anne fortier - planeta · naquela tarde, depois do ensaio do guarda-roupa, alguém fizera...

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Anne Fortier Julieta 3as Julieta:Planeta manuscrito 10/10/07 18:41 Page 3

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Anne Fortier

Julieta

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Anne Fortier

Julieta

TraduçãoIrene Daun e LorenaNuno Daun e Lorena

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PLANETA MANUSCRITO

Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito1200-242 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitosde acordo com a legislação em vigor

© 2010, Anne Fortier© 2009, Planeta Manuscrito

Título original: Juliet

Revisão: Clara Joana Vitorino

Paginação: Tiago Ferreira

1.ª edição: Outubro de 2010

Depósito legal n.º 315 936/10

Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráficas

ISBN: 978-989-657-127-6

www.planeta.pt

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Voltaremos a falar destas coisas tristes..Alguns serão perdoados e outros punidos,Porque nunca houve história mais tristeDo que esta de Romeu e Julieta.

Shakespeare

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Dediquei Julieta à minha espantosa mãe, BirgitMalling Eriksen, cuja generosidade e devoção nãotêm limites, que passou quase tanto tempo a fazer

pesquisa para a história como eu a escrevê-la.Rezo para que seja tudo o que ela esperou que

fosse e que esteja preparada para uma nova aven-tura muito em breve...

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Dizem que morri.O meu coração parou e deixei de respirar. Aos olhos do mundo,

morri mesmo. Dizem que estive morta três ou quatro minutos. Pessoal-mente, começo a pensar que a morte é apenas uma questão de opinião.

Suponho que tinha obrigação de saber, mas queria tanto acreditarque desta vez a tragédia, a velha e lamentável tragédia, não se repetiria!Que desta vez ficaríamos juntos para sempre, Romeu e eu, que o nossoamor nunca mais ficaria em suspenso durante séculos sombrios de des-terro e morte!

Mas não se pode enganar o Bardo e assim morri supostamentecomo devia quando fiquei sem palavras e caí no poço da criação.

Ó pena feliz, aqui tens a tua folha.E tinta. Comecemos.

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Prólogo

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I.I

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Meu Deus, meu Deus, que sangue é este que mancha esta laje,

à entrada deste sepulcro?

Levei algum tempo a perceber por onde começar. Podia dizer quea minha história começou há mais de seiscentos anos na Toscanamedieval, com um assalto numa estrada. Ou mais recentemente comum beijo num baile no Castello Salimbeni, quando os meus pais seconheceram, mas nunca sem o acontecimento que transformou aminha vida da noite para o dia e me forçou a ir a Itália em busca dopassado, a morte da minha tia-avó Rosa.

Umberto andou três dias à minha procura para me dar a triste notí-cia. Considerando o meu virtuosismo na arte do desaparecimento,espanta-me que tenha conseguido, mas ele sempre teve a estranha capa-cidade de me ler o pensamento e de me prever os movimentos. Além domais, havia vários campos de férias de Shakespeare na Virgínia.

Quanto tempo esteve a ver a peça no escuro, não sei. Como de cos-tume, eu estava nos bastidores, demasiado absorvida com as crianças,as deixas e os adereços para reparar noutra coisa até cair o pano.Naquela tarde, depois do ensaio do guarda-roupa, alguém fizera desa-parecer o frasco de veneno e, à falta de melhor, Romeu teria de se sui-cidar com Tic-Tacs.

– Mas os Tic-Tacs fazem-me azia! – queixara-se o rapaz com aansiedade acusatória dos seus catorze anos.

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– Melhor! – replicara eu, resistindo ao impulso maternal de lheajustar o chapéu de veludo na cabeça. – Ajuda-te a encarnar a persona-gem.

Só mais tarde, quando as luzes se acenderam e os miúdos me arras-taram para o palco para me bombardear com manifestações de gra -tidão, é que me apercebi, enquanto agradecia os aplausos, da figurafamiliar junto da saída a olhar para mim. Austero e estatuesco no seufato escuro, Umberto, como sempre, parecia um caniço solitário e civi-lizado num pântano primitivo. Não me lembrava de o ver vestido deoutra maneira. Para ele, os calções de caqui e as camisas de golfe erampara os homens que não tinham virtudes nem vergonha.

Mais tarde, quando as investidas de gratidão dos pais diminuírame pude, finalmente, sair do palco, detive-me por breves momentos juntodo director do programa, que me agarrou pelos ombros e me sacudiucalorosamente. O homem conhecia-me demasiado bem para tentar umabraço.

– Bom trabalho, Julie! – disse ele, emocionado. – Posso contar con-sigo no próximo Verão, não posso?

– Absolutamente – menti, afastando-me. – É só chamar-me.Quando, finalmente, cheguei junto de Umberto, tentei encontrar-

-lhe nos olhos, em vão, aquele pequeno brilho de felicidade que eletinha sempre que me via após uma separação mais ou menos longa.Também não lhe vi qualquer sorriso e compreendi a razão da sua pre-sença. Oxalá tivesse o poder, ao abraçá-lo silenciosamente, de virar arealidade de pernas para o ar, como uma ampulheta, de fazer com quea vida não fosse uma coisa finita, antes uma passagem perpétua e perió-dica por um buraco no tempo.

– Não chores, principessa – disse-me ele ao ouvido. – Ela não teriagostado. Não podemos viver para sempre. Ela tinha oitenta e dois anos.

– Eu sei, mas... – Afastei-me e limpei as lágrimas. – Janice estava lá?Os olhos de Umberto semicerraram-se, como sempre que o nome

da minha irmã gémea era mencionado.– Que achas?Só então reparei que ele tinha um ar pisado, amargo, como se

tivesse passado a noite a beber para conseguir dormir. Mas era natural.No fim de contas, que seria de Umberto sem a tia Rosa? Sempre os vira

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juntos, uma sociedade indissolúvel, ela o dinheiro e ele a força, ela abelle murcha e ele o mordomo paciente – e apesar das diferenças, nemum nem outro tinham tentado, nunca, viver cada um a sua vida.

O Lincoln estava discretamente estacionado junto da boca-de--incêndio e ninguém viu Umberto a meter-me o velho saco na mala ea abrir a porta de trás com uma ligeira vénia.

– Quero ir à frente. Por favor?Ele abanou a cabeça desaprovadoramente e manteve a porta

aberta.– Eu sabia que acabaria por se desmoronar tudo.A formalidade, porém, nunca fora uma insistência da tia Rosa.

Apesar de Umberto ser um empregado, sempre o tratara como se fosseda família. O gesto, porém, nunca era retribuído. Sempre que a minhatia o convidava para se sentar à mesa connosco, ele olhava para ela comuma indulgência confusa, como se perguntasse a si próprio por querazão ela passava a vida naquilo, já que ele recusava sempre. Umbertocomia sempre na cozinha, sempre comera e sempre comeria e nemsequer o santo nome de Jesus, evocado cada vez com mais exasperação,o convencia a juntar-se a nós, mesmo no Dia de Acção de Graças.

A tia Rosa costumava dizer que as peculiaridades de Umbertoeram uma coisa europeia e lançava-se suavemente numa aula sobretirania, liberdade e independência que terminava inevitavelmente comum garfo apontado na nossa direcção e com a frase:

– E é por isso que não vamos nas férias à Europa, especialmente aItália. Fim da história.

Pessoalmente, eu tinha a certeza de que Umberto preferia comersozinho porque considerava a sua própria companhia muito superiorao que ela tinha para lhe oferecer. Enquanto a tia Rosa, eu e Janice pal-rávamos e tremíamos de frio na sala de jantar cheia de correntes de ar,ele ficava serenamente na cozinha com a sua ópera, o seu vinho e o seuqueijo parmesão. Dadas as opções, eu faria o mesmo.

Naquela noite, enquanto o carro percorria o escuro ShenandoahValley, Umberto falou-me das últimas horas da tia Rosa. A minha tiamorrera pacificamente a dormir, depois de ter passado várias horas aouvir os velhos discos de Fred Astaire, um após outro. Assim queo último acorde do último disco morrera, ela levantara-se e abrira as

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portas-janelas que davam para o jardim, talvez para respirar mais umavez o perfume das madressilvas. De olhos fechados, disse-me Umberto,as cortinas de renda flutuavam-lhe em redor do corpo esguio sem umsom, como se ela já fosse um fantasma.

– Procedi bem? – perguntara ela calmamente.– É claro que sim – fora a diplomática resposta de Umberto.

e

Era meia-noite quando chegámos a casa da tia Rosa. Umberto jáme dissera que Janice chegara da Florida naquela tarde com uma cal -culadora e uma garrafa de champanhe, o que não explicava, porém,a segunda carripana estacionada à entrada.

– Espero sinceramente – disse eu, tirando o meu saco da mala docarro antes que Umberto lá chegasse – que não seja o cangalheiro.– Reagi com um estremecimento à minha própria irreverência, nada deacordo com a minha personalidade, que só acontecia quando estava aoalcance dos ouvidos da minha irmã.

Olhando de esguelha para o carro-mistério, Umberto ajustou ocasaco, como se estivesse a usar por baixo um colete à prova de bala.

– Infelizmente há muitas espécies de cangalheiros.Assim que entrámos em casa da tia Rosa, percebi o que ele queria

dizer. Todos os retratos do átrio tinham sido retirados e estavam de cos-tas para a parede como delinquentes perante um pelotão de fuzila-mento. E o vaso veneziano, que sempre estivera em cima da mesaredonda, por baixo do lustre, desaparecera.

– Está alguém em casa? – gritei, com uma raiva que não sentiadesde a minha última visita. – Alguém vivo?

A minha voz ecoou na casa em silêncio, mas, assim que o som mor-reu, ouvi passos a correr no corredor do primeiro andar. Apesar dapressa, sinónimo de sentimento de culpa, Janice teve de fazer a sua habi-tual aparição em câmara lenta na larga escadaria, com o leve vestido deVerão a fazer-lhe sobressair as curvas voluptuosas, mais do que se esti-vesse nua. Fazendo uma pausa para a imprensa mundial, a minha irmãgémea atirou para trás os longos cabelos com uma lânguida auto-satis-fação, dirigiu-me um sorriso de superioridade e começou a descer.

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– Imagine-se – observou ela em tom docemente frio –, a virgita-riana ainda está viva. – Só então reparei no capricho masculino dasemana que a seguia, desgrenhado e de olhos injectados, como sempreque um homem passava algum tempo sozinho com a minha irmã.

– Lamento desapontar-te – disse eu, deixando cair a minha mochilano chão. – Ajudo-te a esvaziar a casa ou preferes fazê-lo sozinha?

O riso da minha irmã era como um carrilhão colocado no alpen-dre pelo vizinho só para nos irritar.

– Este é o Archie – disse ela em tom casual, de negócios. – Ele vaidar-nos vinte das grandes por esta tralha toda.

Olhei com aversão para ambos.– É muito generoso da parte dele. É óbvio que adora tralha.Janice lançou-me um olhar gelado, mas recompôs-se rapidamente,

consciente de que eu me estava nas tintas para a opinião dela e que osseus acessos de raiva só me divertiam.

Nasci quatro minutos antes dela. Por mais que fizesse ou dissesse,seria sempre quatro minutos mais velha. Apesar de, na sua cabeça, ser alebre supersónica e eu a tartaruga lesma, sabíamos ambas que, por maisque tentasse, nunca conseguiria apanhar-me nem diminuir a diferençamínima que havia entre nós.

– Bem – disse Archie, olhando para a porta aberta –, vou levantarvoo. Foi um prazer conhecê-la, Julie. É Julie, não é? Janice falou-memuito de si... Continue assim! Make peace not love, como se costumadizer – concluiu ele, rindo nervosamente, saindo e deixando bater aporta mosquiteira.

Janice acenou-lhe carinhosamente, mas, assim que ele ficou fora dealcance, o seu rosto angélico tornou-se demoníaco, qual holograma doDia das Bruxas.

– Não te atrevas a olhar para mim assim! – disse ela, furiosa.– Estou a tentar arranjar algum dinheiro. Para as duas. Tu não estás aganhar nada que se veja, pois não?

– Eu não tenho as tuas... despesas – repliquei, apontando com umtrejeito da cabeça para os seus últimos upgrades, visíveis por baixo dovestido coleante. – Como metem eles isso tudo aí? Pelo umbigo?

– E tu gostas de não ter nada aí dentro, Julie? Nunca? – retorquiuela, imitando o meu tom de voz.

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– Peço desculpa, minhas senhoras – disse Umberto, colocando-sepolidamente entre nós como tantas vezes antes –, mas posso sugerir quecontinuem essa conversa tão excitante na biblioteca?

Quando chegámos junto de Janice, já ela estava esparramada nacadeira de braços preferida da tia Rosa, com um gim-tónico em cimada almofada com motivos de caça que eu fizera em ponto de cruz nomeu último ano da faculdade, enquanto ela perseguia presas bípedes.

– O que é? – exclamou ela, olhando para nós com aversão mal dis-farçada. – Achas que ela não me deixou metade da bebida?

Era típico de Janice arranjar discussões nos momentos menosapropriados. Virei-lhe as costas e dirigi-me para as portas-janelas.No terraço, os vasos de barro de que a tia Rosa tanto gostava pareciamchorar a sua morte. As flores pendiam, desconsoladas, o que era invulgarporque Umberto tinha sempre o jardim controlado, mas talvez ele jánão tirasse prazer do seu trabalho, uma vez desaparecida a reconhecidapatroa e espectadora.

– Surpreende-me – disse Janice, agitando a bebida – que aindaaqui estejas, Birdie. Se fosse eu, a estas horas já estava em Vegas com aspratas.

Umberto não respondeu; deixara anos antes de falar directamentecom a minha irmã.

– O funeral é amanhã – disse ele, olhando para mim.– Não acredito – disse Janice com uma perna a balançar por cima

do braço da cadeira – que tenhas planeado tudo sem nos perguntarnada.

– Só fiz o que ela queria.– Tens mais alguma coisa para nos dizer? – Janice libertou-se do

abraço da cadeira e alisou o vestido. – Suponho que vamos todos rece-ber uma parte, não? Ela não se apaixonou por uma fundação qualquerde animais, pois não?

– Importas-te? – exclamei, com voz cortante. Por um segundo oudois, a minha irmã pareceu ficar envergonhada, mas depois encolheu osombros como sempre e estendeu a mão para a garrafa de gim.

Nem sequer me dei ao trabalho de olhar quando ela fingiu falta dejeito, erguendo as sobrancelhas impecavelmente tratadas de espantopara nos dar a entender que não tencionava encher tanto o copo. Tal

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como o Sol no horizonte, Janice fundiu-se numa chaise longue, dei-xando que outros respondessem às grandes perguntas da vida desdeque não lhe tirassem o álcool.

Janice sempre foi assim: insaciável. Quando éramos crianças, a tiaRosa costumava exclamar, rindo:

– Se estivesse numa prisão feita de bolos de gengibre, aquela rapa-riga era capaz de os comer todos só para conseguir sair – como se aganância de Janice fosse algo de que nos devêssemos orgulhar. Porém,como a tia Rosa estava no topo da cadeia alimentar, ao contrário demim, não havia razão para ter medo. A minha irmã sempre fora capazde descobrir onde estavam os meus rebuçados escondidos. As manhãsde Páscoa na nossa família eram sórdidas, brutais e curtas; acabavamsempre com Umberto a castigá-la por me ter roubado os ovos e ela, coma boca cheia de chocolate, a gritar, debaixo da cama, que ele não era paidela e que, portanto, não lhe podia dizer o que podia ou não fazer.

O que era frustrante era que não parecia. A sua pele recusava-seteimosamente a revelar os seus segredos, tão suave como a cobertura deum bolo de casamento. As suas feições eram tão delicadas como osdoces e as flores de maçapão nas mãos de um mestre confeiteiro. Nemo gim, o café, a vergonha ou o remorso conseguiam fazer-lhe estalar afachada acetinada. Era como se ela tivesse dentro de si uma Primaveraperpétua, como se fosse todas as noites ao poço da eternidade e acor-dasse de manhã rejuvenescida, nem um dia mais velha, nem um quilomais pesada, mas sempre sofregamente esfomeada pelas coisas domundo.

Infelizmente não éramos gémeas idênticas. Uma vez, no recreio daescola, ouvi alguém chamar-me Bambi-com-andas e, apesar deUmberto se ter rido e dito que era um cumprimento, não gostei.Mesmo depois de ultrapassada a idade mais desengraçada, continuei aparecer esgalgada e anémica ao lado de Janice. Fôssemos onde fôssemosou fizéssemos o que fizéssemos, ela era tão morena e efusiva quanto euera pálida e reservada.

Sempre que entrávamos juntas numa sala, as luzes viravam-setodas para ela e, apesar de estarmos lado a lado, eu era só mais umacabeça no meio de muitas outras. No entanto, com o tempo, acabei porgostar do meu papel. Não precisava de saber a fundo as minhas deixas

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porque Janice, inevitavelmente, terminava-as por mim. E nas raras oca-siões em que alguém me fazia perguntas sobre as minhas esperanças eos meus sonhos, geralmente durante uma chávena de chá com uma dasvizinhas da tia Rosa, Janice arrastava-me para o piano, onde tentavatocar enquanto eu lhe virava as pautas. Ainda hoje, aos vinte e cincoanos, sou capaz de me atrapalhar numa conversa com estranhos, espe-rando desesperadamente que alguém me interrompa antes que diga umdisparate qualquer.

e

Choveu a potes no funeral da tia Rosa. O cemitério estava quasetão sombrio como a minha alma. Junto da campa, as grossas gotas dechuva caíam-me do cabelo e misturavam-se com as lágrimas que meescorriam pela cara abaixo. Os lenços de papel que levara de casa esta-vam transformados em papa na algibeira.

Apesar de ter passado a noite a chorar, não estava preparada paraa tristeza que senti quando o caixão desceu à terra, todo torto. Um cai-xão tão grande para o corpo tão magro da tia Rosa... Lamentei não terpedido para ver o corpo, apesar de para ela ser indiferente. Ou não? Tal-vez nos estivesse a ver de longe, de um sítio qualquer, desejando poderdizer-nos que chegara bem. A ideia era consoladora, uma distracção darealidade; tive vontade de acreditar nela.

A única pessoa que não parecia um rato afogado, chegado o fimdo funeral, era Janice, cujas botas de plástico com saltos de dez centí-metros e chapéu preto estavam perfeitamente de acordo com a situa-ção. Contrariamente a ela, eu usava o que Umberto apelidara de uni-forme de Átila, o Huno. Se as botas e o chapéu de Janice diziamaproxima-te, os meus sapatões e o vestido abotoado até ao pescoçodiziam, de certeza, desaparece.

Poucas pessoas foram ao funeral, mas só o senhor Gallagher,o advogado da família, ficou depois de todos se terem ido embora. NemJanice nem eu o conhecíamos, mas a tia Rosa falara tanto dele, e tãobem, que o homem só podia ser uma desilusão.

– Disseram-me que é pacifista? – perguntou-me ele quando saía-mos do cemitério.

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– Julie gosta de lutar – disse Janice, caminhando muito contenteno meio de ambos, sem ligar nenhuma ao facto de a aba do chapéu ser-vir de funil à água da chuva, molhando-nos ainda mais, a mim e aoadvogado – e de atirar coisas às pessoas. Ouviu falar no que ela fez àPequena Sereia...?

– Chega – disse eu, tentando encontrar um sítio seco na mangapara limpar os olhos pela última vez.

– Não sejas tão modesta! Apareceste na primeira página!– E disseram-me que o seu negócio vai muito bem? – O senhor

Gallagher olhou para Janice, tentando um sorriso. – Deve ser difícilfazer as pessoas felizes, não?

– Felizes? Livra! – exclamou a minha irmã, evitando uma poça noúltimo momento. – A felicidade é a maior ameaça ao meu negócio.O que interessa é o sonho. Frustrações, fantasias que nunca se realizam,homens que não existem, mulheres que não se pode ter. É onde está odinheiro, dia após dia, após dia, após dia...

Janice continuou a falar, mas eu deixei de ouvir. O facto de aminha irmã ser uma profissional do casamento era uma das grandesironias deste mundo porque, provavelmente, era a pessoa menosromântica que eu jamais conhecera. Apesar de namorar com todos,Janice via os homens como ferramentas eléctricas barulhentas que seligavam à corrente quando necessário e se desligavam terminado otrabalho.

Estranhamente, quando éramos crianças, Janice arrumava obses-sivamente tudo aos pares: dois ursos de peluche, duas almofadas, duasescovas de cabelo... Mesmo nos dias em que embirrávamos uma coma outra, punha as nossas bonecas lado a lado na prateleira durante anoite, por vezes até abraçadas. De certo modo, compreende-se quetenha escolhido o casamento como profissão já que, tal como Noé,punha tudo aos pares. O problema é que, ao contrário do profeta, já nãose lembrava por que razão o fazia.

É difícil dizer quando as coisas mudaram. A determinado ponto,na faculdade, a minha irmã chamou a si a missão de destruir todos ossonhos de amor que eu tinha. Mudando de namorado como quemmuda de collants, falava tão mal deles que eu perguntava a mim própriapor que razão as mulheres se davam com homens.

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– Esta é a tua última hipótese – disse ela, enrolando-me rolos cor--de-rosa no cabelo na noite anterior ao baile de finalistas. Olhei para elaatravés do espelho, confusa com o ultimato, mas impedida de respon-der pela máscara de lama esverdeada que me secara no rosto. – Perce-bes? A tua última hipótese... – acrescentou ela com uma careta de impa-ciência. – É para isso que os bailes de finalistas servem. Por que achasque os tipos se arranjam todos? Porque gostam de dançar? – continuouela, olhando de esguelha para o espelho para ver como eu estava. – Se nãoo fizeres no baile, sabes o que vão dizer? Que és uma puritana e ninguémgosta de puritanas.

Na manhã seguinte queixei-me de dores de estômago e, como coma aproximação da hora do baile continuassem e até piorassem, a tiaRosa teve de telefonar aos vizinhos para lhes dizer que era melhor ofilho deles arranjar outro par. Entretanto, Janice saía com um atleta cha-mado Troy, desaparecendo ambos numa nuvem de fumo provocadapelos pneus do carro a guinchar.

Depois de passar a tarde a ouvir os meus gemidos, a tia Rosa insis-tiu que era melhor irmos às urgências para o caso de ser apendicite, masUmberto acalmou-a e disse que eu não tinha febre e que o caso não erasério. À noite, à minha cabeceira, vendo-me a espreitar por cima doscobertores, percebi que ele sabia exactamente o que estava a acontecere que, de certa maneira, aprovava o meu esquema. Sabíamos ambos queo filho dos vizinhos não tinha nada de errado, só não se adequava à des-crição do homem que eu imaginava para meu amante. E se não podiater o que queria, mais valia não ir ao baile.

– E se nos deixássemos de rodeios, Dick? – perguntou Janice,virando-se para o senhor Gallagher com um sorriso de cetim.– Quanto?

Nem sequer tentei interferir. No fim de contas, assim que tivesse odinheiro, a minha irmã partiria para os eternos terrenos de caça dosconvencidos e eu nunca mais lhe poria a vista em cima.

– Bem – disse o senhor Gallagher, atrapalhado, parando no parquede estacionamento, mesmo ao lado de Umberto e do Lincoln –, lamentodizer, mas a fortuna é quase toda constituída pela propriedade.

– Sabemos perfeitamente que é fifty-fifty até ao último centavo, porisso deixemo-nos de tretas. Ela quer que tracemos uma linha a meio da

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casa? É justo, podemos fazer isso. Ou... – acrescentou ela, encolhendo osombros, como se para ela fosse o mesmo – podemos simplesmentevendê-la e dividir o dinheiro. Quanto?

– A verdade é que... – disse ele, olhando para mim com algumapena. – A senhora Jacobs mudou de ideias e decidiu deixar tudo àmenina Janice.

– O quê? – Olhei de Janice para o senhor Gallagher e depois paraUmberto sem encontrar uma expressão, sequer, de apoio.

– Que grande bronca! – exclamou Janice com um grande sorriso.– Afinal a velhota sempre tinha sentido de humor!

– Evidentemente – continuou o senhor Gallagher, de sobrancelhaserguidas –, Mister... Umberto fica com uma certa quantia e há umasfotografias emolduradas que a vossa tia-avó queria que ficassem para amenina Julie.

– Tudo bem – disse Janice –, sou uma pessoa generosa.– Um momento... – Dei um passo atrás, tentando processar a notí-

cia. – Isto não faz sentido.Não me lembrava de a tia Rosa não nos tratar da mesma maneira.

Por amor de Deus, uma vez até a apanhei a contar o número de nozesdo nosso muesli da manhã para ter a certeza de que uma não tinha maisdo que a outra! E sempre falara da casa como uma coisa que nós aca-baríamos por possuir em conjunto no futuro! «Vocês duas», costumavaela dizer, «têm de aprender a dar-se uma com a outra. Eu não vivo parasempre, como calculam. Quando eu morrer, vocês vão partilhar estacasa. E o jardim também.»

– Compreendo a sua desilusão – disse o senhor Gallagher.– Desilusão? – Apetecia-me agarrá-lo pelos colarinhos, mas em vez

disso afundei as mãos nas algibeiras. – Não pense que me calo. Querover o testamento – acrescentei, fixando-o e vendo-o desviar o olhar.– Passa-se aqui qualquer coisa nas minhas costas...

– O que acontece é que sempre tiveste mau perder – observouJanice, saboreando a minha fúria com um sorriso maldoso.

– Tome... – disse o senhor Gallagher abrindo a sua pasta com mãostrémulas e entregando-me um documento. – Esta é a sua cópia do tes-tamento. Lamento, mas não há lugar a contestação.

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e

Umberto encontrou-me no jardim, encolhida no abrigo que elenos fez quando a tia Rosa esteve de cama com uma pneumonia, sentou--se a meu lado no banco molhado sem comentar o meu desapareci-mento infantil e estendeu-me um lenço branco imaculado para eu meassoar.

– Não é por causa do dinheiro – disse eu na defensiva. – Viu o sor-riso dela? Ouviu o que ela disse? Ela está-se nas tintas para a tia Rosa.Sempre esteve. Não é justo!

– Quem é que te disse que a vida é justa? – perguntou Umbertocom as sobrancelhas erguidas. – Eu não disse.

– Eu sei! É que não compreendo... A culpa é minha, claro. Semprepensei que ela era sincera quando nos tratava irmãmente. Pedi dinheiroemprestado... – Tapei o rosto com as mãos para lhe evitar o olhar. – Nãodiga nada!

– Já acabaste?– Completamente – respondi, abanando a cabeça. – Nem faz ideia!– Óptimo. – Umberto abriu o casaco e tirou um envelope meio

dobrado. – É que ela quis que ficasses com isto. Trata-se de um grandesegredo. Gallagher não sabe e Janice também não. É só para ti.

Fiquei imediatamente desconfiada. Não era da tia Rosa dar-mequalquer coisa às escondidas da minha irmã, mas também não eradela afastar-me do testamento. Era evidente que, afinal, não conheciaassim tão bem a tia da minha mãe. E a mim própria também não,aliás. Pensar que estava ali naquele momento, especialmente naqueledia, a chorar por dinheiro! Apesar de já ter quase sessenta anos porocasião da morte da minha mãe, a tia Rosa adoptara-nos e fora comouma mãe para nós. Devia ter vergonha por estar ali a querer qualquercoisa dela.

Quando finalmente o abri, o envelope tinha três coisas: uma carta,um passaporte e uma chave.

– Este passaporte é meu! – exclamei. – Como ela...? – Olhei para afotografia outra vez. Era eu e a data de nascimento era a minha, maso nome não. – Julieta? Julieta Tolomei?

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– O teu verdadeiro nome. A tua tia mudou-o quando te trouxe deItália. Ela também mudou o nome de Janice.

– Mas por que..? – perguntei, espantada. – Há quanto tempo é quesabe?

Umberto baixou os olhos.– Por que não lês a carta?Desdobrei as duas folhas de papel.– Foi o senhor quem escreveu isto?– Fui, ditado por ela. – Umberto sorriu tristemente. – Ela queria

ter a certeza de que eras capaz de a ler.A carta dizia o seguinte:

Minha querida Julie:

Pedi a Umberto que te desse esta carta depois do meu funeral. Suponho,portanto, que isto significa que estou morta. Sei que ainda deves estar zan-gada por nunca vos ter levado a Itália, mas acredita que foi para vosso bem.Nunca me perdoaria se vos acontecesse qualquer coisa! Mas agora já estásmais velha e a tua mãe deixou-te, apenas a ti, uma coisa em Siena. Não seiporquê, mas a Diana era assim, Deus a abençoe. Ela encontrou qualquercoisa lá e, supostamente, ainda lá está. Pelo que me pareceu, é muito maisvalioso do que tudo o que eu já tive na minha vida. Foi por isso que decidifazer as coisas desta maneira e dar a casa a Janice. Esperava poder evitar istoe esquecer Itália, mas começo a pensar que seria um erro não te dizer nada.

Segue-se o que deves fazer. Pegas nesta chave e vais ao banco noPalazzo Tolomei, em Siena. Penso que é de um cofre. A tua mãe tinha-ana mala quando morreu. Ela tinha lá um conselheiro financeiro, umhomem chamado Francesco Maconi. Vai ter com ele e diz-lhe que és filhade Diana Tolomei. Ah, mais uma coisa. O teu verdadeiro nome é JulietaTolomei, mas, como estamos na América, pensei que Julie Jacobs faria maissentido, mas parece que também ninguém é capaz de o soletrar. Quemundo este! Não, tive uma vida boa, graças a ti. Ah, mais uma coisaainda: Umberto vai arranjar-te um passaporte com o teu nome verda-deiro. Não faço ideia como, mas ele é que sabe.

Não me despeço porque vamos ver-nos de novo no Paraíso, se Deusquiser. Queria ter a certeza de que receberias o que te é devido. Cuidado!

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Vê o que aconteceu à tua mãe. A Itália pode ser um sítio muito estranho.A tua bisavó nasceu lá, claro, mas digo-te que nem por todo o dinheiro domundo conseguirias que ela regressasse. Seja como for, não fales a ninguémdisto. E tenta sorrir mais. Tens um sorriso tão bonito, quando o usas!

Com muito amor e a bênção de Deus,Tia

Levei algum tempo a recuperar. Enquanto lia a carta, parecia-meouvir a tia Rosa a ditá-la, tão maravilhosamente estouvada na mortecomo na vida. Umberto não quis o lenço, disse-me que o levasse paraItália para me lembrar dele quando encontrasse o meu tesouro.

– Deixe-se disso! – disse eu, assoando-me pela última vez. – Sabemuito bem que não há tesouro nenhum!

Ele pegou na chave.– Não és curiosa? A tua tia estava convencida de que a tua mãe

tinha encontrado qualquer coisa extremamente valiosa.– Nesse caso, por que não me disse mais cedo? Por que esperou

até... – Ergui os braços ao céu. – Não faz sentido.Umberto semicerrou os olhos.– Ela bem quis, mas tu nunca estavas...!Esfreguei a cara, mais para lhe evitar o olhar acusador.– Mesmo que tivesse razão, sabe muito bem que não posso ir para

Itália. Prendiam-me logo. Eles disseram-me...De facto, eles, a polícia italiana, tinham-me dito mais do que eu

dissera a Umberto, mas ele sabia o essencial, sabia que eu fora presa emRoma durante uma manifestação contra a guerra e que passara umanoite pouco recomendável numa prisão antes de ser expulsa do país nodia seguinte, na condição de não voltar. Umberto também sabia que aculpa não fora minha. Na época tinha dezoito anos, só queria ir a Itá-lia, conhecer o país onde nascera.

Espetado no quadro das notas da universidade, juntamente comanúncios de viagens de estudo e caríssimos cursos de línguas em Flo-rença, vi um pequeno cartaz a denunciar a guerra no Iraque e todos ospaíses que tomavam parte nela. Descobri, muito excitada, que um delesera Itália. No fundo da página havia uma lista de datas e destinos; quem

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estivesse interessado na causa era bem-vindo. Uma semana em Roma,viagem incluída, custar-me-ia menos de 400 dólares, precisamente o quetinha no banco. Mal eu sabia que a tarifa, tão baixa, só era possível por-que não ficaria a semana toda e porque o voo de regresso e a última noitede alojamento – se corresse tudo de acordo com os planos – seriampagos pelas autoridades italianas, isto é, os contribuintes italianos.

Assim, pouco consciente do verdadeiro propósito da viagem, vol-tei várias vezes ao quadro das notas para ler o cartaz, até me decidir aassinar. Naquela noite, às voltas na cama, percebi que cometera um erroe que tinha de o emendar o mais depressa possível, mas quando, namanhã seguinte, contei tudo a Janice, ela revirou os olhos e disse:

– Aqui jaz Julie, que não tinha vida, mas que quase foi uma vez aItália.

Evidentemente, tinha de ir.Quando as primeiras pedras começaram a voar em frente do Par-

lamento italiano – atiradas por dois dos meus companheiros de viagem,Sam e Greg –, só me apeteceu estar de novo no meu quarto do dormi-tório, com a almofada a tapar-me a cabeça, mas estava no meio da mul-tidão, como toda a gente e assim que a polícia de Roma se fartou daspedras e dos cocktails Molotov, fomos todos baptizados com gás lacri-mogéneo.

Foi a primeira vez, na minha vida, que pensei: vou morrer. Esten-dida no asfalto e a ver o mundo, pernas, braços, vomitado, através deuma névoa de dor e incredulidade, esqueci-me por completo de quemera e para onde ia. Talvez, como os mártires da História, descobrisseoutro lugar algures, que não fosse vida nem morte. Então, porém, a dorvoltou, assim como o pânico e um momento depois deixou tudo deparecer uma experiência religiosa.

Meses mais tarde continuava a perguntar a mim própria se algumdia recuperaria dos acontecimentos de Roma. Quando pensava noassunto, tinha o sentimento incómodo de que me estava a esquecer dequalquer coisa crucial relacionada comigo própria, algo que ficara espa-lhado no asfalto italiano, esquecido.

– Sim – disse Umberto, abrindo o passaporte e olhando para afotografia –, eles disseram a Julie Jacobs que não podia voltar a Itália,mas não a Julieta Tolomei!

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Fiquei espantada. Umberto, que ainda me ralhava por eu me ves-tir como uma rapariga dos anos de 1960, a querer que eu violasse a lei.

– Está a sugerir...?– Por que pensas que mandei fazer isto? Foi o último desejo da tua

tia, que fosses a Itália. Não me partas o coração, principessa.Percebendo que ele estava a ser sincero, lutei mais uma vez contra

as lágrimas.– E o senhor? – perguntei, abruptamente. – Por que não vai comigo?

Podíamos procurar o tesouro juntos. E se não o encontrarmos, que selixe! Tornamo-nos piratas, percorremos os mares...

Umberto estendeu o braço e tocou-me gentilmente na face, comose soubesse que eu nunca mais voltaria assim que partisse. E se nos vol-tássemos a encontrar, não seria como naquele momento, juntos numesconderijo infantil, de costas voltadas para o mundo.

– Há certas coisas – disse ele suavemente – que uma princesa devefazer sozinha. Lembras-te do que te disse uma vez? Que um dia encon-trarias o teu reino?

– Isso foi uma história. A vida não é assim.– Tudo o que dizemos é uma história, mas nada do que dizemos

é apenas uma história.Lancei-lhe os braços ao pescoço, hesitante.– E o senhor? Não vai ficar aqui, pois não?Umberto olhou para a madeira encharcada do esconderijo.– Penso que Janice tem razão. Chegou a hora de o velho Birdie se

reformar. Vou roubar as pratas e vou para Las Vegas. Com a minhasorte, não duram mais de uma semana. Por isso, telefona-me quandoencontrares o teu tesouro.

Pousei-lhe a cabeça no ombro.– Será o primeiro a saber.

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