análise de obras literárias -...

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ANÁLISE DE OBRAS LITERÁRIAS SENTIMENTO DO MUNDO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700 CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP www.sistemacoc.com.br

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Análise de obrAs literáriAsSentimento do mundo

CArlos druMMondde AndrAde

Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP

www.sistemacoc.com.br

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suMário

1. Contexto soCiAl e HistóriCo .................................................... 7

2. estilo literário dA époCA ........................................................... 9

3. o Autor ................................................................................................. 12

4. A obrA .................................................................................................... 15

5. exerCíCios ........................................................................................... 39

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Sentimento do mundo

CArlos druMMondde AndrAde

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1. Contexto SoCIAL e HIStórICo

na história do brasil, o período compreendido entre os anos de 1894 e 1930, aproximadamente, é chamado de república Velha, “a política do café com leite”, porque ocupava a presidência da república ora um governo mineiro, ora um paulista, o que revela a importância dada à lavoura cafeeira somada à pecuária. A manutenção desse regime dependia, sobretudo, do equilíbrio entre a produção e a exportação de café. A elite agropecuária brasileira delegava ao estado o papel de comprador dos excedentes para garantir o preço em face das oscilações do mercado. exemplo típico dessa política foi o chamado acordo de taubaté, em 1906, segundo o qual são paulo, rio de Janeiro e Minas Gerais se comprometiam a retirar do mercado os excedentes da produção cafeeira para garantir o nível dos preços.

A sociedade brasileira, no início do século xx, sofreu transformações gra-ças ao processo de urbanização e à vinda dos imigrantes europeus para a região Centro-sul do país. entretanto, ao mesmo tempo em que principiou o processo de industrialização na região Sudeste, a mão de obra desqualificada dos ex-escravos foi marginalizada, deslocando-se para a periferia e para os morros; a cultura canavieira do nordeste entrou em declínio, pois ela não tinha como competir com o apoio dado pelo governo federal à “política do café com leite”.

No final do século XIX e início do século XX, duas realidades coexistiam no brasil: de um lado, a urbanização da região Centro-sul, com sua consequente industrialização e, de outro, o atraso das regiões norte e nordeste. e um tercei-ro fator, ainda mais grave, somava-se a esse quadro: as oligarquias rurais, com seus arranjos políticos, não representavam os novos estratos socioeconômicos. o resultado disso foi o surgimento de um quadro caótico, que teria seu término com a chamada revolução de 1930 e o estado novo, de Getúlio Vargas.

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na bahia, ocorreu a chamada Guerra de Canudos; em Juazeiro, no Ceará, o fenômeno do jagunço e a política do padre Cícero; os movimentos operários, em são paulo; a criação do partido Comunista; o tenentismo, que teve seu ápice na Coluna prestes, combatida por Arthur bernardes e Washington luís. é claro que esses conflitos ocorreram em tempos e locais diversos, entre 1894 e 1930, parecendo exprimir, às vezes, problemas bem localizados. entretanto, no con-junto, revelaram a realidade de um país que se desenvolvia à custa de graves desequilíbrios. A queda da bolsa de nova York em 1929 e o movimento tenentista colocaram fim à República Velha, com a vitória na chamada Revolução de 1930, dando início ao chamado estado novo ou era Vargas.

Os intelectuais brasileiros da década de 1920 não ficaram alheios a todas essas transformações. em são paulo e no rio de Janeiro, sobretudo, artistas e in-telectuais, em contato com as novas tendências do pensamento europeu, como o futurismo, o surrealismo, o dadaísmo, o expressionismo e o cubismo, preparam um evento, a chamada semana de Arte Moderna, com o intuito de romper com a mentalidade conservadora, representada, na literatura, pelos poetas parnasianos e, na política, pelas oligarquias rurais.

de um modo geral, a maneira encontrada pelos artistas da década de 1920 para combater o formalismo parnasiano e a mentalidade acadêmica foi a valori-zação do irracionalismo. Mário de Andrade, com a sua poética do “desvairismo”, publicada no “prefácio interessantíssimo” de Pauliceia desvairada, e Manuel ban-deira, com sua teoria do “alumbramento”, a poesia como uma revelação, isto é, como epifania, e toda a obra de oswald de Andrade são três bons exemplos da atitude artística e intelectual que procurou subverter a ordem existente.

Manuel bandeira publica em 1930 seu quarto livro de poesia, cujo título revela o intuito de romper definitivamente com a norma poética: Libertinagem.

A década de 1930 marcou a ascensão dos grandes ditadores da primeira metade do século: Hitler na Alemanha, Mussolini na itália e, no brasil, o governo de Getúlio Vargas.

em literatura, o período entre 1930 e 1945 foi o momento do posicionamen-to ideológico, político e social dos intelectuais brasileiros. A rebeldia estética da primeira fase modernista cedeu lugar à literatura socialmente comprometida, sobretudo no que diz respeito à prosa de ficção. Foi o momento do romance regionalista de Graciliano ramos, José lins do rego, Jorge Amado e da poesia que se ergueu para defender a dignidade humana, como é o caso de A rosa do povo, de Carlos drummond de Andrade, publicada em 1945.

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2. eStILo LIterárIo dA époCA

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o ModernISMo brASILeIroo movimento modernista brasileiro teve como marco inicial a semana de

Arte Moderna de 1922. em fevereiro desse ano, por sugestão do pintor di Caval-canti, um grupo paulista, formado por Mário de Andrade, oswald de Andrade, Paulo Prado, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e outros, juntamente com escritores mais jovens do rio de Janeiro, como ronald de Carvalho, renato de Almeida e alguns mais, promoveram, no teatro Municipal de são paulo, a chamada semana de Arte Moderna, com exposição de pintura e escultura, con-certos, conferências e declamações.

o Modernismo brasileiro começou pelas artes plásticas. em janeiro de 1917, a pintora paulista Anita Malfatti realizou em São Paulo uma exposição de pintura, na qual, além dos seus quadros, marcados por influências do expressionismo alemão, apresentava também alguns quadros cubistas de pintores estrangeiros. A exposição criou polêmica, ganhando a simpatia de uns e a antipatia de outros. Monteiro Lobato escreveu um artigo cujo título era ”Paranoia ou mistificação?“, negando valor artístico aos quadros. A exposição agradou, entretanto, a Mário de Andrade e a oswald de Andrade.

de um modo geral, a literatura dos modernistas, na chamada fase heroi-ca do movimento ou Primeira Fase Modernista, entre 1922 e 1930, provocou a subversão dos gêneros literários. A poesia aproximou-se da prosa e esta adotou processos de elaboração da linguagem poética. Houve uma aproximação dos di-versos “ismos” europeus, os movimentos de vanguarda que procuravam romper com as normas acadêmicas, como o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo, o futurismo, e o surrealismo.

A poesia abandonou as formas poéticas consagradas, como o verso metri-ficado e rimado, exageradamente praticado pelos poetas parnasianos. Aderiu à linguagem coloquial, ao verso livre, aos temas do cotidiano, ao humor e à ironia. os modernistas desejavam provar que a poesia estava na essência do que é dito e na sugestão ou no choque das palavras escolhidas, não nos recursos formais.

na fase mais combativa do Modernismo brasileiro, de 1922 a 1930, a prosa sofreu transformações significativas. Os períodos tornaram-se curtos, fragmenta-dos, com espaços brancos na composição tipográfica e na própria sequência do discurso, apresentando a realidade dividida em blocos sugestivos, cuja unificação exige do leitor uma adequação aos novos processos construtivos, uma vez que dispensa a concatenação lógica. A aliteração (repetição dos sons das consoantes) e a criação de neologismos passaram a integrar a linguagem da prosa. o melhor exemplo dessa técnica encontra-se em memórias sentimentais de João miramar, de oswald de Andrade.

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de 1930, data da publicação de Alguma poesia, de Carlos drummond de Andrade, a 1945, ano da morte de Mário de Andrade, tivemos o que se convencio-nou chamar de a segunda fase do Modernismo. As grandes experiências técnicas com a linguagem cederam importância aos temas sociais. surgiu uma literatura que procurava denunciar certos aspectos da realidade brasileira, sobretudo na prosa. Aí encontram-se os romances de Graciliano ramos, como Vidas secas (1938) e São Bernardo (1934), e de Jorge Amado, como Capitães da areia (1937), terras do sem-fim (1942), entre outros.

de 1945 em diante, tivemos a chamada terceira fase modernista. Alguns es-tudiosos delimitam esta fase entre 1945, ano da morte de Mário de Andrade, e 1964, ano do Golpe Militar. nela a linguagem é empregada como instrumento da busca do ser, sobretudo em João Guimarães rosa, na obra Sagarana (1946) e em Clarice lis-pector, nos romances Perto do coração selvagem (1944), A paixão segundo G.H. (1964) e A hora da estrela (1977).

é importante ressaltar que a obra poética de Carlos drummond de Andrade atravessa as três fases do modernismo.

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3. o AUtor

Carlos drummond de Andrade

Quando nasci, um anjo tortodesses que vivem na sombradisse: Vai, Carlos, ser gauche na vida.

Gauche – pronuncia-se gôch, palavra francesa cujo significado literal é esquerdo; no poema significa inapto, desajeitado.

Carlos drummond de Andrade era mineiro de itabira do Mato dentro, nas-cido em 1902, nono filho de Carlos de Paula Andrade, fazendeiro, e de D. Julieta Augusta Drummond de Andrade. Expulso do colégio ao findar o ano letivo de 1919, em consequência de um incidente com o professor de português, passou a residir em belo Horizonte, onde fez estudos de farmácia. dedicou-se ao jornalismo e entrou em contato com o Modernismo paulista, integrando o grupo fundador de A Revista, órgão que divulgava as ideias modernistas em Minas Gerais.

em 1926, sem interesse pela profissão de farmacêutico e sem aptidão para a vida de fazendeiro, lecionou geografia e português no Ginásio Sul-Americano de itabira. Ainda em 1926, retornou a belo Horizonte, como redator e depois redator-chefe do diário de minas. em 1928, a Revista de Antropofagia publicou seu po-ema no meio do caminho, provocando escândalo nos meios mais conservadores.

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em 1934, deixou belo Horizonte e foi para o rio de Janeiro (onde viveu até o fim da vida, em 1987), como chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema, Ministro da educação e da saúde pública.

poeta, contista, cronista e ensaísta, Carlos drummond soube usar com pre-cisão a linguagem, sempre de forma elegante e correta, com riqueza vocabular. os temas e os motivos de sua obra são sempre cotidianos, observando de perto os homens e as sutilezas e brutalidades da vida.

em 1962, em sua Antologia poética, o poeta dividiu sua poesia em nove áreas temáticas:1) o indivíduo: “um eu todo retorcido”2) A terra natal: “uma província: esta”3) A família: “a família que me dei”4) Amigos: “cantar de amigos”5) Choque social: “na praça de convites”6) o conhecimento amoroso: “amar-amaro”7) A própria poesia: “poesia contemplada”8) exercícios lúdicos: “uma, duas argolinhas”9) uma visão, ou tentativa da existência: “tentativa de exploração e de interpre-

tação do estar-no-mundo”

obrApoesia

1930 – Alguma poesia1934 – Brejo das almas1940 – Sentimento do mundo1942 – Poesias1945 – Rosa do povo1948 – Poesia até agora1951 – Claro enigma1952 – Viola de bolso1954 – Fazendeiro do ar & Poesia até agora1955 – Viola de bolso novamente encordoada1959 – Poemas1959 – A vida passada a limpo1962 – Lição das coisas1967 – Versiprosa1968 – Boitempo & A falta que ama1973 – menino antigo Boitempo ii

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1973 – As impurezas do branco1975 – Amor, amores1977 – A visita1978 – o marginal colorindo gato1978 – discurso da primavera & Algumas sombras1979 – esquecer para lembrar – Boitempo iii1980 – A paixão medida1982 – Carmina drummondiana1984 – Corpo1985 – Amar, sinal estranho1985 – Amar se aprende amando1988 – Poesia errante1992 – o amor natural1996 – Farewell

prosa1944 – Confissões de minas1951 – Contos de aprendiz1952 – Passeios na ilha1957 – Fala, amendoeira1962 – A bolsa e a vida (crônicas e poemas)1970 – Cadeira de balanço (crônicas e poemas)1970 – Caminhos de João Brandão1978 – o poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso1978 – os dias lindos1979 – de notícias e não-notícias faz-se a crônica1979 – Historinhas1981 – Contos plausíveis1984 – Boca de luar1985 – o observatório escritório1986 – tempo vida poesia1987 – o avesso das coisas1987 – moça deitada na grama1983 – o elefante1985 – História de dois amores (com ilustrações de Ziraldo)

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4. A obrA

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A obra Sentimento do mundo é composta pelos 28 poemas seguintes:

Sentimento do mundo Confidência do itabirano Poema da necessidade Canção da moça-fantasma de Belo Horizonte tristeza do império operário no mar (prosa) menino chorando na noite morro da Babilônia Congresso internacional do medo os mortos de sobrecasaca Privilégio do mar inocentes do Leblon Canção do berço indecisão do méier Bolero de Ravel La possession du monde ode no cinquentenário do poeta brasileiro os ombros suportam o mundo mãos dadas dentaduras duplas Revelação do subúrbio A noite dissolve os homens madrigal lúgubre Lembrança do mundo antigo elegia 1938 mundo grande noturno à janela do apartamento

Análise da obrao livro Sentimento do mundo foi publicado em 1940, num momento de

absoluta censura (vivíamos a época de ascensão dos grandes ditadores, como Getúlio Vargas no Brasil, Hitler na Alemanha, Franco na Espanha, Mussolini na itália, salazar em portugal, perón na Argentina, stalin na união soviética), o que explica a sua publicação fora do comércio, com uma tiragem de apenas 150

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exemplares. o livro mostrou a adesão explícita do poeta aos temas sociais, aos problemas de um mundo marcado pelas injustiças sociais (o “mundo caduco”), mundo que marchava em direção aos campos de concentração da Alemanha e à explosão da bomba de Hiroshima.

escrito dentro dos princípios preconizados pelo Modernismo, os 28 poe-mas do livro apresentam linguagem coloquial, com versos predominantemente livres, mas para compreendê-los melhor, é preciso retroceder aos dois primeiros livros do autor.

em Alguma poesia, de 1930, primeiro livro de Carlos drummond de An-drade, o poeta escreve no poema de abertura:

Quando nasci, um anjo tortodesses que vivem na sombradisse: Vai, Carlos, ser gauche na vida.

o “anjo torto” anuncia, já no primeiro poema, o destino do poeta: “ser gauche na vida”, o que significa não ter jeito ou aptidão para a vida. O tema do “eu todo retorcido” que o poeta assinalou na Antologia poética de 1962 estava na raiz de sua poesia. A imagem que o poeta tem de si é sempre a de um ser torto, retorcido sobre si mesmo, incapaz de se ajustar às normas e às transgressões do mundo.

em Brejo das almas, de 1934, no poema Segredo, o poeta dirá:

A poesia é incomunicável.Fique torto no seu canto.não ame.

o destino “torto” previsto pelo anjo no primeiro livro parece não ser ape-nas o destino do eu poético, mas de todos os homens. Cada ser humano parece carregar em seu interior uma carga pesada capaz de deformá-lo, tornando-o inapto para as coisas da vida. A deformidade interior parece impossibilitar uma correspondência satisfatória do eu com o mundo. este, aliás, será precisamente o tema do Sentimento do mundo.

Desde o início, pois, é perceptível na poesia do autor a noção de conflito entre o que chamamos eu e o que chamamos Mundo. o “eu” poético na poesia drummondiana, embora tenha nítidos traços autobiográficos, transcende a esfera da singularidade e estabelece um parentesco com todos os seres exteriores, de tal maneira que, ao falar de si, o poeta fala também de cada um de nós. o “eu” poético carrega consigo toda a carga que lhe foi atribuída desde o seu nascimento, em primeira instância pelas regras do grupo familiar e, posteriormente, pelas regras do mundo social. Regras de conduta moral, social, profissional, religiosa,

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enfim, todo o peso da civilização em suas nuanças que o ser humano acaba por absorver, quase sempre contra a sua vontade, e que acaba por sufocá-lo, deformá-lo e isolá-lo num labirinto de solidão e incomunicabilidade.

em Sentimento do mundo, o poeta deliberadamente procura estabelecer um vínculo entre o “eu” e o “mundo” através da linguagem poética. A poesia expressa, pois, os problemas do mundo, do mundo exterior e do mundo interior. A poesia é o veículo que torna possível a construção de uma ponte entre esses dois mundos.

no universo interior, o homem é marcado pelos fantasmas do passado, já que todos nós somos feitos daquilo que fomos, o que significa que as nossas raízes, a nossa família, a cidade em que nascemos e vivemos durante certo tempo, a nos-sa formação (ou deformação) moral atravessam o tempo e chegam ao momento presente como parte integrante e indissociável da nossa existência. A família é a primeira instituição a impor ao indivíduo o princípio da realidade, isto é, ela procura despertar na criança a capacidade de restringir as próprias vontades, tendo em vista a dos outros, e a adiar ou moderar a satisfação de determinados prazeres imediatos em nome de uma satisfação posterior. o problema maior desse “princípio de realidade” é que dele provém o medo. o medo é a primeira reação do indivíduo ao encarar suas limitações.

no universo exterior, a política ditatorial, a corrupção, a violência, a ga-nância e a luta pelo poder revelam que o mundo é um lugar mal feito, torto, deformado, capaz de amesquinhar a vida e reduzi-la à impossibilidade, fazendo com que todos nós tenhamos medo da realidade. Medo que nos paralisa e nos impossibilita de lutar contra o que nos oprime. Assim como existem os fantasmas interiores, existem, no mundo exterior, as injustiças sociais e os fantasmas do autoritarismo de uma política repressora.

A poesia de Carlos drummond de Andrade surge, portanto, como uma possibilidade de libertar o “eu” de seus fantasmas interiores e, simultaneamente, como possibilidade de libertar a consciência do medo e da culpa em relação à rea-lidade exterior. dessa forma, em Sentimento do mundo, a poesia é um instrumento de libertação e de participação social, porque permite ao poeta compreender o medo despertado na infância pela autoridade familiar e amadurecer e racioci-nar a partir desse medo, conferindo-lhe pouco a pouco a coragem necessária para enfrentar os medos e terrores de uma realidade marcada pelos rigores de uma política autoritária. Assim, o poeta substitui os problemas interiores pelos problemas exteriores, atingindo a confluência entre o Eu e o Mundo, o que faz surgir o sentimento do mundo.

A partir, sobretudo, de Sentimento do mundo, percebemos que o eu e o Mundo estão intimamente relacionados e que muitas vezes, ao falar de si, o poeta está falando do mundo e, ao abordar os problemas do mundo, ele está, de fato, procurando compreender seu próprio universo interior.

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no poema de abertura, intitulado Sentimento do mundo, lemos:

tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo,mas estou cheio de escravos,minhas lembranças escorreme o corpo transigena confluência do amor.

Quando me levantar, o céuestará morto e saqueado,eu mesmo estarei morto,morto meu desejo, mortoo pântano sem acordes.

os camaradas não disseramque havia uma guerrae era necessáriotrazer fogo e alimento.Sinto-me disperso,anterior a fronteiras,humildemente vos peçoque me perdoeis.

Quando os corpos passarem,eu ficarei sozinhodesfiando a recordaçãodo sineiro, da viúva e do microcopistaque habitavam a barracae não foram encontradosao amanhecer

esse amanhecermais noite que a noite.

o poeta estende a mão para o seu semelhante, abre a mão para a humani-dade. A mão representa aqui a consciência, o desejo de aproximar-se do outro; por isso o eu poético afirma ter duas mãos e o “sentimento do mundo”, a mão é a consciência que lhe permite sentir o mundo. Mas, embora seja capaz de senti-lo,

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o eu lírico afirma estar “cheio de escravos”, isto é, ele sente-se preso e incapaz de vivenciar a vida e a humanidade. Assim como percebe as forças que interior-mente o prendem e o privam da liberdade (“mas estou cheio de escravos”), ele percebe também as forças sociais que escravizam e impossibilitam os homens de se humanizarem, como sugerem os versos “os camaradas não disseram / que havia uma guerra / e que era necessário / trazer fogo e alimento”. por isso, ainda na terceira estrofe, pede perdão aos seus semelhantes, pois se sente despreparado para ajudá-los: “sinto-me disperso, / anterior a fronteiras / humildemente vos peço / que me perdoeis.” O que ele constata no final do poema é que o “amanhecer”, ou seja, o ingresso consciente no mundo exterior, está marcado pela “noite”, pela privação da luz, pela supressão da clareza, maneira sutil de dizer que o homem está privado da liberdade: “esse amanhecer / mais noite que a noite”.

Como o eu poético traz consigo os problemas que também pertencem a todos nós, a ausência de liberdade de um representa a ausência de liberdade do outro, o que significa que as tradições que oprimem o indivíduo oprimem também a sociedade.

em seguida, vem o famoso poema Confidência do itabirano:

Alguns anos vivi em itabira.Principalmente nasci em itabira.Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.noventa por cento de ferro nas calçadas.oitenta por cento de ferro nas almas.e esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,vem de itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

e o hábito de sofrer, que tanto me diverte,é doce herança itabirana.

de itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:este São Benedito do velho santeiro Alfredo duval;esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;este orgulho, esta cabeça baixa...

tive ouro, tive gado, tive fazendas.hoje sou funcionário públicoItabira é apenas uma fotografia na parede.mas como dói!

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repare que as heranças oriundas do passado sobrecarregam o ser, enri-gecendo a sua sensibilidade, chegando o poeta a afirmar: “por isso sou triste, orgulhoso: de ferro”. por mais que o passado esteja distante e a cidade natal seja apenas uma fotografia na parede, o eu lírico sofre. Daí vem a necessidade de estabelecer um vínculo com o que está fora.

Poema da necessidade

É preciso casar João,é preciso suportar Antônio,é preciso odiar melquíades,é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,é preciso crer em deus,é preciso pagar as dívidas,É preciso comprar um rádio,É preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque1,é preciso estar sempre bêbedo,é preciso ler Baudelaire2,é preciso colher as floresde que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens,É preciso não assassiná-los,é preciso ter mãos pálidase anunciar o Fim do mundo.

1 Volapuque = língua artificial criada pelo padre alemão Martin Schleyer, no final do século XIX, com a finalidade de ser uma

língua universal.

2 baudelaire = poeta francês do século xix.

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Carlos drummond de Andrade

A consciência impele o poeta a procurar o que está fora dele, a estabelecer um vínculo com elementos do mundo exterior. o poeta faz uso da anáfora, da repetição de uma palavra ou expressão no início do verso para intensificar a ideia de necessidade. O último verso “E anunciar o FIM DO MUNDO” evidencia a necessidade de anunciar o fim de um mundo que aprisiona, que impõe sofri-mentos e privações. Desta maneira, o fim do mundo desejado é o fim de todas as tradições que (nos) aprisionam, sejam elas os recalques interiores ou a política autoritária que rege o mundo exterior.

Ao anunciar o fim do mundo, o poeta recusa o convencionalismo da lin-guagem e anuncia um mundo novo, num poema em prosa intitulado o operário no mar. nesse mundo fabuloso de contradições extintas que então se anunciava ( “...mensagens que contam da rússia, do Araguaia, dos estados unidos”), é possível ao operário caminhar sobre as águas. Mas a consciência de culpa do poeta o leva a findar o texto com uma interrogação, pois ele se considera parte integrante da antiga ordem opressora (é importante lembrar aqui a origem lati-fundiária de drummond e o seu trabalho no gabinete de um ministro durante o governo de Getúlio Vargas) e, por isso, tem dúvidas sobre sua capacidade de compreender um operário.

O operário no mar

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na sua blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos estados unidos. não ouve, na Câmara dos deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. e me despreza...ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar-lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas e nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e a confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos

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irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?

no poema menino chorando na noite, ocorre uma comparação sutil entre o remédio ministrado a uma criança e a situação política do mundo. Assim como o remédio, muitas vezes amargo, se faz necessário, as políticas autoritárias da época justificavam as suas arbitrariedades comparando-as ao remédio necessário para curar os males que afligiam o mundo. Por isso, o “fio oleoso que escorre pelo queixo do menino, / escorre pela rua, escorre pela cidade...”. A dor, embora seja de todos, parece ser apenas de um: “e não há ninguém mais no mundo a não ser esse menino chorando.” Mais uma vez surge a relação entre o individual e o coletivo.

na noite lenta e morna, morta noite sem ruído, um menino chora. o choro atrás da parede, a luz atrás da vidraça perdem-se na sombra dos passos abafados, das vozes extenuadas. e no entanto se ouve até o rumor da gota de remédio caindo na colher.

um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da rua, longe um menino chora, em outra cidade talvez, talvez em outro mundo.

e vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra sustenta a cabeça e vejo o fio oleoso que escorre pelo queixo do mendigo, escorre pela rua, escorre pela cidade (um fio apenas). e não há ninguém mais no mundo a não ser esse menino chorando. em Congresso internacional do medo, o sentimento de medo se alastra pelo

mundo e paralisa os homens impedindo-os de se rebelarem contra a ordem estabelecida. o medo se faz presente em todos os lugares, em todas as pessoas e em todos os níveis, impedindo as ações e culminando na paralisia geral da morte. na própria forma do poema, a palavra “medo” vai se espalhando por todos os versos e o som da sibilante contínuo /s/ no último verso do poema Sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas parece sugerir que os efeitos do medo prolongam-se para além do ponto final. Ou seja, o medo não encontra obstáculos que o interrompa.

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Congresso internacional do medoProvisoriamente não cantaremos o amor,que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,não cantaremos o ódio porque esse não existe,existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,depois morreremos de medoe sobre os nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas. no poema os mortos de sobrecasaca, o tema da família, ou melhor, o tema

das heranças que trazemos do passado ressurge, não numa fotografia de Itabira, terra natal do poeta, mas através de um álbum de fotografia dos familiares.

Os mortos de sobrecasaca

Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,em que todos se debruçavamna alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.

um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentese roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentavaque rebentava daquelas páginas.

repare que o álbum também pode ser um jazigo, um túmulo, o que está sugerido na hipérbole (exagero) do segundo verso “alto de muitos metros e velho de infinitos minutos”. Perceba também que a ideia de jazigo ganha mais sentido na segunda estrofe, pois os vermes roem as sobrecasacas dos mortos. Mas, embora estejam todos mortos e sepultados, apesar da destruição física, os sentimentos de vida permanecem vivos, estão presentes, por exemplo, no eu lírico. por mais que este possa “zombar dos mortos de sobrecasaca”, as regras e valores do núcleo familiar do passado integram a sua vida.

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Brinde no juízo final

Poetas de camiseiro, chegou vossa hora,poetas de elixir de inhame e de tonofosfã,chegou vossa hora, poetas do bonde e do rádio,poetas jamais acadêmicos, último ouro do Brasil.

em vão assassinaram a poesia nos livros,em vão houve putschs, tropas de assalto, depurações.os sobreviventes aqui estão, poetas honrados,poetas diretos da Rua Larga.(As outras ruas são muito estreitas,só nesta cabem a poeira,o amore a Light.)

nesse poema, de modo sutil, o que, aliás, é típico do autor, o poeta tece uma crítica aos autores acadêmicos que se afastavam dos problemas sociais, en-quanto, ao mesmo tempo, tece um elogio aos poetas populares que empregavam a linguagem poética para anunciar desde medicamentos, como “elixir de inhame e de tonofosfã”, à luz da light, empresa de energia elétrica.

em Privilégio do mar, o poeta condena a alienação dos que desconhecem ou fingem desconhecer a existência dos horrores de um conflito mundial, bebendo, tranquilamente, no alto de um edifício, suas cervejas.

Privilégio do mar

neste terraço mediocremente confortável,bebemos cerveja e olhamos o mar.Sabemos que nada nos acontecerá.

o edifício é sólido e o mundo também.Sabemos que cada edifício abriga mil corposlabutando em mil compartimentos iguais.Às vezes, alguns se inserem fatigados no elevadore vêm cá em cima respirar a brisa do oceano,o que é privilégio dos edifícios.

o mundo é mesmo de cimento armado.

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Certamente, se houvesse um cruzador louco,fundeado na baía em frente da cidade,a vida seria incerta... improvável...Mas nas águas tranquilas só há marinheiros fiéis.Como a esquadra é cordial!

Podemos beber honradamente nossa cerveja.

no poema inocentes do Leblon, o poeta repete sua crítica à alienação e chama de inocentes aqueles que ignoram a realidade nociva que rodeia a todos, aqueles que, mergulhados no universo pessoal, acabam por ignorar os problemas exte-riores, os problemas sociais:

Inocentes do Leblon

os inocentes do Leblonnão viram o navio entrar.Trouxe bailarinas?trouxe imigrantes?trouxe um grama de rádio?Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,mas a areia é quente, e há óleo suaveQue eles passam nas costas, e esquecem.

no poema intitulado os ombros suportam o mundo, encontramos o ponto de confluência entre o sentimento individual e o sentimento do mundo: as limitações e imperfeições interiores levam o poeta a substituir os problemas pessoais pelos problemas coletivos. O sentimento interior de insuficiência faz com que o poeta deseje atingir a completude através do próximo. o irremediável da condição humana é percebido na condição pessoal e a desarmonia entre os homens e seus atos revela a inevitável condição solitária do ser humano.

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu deus.tempo de absoluta depuração.tempo em que não se diz mais: meu amor.Porque o amor resultou inútil.e os olhos não choram. e as mãos tecem apenas o rude trabalho.e o coração está seco.

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em vão as mulheres batem à porta, não abrirás.Ficaste sozinho, a luz apagou-se,mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.És todo certeza, já não sabes sofrer.e nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?teus ombros suportam o mundoe ele não pesa mais que a mão de uma criança.As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifíciosprovam apenas que a vida prosseguee nem todos se libertaram ainda.Alguns, achando bárbaro o espetáculo,preferiram (os delicados) morrer.Chegou um tempo em que não adianta morrer.Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.A vida apenas, sem mistificação.

no primeiro verso do poema, a experiência de vida não permite ao homem que ele se surpreenda com coisa alguma, por isso não se diz mais “meu deus”. A experiência, aliás, parece revelar ao homem que todo sentimento é inútil, como sugere o restante da primeira estrofe.

na segunda estrofe, as ações e situações do mundo cotidiano revelam que o homem atinge uma fiel indiferença com a vida, aceitando-a mecanicamente. isso lhe permite viver sem sofrer, sem temer a morte e aceitar a existência sem nenhuma esperança.

Mas, desse modo, o mundo parece caduco, e por isso não merece ser can-tado. é preciso, então, agarrar-se ao presente e tentar construir um mundo mais solidário. é preciso que caminhemos de Mãos dadas:

Mãos dadas

não serei o poeta de um mundo caduco.também não cantarei o mundo futuro.estou preso à vida e olho meus companheiros.estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.ente eles, considero a enorme realidade.o presente é tão grande, não nos afastemos.não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

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não serei o cantor de uma mulher, de uma história,não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.o tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,a vida presente.

O poeta afirma sua consciência dos problemas sociais, afirma que não será o poeta de um mundo caduco, de um mundo que celebra a indiferença e o ódio, já que se vivia na época o clima de repressão política e de preparação para a segunda Guerra Mundial. Afirma estar preso à vida e a seus companheiros, com os quais busca união. daí a renúncia, na segunda estrofe, dos temas pessoais, pois agora o seu interesse maior é o outro e a realidade, o “tempo presente”, que afeta a todos.

Mas o “eu” do poeta sofre também pelas mutilações que lhe são impostas pela ação do tempo, como aparece em dentaduras duplas:

Dentaduras duplas A onestaldo de pennafort

dentaduras duplas!inda não sou bem velhopara merecer-vos...Há que contentar-mecom uma ponte móvele esparsas coroas.(Coroas sem reinoos reinos protéticosde onde proviestesquando produzirãoa tripla dentadura, dentadura múltipla,a serra mecânica,sempre desejada,jamais possuídaque acabarácom o tédio da boca,a boca que beija,a boca romântica?...)

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Resolvin! Hecolite!Nomes de países?Fantasmas femininos?nunca: dentaduras,engenhos modernos,práticos, higiênicos,a vida habitável:a boca mordendo,os delirantes lábiosapenas entreabertosnum sorriso técnico,e a língua especiosaatravés dos dentesbuscando outra língua,afinal sossegada...A serra mecânicanão tritura amor.e todos os dentes extraídos sem dor.e boca libertaDas funções poético--sofístico-dramáticasde que rezam filmes e velhos autores.

dentaduras duplas:dai-me enfim a calmaque Bilac não teve para envelhecer.

Desfibrarei convoscodoces alimentos,serei casto, sóbrio,não vos aplicandona deleitação convulsade uma carne tristeem que tantas vezesme eu perdi.

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Largas dentaduras,vosso riso largo me consolaránão sei quantas fomesferozes, secretasno fundo de mim.não sei quantas fomesjamais compensadas.dentaduras alvas,antes amarelase por que não de âmbar?e por que não de âmbar? de âmbar! de âmbar!feéricas dentaduras,admiráveis presasmastigando lestase indiferentesa carne da vida! embora o poema contenha certa dose de humor, a visão predominante é

melancólica. o desejo humano não cede à ação do tempo, mas o corpo, mutilado e despojado de suas forças, não pode conseguir mais a satisfação desejada. por isso, a substituição da dentição natural pela artificial funciona como um consolo ante a tomada de consciência da impossibilidade das realizações desejadas. o “eu” do poeta procura aceitar com alguma serenidade o peso negativo das etapas vencidas, mas está ciente de que certa dose de indiferença para com as coisas da vida é necessária.

no poema seguinte, intitulado Revelação do subúrbio, o poeta, recolhido ao espaço interior de um trem, durante uma viagem para Minas Gerais, observa, através da janela, a realidade externa. o interior do veículo parece representar no poema o interior do poeta, enquanto o subúrbio mineiro parece ser uma me-tonímia do brasil pobre e esforçado.

Revelação do subúrbio

Quando vou para Minas, gosto de ficar de pé, contra a vidraça do carro,vendo o subúrbio passar. o subúrbio todo se condensa para ser visto depressa,com medo de não repararmos suficientemente

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em suas luzes que mal têm tempo de brilhar.A noite come o subúrbio e logo o devolve,ele reage, luta, se esforça,até que vem o campo onde pela manhã repontam laranjaise à noite só existe a tristeza do Brasil.

os 42 versos, divididos em três estrofes, do poema A noite dissolve os homens podem ser divididos em dois segmentos: o primeiro apresenta uma imagem da noite, do universo da guerra, da tristeza e da desesperança, enquanto o segundo apresenta uma imagem da aurora associada à ideia de esperança, de crença numa vida melhor do que a proposta pelos ideais nazifascistas.

A noite dissolve os homens

A noite desceu. Que noite!Já não enxergo meus irmãos.e nem tampouco os rumoresque outrora me perturbavam.A noite desceu. nas casas,nas ruas onde se combate,nos campos desfalecidos,a noite espalhou o medoe a total incompreensão.A noite caiu. tremenda,sem esperança... os suspirosacusam a presença negraque paralisa os guerreiros.e o amor não abre caminhona noite. A noite é mortal,completa, sem reticências,a noite dissolve os homens,diz que é inútil sofrer,a noite dissolve as pátrias,apagou os almirantescintilantes! nas suas fardas.A noite anoiteceu tudo...o mundo não tem remédio...os suicidas tinham razão.

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Aurora,entretanto eu te diviso, ainda tímida,inexperiente das luzes que vais acendere dos bens que repartirás com os homens.Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,teus dedos frios, que ainda se não modelarammas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.minha fadiga encontrará em ti o seu ermo,minha carne estremece na certeza de tua vinda.o suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,Os corpos hirtos adquirem uma fluidez,uma inocência, um perdão simples e macio...

Havemos de amanhecer. o mundose tinge com tintas da antemanhãe o sangue que escorre é doce, de tão necessáriopara cobrir tuas pálidas faces, aurora.

repare que a última estrofe revela uma crença nos valores da liberdade: o novo dia surge em função dos esforços de todos aqueles que lutaram contra as forças das trevas e da opressão. o novo dia surgirá para revelar que os esforços dos homens não foram inúteis, pois o dia triunfará sobre a noite.

observe, também, que o desejo de transformar o mundo exterior pode representar também o desejo de modificação do mundo interior.

no poema “lembrança do mundo antigo” ocorre uma oposição entre presente e passado:

Lembrança do mundo antigo

Clara passeava no jardim com as crianças.o céu era verde sobre o gramado,a água era dourada sob as pontes,outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,a menina pisou a relva para pegar um pássaro,o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de Clara

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As crianças olhavam para o céu: não era proibido.A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. não havia perigo.os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,esperava cartas que custavam a chegar,nem sempre podia usar vestido novo. mas passeava no jardim, pela manhã!!!Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!

o poeta resgata, através da memória (daí o título “lembrança do mundo antigo”), as qualidades do mundo anteriores à guerra: um mundo sem perigo, tranquilo, com crianças passeando pelos jardins. Ao passado de tranquilidade, entretanto, se contrapõe o presente ameaçador, capaz de tolher toda liberdade “As crianças olhavam para o céu: não era proibido.”

Mais uma vez, a censura externa da política ditatorial aparece ligada, na consciência do poeta, à ideia de censura interior. o tempo passado pode ser percebido como o tempo anterior à formação da consciência, e por isso seria um tempo sem culpa. Já o tempo presente, o tempo da consciência, cerceia a liberdade e impede o sujeito de realizar-se.

Elegia 1938

trabalhas sem alegria para um mundo caduco,onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.Praticas laboriosamente os gestos universais,sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas, e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerrae sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquinae te repões, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversassobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.A literatura estragou tuas melhores horas de amor.Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

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Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrotae adiar para outro século a felicidade coletiva.Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuiçãoporque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

elegia é o nome atribuído a uma forma de composição poética em que se desenvolve um tema triste. 1938 é o ano que antecede à deflagração da Segunda Guerra Mundial e é também o ano do primeiro aniversário do estado novo. portanto, nada havia para ser louvado; pelo contrário, a época é de tristeza.

nesse poema, como é comum a outros do autor, o eu lírico dirige-se a si mesmo como se fosse outro, empregando a segunda pessoa do discurso, como artifício para expor o conflito entre a atitude de consciência e desejo de mudar o mundo e o sentimento de impotência para realizá-lo. tal procedimento é escla-recido na última estrofe, no início do primeiro verso: “Coração orgulhoso, tens pressa de confessar a tua derrota”. Como a identificação só ocorre no fim do poema, durante todo o texto o “tu” pode estar se referindo a qualquer pessoa que se encontre presa à alienação e ao conformismo.

na primeira estrofe, o poeta refere-se ao operário que, sem nenhuma alegria, contribui para a manutenção de um mundo caduco, sendo capaz, o operário, de apenas sentir aquilo que é comum a todos os seres, como calor, frio, carência (provocada pela falta de dinheiro e, portanto, privando-o dos bens necessários à sobrevivência), fome e desejo sexual.

na segunda estrofe, como contraste às atitudes do operário, surgem os “heróis”, que por serem heróis, estão livres dos flagelos do operário. Entretan-to, os “heróis”, ante qualquer mudança da natureza, como a neblina, abrem seus guarda-chuvas de bronze, símbolo de proteção e de luxo, porque são guarda-chuvas de bronze. Assim, tanto os operários como os heróis parecem não ter nenhum preparo para enfrentar a realidade.

na terceira estrofe, a ausência de total consciência aparece representada pela noite e pelo sono (“e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.”). Ainda na segunda estrofe, o “despertar” surge como algo terrível, porque ele é obrigado a despertar para a Grande Máquina, ou seja, ele desperta para o mundo capitalista, símbolo do que aprisiona e aliena o sujeito.

na quarta estrofe, o operário se perde entre os “mortos”, ou seja, entre o que é incapaz de provocar mudanças, representado por meio de discursos estéreis, como “o tempo futuro” e “os negócios do espírito”, e pela própria literatura alienante.

na última estrofe, o amargo sentimento de frustração é devido à in-capacidade do Eu de dinamitar a ilha de Manhattan, símbolo do mundo capitalista.

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no penúltimo poema do livro, o poeta expõe, em 53 versos e nove estrofes, a sua percepção do mundo:

Mundo grande

não, meu coração não é maior que o mundo.É muito menor.nele não cabem nem as minhas dores.Por isso gosto tanto de me contar.Por isso me dispo,por isso me grito,por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.Só agora vejo que nele não cabem os homens.os homens estão cá fora, estão na rua.A rua é enorme. maior, muito maior do que eu esperava.mas também a rua não cabe todos os homens.A rua é menor que o mundo.o mundo é grande.

tu sabes como é grande o mundo.Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.Viste as diferentes cores dos homens,as diferentes dores dos homens,sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo issonum só peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.escuta a água nos vidros,tão calma. não anuncia nada.entretanto escorre nas mãos tão calma! Vai inundando tudo...Renascerão as cidades submersas?Os homens submersos – voltarão?meu coração não sabe.

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estúpido, ridículo e frágil é meu coração.Só agora descubroComo é triste ignorar certas coisas.(na solidão de indivíduodesaprendi a linguagemcom que os homens se comunicam.)outrora escutei os anjos,as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.nunca escutei voz de gente.em verdade sou muito pobre.

outrora viajeipaíses imaginários, fáceis de habitar,ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

meus amigos foram às ilhas.ilhas perdem o homem.entretanto alguns se salvaram e trouxeram a notícia de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,entre o fogo e o amor.

então meu coração também pode crescer.entre o amor e o fogo,entre a vida e o fogo,meu coração cresce dez metros e explode– Ó vida futura! nós te criaremos.

Inicialmente, o eu lírico expõe as certezas de suas limitações, afirmando que o seu coração não é maior do que o mundo. O conflito entre Eu e o Mundo aparece de forma explícita e o poeta se reconhece incapaz de sentir as dores do mundo. As próprias dores ultrapassam o limite de sua subjetividade e, por isso, ele necessita do outro (“preciso de todos”) para dividir a sua dor.

O contraste entre o mundo grande e o coração pequeno revela a difi-culdade de relacionamento entre eles. A difícil relação é produto de um eu enclausurado, fechado e que, por isso, desaprendeu a linguagem dos homens:

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“(na solidão de indivíduo / desaprendi a linguagem / com que os homens se comunicam.)”. Mas também é produto de mundo desordenado, “torto”, “caduco”, que cresce com as injustiças, o que faz com seja difícil “...amontoar tudo isso / num só peito de homem...”.

As desordens do mundo se ampliam e o sentimento do mundo do poeta também; dessa contradição nasce, então, o desejo de refazer o mundo exterior e o mundo interior: “meu coração cresce dez metros e explode. / – ó vida futura! nós te criaremos”. A destruição do mundo “caduco” leva também à destruição de uma consciência marcada pela culpa e pelo sentimento de impotência ante a realidade exterior. A vida futura torna-se uma projeção do desejo de uma vida sem culpa e sem injustiças; nessa vida futura utópica, o eu e o Mundo viveriam uma fase gloriosa de contradições extintas.

em noturno à janela do apartamento, o poeta contempla, à noite, “um mundo enorme e parado”. O conflito do Eu com o Mundo aparece na metá-fora “silencioso cubo de treva”, que representa tanto o apartamento como o interior do poeta; daí o conflito, pois ao pequeno e “silencioso cubo de treva” contrapõe-se um “mundo enorme e parado”. Fechado em seu apartamento e em seu silêncio (“A alma severa se interroga / e logo se cala.”), o poeta não se envolve com o mundo, apenas recolhe-se ao sentimento de tristeza, pois não tem “nenhum pensamento de infância, / nem saudade nem vão propósito.” entre o eu e o Mundo há apenas a noite que os envolve. o poeta sente o mundo como algo enorme e parado.

Noturno à janela do apartamento

Silencioso cubo de treva:um salto, e seria a morte.mas é apenas, sob o vento,a integração da noite.

nenhum pensamento de infância,nem saudade nem vão propósito. Somente a contemplaçãode um mundo enorme e parado.

A soma da vida é nula.mas a vida tem tal poder:na escuridão absoluta,com líquido, circula.

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Carlos drummond de Andrade

Suicídio, riqueza, ciência...A alma severa se interrogae logo se cala. e não sabese é noite, mar ou distância.

triste farol da ilha Rasa

CoMentárIo CrÍtICoSentimento do mundo é um livro que oferece ao leitor a possibilidade de

uma tomada de consciência sobre as ligações entre o que chamamos eu e o que chamamos Mundo. um e outro não se isolam. o sujeito traz consigo, como heranças, quer ele goste, quer ele não goste, quer ele saiba, quer ele não saiba, os reflexos do seu mundo de origem: seu jeito de falar, seus valores morais, seu silêncio, seus medos, sua esperança, seu jeito de querer bem. tudo isso o compõe e tudo isso o faz sentir a realidade, o mundo em que está inserido. dito de outra maneira, ele tem a sua forma pessoal de sentir o mundo.

Carlos drummond de Andrade expõe ao leitor a forma como ele construiu sua percepção do mundo, daquilo que está fora dele próprio. Ao mesmo tempo, deixa transparecer ao leitor que o que está fora também está dentro, porque cada ser humano que compõe o mundo possui problemas semelhantes. Cada ser humano é obrigado, pouco a pouco, a desprender-se de seu mundo interior para descobrir o mundo exterior. nesse processo, mais cedo ou mais tarde, as pessoas acabam por descobrir que a esperança de melhorar o mundo é também a esperança de promover uma melhora de si próprio.

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5. exerCÍCIoS

1. sobre Sentimento do mundo, de Carlos drummond de Andrade, é correto afirmar:a) trata-se de uma obra exclusivamente subje-

tiva, apresentando uma visão idealizada do brasil.

b) “O sentimento de insuficiência do eu, entre-gue a si mesmo, leva-o a querer completar-se pela adesão ao próximo, substituindo os problemas pessoais pelos problemas de todos.”

c) A obra não apresenta o problema da incomunicabilidade, tanto no plano da existência quanto no plano da criação artística.

d) trata-se do primeiro livro do poeta escrito em conformidade com as novas técnicas modernistas.

e) no livro, o universo interior do poeta não se relaciona com o mundo exterior, pois o livro focaliza apenas os problemas sociais.

texto para as questões 2 e 3.

Mãos dadas

não serei o poeta de um mundo caduco.também não cantarei o mundo futuro.estou preso à vida e olho meus companheiros.estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.entre eles, considero a enorme realidade.o presente é tão grande, não nos afastemos.não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

não serei o cantor de uma mulher, de uma história,não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.o tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

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2. no primeiro verso do poema, o adjetivo “caduco” significa, no contexto, que o mundo:a) é feito de justiças e estas estão se perdendo.b) está deixando de ser um lugar tranquilo.c) é um lugar velho e sem finalidade.d) é um lugar onde as normas não têm mais razão de ser.e) é um lugar que deve manter as normas para adquirir sentido.

3. no contexto da obra Sentimento do mundo, o poema “Mãos dadas” representa:a) a impossibilidade de contato do poeta com os seus semelhantes.b) a normalidade do mundo e a solidariedade entre os homens.c) uma reação do poeta à ideia de um mundo “caduco” e o desejo de sair do seu

universo interior para se completar com o próximo.d) a ausência de consciência do poeta dos problemas sociais, uma vez que ele

deseja apenas falar sobre a sua solidão.e) a ausência de desejo de transformar o mundo, já que isso implicaria numa

transformação do “eu” do poeta.

texto para as questões 4 e 5.

tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo,mas estou cheio de escravos,minhas lembranças escorreme o corpo transigena confluência do amor.

Quando me levantar, o céuestará morto e saqueado,eu mesmo estarei morto,morto meu desejo, mortoo pântano sem acordes.

os camaradas não disseramque havia uma guerra

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e era necessáriotrazer fogo e alimento.Sinto-me disperso,anterior a fronteiras,humildemente vos peçoque me perdoeis.

Quando os corpos passarem,eu ficarei sozinhodesfiando a recordaçãodo sineiro, da viúva e do microcopistaque habitavam a barracae não foram encontradosao amanhecer.

esse amanhecermais noite que a noite.

4.na primeira estrofe do poema, as duas mãos simbolizam:a) a incapacidade do poeta de sentir o mundo.b) a consciência do poeta que se estende em direção ao outro, no intuito de sentir

o mundo.c) a própria poesia e o mecanismo da criação poética.d) o sentimento de culpa do poeta, devido à sua incapacidade de compreender

seu semelhante.e) o desejo do poeta de afastar-se do seu semelhante.

5. Sobre o poema, pode-se afirmar que o eu lírico:a) sente-se preparado para auxiliar os homens.b) pede perdão ao seus semelhantes porque não trouxe armas para o combate.c) pede perdão aos seus semelhantes porque não se sente capacitado para au-

xiliá-los.d) acredita na construção de um mundo melhor, o que pode ser confirmado

pelos dois versos finais do poema.e) sente que os homens não estão preparados para auxiliá-lo.

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texto para a questão 6

A noite dissolve os homensA noite desceu. Que noite!Já não enxergo meus irmãos.e nem tampouco os rumoresque outrora me perturbavam.A noite desceu. nas casas,nas ruas onde se combate,nos campos desfalecidos,a noite espalhou o medoe a total incompreensão.A noite caiu. tremenda,sem esperança... os suspirosacusam a presença negraque paralisa os guerreiros.e o amor não abre caminhona noite. A noite é mortal,completa, sem reticências,a noite dissolve os homens,diz que é inútil sofrer,a noite dissolve as pátrias,apagou os almirantescintilantes! nas suas fardas.A noite anoiteceu tudo...o mundo não tem remédio...os suicidas tinham razão.

Aurora,entretanto eu te diviso, ainda tímida,inexperiente das luzes que vais acendere dos bens que repartirás com os homens.Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,

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teus dedos frios, que ainda se não modelarammas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.minha fadiga encontrará em ti o seu ermo,minha carne estremece na certeza de tua vinda.o suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,Os corpos hirtos adquirem uma fluidez,uma inocência, um perdão simples e macio...

Havemos de amanhecer. o mundose tinge com tintas da antemanhãe o sangue que escorre é doce, de tão necessáriopara cobrir tuas pálidas faces, aurora.

6. o poema “A noite dissolve os homens” pode ser dividido em dois segmentos.a) Quais são os dois segmentos? Indique o verso que os inicia.b) Qual a visão do poeta em cada segmento?

texto para as questões 7 e 8.

Poema da necessidade

É preciso casar João,é preciso suportar Antônio,é preciso odiar melquíades,é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,é preciso crer em deus,é preciso pagar as dívidas,É preciso comprar um rádio,É preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,é preciso estar sempre bêbedo,é preciso ler Baudelaire,é preciso colher as flores

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de que rezam velhos autores.É preciso viver com os homens,É preciso não assassiná-los,é preciso ter mãos pálidase anunciar o Fim do mundo.

7. No poema anterior, que nome recebe a figura de linguagem que repete a mesma palavra ou expressão no início de cada verso?a) Anáforab) Metáforac) Metonímiad) pleonasmoe) Hipérbole

8. tomando como referência a leitura da obra Sentimento do mundo, qual a explicação cabível ao último verso do “Poema da necessidade”?

texto para as questões 9 e 10.

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu deus.tempo de absoluta depuração.tempo em que não se diz mais: meu amor.Porque o amor resultou inútil.e os olhos não choram. e as mãos tecem apenas o rude trabalho.e o coração está seco.

em vão as mulheres batem à porta, não abrirás.Ficaste sozinho, a luz apagou-se,mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.És todo certeza, já não sabes sofrer.e nada esperas de teus inimigos.Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

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teus ombros suportam o mundoe ele não pesa mais que a mão de uma criança.As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifíciosprovam apenas que a vida prosseguee nem todos se libertaram ainda.Alguns, achando bárbaro o espetáculo,preferiram (os delicados) morrer.Chegou um tempo em que não adianta morrer.Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.A vida apenas, sem mistificação.

9. Que relação pode ser estabelecida entre o primeiro e o último verso do poema?

10. dê uma explicação para o título do poema.

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gAbArIto1. b 2. d 3. C4. b 5. b6. a) o dois segmentos são compostos pela con-

traposição entre a noite e a aurora. o primeiro segmento começa com o pri-

meiro verso da primeira estrofe: “A noite desceu! Que noite!”, enquanto o segundo segmento começa com o primeiro verso da segunda estrofe: “Aurora”

b) no primeiro segmento, o poeta manifesta uma visão pessimista, já que a “noite”, ou seja, a guerra, a política totalitária do fascismo e sua repressão impossibilitam a liberdade do homem. A “noite” pode ser vista como a privação da luz, como metáfora da ausência de lucidez e de liberdade.

no segundo segmento, o poeta manifesta uma visão esperançosa em um mundo melhor, mundo que virá com a “aurora”, com a queda dos regimes totalitários e com o resgate da liberdade

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8. Em “e anunciar o FIM DO MUNDO”, último verso do “poema da necessidade”, o mundo que o poeta deseja anunciar o fim é o mundo das guerras e das injustiças sociais, o mundo do isolamento e da privação. não se trata, portanto, de uma visão pessimista, mas de um desejo de mudar as regras que tornam o mundo “caduco”, como dirá o poeta em “Mãos dadas”, outro poema do livro.

9. Pode-se estabelecer uma relação de afinida-de, pois o primeiro verso “Chega um tempo em que não se diz mais: Meu deus” revela que nada mais surpreende o poeta, nada mais pode motivá-lo ou desmotivá-lo, e o último verso “A vida apenas, sem mistifi-cação” apresenta a ideia da vida como algo mecânico, artificial e sem encantos, sem surpresas e sem motivação.

10. Assim como na mitologia grega Atlas foi condenado por Zeus a carregar o mundo nas costas, o poeta sente-se condenado a carregar o mundo nos seus ombros. A vida, sendo mecânica e despojada de prazeres, torna-se apenas uma obrigação, um fardo que o ser humano está condenado a carregar sobre seus ombros.