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Especial Livros
Angola por palavrasHoje, 31 de Agosto, Angola vai a votos. Uma data especial num país que teveapenas três eleições desde que se tomou independente, a 11 de Novembrode 1975. As muitas histórias de Angola passam, sobretudo, pelas palavras.O Negócios sugere sete livros que reflectem a multiplicidade de olhares sobreo país. Romances, história, ficção, realidade. Afinal, isto anda tudo ligado.
CELSO FILIPE
A guerra no divãAntónio Lobo Antunes"Os Cus de Judas"Editora Narrativa Actual (sob
licença da D. Quixote)221 páginasio edição: 1979
É um livro de ruptura. Os
traumas da guerra colonial
(neste caso, tendo Angola como
palco) e os sentimentos
recalcados são submetidos à
terapia da palavra. Desabafa o
narrador: "Porque camandro é
que não se fala nisto? Começo a
pensar que o milhão e
quinhentos mil homens que
passaram por África não
existiram nunca e lhe estou
contando uma espécie de
romance de mau gosto
impossível de acreditar, uma
história inventada...". "Os Cus de
Judas" é uma explosão, uma
verbalização da raiva. Gritos
mudos que se lêem assim: "Mas
nós não podíamos urinar sobre a
guerra, sobre a vileza e a
corrupção da guerra: era a
guerra que urinava sobre nós, os
seus estilhaços e os seus tiros,
nos confinava à estreiteza da
angústia e nos tornava em tristes
bichos rancorosos." E, já no fim,a observação pueril e ignorantede uma tia sobre a chegada do
militar, daquela guerra cujos
pormenores eram omitidos aos
portugueses. "Estás mais magro.Sempre esperei que a guerra tetornasse um homem, mas
contigo não há nada fazer."
"Os Cus de Judas" é baseado
na experiência pessoal de
António Lobo Antunes enquantomédico enviado para a guerra de
Angola. É "a dolorosa
aprendizagem da agonia", como
a classifica o próprio e que está
ainda presente e, mais dois
livros, "Memória de Elefante"
(anterior a este) e
"Conhecimento do Inferno"
(posterior). Esta trilogia tem o
mérito enorme de tornar a
guerra colonial numa temática a
ser assumida e debatida, sem
medos nem complexos. Além
disso, foi o ponto de partida paraa revelação de um dos melhores
escritores portugueses de todos
os tempos.
A catarsedo regressoMaria Dulce Cardoso
"O Retorno"
Edições Tinte da China
267 páginas1" edição: Março de 2012
"0 Retorno" é um livro
surpreendente e notável. Conta ahistória de uma família de
retornados apanhada pela
revolução de 25 de Abril de 1974
e a subsequente independênciade Angola. Maria Dulce Cardoso
escreve-o a ritmo
impressionante, coloquial mas
denso do ponto de vista
dramático, e muito bem
torneado nos pormenores.A vida de um grupo de
retornados, instalados
provisoriamente num hotel de
Cascais, é pintada em tons
impressionistas como se eles
fossem (e eram-no) um corpoestranho, uma espécie de párias- afugentados pelos angolanos e
indesejados pelos seus patrícios.
A família que cola a narrativadeste livro é a de Rui, um miúdo
de 15 anos, adulto à condição,
enquanto a família aguarda pelo
pai que fica preso em Luanda,onde terá sido torturado. É pela
sua voz que se conhece o
pensamento do pai que "não
sabia quem desprezar mais, se
os pretos, uns assassinos
ingratos, se os brancos, uns
cobardes traidores". Durante a
espera, Rui faz-se homem,
assume, sem nunca o verbalizar
junto da mãe, que o pai está
morto e quando este finalmente
chega liberta-se desse fardo.
"O Retorno" é um livro
catártico, sobre vidas que se
desfizeram, sendo que umas se
reconstruíram e outras não. É
sobre ódios, sobre rancores,sobre felicidade e todos os
outros sentimentos que
compõem a paleta humana das
emoções. É quase um divã
colectivo para fazer psicanálisesobre um passado que ainda
incomoda.
Um grandeCarnaval
Manuel Rui
"Quem me dera ser onda"Editora Cotovia
77 páginas1* edição: Julho de 1991
O mais sublime livro do angolanoManuel Rui é "Rioseco", que conta
a história de um casal de
refugiados do sul e leste de
Angola, que parte das suas terras
para fugir da guerra civil e chega à
ilha de Luanda. Uma belíssima
história de solidariedades.
O livro que aqui se destaca, no
entanto, é outro. "Quem me dera
ser onda" é uma sátira do período
pós-independência em que o
protagonista maior é um porco
que dá pelo nome de "Carnaval da
Vitória". O porco, propriedade da
família de Diogo, criado pelos
filhos Zeca e Ruça, serve de
pretexto para uma novela sobre o
populismo político e o novo-
riquismo. O "Carnaval" vive num
prédio, Faustino é o fiscal que
quer interditar a sua presença e o
porco é o pretexto para confusões
entre vizinhos que se tratam porcamaradas e que usam e abusam
da linguagem marxista. O prédio é
uma espécie de teatro do absurdo.
E as conversas são hilariantes.
Como esta, iniciada por Diogo:"- Pois aqui não entra fiscal
nenhum. E esse cabrão do
Faustino ainda vou descobrir
como lhe rectificaram, catete de
merda...- Mas está a fazer tribalismo...- Eu é que estou a fazer? Eu
que nem tenho maka com o
porco. Só porque é meu.
Tribalismo! Deixa lá os ismos,
mulher, que isso não enche a
barriga."Maria Teresa Salgado*
sintetiza, na perfeição, a
mensagem por detrás do livro. "A
metáfora é clara, tal como o porco'Carnaval da Vitória', os ideais da
revolução não sobrevivem aos
descaminhos que se seguiram na
construção da nação angolana. O
porco saiu da miséria em que vivia
na praia, teve seus dias de glória e
bom tratamento com as refeições
caprichosas do hotel que os
meninos traziam. Contudo, seu
momento de bem-estar e euforia
foi curto como a paz em Angola
que, após a guerra colonial e a
conquista da independência,
conviveu com poucos anos de
estabilidade e depois sofreu com a
guerra civil entre o MPLA e a
UNITA, esta patrocinada pelaÁfrica do Sul.
em http://www.ponto.altervista.org
/Livras/recensioni/quemmedera.hrml
A verdadedos factos
"Angola 61 - Guerra colonial:
causas e consequências"Dalila cabrita Mateuse Álvaro MateusEditora Texto279 páginasl* edição: Janeiro de 2011
A l 5de Março 1961, o ataque de
guerrilheiros da UPA a colonos
portugueses é uma das datas (a
par do 4 de Fevereiro) quemarca o início da guerra colonial
em Angola. Dalila Cabrita
Mateus e Álvaro Mateus
realizaram uma investigaçãoexaustiva e os resultados que
apresentam ajudam a
reconstruir desses tempos e a
compreender melhor todas as
histórias que se seguiram. "A
barbárie associada à revolta de
15 de Março contribuiu paraaumentar o apoio à política de
guerra, quer na Metrópole querentre os brancos de Angola,
aprofundando o fosso do ódio
racial", constatam os autores.
A putativa brandura do
colonialismo português merecetambém análise. Embora longo,o trecho que se segue, podefazer ruir muitas ideias pre-concebidas. "Dirão alguns: 'no
nosso caso não havia razão
para aquela revolta e para a
guerra, pois o nosso
colonialismo até era melhor do
que os outros, já que os
portugueses sempre tiveram
boas relações com os africanos
e, por vezes, até casavam com
mulheres negras'. (...) Só que o
colonialismo não é melhor ou
mais aceitável devido à bondade
dos homens. E não há
colonialismos bons. Todo o
colonialismo é, por natureza,violência e atraso. Embora
procure sempre auto-justificar-se."
"Angola 61" também faz
pensar como teria sido o futuro,
se em vez da aposta na guerra,se tivessem criado condições
para uma progressiva
independência. Adoptando, por
exemplo, a proposta do generalVenâncio Deslandes, que foi
governador de Angola entre
1961 e 1962. Deslandes,
escrevem os autores de "Angola
61", numa carta enviada aSalazar, "defende a necessidade
da existência de um governo e
de órgãos nacionais de
soberania em que 'as três
províncias [Angola, Moçambiquee a então Metrópole] estejam
representadas em pé de
igualdade e tenham as mesmas
responsabilidades de decisão'."
A sua visão não vingou. E os
factos, a partir daí, contam o
resto da história, que culminou
com uma independência
traumatizante, do ponto de vista
português, concretizada a 11 de
Novembro de 1975.
O princípioda mestiçagem
Pepetela"A Gloriosa Família"
Edições D.Quixote408 páginas1* edição: Novembro de 1997
De Pepetela, pseudónimo de
Artur Carlos Maurício Pestana
dos Santos, pode dizer-se que é
o mais prolífero e o melhorescritor angolano. Combatente
pelo MPLA durante a luta pela
independência, são muitos os
livros que se podem recomendar.
De "Mayombe" à "Parábola do
Cágado Velho", passando pelo"Cão e os Caluandas", ou "Jaime
Bunda, agente secreto". Todos
eles, de uma forma ou outra,
procuram desenhar a identidade
angolana e as suas diferentes
matizes, construídas através de
uma pluralidade de experiências."A Gloriosa Família" conta a
história de Baltazar Van Dum,
um cidadão flamengo quedurante o século XVII traficava
escravos, e narra a forma como
holandeses e portugueses
disputaram aquelas terras. Mas
também explica o fenómeno da
mestiçagem corporizado no
próprio Van Dum, que tinha uma
mulher oficial, uma princesaafricana chamada Dona
Inocência, e outras amantes.
A escrita de Pepetela é um
poço de ironia e este livro -notável, sublinhe-se - oferece
um manancial de informaçãohistórica que permite perceberas bases da criação da naçãoangolana. O narrador do livro é
um escravo mudo por quemBaltazar nutria particular afecto.
"Em Luanda, a importância de
uma pessoa se media pelonúmero de escravos que
apresentava. Neste caso,
Baltazar tinha quatro quebufavam para transportar e,nota original, este pobre
narrador a correr sempre atrás".
Como escreve Lina M
Camacho Pestana*, numa tese
sobre o livro, "A Gloriosa Família
retira material do passadoalimentando a ficção através da
modelização e subversão dos
acontecimentos históricos,
prendendo a atenção do leitoraté ao final da intriga. Concede à
História um novo sentido,desmistificando-a e tentandomostrar ao leitor que a
historiografia é sempre mais ou
menos tendenciosa e dependeexclusivamente de quem a
relata."
Este livro conta uma
belíssima história e ficará para ahistória da literatura escrita em
português.
'Consultado em: http://www.madeira-
edu.pt/LinkClick.aspx?fileticket=6Sv2EdJXebs
%3D&tabid=l277&language=pt-PT
Líder compés de barro
João Paulo Guerra"Savimbi - Vida e morte"Editora Bertrand350 páginasia edição: Março de 2002
João Paulo Guerra tinha pronto o
livro sobre a vida de Jonas
Savimbi antes da sua morte, a 22
de Fevereiro de 2002, mas o
mesmo só foi editado à
posterior, um mês depois.
Escreve o autor, no prefácio, queo líder da UNITA (União nacional
para a Independência Total de
Angola) "teve o fim queescolheu, a morte anunciada de
quem promoveu uma guerrainfinita e rejeitou todas as
oportunidades da paz". É um
livro que procura desmontar a
personalidade de Savimbi e o
abismo em que caiu depois do
falhanço das eleições de 1992,
quando depois dos acordos de
paz resolve voltar à guerra,contestando os resultados.
João Paulo Guerra tem umavisão particularmente crítica do
legado de Jonas Malheiro
Savimbi. "Os métodos da sua
guerra evidenciaram que mais
do que mudar o governo,tratava-se de desgovernar,
paralisar a economia, destruir as
vias de comunicação, saquear as
riquezas, impedir o cultivo dos
campos e a fixação das
populações, tornar endémica a
instabilidade."
No livro, conta-se a fundaçãoda UNITA, a formação de
Savimbi na China, os acordos
tácitos com as tropas
portuguesas durante o período
colonial, e a aliança com a África
do Sul, os Estados Unidos e o
Zaire no período pós-
independência de Angola.Relembra-se ainda o bastião da
Jamba, quartel-general da UNITA
durante os tempos áureos do
movimentos - por onde
passaram muitas personalidades
portuguesas -, os acordos de
Bicesse e o regresso à guerra.À data da sua morte, Savimbi
era um homem isolado e
acossado e a UNITA estava
isolada internacionalmente. "O
mito veio a morrer com o
homem. Privado do acesso às
fronteiras, Jonas Savimbi não
conseguiu sobreviver à guerrano interior de Angola", relata
João Paulo Guerra.
O líder da UNITA morreu, já lá
vão 10 anos, mas o seu nome
ficará ligado para sempre à
história de Angola. Para uns,
como um lutador pelademocracia. Para outros, como
um guerrilheiro sanguinário.
A cidadedos caixotes
Ryszard Kapuscinski"Mais um dia de vida
-Angola 1975"Editora Campo das Letras93 páginasl> edição: Fevereiro de 1998
O repórter polaco Ryszard
Kapuscinsky chegou a Angolaem 1975 para assistir à
independência de Angola. Narra
ele as circunstâncias da viagem:"Todos os que podiam fugiam de
Angola. Eu estava decidido a ir
para lá. Em Lisboa, convenci a
tripulação de um dos últimos
aviões militares portuguesescom destino a Angola a levarem-
me consigo. Para ser mais
exacto, implorei-lhes que me
levassem. Na manhã seguinte,
ao aterrar, vi pela janela do
nosso avião um quadradobranco imóvel, rodeado pelo sol.
Era Luanda."
Kapuscinski, que viveu três
meses no hotel Tivoli, na capital
angolana, retrata de forma
sublime a partida dos
portugueses e o afã na
construção de caixotes. "Dentro
da Luanda de cimento armado e
tijolos, erguia-se uma nova
cidade de madeira. (...) Quantomais ricas eram as pessoas,
tanto maiores eram os caixotes
que faziam. Os caixotes dos
milionários eram
impressionantes: com vigas
forradas a lona, tinham paredessólidas e elegantes construídas
com as madeiras tropicais mais
caras. (...) Dentro destes caixotes
metiam-se salões e quartosinteiros. (...) O entusiasmo doa
adultos contagia as crianças.Também elas constróem caixotes
para as suas bonecas e outros
brinquedos."É um livro sobre a partida de
uns e os novos tempos de
outros. Sobre a Luanda, cercada
pela FNLA e pela UNITA, sobre a
Angola invadida pelas tropassul-africanas e a independência,a 11 de Novembro de 1975. "Da
tribuna dos oradores, AgostinhoNeto leu um texto proclamandoa República Popular de Angola.
(...) Quando terminou, a
multidão invisível aplaudiu e o
povo deu vivas. Não houve mais
discursos. Pouco depois, as
luzes do palco apagaram-se e
toda a gente se foi embora
rapidamente, perdida na
escuridão. Na frente de
combate do norte, a artilhariaestava em silêncio. Mas, de
súbito, os soldados na cidade
começaram a celebrar,
disparando para o ar. Houve
uma agitação caótica e a noiteencheu-se de via."
O jornalista transporta-nos
para todos esses momentos.
Convida a vivê-los. Integra-nos
na narrativa e fá-lo com uma
qualidade literária notável. É um
daqueles livros que perduram,
para sempre, no arquivo mental
dos seus leitores.