da objetivação. Aqui, para percebermos de que se trata, quando falamos do fenômeno como o que se mostra, a ele mesmo, anteriormente a toda e qualquer visualização da objetivação interpelativa, hodierna, reflitamos um texto acerca do que seja objetivação.

1.2. Objetivação

O que é objetivação, objetivar? A esse respeito responde Heidegger numa carta de 11.03.1964, endereçada aos participantes de um diálogo teológico sobre O problema de um pensar e falar não objetivantes na teologia, hoje6: Objetivar

“é fazer algo objeto, pô-lo como objeto e somente assim o representar. E o que significa objeto? Na Idade Média obiectum significava o que é lançado e mantido de encontro, em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar. Em contraste com isso, subiectum significava o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex. as coisas7. A significação das palavras subiectum e obiectum é em comparação com a nossa usual hoje, justamente a inversa: subiectum é o para si (objetivamente) existente, obiectum, o apenas (subjetivamente) representado”.

3A grande dificuldade de ver o imediato concreto do phaínesthai do fenômeno é que essa imediação não significa facilidade, imediatismo isento de empenho e desempenho de preparação, busca demorada para a disponibilidade ao rigor e precisão de percepção à evidencia.

4 O verbo ser que soa tão neutro, sem atuação, indique talvez esse modo todo próprio da vigência originária da autopresença pré-predicativa ou pré-científica.

5 Distinguimos visualisar e ver. Visualizar conota em vista de um ponto predeterminado como meta, objetivo, como a priori prefixado, a partir e dentro do projeto prévio, em cuja predeterminação são captadas todas as coisas.

6 Encontro realizado na Drew-University, Madison, USA, de 9 a 11 de abril de 1964.

7 As coisas = Die Dinge.

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“Em conseqüência da transformação do conceito de subiectum por Descartes (cf. Holzwege, p. 98ss), também o conceito de objeto veio a se transformar. Para Kant, objeto significa: o contra-posto8 existente da experiência das ciências naturais. Cada objeto é o contra-posto, mas nem todo contra-posto (p. ex. a coisa em si) é um possível objeto. O imperativo categórico, o ter que ser ético, o dever não são objetos da experiência das ciências naturais. Pelo fato de se pensar sobre eles, de no agir serem eles intencionados, eles não se tornam por isso objetivados.”

Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas, não fazemos da rosa um objeto, nem sequer um contra-posto, i. é, um algo tematicamente representado. Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. A rosa está no jardim, balança talvez ao sabor do vento. O ser rubro da rosa, porém, não está nem no jardim, nem pode balançar ao sabor do vento. Entrementes, eu o penso e dele falo, nisso em que eu o nomeio. Assim, se dá um pensar e falar, que de nenhum modo objetiva nem contra-põe”.

“Eu posso considerar esta estátua de Apolo no museu em Olímpia, quiçá, como um objeto das ciências naturais no seu representar. Posso calcular fisicamente o mármore em vista do seu peso; posso pesquisar o mármore em referência à sua propriedade química. Mas esse pensar e falar objetivantes não miram o Apolo, como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus ”.

“Objetivar é fazer algo objeto, pô-lo como objeto e somente assim o representar”. Algo é aqui ente, no sentido o mais abrangente possível; indica todos os entes atuais e possíveis.

Fazer é exercer uma ação de efetuação, de efetivação, de tal sorte que ente se torne objeto. E colocá-lo, posicioná-lo como objeto. Assim, ente se põe de pé e se firma como objeto, e somente como tal se torna de novo presente, é representado, é apresentado. Aqui a palavra do texto original alemão é vorstellen. Vorstellen usualmente significa representar, apresentar. Literalmente, porém, diz: colocar em frente, para frente, diante de. E stellen é colocar, mas pode conotar ação de pôr alguém ou algo sob a coação de uma determinação. No uso corrente, objetivar pode significar também tornar objetivo, i. é, tornar real ou existente objetivamente, materializar ou efetivar, ou também ter por fim, pretender.

Diante dessas determinações acerca da objetivação, muitos de nós, tentaríamos entendê-las mais ou menos assim. Na realidade em si, diante, ao lado, ao redor de nós há coisas, produtos da natureza. Mas, usando essas coisas dadas pela natureza como materiais, o homem fabrica objetos, ou também, as posiciona, transformando-as em objetos para determinados fins do interesse humano. Objetivar aqui significa, então, objetificação, fazer do ente objeto, para um determinado fim, meta ou objetivo, dado pelo homem. Essa nossa compreensão da objetivação, embora esteja incluída na explicação do texto, não diz bem, o que ele quer dizer com objetivação e seu objeto.

Segundo o texto, o termo objeto (obiectum) se dá em dois modos diferentes. A diferença no modo de ser do obiectum também diferencia o que se deve entender por

8 O termo alemão é Gegenstand. Gegen se refere de alguma forma ao Gen. Gen é como numa paisagem a imensidão que se abre e se ergue em direção ao céu aberto diante de nós e nos vem ao encontro, nos envolvendo na sua dinâmica vastidão. Stand vem do verbo stehen, e indica o erguer-se e tomar pé, a partir e dentro da imensidão aberta como uma das suas concreções in-sistentes, constituindo-se como elementos estruturantes de toda uma paisagem. Em lugar de Gegen, colocamos em português ante, no sentido de em face de, de encontro à face de.

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subiectum. O texto fala, pois da compreensão do obiectum e subiectum uma vez na Idade Média, e outra vez na nossa época Moderna.

a) Na Idade Média obiectum significava o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar. Em contraste com isso subiectum significava o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex. as coisas.

b) Na nossa época Moderna a objetivação se caracteriza, num sentido inverso ao da Idade Média, em significar subiectum como o para si (objetivamente) existente, e obiectum como o apenas (subjetivamente) representado. Esse modo de entender tanto subiectum como obiectum é conseqüência da transformação do conceito de subiectum operada por Descartes. Na seqüência dessa transformação “para Kant objeto significa: o contra-posto existente da experiência das ciências naturais”.

1.3 Objeto, visto a partir da substância: objeto-coisa

Na Idade Média uma das categorias fundamentais para a compreensão do ente no todo era substância. A palavra substância é tradução latina do hypokeímenon grego. Aqui, objeto significava o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar. E correspondendo a essa compreensão do objeto, sujeito significava coisa-substância. A dinâmica de efetuação da coisa-substância, o subiectum medieval, com o correspondente obiectum medieval, a coisa, não poderia ser chamada propriamente de objetivação. Pois se reserva a palavra objetivação e objeto de preferência para a dinâmica de efetivação do subiectum do representar como sujeito e obiectum como o representado, na nossa época moderna. A efetivação coisa-substância tem como resultado coisa, ou substância. A coisa é diferente do objeto. E o homem, enquanto “recepção”9 dessa efetivação coisa-substância e sua coisa, é diferente do homem, “sujeito e agente” da objetivação do objeto-representação. Desta última se diz portanto: objetivar “é fazer algo objeto, pô-lo como objeto e somente assim o representar”.

Como, pois, entender essa definição da ação de objetivação e seu objeto-coisa e o

homem que se acha nessa referência ao objeto-coisa? Provavelmente todos os termos da

definição receberão sua peculiaridade toda própria, bem diferente à da objetivação do

objeto-representação. Mas em que sentido e como?

1.4 Objeto, visto a partir do sujeito: objeto-representação

Nesse texto, o que corresponderia ao fenômeno, o manifesto, o em se mostrando a ele

mesmo, o ‘aparecido em aparecendo’ no sentido medial? A tentação é de responder: o

que está além ou aquém de toda e qualquer objetivação. Seria então: o ser rubro da

rosa? O Apolo, como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus?

9 Aqui a expressão “sujeito e agente” não é muito adequada, pois ela é reservada para o outro modo de objetivação do objeto-representação. Talvez “receptor” seja mais viável, para a existência humana medieval.

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‘Isto’, esse ‘algo’ que não é nem isto nem aquilo, isto que não é, e nem está em nenhum

algo, a saber, nem no jardim, nem na rosa que balança de lá para cá e de cá para lá, nem

na estátua de mármore, é isto a manifestação, o aparecer, a mira, a maravilha, o

transluzir, que está insinuado, quando Heidegger formula o aparecer do Apolo, o

fenômeno Apolo, dizendo: como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a

mira de Deus? Mas em que sentido insinuado? É que a palavra alemã, para a beleza, é

Schönheit. Schönheit vem do verbo scheinen. Scheinen significa parecer. Mas essa

acepção já é algo derivado10. Originalmente significa luzir, esplender, brilhar. Por isso

phaínesthai é dito como trazer ao dia, vir à luz, colocar-se às claras. Daí a referência do

fenômeno à claridade, à luz. Só que essa referência à luz e à claridade deve ser captada

de modo todo próprio e não a grosso modo ou ao modo de “de-mostração berrante”,

extrovertida da exibição à luz néon, fria, branca, escancarada, sem nuances de sombra.

Não se trata também de uma iluminação, feita de fora sobre uma coisa. O modo de

mostração do scheinen é algo como transluzir a modo de incandescência. É uma

aclaração, o tomar corpo como claridade11. É o modo de aparecer do luar. Mas não no

sentido de a lua como uma lâmpada a brilhar aparecer, saindo de trás de um monte e

iluminar. Antes como clarear. Para ver o clarear como transluzir, como incandescência,

é necessário, por assim dizer, suspender a tendência do nosso saber de tudo enfocar a

partir e dentro de uma explicação causal. Nessa última perspectiva da explicação, a lua,

o satélite do planeta terra, ao refletir a luz do sol, é causa de iluminação de uma área

escura da terra. Em vez desse modo de ver, ‘real e objetivo’, tentemos ver de imediato,

digamos ingenuamente, atentos ao crescer da claridade de toda a paisagem enluarada, a

que chamaremos de luar. Reina escuridão. A escuridão, antes do luar a clarear, p. ex.

numa floresta, não é simplesmente o fato de tudo estar preto; não é apenas ocorrência da

falta de luz!... Ela é uma paisagem. Sim um país, um reino, prenhe de perspectivas,

planos de presenças de fundo e de superfície, nuances da intensidade e das modalidades

de escuridão. A nossa representação da escuridão achata essa paisagem de implicações

da multi-diversidade da escuridão numa chapa preta homogênea sem nuance e

10 Quanto a várias significações de scheinen, cf. Ser e Tempo...

11 Tentar dizer o luzir do scheinen como incandescer é talvez dizer demais, pois conota uma claridade talvez demasiadamente forte. O pivô da questão aqui no luzir do scheinen está nisso de o movimento do luzir dar-se a partir e dentro dele mesmo como tomar corpo da concreção. Quando a claridade do luzir é demasiada, esse modo de se perfazer pode ser ofuscado, como se fosse uma explosão de luz. Por isso o se aclarar do scheinen se torna manifesto mais no luzir de uma pérola do que no de um diamante, na claridade de um luar do que na do sol.

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diferenciação ou como superfície de cor preta ou simples ausência da luz. Assim, a

nossa representação da escuridão é como a primeira impressão de alguém que entra de

dia, numa sala de cinema, e capta o choque da ausência da luz, de sorte que vê tudo

preto. Na medida em que o nosso olho vai se adaptando à escuridão, começam a surgir e

nos vir de encontro perspectivas, profundidades, silhuetas, perfis, assombreamentos,

constelações de diversas pessoas e coisas, enfim toda uma paisagem. Se permanecermos

na fixação da representação, por mais que multipliquemos as representações na sua

diversidade, jamais percebemos o surgir, crescer e se firmar na dinâmica do todo de tal

paisagem da escuridão. No aclarar do luar o modo de ser e a lógica de sua estruturação

são os desse surgir, crescer e se consumar. Nesse sentido, toda a paisagem que se torna

cada vez mais clara emerge da escuridão que por sua vez possui a sua emergência a

partir e dentro da sua própria paisagem da escuridão como acima foi insinuado. Esse

movimento do vir a si e o tomar corpo desse e nesse crescimento ou aumento é o

fenômeno, o aparecer, o se mostrar ele mesmo. A dinâmica desse aparecer, o tomar

corpo do aumento desse crescer se diz em latim através do verbo latino: evideri. Do qual

deriva a palavra evidentia, a evidência. O fenômeno é o que se evidencia, a partir de si,

a ele mesmo.

Depois dessa descrição do que seja fenômeno, aparecimento, perguntemos: o que

significa objeto e objetivação em referência ao fenômeno?

1.5 Fenômeno e objeto

Acima, à mão do texto de Heidegger, ao falarmos da objetivação e do objeto,

distinguimos suas diferentes significações e percebemos diferentes níveis de colocação

da questão. Aqui em 2.3, aprofundemos a nossa compreensão do que seja coisa e

coisalidade, retomando diferenças de significação sugeridas pelas diferentes palavras na

língua alemã em referência à coisa. E nessa retomada da nossa busca pela compreensão

do que seja coisa, tentemos responder a pergunta acima colocada: o que significa objeto

e objetivação em referência ao fenômeno. Antes, porém, observemos e comentemos no

texto acima citado de Heidegger alguns pontos de importância para o prosseguimento da

nossa reflexão.

Repetindo: “Na Idade Média, afirma ele, em contraste com isso, subiectum significava

o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de

Page 8: Anotações fenomenológicas I: Fenômeno, fenomenologia e seu lógos

um representar), o presente, p. ex., as coisas”. Aqui, Heidegger usa o termo latino

obiectum. E usa a palavra latina subiectum para dizer o grego hipokeímenon, o qual

caracteriza como o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de

um representar), o presente, p. ex., as coisas.12 Essa compreensão é medieval. Na

seqüência do texto, ao caracterizar a compreensão do objeto na nossa época moderna,

Heidegger afirma que ela é determinada pela transformação da compreensão do

subiectum através de Descartes. Aqui, obiectum significa o contra-posto existente da

experiência das ciências naturais. A esse tipo de contra-posto, se dá o nome de Objekt

em alemão. E o distingue do outro tipo de contra-posto, em alemão Gegenstand. Este é

caracterizado como um algo tematicamente representado.

Depois dessas observações, voltemos ao texto onde Heidegger caracteriza o obiectum

medieval em contraposição ao subiectum, enquanto tradução do hipokeimenon,

portanto, da substância, no sentido medieval. Que coisa é essa?

Na Idade Média, obiectum significa o que é lançado e mantido de encontro em face do

aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar.

Na Idade Moderna, Objekt é o contra-posto como tema do enfoque das ciências

naturais. E Gegenstand é algo tematicamente representado (Vollgestellte). Haveria uma

diferença decisiva entre “o contra-posto tematicamente representado” e “o lançado e

mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar?

Usualmente não vemos nenhuma diferença essencial entre esses dois tipos de contra-

postos. Pois entendemos a contra-postatização (Vergegenständlichung) num sentido

geral de oposição entre Sujeito-Objeto, no esquema do juízo S - P da Teoria do

conhecimento. Segundo Heidegger, no entanto, a grande diferença que advém à

compreensão do que seja obiectum, na passagem da Idade Média para a Idade Moderna,

é causada pela transformação operada na época moderna (Descartes) na compreensão

do que seja subiectum. Subiectum na Idade Média é substância. Subiectum na Idade

Moderna é sujeito. O que significa tudo isso? Tudo isso, de que se trata?

Em vez de tentar logo responder a essa pergunta, diferenciemos mais ainda a colocação,

observando o que diz Heidegger a mais acerca dessa questão da objetivação e do objeto

12 (Em alemão: das von sich aus, <- nicht durch ein Vorstellen entgegengebrachte-> Vorliegende, das Anwesende, z. B. die Dinge).

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na experiência cotidiana. Repitamos na íntegra o que ele diz: “A experiência cotidiana

das coisas no sentido lato não é nem objetivante nem é uma contra-postatização13.

Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas,

não fazemos da rosa um objeto, nem sequer um contra-posto, i. é, um algo

tematicamente representado. Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro

esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem

objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. A rosa está no jardim,

balança talvez ao sabor do vento. O ser rubro da rosa, porém, não está nem no jardim,

nem pode balançar ao sabor do vento. Entrementes, eu o penso e dele falo, nisso que eu

o nomeio. Assim, se dá um pensar e falar, que de nenhum modo objetiva nem contra-

põe”.

1.6 Fenômeno e o representar

Heidegger, no texto acima mencionado, diz do Gegenstand que ele é “o contra-posto

tematicamente representado”. E ao falar do obiectum no sentido medieval, diz que é: “o

que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar,

desejar e mirar”. E perguntamos acima se há diferença, e se houver qual seria, entre “o

contra-posto tematicamente representado” e “o que é lançado e mantido de encontro em

face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar?” Essa pergunta, no fundo,

pressupõe na sua pergunta que representar (vorstellen) é um ato semelhante ao

aperceber, imaginar, julgar, desejar e mirar. Só que em alemão a palavra vorstellen pode

ser lida como indicando um dos atos, ao lado deles, denominado representar, mas

também na sua acepção literal de vor + stellen, sugerindo todo um modo de ser. Mas em

que sentido? Vorstellen, literalmente, não significa propriamente re-presentar, mas

antes uma modalidade toda própria de “contra-pôr”. É que vor significa diante, em

frente de, para frente, avançando para frente. E stellen pôr, colocar na acepção da

expressão: “pôr na parede”, “interpelar”, “colocar a alguém debaixo de uma exigência”,

“intimar a alguém a um interrogatório”. É nesse sentido do stellen que se diz: o policial

colocou o criminoso diante de si, na parede, em nome da lei, e o intimou: estás preso!”

É o que assim aparece diante de nós, o contra-posto, o Vor-gestellte. É o que

poderíamos denominar de ação da pro-ducção interpelativa, entendendo-se a produção

como trazer, conduzir para frente, pro-ducere: projetar. E objetivar no sentido da pro-

13 A palavra alemã é Vergegenständlichung.

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ducção do Objekt tem o modo de ser do vor-stellen todo próprio das ciências naturais,

físico-matemáticas. Haveria aqui um vor-stellen, cuja projeção poderia ser chamada de

Vergegenständlichung, a saber, uma objetivação cuja pro-dução não é propriamente

Objekt, mas sim Gegenstand? P. ex. objeto das ciências humanas, cujo caráter não

possui o modo de interpelação produtiva das ciências naturais? Ou toda e qualquer

ciências no sentido moderno, seja naturais, seja humanas, de alguma forma, possui o

modo de ser da interpelação produtiva, própria das ciências naturais? E que na Idade

Média, seja como for o objeto, jamais teria o caráter de Objekt, mas sempre de

Gegenstand, mas em que sentido? Num sentido geral, ou todo próprio, caracterizado

pelo sentido do ser que marca a diferença da epocalidade medieval?

E em que consiste a realidade da dimensão da experiência cotidiana mencionada por

Heidegger “das coisas no sentido lato” que “não é nem objetivante, nem é uma contra-

postatização (Vergegenständlichung)? Como entender em concreto a descrição:

“Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas,

não fazemos da rosa um objeto, nem sequer um contra-posto, i. é, um algo

tematicamente representado. Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro

esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem

objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. A rosa está no jardim,

balança talvez ao sabor do vento. O ser rubro da rosa, porém, não está nem no jardim,

nem pode balançar ao sabor do vento. Entrementes, eu o penso e dele falo, nisso que eu

o nomeio. Assim, se dá um pensar e falar, que de nenhum modo objetiva nem contra-

põe”. Aqui a “rosa a florir sem porque”14 não é Objekt, nem Gegenstand, mas que tipo

de coisa é? Ou aqui não se pode mais falar de tipo, mas apenas de coisa ela mesma?

Mas em que sentido?

2. O que significa objeto e objetivação em referência ao fenômeno?

Depois dessas anotações interrogativas do excurso, à mão do acima citado texto de

Heidegger sobre a objetivação, observamos a diferença de impostação na compreensão

da realidade entre a Idade Média e Idade Moderna. A diferença provinha da realização

da realidade, a partir, dentro e através da pré-compreensão do que seja o ente na sua

totalidade ou melhor o ente no seu ser, fundamentada na categoria de fundo chamado

14 Die Rose blühet ohne warum”, de Ângelus Silesius.

Page 11: Anotações fenomenológicas I: Fenômeno, fenomenologia e seu lógos

substância (originariamente, i. é, em grego, hypokeímenon) na Idade Média e a sua

substituição, ou melhor, transmutação dessa categoria de fundo-substância em sujeito

da subjetividade, cuja objetividade produz o objeto. Essa nova realização da realidade,

essa nova pré-compreensão do ente na sua totalidade, abriu a possibilidade da exigência

de colocar a pergunta acerca da coisa e sua coisalidade, portanto, da questão da coisa ela

mesma dentro de uma nova perspectiva, na qual a coisa na sua coisalidade é entendida

dentro da objetivação e sua objetividade, como coisa, i. é, causa da produção da

“realidade”, enquanto objeto, i. é, enquanto o que vem ao encontro como resultado do

lance do projeto do homem, sujeito e agente e medida de todas as coisas. Nesse sentido,

hoje, quando usamos o termo coisa e seus similares como algo, objeto, ente, ser, em

alemão Gegenstand, Ding, Sache, de imediato e na maioria dos casos, pensamos objeto,

segundo o projeto da interpelação produtiva impregnada da dinâmica das ciências

naturais sob o poder da tecnologia, portanto pensamos Objekt, e a partir dali nos

indagamos: como é, o que é, a realização da realidade p. ex. dos medievais, onde a

realitas significava substância e seus acidentes, em cuja coisalidade ainda podemos

ouvir a tonância do hypokeímenon da antiga Grécia, cuja percussão originária tenha sido

talvez bem diferente da que ouvimos hoje na repercussão medieval e repercussão dessa

na nossa modernidade na perspectiva da objetividade do “Objekt” da Subjetividade

científico-tecnológico. Essa questão então no texto de Heidegger aparece formulada no

aceno, através do qual nos surgem as perguntas: em que consiste a realização da

realidade, que é anterior a todas essas objetivações epocais? Como se deve entender

essa anterioridade e a sua temporalidade, se o tempo da história dessa transmutação da

causa da coisa ela mesma é medida e é produzid, pela interpelação produtiva presente

de modo quase totalitário na impostação da predominância das ciências e tecnologias

historiográficas, produtos da mesma interpelação produtiva acima mencionada, como

objetos do projeto da subjetividade moderna?

2.1 Emaranhados na questão chamada coisa da fenomenologia

Repetindo resumidamente o que dissemos da coisa como do objeto temos: 1. obiectum e

subiectum da Idade Média; 2. a transformação do conceito subiectum enquanto

substância para sujeito; 3. Objekt; e 4. Gegenstand como contra-postos de tipos

diferentes tematicamente, do representar, em alemão, do vorstellen; 5. coisas cujo ser

não é nem a modo de Objekt, nem a de Gegenstand, mas do aparecer, do se mostrar, do

fenômeno. Se agora ligarmos esses itens acima resumidos com o que foi rapidamente

Page 12: Anotações fenomenológicas I: Fenômeno, fenomenologia e seu lógos

dito no 2.3 acerca da objetivação e suas implicâncias, de repente, ou aos poucos, surge

uma suspeita: quando a cima, sempre ainda provisoriamente, ao falarmos da coisa e

coisalidade, enumeramos em alemão os termos afins à coisa, a saber, etwas (algo), das

Seiende (ente), das Sein (ser), der Gegenstand (o contra-posto), das Objekt (objeto), das

Ding (coisa), die Sache (coisa) não estávamos a nos adentrar dentro das implicações

complexas de uma questão filosófica, cuja busca é o inter-esse e a paixão do modo de

ser e pensar denominado fenomenológico? Agora, o título desse presente trabalho “O

que é a coisa ela mesma, na fenomenologia” soa tanto mais complexo a nos oprimir

para dentro de sentimento de complexo, de angústia e de fascínio, mencionado na

introdução. O que é, pois, fenomenologia?

3. Fenomenologia, logos e –logia, suas traduções

3.1. O que quer dizer logos?

Sem querer aqui aprofundar muito o assunto, mencionemos brevemente o que e como se

deve entender por logia, da palavra fenomenologia, segundo o que Heidegger expõe.

Resumamos assim o § 7. B (O conceito de Logos) do Ser e Tempo, pg. 32-34: O

conceito de logos é múltiplo; nele as diversas significações parecem tender para

diversas direções sem congruência, enquanto não conseguirmos captar de modo próprio

o seu sentido fundamental, uno no seu conteúdo primário, originário grego. É usual

dizer que logos significa fala. Essa tradução é somente válida, na medida em que nessa

tradução literal, a nossa compreensão atual consiga ouvir e entoar a tonância disso que

logos ele mesmo como fala propriamente quer dizer. As múltiplas e arbitrárias

traduções provenientes de uma interpretação das filosofias posteriores entulham e

encobrem o sentido próprio do que seja a fala, que nos gregos está à luz do dia, simples

e claramente. Essas traduções defasadas e impróprias seriam p. ex., razão, juízo,

conceito, definição, fundamento, relação. Traduz-se logos também como sentença,

enunciação, discurso. Mas se entendermos todos esses termos como juízo, e o juízo

como ligação (entre S e P ou S e O) ou tomada de posição (o reconhecer e o rejeitar da

ligação), tudo isso dentro da assim chamada “teoria do juízo”, pertencente à teoria de

conhecimento, falseamos o sentido próprio e fundamental da palavra logos.

Assim, segundo Heidegger, lógos como fala diz antes de tudo delõun, fazer patente, isto

do qual na fala “vem à fala”. Aristóteles explicitou essa função da fala com maior

Page 13: Anotações fenomenológicas I: Fenômeno, fenomenologia e seu lógos

acuidade como apophaínesthai15. Logos deixa ver (phaínesthai) algo, a saber, isto, sobre

o qual é a fala e quiçá para o falante (Médium), respectivamente, para os falantes uns

com outros, mutuamente. A fala

deixa ver apò... a partir disso mesmo do que é a fala. Na fala (apóphansis), na medida em que

ela é autêntica, isto que é falado deve ser exaurido, a partir disso sobre o que se fala, de tal modo

que a transmissão falante no seu falado faz patente isso sobre o que se fala e assim o faz

acessível ao outro. Esta é a estrutura do logos como apóphansis. Não se apropria a cada “fala”

esse modo do fazer patente no sentido do deixar ver manifestante. O pedido (euché) p.ex.faz

também patente, mas num outro modo.

Na sua realização concreta esse deixar ver acontece como sonorização em palavras.

Assim, logos é “phonè metà phantasie”, i. é, sonorização vocal, na qual cada vez algo se

mostra. É essa função de apóphansis, o logos que faz com que ele tenha a estrutura de

sýnthesis. Síntese não tem aqui o significado de ligar e atar representações, lidar com

ocorrências psíquicas, fazer com que haja concordância da vivência psíquica interna

com o seu corresponde exterior etc. “O syn aqui tem a significação apophântica e quer

dizer: deixar ver algo no seu ser-junto-com algo como algo”. Como deixar-ver, logos

pode ser verdadeiro ou falso, não, porém, na acepção da verdade como adequação,

concordância, do juízo como o lugar da verdade. A definição da verdade como

adaequatio rei et intellectus não nos conduz à intuição originária da captação do que

seja primariamente a verdade, que em grego se diz alétheia.

“O “ser verdadeiro” do logos como aletheúein diz: recolher do seu velamento o ente,

do qual é a fala, no légein como apophaínesthai e deixá-lo ver como desvelado

(alethés), descobrir”. “Verdadeiro” nesse sentido grego originário, “e quiçá num

sentido mais originário do que o mencionado logos é a aísthesis, o singelo colher

sensível de algo. Na medida em que uma aísthesis cada vez é afim à sua ídia, i. é, ao

ente cada vez genuinamente apenas acessível através dela e para ela, p. ex. o ver as

cores, é assim o colher sempre verdadeiro. Isto quer dizer: ver descobre sempre cores,

ouvir descobre sempre tons. No mais puro e no mais originário sentido”verdadeiro” –

i. é, apenas em descobrindo, assim que jamais pode encobrir, é o puro noêin, o colher

singelamente mirante das tonâncias do ser, as mais simples do ente como tal. Esse

15 Cf. De interpretatione, cap. 1-6; Met. Z. 4 e Eth. Nic. Z.

Page 14: Anotações fenomenológicas I: Fenômeno, fenomenologia e seu lógos

noêin jamais pode ser encobrir, jamais ser falso, pode aliás permanecer um não-colher,

agnoêin, um não suficiente para um singelo, apropriado acesso”.

E explicando porque, dessa compreensão direta e simples do logos, surgiram traduções

de logos como mente (Vernunft), ratio (razão), fundamento, relação, Heidegger conclui

a sua exposição, dizendo: “E porque a função do logos está no singelo deixar ver de

algo, no deixar colher (Vernehmen) do ente, logos pode significar mente (Vernunft). E

porque de novo logos é usado não somente na significação de légein, mas ao mesmo

tempo na do legómenon, a saber, o mostrado como tal, e porque este não é outra coisa

do que o hypokeímenon, a saber, o que jaz no fundo ocorrendo para toda abordagem e

toda consideração, logos enquanto legómenon diz também fundo, fundamento, ratio. E

finalmente, porque logos enquanto legómenon pode significar: isto que como algo

abordado, se tornou visível na sua relação para com outro, no seu ser “relacionado”

logos recebe a significação de Relação e referência”.

Não vamos agora nem comentar, nem analisar mais a fundo esse texto acima exposto.

Tudo isso o faremos no decorrer dos seguintes capítulos, mais indiretamente do que

tematicamente, embora examinaremos também tematicamente o texto em questão.

3.2. Logos e aisthesis: a Wahrnehmung

Aqui, por enquanto, apenas destaquemos um ponto que será de importância para o

seguinte capítulo. O ponto a ser destacado se resume na seguinte frase acima citada:

“Verdadeiro” nesse sentido grego originário, “e quiçá num sentido mais originário do

que o mencionado logos é a aísthesis, o singelo colher sensível de algo. Na medida em

que uma aísthesis cada vez é afim à sua ídia, i. é, ao ente cada vez genuinamente

apenas acessível através dela e para ela, p. ex. o ver as cores, é assim o colher sempre

verdadeiro. Isto quer dizer: ver descobre sempre cores, ouvir descobre sempre tons. No

mais puro e no mais originário sentido” verdadeiro” – i. é, apenas em descobrindo,

assim que jamais pode encobrir, é o puro noêin, o colher singelamente mirante das

tonâncias do ser, as mais simples do ente como tal. Esse noêin jamais pode ser

encobrir, jamais ser falso, pode aliás permanecer um não-colher, agnoêin, um não

suficiente para um singelo, apropriado acesso”. A importância desse texto destacado

para a nossa compreensão da fenomenologia é que nesse texto breve está dito o que e

como devemos entender aquilo que constitui a essência da mostração, o ser da presença

Page 15: Anotações fenomenológicas I: Fenômeno, fenomenologia e seu lógos

corpo a corpo da coisa ela mesma, da evidência do ser que recebeu o nome de “Wahr-

nehmung”, e que muitas vezes em certas exposições ligeiras da fenomenologia é de

alguma forma identificada com a apreensão sensível dentro do esquema de oposição,

tradicional: mundo sensível e mundo inteligível. O nosso inter-esse jaz na identificação

que é insinuada no texto acima mencionado entre aisthesis, lógos e nõus como o

límpido, puro deixar ver, como o colhimento do alethéuein.

Resumamos brevemente os vários momentos de nossa reflexão até agora. Seguindo a

seqüência das palavras que constituem o título do trabalho “O que é a coisa ela mesma,

na fenomenologia” tateamos, num modo bastante provisório: 1. várias significações da

palavra coisa e similares, tentando observar que elas apresentam variações e diferenças

de nuance no modo de ser da intensidade do horizonte ou de mundidade, a partir e

dentro da qual faz aparecer o ente no seu ser; 2. a significação do que seja fenômeno,

seguindo as insinuações da palavra fenômeno, em grego phainómenon, phaínesthai

como o mostrar-se de algo ele mesmo como autopresentificação; 3. e mencionamos

algumas implicações da terminação -logia, da palavra fenomenologia, citando a breve

exposição de Heidegger acerca de logos, na sua interpretação toda própria.

3.3. Fenomenologia

Depois de tudo isso, concluamos esse capítulo, citando como uma compreensão ainda

provisória, o significado da fenomenologia no Ser e Tempo:

Tornando concretamente presente o que resultou da interpretação de ‘fenômeno’ e ‘logos’, salta

aos olhos uma referência interna entre o que é pensado com essas palavras. A expressão

Fenomenologia deixa-se formular gregamente: légein ta phainómena; légein diz, porém

apophaínesthai. Assim Fenomenologia diz: apophaínesthai tà phainómena: deixar ver de si

mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo. Este é o sentido formal

da pesquisa, que se dá a si mesmo o nome de fenomenologia. Com isso, porém, é expressa nada

mais, a não ser a máxima, acima formulado como: Zur Sache selbst, i. é, “À coisa ela mesma.

Assim chegamos à conclusão, ainda que provisória: a convocação que está na palavra

fenomenologia, enquanto deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se

mostra, a partir dele mesmo é expresso numa outra formulação: à coisa ela mesma (Zur

Sache selbst!). Diante dessa convocação, porém, segundo o título da nossa reflexão

perguntemos, em repetição: O que é deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como

Page 16: Anotações fenomenológicas I: Fenômeno, fenomenologia e seu lógos

ele se mostra, a partir dele mesmo? Dito com outras palavras: O que é fenomenologia?

Ou ainda numa outra formulação: O que é à coisa ela mesma?

Com essa pergunta retomada do título, não repetimos a pergunta. Antes a trocamos com

uma outra pergunta: Da pergunta “O que é a coisa ela mesma, na fenomenologia”

passamos a perguntar: “O que é à coisa ela mesma, na fenomenologia”. E porque, como

acima foi mencionado, à coisa ela mesma é o mesmo que fenomenologia; e porque

fenomenologia diz deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a

partir dele mesmo, a interrogação o que é fenomenologia agora pergunta: O que é

deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo?

A pergunta que tinha por ‘objeto’ a coisa, agora tem por objeto “deixar ver”, portanto

um ato do sujeito homem. E formula o seu interrogatório: o que é?...A pergunta cujo

feitio tem a forma de o que é? chama-se pergunta essencial ou pela essência, ou pelo ser

do ente e pelo ente do ser que está em jogo. Assim a pergunta, ao submeter um objeto

ao seu interrogar, o coloca como um “que” e indaga acerca do seu ser. Assim, a

pergunta tem diante de si um “quê”, um ente, interrogado pelo seu ser. Ente e Ser, ente

no Ser e Ser no ente. E a pergunta, ela mesma, pode se virar sobre si mesma e também

se colocar como um “que”, como um ente e se interrogar no seu ser.

Isto significa, porém que ao iniciarmos a reflexão intitulando-a O que é coisa ela

mesma, na Fenomenologia?, a própria colocação inicial já estava determinada a

posicionar o que quer que fosse, o que ela tocava na sua interrogação, como ente

interrogando-o no seu ser.

3.4. Fenomenologia como questão do sentido do ser16

16 Anotação a.1: Aqui, com a expressão sentido do ser, não estamos falando da significação do ser, conceito do ser, adequação do nosso saber ao objeto, representação dentro de nós, a saber, na nossa mente, do objeto, diante, ao redor, fora de nós. O ser entendido como verbo, dinamicamente, sugere de imediato e originariamente viger, viver, animar-se, perfazer-se, surgir-crescer-consumar-se, liberar-se, desprender-se, soltar-se nasciva, espontânea e livremente no que é o seu próprio. E isto apesar de, no nosso cotidiano, dominar o uso do verbo ser na significação de estar ali como algo ocorrente diante de mim à mão, ali parado, estático, à disposição do uso, ou como objeto-bloco permanente em si, do qual tenho da minha parte subjetiva impressões, sensações, representações etc. A dinâmica da espontaneidade da liberdade do próprio de si mesmo, portanto, o ser é expressa também por a presença, o vir à fala, o vir à luz, o manifestar-se. Trata-se, pois, de um movimento, no qual há e do qual vem uma condução, um ductus, um fio condutor, qual subtil tração do sabor e gosto, da graça e beleza, portanto do fascínio da coisa ela mesma, ou melhor, da causa da propriedade de ser. Esse ductus que nos toca, vindo de e nos induzindo para a dinâmica do ser, se chama sentido do ser (anotação tirada do Glossário dos sermões de Eckhart).

Page 17: Anotações fenomenológicas I: Fenômeno, fenomenologia e seu lógos

A pergunta que interroga o ente no seu ser se chama questão do sentido do ser. Questão

significa busca.

Segundo Ser e Tempo, §2 (A estrutura formal da pergunta pelo ser), numa busca temos

o que buscamos. O que buscamos é o ser, ou melhor, o sentido do ser. Sentido do ser

não encontramos como isso ou aquilo, não como algo, como ente, como objeto, como o

contra-posto, seja ele de que feitio for, não como coisa-Ding, coisa-Sache. Tudo isso

que nomeamos como termos indicativos afins ao ente, que aparecem como coisas de

infinitas variações, nuances e diferenciações, são como que lugares, situações, a partir e

dentro das quais a busca procura o seu buscado, o Ser, submetendo o respectivo ente

sob o interrogatório acerca do seu ser. Essa situação da busca se perfaz numa

estruturação de colocação bipolar, na qual num dos pólos se acha o interrogante com o

seu interrogatório e no outro o interrogado como ente-objeto, contraposto ao quem

interroga. Surge assim uma interação, um intercâmbio de dois tipos de ente,

denominados usualmente como sujeito e objeto17. Esta estruturação pode se dar em

diferentes complexidades de interação, e em interpretações diferenciadas, mas como tal,

por assim dizer estatui o modo de agir e ser do que denominamos conhecimento, cuja

estruturação está baseada na definição tradicional da verdade como adequação da coisa

e do intelecto18, cuja esquematização se fixa como relação S – O, refletido na fala lógica

como S-P, i. é, conhecimento como juízo. Essa fixação é algo como redução da questão

do sentido do ser à estrutura da teoria do conhecimento, insuficiente para levar à

consumação à busca, na sua radicalidade. Assim substitui-se por doutrina e teoria

dogmatizada do conhecimento, a questão do sentido do ser que se perfaz como busca do

sentido do ser na situação do ente submetido ao interrogatório acerca do seu ser, a partir

e dentro do qual pode emergir o vir à fala do ser no seu sentido, não como ente, como

Anotação a. 2: Sentido do ser não é idêntico com significação da palavra seIr. Sentido, propriamente, nada tem a ver com signo ou significação, embora tenha muito a ver com aceno. Sentido, usualmente, indica os 5 sentidos, que por sua vez, de modo não muito claro, se referem ambiguamente ao sensorial, ao sensual, ao sensível, à sensibilidade estética. Mas sentido diz tudo isso, porque em todas essas referências, está presente o sentir. E o sentir está também no sentimento. Mas, então, o que é o sentir? No sentir, há recepção. Na recepção, se é afetado previamente por um a priori, para que se receba. Mas, aqui, não se dá, não há o quê que afeta. A anterioridade do prévio, do a priori na recepção, não é anterioridade factual, ôntica, de um algo que ocorre antes, em si e então afeta, mas sim atinência ao toque de um aceno que deixa ser sempre de novo, cada vez diferente e nova a possibilidade do eclodir silencioso da estruturação do mundo (Cf. Artigo: Scintilla).

17 Variante: coisas da natureza e coisas da cultura.

18 Adaequatio rei et intellectus,

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algo, não como algo-sujeito, nem como algo-objeto, nem como algo comum de dois,

mas como pregnância de uma presença toda própria como ente-no-ser e ser-no-ente.

A fenomenologia como deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se

mostra, a partir dele mesmo é a tentativa de fazer retornar a busca da verdade enquanto

questão do sentido do ser, libertando-a desse aprisionamento impróprio da sua essência

dentro da camisa de força da teoria do conhecimento, a convocando à volta para coisa a

ela mesma, i. é, à causa ela mesma da sua dinâmica, evocada na própria expressão

fenomenologia , i.é, deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a

partir dele mesmo: o delõun.