análise bioética do código de Ética profissional do biólogo · ao final da década de 40, com...
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¹ Licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Pernambuco – Recife/Brasil. E-mail: [email protected]
Análise Bioética do Código de Ética profissional do Biólogo
Aiany Maria Queiroz Felix¹
RESUMO
O Código de Ética do Biólogo, Resolução CFBio n° 2 - de março/2002, é um instrumento que foi elaborado para orientar a conduta dos biólogos sobre os aspectos éticos da prática profissional. Esse estudo tem como objetivo, analisar o Código de Ética, comparando os enfoques deontológico e bioético. Para isso, realizou-se uma análise interpretativa do Código, utilizando a metodologia de categorização proposta por Bardin (2011), classificando as unidades do texto que se relacionavam com os referenciais do principialismo bioético - autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça -, e com os aspectos metodológicos e qualidades morais relacionadas à profissão. Dos quatro princípios da teoria bioética, apenas dois foram citados no decorrer do texto, e somados representam 15% do seu conteúdo. Assim, os itens que se referem aos métodos, bem como aos aspectos de qualificação profissional, juntos correspondem aos demais 85% do código. Dessa forma, o Código, focaliza no profissional, com predominância nos aspectos legalistas e deontológicos da profissão.
Palavras-chave: Bioética principialista, Deontologia, Código de Ética do Biólogo
ABSTRACT
The Code of Ethics of the Biologist, Resolution CFBio n ° 2 - March 2002, is an instrument that was designed to guide the conduct of biologists on the ethical aspects of professional practice. This study aims to analyze the Code of Ethics, comparing deontological and bioethical approaches. For this, an interpretative analysis of the Code was carried out, using the categorization methodology proposed by Bardin (2011), classifying the units of the text that related to the referential of bioethical principialism - autonomy, beneficence, non-maleficence and justice - and with the methodological aspects and moral qualities related to the profession. Of the four principles of bioethical theory, only two were cited throughout the text, and summed represent 15% of its content. Thus, the items that refer to the methods, and the aspects of professional qualification, together correspond to the other 85% of the code. In this way, the Code focuses on the professional with predominance in the legalistic and deontological aspects of the profession.
Key words: Bioethics, Deontology, Code of Ethics of the Biologist
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1 INTRODUÇÃO
Ao lançarmos um olhar acerca da formação, em geral, o profissional da área
de ciências biológicas, possui uma formação com forte enfoque nos aspectos teórico-
científicos, deixando as questões atitudinais em segundo plano, e dentre estas, estão
as questões éticas, que se configuram pelos conflitos morais de interesse (NEVES,
2008).
É importante destacar que, como futuros profissionais, as decisões precisam
ser pautadas além do binômio certo/errado, é preciso conhecimento dos limites legais
e regulamentares (NEVES, 2005). Em vista disso, este tema é explorado por duas
disciplinas durante a formação: 1) a bioética, que se propõe a analisar conflitos
referentes à vida, de forma transdisciplinar (GARRAFA, 1998); e 2) a ética profissional
ou deontológica, que apresenta as normas ou deveres inerentes à prática profissional
(MARCOS, 1999).
O Código de Ética, vigente no Brasil, para o profissional Biólogo, foi aprovado
por meio da Resolução do Conselho Federal de Biologia (CFBio), n° 2 de 2002, sendo
este, uma construção da categoria, para orientar a conduta dos biólogos,
especificando as normas de comportamento moral, os valores e os aspectos éticos,
assim o código manifesta o tipo de reflexão ética a ser observada (SIQUEIRA, 2008;
NEVES, 2008).
Este artigo tem como propósito, analisar o conteúdo do código de ética vigente,
sob o prisma da bioética, se dispondo a bem mais do que apenas comparar
disciplinas, mas realizar observação das orientações do código de acordo com os
referenciais da bioética, procurando aproximações ou distanciamentos existentes
entre estes e os referenciais deontológicos.
Assim, como referência será utilizada a teoria do principialismo, embasada nas
proposições teóricas de Beauchamp e Childress (2002), como também nos princípios
base, ou deveres prima facie, destacando que não há um nível de prioridade entre
eles, sendo todos muito importantes (LOCH, 2002).
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2 REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 Panorama Histórico da Bioética
Vários eventos podem ser utilizados para remontar a trajetória, desde o
desenvolvimento até o estabelecimento da Bioética, entretanto, de modo geral, o
grande fator responsável foram os problemas ocorridos em pesquisas científicas
realizadas com seres humanos, levando a reflexões sobre a regulamentação dessas
pesquisas (DURAND, 2003; GOLDIM, 1997; MOTTA, 2012). Portanto, pode-se dizer
que, a Bioética se moldou em um ambiente de grande desenvolvimento científico e
tecnológico e de profundas mudanças sociais, políticas e culturais (GOLDIM, 1997).
Ao final da década de 40, com o fim da Segunda Guerra Mundial, os
pesquisadores da problemática da Bioética, tiveram a percepção de que era preciso
instaurar um debate público e abrangente, sobre problemas relativos ao universo das
ciências da saúde e suas técnicas, o qual envolveria cientistas e profissionais das
mais diversas áreas. Um dos pontos chave se referia ao fato que, o mundo ocidental
começava a se recuperar das atrocidades que ocorreram na Alemanha nazista,
durante a Segunda Guerra Mundial, trazendo à tona a monstruosidade de alguns
experimentos realizados em seres humanos, os quais deixaram a humanidade
perplexa (WEINDLING, 2008).
Neste contexto de fim da Segunda Guerra e início de um novo período, para o
mundo como um todo, o Tribunal de Nuremberg (1947) realizou o julgamento dos
criminosos de guerra nazistas e, a partir daí, além das sentenças, elaborou-se um
conjunto de princípios norteadores para pesquisas envolvendo seres humanos,
chamado Código de Nuremberg (OLIVEIRA, 2004; ANNAS, 1992). Além desse
documento, no ano seguinte foi instituída a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, como mais uma garantia de que a dignidade humana seria respeitada sob
toda e qualquer hipótese (REICH, 1994).
Em relação ao estabelecimento do termo Bioética, alguns fatos foram decisivos,
como: 1) a publicação de um artigo, no periódico alemão Kosmos, por Fritz Jahr
(1927), utilizando a palavra bioética pela primeira vez, e 2) a proposição de Van
Rensselaer Potter (1970), de que a palavra deveria ser considerada em sentido mais
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amplo (GOLDIM, 2006; POTTER, 1970; REGO, 2009; SCHRAMM, 2008; POTTER,
1988).
As proposições feitas por Potter, se deram por meio da publicação de uma
coletânia de artigos em formato de livro, chamado “Bioethics: Bridge to the Future”,
onde ele defendia que, a ciência e a ética devem agir conjuntamente para assegurar
o bem do planeta e a sobrevivência das espécies, tomando assim a posição de uma
Bioética global, combinando conhecimentos biológicos (bios) e valores humanos
(éticos) (POTTER, 1971; REICH, 1994).
Atualmente, existem inúmeras concepções diferentes acerca da bioética,
desde uma ética estritamente ligada às ações humanas (stricto senso), até uma ética
preocupada com a responsabilidade dos atos humanos sobre a ecosfera (lato sensu).
Entre essas duas concepções existe uma série de outras concepções, intermediárias,
mas também coerentes e legítimas (SCHRAMM, 2002), por levantarem reflexões
sobre a produção científica com consciência (FIGUEIREDO, 2008).
2.2 A teoria Principialista no escopo da Bioética
A bioética foi construída e consolidada como uma ética aplicada às situações
que envolvem tomadas de decisões, e por isso necessitam de reflexão (GRACIA,
2008), tomando por base, na maioria das vezes, a teoria principialista com seus
princípios base, ou deveres prima facie: autonomia, beneficência, não-maleficência e
justiça (LOCH, 2002).
Este ramo da Bioética, que recebeu o nome de principialista, surgiu em meados
dos anos 70, nos Estados Unidos (EUA), introduzindo grandes mudanças no âmbito
das tomadas de decisões frente aos conflitos morais e ainda é um instrumento muito
útil para mediar as relações, embora limitado aos referenciais de autonomia,
beneficência, não maleficência e justiça (BEAUCHAMP e CHILDRESS, 2002). É
importante ressaltar que tomar os preceitos da bioética principialista como referência,
não significa aceitar o modelo em sua totalidade, mas que se compreende a
pertinência dos seus princípios (FERRER, 2003).
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No geral, não há um nível de prioridade entre os deveres, porém uma
hierarquização foi proposta por Gracia (2008), categorizando-os como primários e
secundários. Sendo assim, classificam-se como primários ou absolutos, a não
maleficência e a justiça, e como secundários ou relativos, a beneficência e a
autonomia, porém, apenas em caso de haver um conflito entre eles, é que seria
conveniente estabelecer esse “predomínio” de um sobre o outro, mas em geral não
há um nível de prioridade (GRACIA, 2008; LOCH, 2002).
Cada um dos princípios norteia para uma reflexão e uma prática positivas,
seguindo os aspectos bioéticos. A autonomia, enquanto princípio, sugere que cada
pessoa possui a capacidade e o direito de decidir sobre aquilo que lhe diz respeito,
tendo liberdade para agir da melhor forma, segundo seu ponto de vista. A não-
maleficência trata da sensibilização, a qual se faz necessária para que não se realizem
ações que causem danos a nenhum ser vivo. A beneficência também propõe evitar
os danos e vai mais além, propondo que as ações devem ser todas em prol do bem
estar do outro, buscando sempre maximizar os benefícios e minimizar os riscos que
possam existir (CAMARGO, 2001; GARRAFA, 2005; HOSSNE, 2006; LOCH, 2002;
SILVA, 1997).
Por fim, e não menos importante, o princípio da justiça estabelece como
condição basilar a equidade, como garantia de igualdade entre todos os envolvidos
em algum processo que envolva tomadas de decisão. Nesse contexto é necessário
considerar que para uma equidade real é necessário tratar de maneira desigual os
desiguais (GARRAFA, 2005; HOSSNE, 2006; PESSINI, 2009).
2.3 A Bioética no Brasil
A bioética, enquanto campo de estudo, foi introduzida no Brasil de forma efetiva
e adaptando-se à realidade brasileira, a partir de meados da década de 1990, podendo
ser considerada como tardia, mas apesar do início tardio, teve um desenvolvimento
surpreendente (GARRAFA, 2000).
O motivo mais evidente para explicar esse retardamento, diz respeito aos 30
anos, em média, nos quais o país esteve imerso em um cenário de ditadura civil-
militar. Em razão disso, as discussões sobre questões éticas referentes à autonomia
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e dignidade humana não eram pertinentes durante aquele período, mas após isso, na
chamada redemocratização, tratar de questões éticas referentes a direitos humanos
e a vida em geral, ganhou uma importância significativa, e juntamente com a
Constituição promulgada em 1988, a pauta evoluiu (BARBOSA, 2010).
Neste novo contexto, podemos identificar algumas influências que ajudaram a
moldar a bioética no Brasil, como a publicação do livro “Experimentação com seres
humanos” de Hossne e Vieira (1988); a partir dos anos 90, o surgimento da Sociedade
Brasileira de Bioética (1992), a publicação da Revista Bioética do Conselho Federal
de Medicina (1993), a realização do Primeiro Congresso Brasileiro de Bioética (1996);
e a criação da Resolução 196/96 pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS),
estabelecendo diretrizes e normas regulamentadoras para as pesquisas envolvendo
seres humanos, consolidando o sistema brasileiro de revisão ética das pesquisas
(CEP/CONEP) (FIGUEIREDO, 2008; MOTTA, 2012).
Na área de ensino, a primeira disciplina de Bioética - Introdução à Bioética – foi
oferecida em 1994, pela Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília e foi
implementada por Volnei Garrafa (FIGUEIREDO, 2008). Entretanto, apenas a partir
de 2001 as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Saúde
passaram a recomendar a Bioética como disciplina durante o processo de formação
acadêmica (MOTTA, 2012).
Após estar consolidada como campo disciplinar no Brasil, a Bioética ficou
caracterizada pelas perspectivas da intervenção (Garrafa), da vulnerabilidade
(Shramm) e do personalismo (PUC-Rio), isso deixa claro que a abordagem bioética
no Brasil, não se reduz a uma mera adaptação deontológica (GARRAFA, 2005).
Existiu, portanto, um processo de despertar, e após isso, o estabelecimento de
uma grande sensibilidade em relação a bioética no país, por meio de iniciativas
individuais e institucionais, envolvendo um número significativo de pesquisadores ou
pessoas interessadas na área (SOARES, 2011).
2.4 O Código de Ética do Biólogo
O Código de Ética do Biólogo é composto por 5 (cinco) capítulos, 20 (vinte)
artigos e 25 (vinte e cinco) incisos, onde em geral, são apresentados princípios e
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normas deontológicas com disposições gerais sobre o exercício profissional, a
organização em capítulos é por assunto e se dá discorrendo sobre os princípios
fundamentais, os direitos e deveres, as relações profissionais e por fim, as disposições
gerais, pertinentes à conduta dos profissionais (CFBio, 2002).
Os princípios fundamentais fazem referência a metas de caráter amplo,
expondo conceitos gerais que norteiam a moralidade no exercício da profissão. Os
direitos e deveres discorrem sobre garantias e responsabilidades, respectivamente,
que são inerentes ao profissional. Ao tratar sobre as relações profissionais, vemos
que há um grande empenho em manter uma padronização na atuação desses
profissionais, por fim nas disposições gerais, vemos com clareza quais os demais
aspectos devem ser observados pelo biólogo durante a sua prática (SIQUEIRA, 2008).
Cabe salientar que, o Código tem como propósito apresentar quais padrões
morais e de conduta devem ser acatados pela categoria, pois não é dado ao
profissional a liberdade para optar qual a postura ele julga mais adequada sobre
determinado dilema ético, segundo esse aspecto, cabe destacar a importância de
artigos, incisos ou até mesmo capítulos, tratarem sobre os dilemas bioéticos
(SIQUEIRA, 2008; VALLS, 2004).
3 METODOLOGIA
Realizou-se, em um primeiro momento, uma leitura exploratória de textos
correlacionados com a temática para obter um melhor embasamento teórico, depois
se sucedeu um exame minucioso do atual Código de Ética do Biólogo, buscando
identificar se o Código se refere apenas a ética profissional estritamente ou se há
trechos relativos à Bioética.
Analisando o discurso por meio de inferências, utilizou-se a metodologia
indicada por Bardin (2011), chamada de análise de conteúdo, com os passos de pré-
análise, exploração do material, tratamento dos resultados, inferência e interpretação.
Portanto, inicialmente foi realizada uma leitura de reconhecimento do Código de Ética,
para determinar a que categorias pertencem os trechos, e para analisa-lo foram
definidas seis categorias, quatro correspondentes aos princípios bioéticos -
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autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça, e duas referentes ao princípios
éticos/deontológicos, depois se procedeu uma leitura pormenorizada de cada trecho.
O processo de categorização das partes textuais referentes aos princípios
bioéticos respeitou um critério subjetivo segundo a conceituação de Beauchamp e
Childress (2002). Ao fim, foi calculada a frequência dos dados, possibilitando
comparar a presença de referenciais bioéticos e deontológicos contemplados pelo
Código.
4 RESULTADOS
Foi realizada a análise do Código de Ética, tomando por base os referenciais
teóricos da teoria principialista definida por Beauchamp e Childress (2002), assim o
texto foi analisado, os trechos foram categorizados e os dados resultantes agrupados
em categorias.
Durante a leitura para determinação das categorias, ficou evidente que o
conteúdo do texto não se restringia aos quatro princípios bioéticos, então, foram
estabelecidas mais duas categorias para uma melhor classificação da parte referente
a deontologia, os trechos que se referiam aos aspectos da conduta profissional foram
identificados na categoria “qualidade”, e aqueles que faziam referência aos aspectos
legais e técnicos, foram inseridos em uma categoria chamada “método”.
Os dados presentes no texto foram analisados por meio de comparações com
os dados sobre deontologia e bioética. Os números obtidos a partir desta análise
foram somados, permitindo uma visualização panorâmica do Código. Assim, ficou
demonstrado que, no texto como um todo, é muito recorrente a presença dos aspectos
deontológicos, se referindo a ética e legalidade da profissão, constituindo cerca de
85% do que é apresentado pelo Código. No que tange aos aspectos bioéticos, que
correspondem aos 15% restantes, há de se salientar que, explicitamente houve a
prevalência de apenas dois dos quatro deveres prima facie, sendo eles beneficência
e não-maleficência.
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Gráfico 1. Classificação dos conteúdos presentes no Código de Ética do Biólogo.
Fonte: O próprio autor.
Observando de forma mais detalhada o texto do Código, a parte deontológica
tem como categoria majoritária a qualidade (50%), seguida pela categoria classificada
como método (35%). Dentre o que corresponde aos princípios bioéticos, o princípio
mais referenciado foi a não-maleficência (10%), e em seguida o da beneficência (5%),
os demais princípios, autonomia e justiça, ainda que implicitamente ligados a estes,
não foram citados pelo Código de forma direta.
5 DISCUSSÃO
Um estudo desenvolvido a partir de um prisma principialista suscita questões
importantes no contexto da bioética. A sua base conceitual, firmada na publicação de
Beauchamp e Childress (1979), com princípios pretensamente universais e divulgados
por todo o mundo. Ainda assim, há fortes críticas ao principalismo. Dentre elas,
destacam-se aquelas que se referem ao relativismo entre os princípios defendidos e
ao fato de que, se apenas estes princípios forem considerados, eles não são
suficientes, sendo necessário levar em consideração, dependendo da ocasião, outros
princípios éticos.
5%
10%
35%
50%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
Princípios abordados pelo Código de Ética do Biólogo
Beneficência Não Maleficência Método Qualidade
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Porém, ainda que se trate de uma visão restrita, que não contemple toda a
pluralidade e as possibilidades de reflexão que esta disciplina oferece, o fato de ser
uma corrente hegemônica e com construção epistemológica formal, permite que se
realize uma verificação objetiva da presença de seu conteúdo no texto do Código, por
isso foi utilizada.
A realização de uma comparação entre bioética e ética deontológica
profissional não é uma novidade, e é inegável que ambas se aproximam, visto que
lidam com a moral, valores e condutas, mas diferem, na maneira como abordam os
conflitos. Visto que a deontologia faz uso de códigos e respostas pré-determinadas,
estando interligada com o legalismo, já a bioética, refere-se às decisões morais,
utilizando a reflexão para mediar conflitos (GARRAFA, 1998).
Durante a leitura preliminar do código, foi possível perceber que os princípios
bioéticos não foram muito abarcados no texto, mas isso pode ser explicado pelo fato
do código ser uma base deontológica e basear-se em aspectos técnicos, legais e
prescritivos, mas também pelo fato da teoria principialista possuir limitações e não
conseguir abranger todas as nuances das reflexões morais existentes.
Neste sentido, o estudo mostrou, que o Código teve um índice baixo de citações
dos princípios bioéticos (15%) comparativamente com as citações sobre a deontologia
(85%). Os principais temas abordados no aspecto deontológico, foram enquadrados
nas categorias qualidade (50%) e método (35%), enquanto na abordagem bioética os
princípios mais citados foram não maleficência (10 %), seguido por beneficência (5%).
A presença dos aspectos técnicos e prescritivos, ocupa uma posição
importante no código, com capítulos dedicados exclusivamente aos mesmos, como
os direitos e deveres, por exemplo. Como já foi explicitado, os aspectos bioéticos
ocupam uma posição de menor destaque, portanto, nenhum dos parágrafos do código
trata exclusivamente de interesses de cunho bioético.
Ainda assim, foi possível constatar a presença de dois princípios da teoria
principialista, sendo possível inferir que os profissionais da área possivelmente têm
uma visão segmentada dos conceitos, pois como sabemos, todos os conceitos se
complementam e não há hierarquização entre eles. Além disso, ambos os princípios
também não estavam presentes explicitamente no texto, apenas com a leitura dos
11
itens e com o conhecimento das definições atribuídas pela teoria principialista, foi
possível perceber que estes eram tratados em alguns trechos.
Ainda que pouco citada, a não maleficência foi o princípio que mais esteve
presente no texto (10%), especialmente quando se referia a defesa da vida, deixando
claro também que não se deve causar danos aos seres vivos, em vista disso, talvez
este princípio seja o que melhor elucide o papel do biólogo, pois a vida dos mais
diversos seres se constitui como centro da sua prática profissional, corroborando com
Tomita (2004).
O princípio da beneficência, que foi citado em 5% do texto, se relaciona com a
obrigação moral de minimizar prejuízos e em contrapartida maximizar benefícios,
quase sempre, no decorrer do texto, este esteve ligado ao da princípio da não
maleficência, mas isso é facilmente explicado pela complementariedade teórica
existente entre eles, deixando claro além de defender a vida é importante não causar
danos (BEAUCHAMP e CHILDRESS, 2002).
A soma dos itens referentes às categorias método e qualidade totalizaram 85%
do conteúdo, evidenciando uma supervalorização do referencial deontológico em
detrimento do bioético, assim, é possível observar que o Código, na sua versão atual,
é centrado essencialmente na figura do profissional e da deontologia de sua prática.
6 CONCLUSÃO
Os resultados obtidos permitem concluir que um dos maiores desafios
contemporâneos acerca da atuação do biólogo incide sobre a necessidade de
contemplar os princípios bioéticos na sua prática profissional, uma barreira para isso
é o fato do próprio Código que regulamenta a profissão não incorporar estes conceitos
de maneira efetiva, restringindo esses profissionais aos sistemas éticos/deontológicos
tradicionais, pois atualmente é formado basicamente de conteúdo prescritivo
arraigado em aspectos técnicos e legais.
Como é difundido, a parte técnica quase sempre é atualizada como resposta à
dinâmica da ciência moderna, e esta ocorre constantemente, isso deveria se refletir
nas reflexões éticas presentes no código de ética vigente, mas aparentemente,
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inclusive pela data da resolução do Código, o mesmo não vem acompanhando como
deveria as transformações morais ocorridas na sociedade brasileira contemporânea.
Considerando que a inúmera diversidade de questões bioéticas trabalhadas
por estes profissionais, não se restringindo apenas a questões com seres humanos,
mas também socioambientais e ecológicas. O ideal seria que o Código possibilitasse
acesso aos conceitos e princípios da bioética, como forma de melhor direcionar o
profissional biólogo, visto que ele é um instrumento importante no estabelecimento de
limites morais para a prática profissional.
Atendo-se ao fato de que o objetivo principal foi avaliar o Código a partir da
teoria principialista da bioética, durante a categorização onde eram expressados
aspectos técnicos, mas também era feita referência a algum dos princípios bioéticos,
a classificação bioética sobrepunha-se à primeira. Levando em consideração que os
conteúdos morais, para o presente estudo, são mais importantes que os aspectos
técnicos ou formais.
Por fim, após a análise do texto, ficou claro que embora seja primariamente
destinado a orientar a ética da conduta profissional, ele também traz em seu conteúdo
prescrições e formalismos, tratando de aspectos técnicos, legais e conceituais
específicos da profissão.
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