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<196> Histoire(s) du Cinéma Artif ício e utopia: uma política do frívolo. Jacques Demy Angela Prysthon D os diretores associados à Nouvelle Vague, Jacques Demy é um dos que cabe mais desconfortavelmente nas definições mais correntes do movimento. O mundo fantasioso e “encantado” (ou “en-chanté”, como o próprio Demy frisava) dos seus fil- mes acabou por associá-lo também à audiência dos musicais e dos melodramas con- vencionais e ao imaginário camp e nostálgico que de diversas maneiras se distancia dos princípios vanguardistas do cinema francês da época. Evidentemente, a própria crítica francesa – sobretudo os Cahiers du cinema – tratou de resgatá-lo para o seio da austeridade do modernismo f ílmico: Todo el resto se halla disimulado bajo la ironía y el manierismo, es decir, el re- finamiento, como le ocurre a Godard, que lo hace bajo el signo de la provoca- ción y detrás de las citas. A menudo tenemos que olvidar cuán bello es el filme para descubrir sus méritos. El recuerdo de Ophuls está ahí para recordárnoslo: “No hay belleza que no tenga por origen la herida” (Jean Genet) 1 . (Vecchiali, 2004, 118) Já no seu primeiro longa-metragem, Lola (1960), Demy estabelece e desenvolve muitos dos principais elementos do seu imaginário (como por exemplo, a apresenta- ção do universo portuário que está presente na maioria de seus filmes, o início da cola- boração com Michel Legrand ou a construção de personagens que iriam aparecer em outros filmes – Lola em Model Shop (1969) e Roland Cassard em Os guarda-chuvas…), é só com Os guarda-chuvas… que ele conseguirá reunir os recursos necessários para realizar mais completamente seu projeto estético. Projeto que adere ao musical como gênero preponderante do seu cinema e inclui necessariamente a noção de “en-chanté”: sua combinação de fabulação e música, magia e canto. Também é possível enxergar nessa elaboração a matriz utópica que Richard Dyer identificou no musical: 1 “Todo o resto está escondido sob a ironia e o maneirismo, ou seja, o refinamento, como acontece com Godard, que o faz sob o signo da provocacão e através das citações. Frequentemente temos que esquecer quão belo é o filme para descubrir seus méritos. A memória de Ophuls está aí para nos lembrar: “Não há beleza que não tenha origem na ferida” (Jean Genet).” (tradução nossa)

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  • Histoire(s) du Cinma

    Artif cio e utopia: uma poltica do frvolo. Jacques Demy

    Angela Prysthon

    Dos diretores associados Nouvelle Vague, Jacques Demy um dos que cabe mais desconfortavelmente nas definies mais correntes do movimento. O mundo fantasioso e encantado (ou en-chant, como o prprio Demy frisava) dos seus fil-mes acabou por associ-lo tambm audincia dos musicais e dos melodramas con-vencionais e ao imaginrio camp e nostlgico que de diversas maneiras se distancia dos princpios vanguardistas do cinema francs da poca. Evidentemente, a prpria crtica francesa sobretudo os Cahiers du cinema tratou de resgat-lo para o seio da austeridade do modernismo f lmico:

    Todo el resto se halla disimulado bajo la irona y el manierismo, es decir, el re-finamiento, como le ocurre a Godard, que lo hace bajo el signo de la provoca-cin y detrs de las citas. A menudo tenemos que olvidar cun bello es el filme para descubrir sus mritos. El recuerdo de Ophuls est ah para recordrnoslo: No hay belleza que no tenga por origen la herida (Jean Genet)1. (Vecchiali, 2004, 118)

    J no seu primeiro longa-metragem, Lola (1960), Demy estabelece e desenvolve muitos dos principais elementos do seu imaginrio (como por exemplo, a apresenta-o do universo porturio que est presente na maioria de seus filmes, o incio da cola-borao com Michel Legrand ou a construo de personagens que iriam aparecer em outros filmes Lola em Model Shop (1969) e Roland Cassard em Os guarda-chuvas), s com Os guarda-chuvas que ele conseguir reunir os recursos necessrios para realizar mais completamente seu projeto esttico. Projeto que adere ao musical como gnero preponderante do seu cinema e inclui necessariamente a noo de en-chant: sua combinao de fabulao e msica, magia e canto. Tambm possvel enxergar nessa elaborao a matriz utpica que Richard Dyer identificou no musical:

    1 Todo o resto est escondido sob a ironia e o maneirismo, ou seja, o refinamento, como acontece com Godard, que o faz sob o signo da provocaco e atravs das citaes. Frequentemente temos que esquecer quo belo o filme para descubrir seus mritos. A memria de Ophuls est a para nos lembrar: No h beleza que no tenha origem na ferida (Jean Genet). (traduo nossa)

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    Two of the taken-for-granted descriptions of entertainment, as escape and wish-fulfilment, point to its central thrust, namely, utopianism. Entertainment offers the image of something better to escape into, or something we want deeply that our day-to-day lives dont provide. Alternatives, hopes, wishes these are the stuff of utopia, the sense that things could be better, that some-thing other than what is can be imagined and maybe realized.2 (Dyer, 2002, 20)

    O que nos interessa mais diretamente para a compreenso dos filmes de Jacques Demy a partir dessas teorias sobre o gnero o esquadrinhamento de trs tendncias principais dos musicais americanos: a saber, os musicais que separam claramente a narrativa e os nmeros musicais propriamente ditos (em geral aqueles filmes que tematizam o prprio entretenimento ou o mundo dos espetculos, como Caadoras de ouro); aqueles que separam narrativa e nmeros mais sutilmente constituindo uma sorte de hbrido (os nmeros representando uma espcie de linha de fuga da narrati-va, a sua dimenso utpica, no argumento de Dyer, sendo o exemplo utilizado por ele Cinderela em Paris, embora possamos ver em vrios dos musicais mais emblemticos da histria essa articulao: A roda da fortuna, Cantando na Chuva, Sete noivas para sete irmos, etc); e, finalmente, aqueles que dissolvem as fronteiras entre narrativa e nmeros, thus implying that the world of the narrative is also (already) utopian3 (Dyer, 2002, 28).

    Polticas de um melodrama banal

    Os guarda-chuvas do amor foi o primeiro longa-metragem em cores de Demy e o pri-meiro filme no qual foi possvel o cineasta apresentar mais integradamente seu estilo, sua viso de mundo en chant e no qual ele pde experimentar mais plenamen-te (e subversivamente) as convenes do gnero algo que no havia sido possvel com Lola, que apenas lanava piscadelas para o musical. Um filme completamente

    2 Duas das descries j naturalizadas de entretenimento, a saber, fuga e realizao de desejos, apontam para o seu mpeto central, utopismo. O entretenimento oferece a imagem de um lugar melhor para ir, ou algo que queremos profundamente e que nosso cotidiano no nos pode prover. Alternativas, esperanas, desejos esse o domnio da utopia, a noo de que as coisas podem ser melhores, que algo distinto do que est a pode ser imaginado e talvez at realizado. (traduo nossa)

    3 indicando, pois, que o mundo da narrativa j tambm utpico. (traduo nossa)

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    cantado, emprestando elementos da pera, da opereta e, evidentemente, do musical hollywoodiano, sem ser exatamente nenhum dos trs, o filme trata, em trs atos, da histria de amor entre dois jovens,Genevive (Catherine Deneuve) e Guy (Nino Castelnuovo). Com um plot que focaliza a vida comum dos habitantes de Cherburgo, cidadezinha do litoral norte da Frana, e d ao filme uma estrutura prxima tanto do melodrama convencional, como da tradio do realismo social. Esse apego ao real revela tambm um apego ao lugar, uma vontade de mostrar uma Cherburgo colorida e estranhamente melanclica que, se de um lado revela a mesma pulso utpica dos musicais americanos descrita por Dyer (nesse sentido aproximando-o do Stanley Do-nen de Uma dia em Nova York e tambm de Cinderela em Paris, basta lembrarmos do nmero Bonjour, Paris no qual Fred Astaire, Audrey Hepburn e Kay Thompson cantam e danam nas ruas e pontos tursticos mais importantes da cidade), de outro usa artif cios, cores e sons.

    Nesse sentido, o peculiar e estudado colorido e a cenografia meticulosa que Demy imprime estrutura realista vo ser fundamentais, assim como a orquestrao sonora e musical de Michel Legrand complementa a intensificao emotiva que con-trasta brilhantemente com a banalidade dos dilogos. Temos claramente a impresso de que nesse contraste que est o cerne do estilo en-chant, ou do que alguns crticos chamaram de Demy-monde:

    Demy-monde carries with it connotations of twilight and shade, of alluring sin, of the hard, real exchange of sex and money that still does not preclude romance and love. But half also implies a splitting that finds a profound reso-nance in Demys work. Dualities scattered throughout the literature typically juxtapose beauty (magic/lyricism/love, accentuating their metonymy) with cruelty, or the exotic with the everyday (sometimes making an implicit con-nection between beauty and the exotic, between the cruel and the everyday), Taboulay observes that most worryingly, Demys world is both divorced from and co-terminous with our own, returning us to the concept of Demy-monde, even with its internal contradictions as something apart:his films were and are still first of all, something else.4 (Stilwell, 2003, 123-124)

    4 A expresso Demy-monde carrega consigo conotaes de crepsculo e de sombra, de pecado sedutor, da troca dura e real de sexo e dinheiro que no necessariamente se ope ao romance e ao amor. Mas a ideia demetade (demi) tambm implica em uma diviso que encontra uma profunda ressonncia na obra e Demy. Dualidades espalhadas na literatura tipicamente justapem beleza (magia

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    essencial para a compreenso desse Demy-monde constatar que construda muito rigorosamente uma mis-en-musique, paralela e indissocivel da mise-en-scne. Em quase todas as trilhas que Legrand fez para Demy, a msica consolida o elo com o musical americano pelo crossover entre a chanson francesa, o jazz americano e a msi-ca erudita, sobretudo certa inspirao barroca (mais presente em Pele de Asno (1970), outra famosa colaborao com Demy, e O mensageiro (1971), de Joseph Losey). Para ilustrar essa noo da mis-en-musique de Legrand/Demy, temos uma das primeiras sequncias de Os guarda-chuvas do amor, na qual Guy conversa com seus compa-nheiros no vestirio da oficina onde trabalham sobre o que vo fazer aps a jornada. O tom de conversa fiada e as citaes pera Carmen servem como a base para Legrand compor o ritmo jazzstico da msica e da cena em geral, funcionando tambm como um comentrio sobre a prpria indstria cultural e o cinema. Nesse filme vamos nos deparar com talvez a mais clebre das canes de Legrand e o principal motivo mel-dico da narrativa: Je tattendrais, que perpassa todo o filme como a lembrana da rela-o entre Guy e Genevive. A intensa carga afetiva da cano traz tona no somente o fracasso do romance entre os dois jovens, como tambm a sombra da Guerra da Ar-glia, que intensifica as contradies internas da obra, seu cunho realista e seu mpeto poltico. Do mesmo modo que Je tattendrais o motivo que imprime a extrema me-lancolia do filme, a guerra funciona como um baixo contnuo quase inaudvel e quase invisvel, como a fora motriz para as transformaes do cotidiano francs no perodo.

    De certo modo, a dimenso utpica no se encontra propriamente no filme, mas nas promessas perdidas, no que apenas entrevisto, no que fugidio. O fato do filme ser todo cantado, ento, no teria a ver com uma equalizao entre o lugar da utopia e os espaos do cotidiano (nesse caso, a cidade provinciana do litoral norte francs), inversamente quase teramos uma afirmao da forma (e uma forma particularmente estilizada, cuidadosa e seriamente afetada, sem traos de ironia, sem camp) como agncia do real, como constitutiva de uma poltica do cotidiano.

    / lirismo / amor, acentuando sua metonmia) com a crueldade, ou o extico com o cotidiano (s vezes fazendo uma ligao implcita entre a beleza e o extico, entre o cruel e o cotidiano),Taboulay observa que o mais intrigante que o mundo Demy, o Demy-monde, tanto divorciado como colado com o nosso mundo, devolvendo-nos ao conceito de Demy-monde, ou seja, mesmo com suas contradies internas esse mundo se estabelece como algo parte: Seus filmes eram - e ainda so, antes de mais nada, algo mais. (traduo nossa)

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    Artifcios de uma Utopia Provinciana

    O fim de Duas Garotas Romnticas. Estpido, devastado, emoo definitiva. Uma emoo to forte que tudo que eu sempre pensei e escrevi sobre Demy continua verdadeiro. Um cineasta dif cil, no completamente sentimental, mr-bido e alegre. S uma idia. Melancolia no nostalgia. O mundo de Demy (o meu tambm, suponho) melancolia instantnea. No h mundo perdido, nenhum ideal que se foi, nenhum estado prvio pelo qual nos lamentamos. Pela simples razo (perversion oblige) que no queremos saber nada desse mundo do qual viemos (mais aliana do que parentesco, etc). Melancolia instant-nea como uma sombra. Coisas se tornam melanclicas imediatamente, graas msica e msica do dilogo. (Daney, 1989/2009)

    Cerca de trs anos depois de Os guarda-chuvas, Demy d continuidade ao seu dilogo com o gnero musical em Duas Garotas Romnticas. H uma srie de pontos comuns entre um filme e outro: Catherine Deneuve volta cena, assim como Legrand e sua msica, tambm retornam na tela a provncia litornea francesa (dessa vez, Rochefort), povoada por marinheiros e homens e mulheres com roupas de co-res de sorvete e confeitos de acar. Cidadezinha de sonho, mas um sonho modesto, provinciano, estranhamente calcado no real, sem arroubos exatamente grandiosos ou especificamente exticos (como normalmente so as cidades de sonho do musical americano, metrpoles de luz ou buclicos vilarejos verdejantes).

    Persiste igualmente a melancolia da qual fala Serge Daney, mas poderamos dizer que a melancolia de Duas garotas est permeada pela srie de diferenas que separa um filme do outro. A melancolia de Os guarda-chuvas advinha da sensao de irre-alizao dos protagonistas, da sua incompletude, da sua derrota frente ao cotidiano, diante do real. No que Duas garotas romnticas recuse ou oblitere o real , o filme simplesmente prescinde do cotidiano, ou o utiliza apenas para suprimi-lo, prximo da ideia de Jacques Rancire sobre o teatro: Good theatre is one that uses its separated reality in order to abolish it. 5(2009, 7). Distintamente de Os guarda-chuvas (com o conflito na Arglia na malha das relaes e com os costumes e a normalidade da classe mdia e da burguesia de Cherburgo sendo fiel e esquematicamente apresentados), o filme no alude a quase nenhum contexto fora dele mesmo, apresenta um ainda maior

    5 Bom teatro aquele que usa sua realidade separada, a fim de aboli-la. (traduo nossa)

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    fechamento em si e no gnero, onde as referncias alheias vo ser fundamentalmente outros musicais e a prpria obra de Demy (h uma rpida meno a dois personagens secundrios de Lola).

    Produccin de pelculas: desde Lola, la intriga es autorreferencial y se da como algo que se re-produce. Luego no resultar ms que un juego (Los paraguas de Cherburgo, Las seoritas de Rochefort) instaurar un circuito cerrado de referen-cias en el que cualquier desviacin est concebida como una variante, en el que lo Mismo no cesa de plantearse de nuevo.6 (Daney, 2003, 135)

    Mas voltemos melancolia: esta, provavelmente, surja paradoxalmente do exces-so de artif cios utilizados para expressar sentimentos. Tudo no filme parece existir para negar a melancolia: os grandes espaos abertos, a Place Colbert, em Rochefort, com suas fachadas em tons pastis, marinheiros, bailarinas, crianas que danam festiva-mente, a combinao de cores. Inevitavelmente, porm, esta irrompe, afinal ela que est na raiz de toda a movimentao dos personagens, de todos os impulsos de pintar a cidade, de todo o desejo pelo desconhecido (o ideal feminino de Maxence, o poeta de Delphine, o estrangeiro de Solange) e pelo que foi perdido no passado (Madame Garnier, Monsieur Dame). Daney rejeita a chave da nostalgia para pensar o cinema de Demy, contudo ela, de alguma maneira furtiva e insidiosa, esteja a nesse amontoado de artif cios, de subterfgios meticulosamente elaborados para evitar a melancolia: as-sim, no teramos a a nostalgia por um lugar e um tempo realmente existentes, muito pelo contrrio, esta seria a invocao persistente de um protesto contra a contingncia, seria, pois, voltando a Dyer, a expresso mais pura da propenso utpica do musical.

    A maneira oblqua e ao mesmo tempo muito assertiva atravs da qual Duas garotas conforma as convenes do gnero musical pode nos fornecer mais pistas sobre as relaes contraditrias, complexas e sutis do cinema de Demy com a tradio. H um enorme respeito e uma fascinao quase infantil com essa tradio, e simul-taneamente uma alegre irreverncia e o desejo de experimentao com suas formas.

    Como j dissemos anteriormente, Duas garotas romnticas contou com a mis--en-musique de Legrand, compondo melodias para letras que citam Mozart, Stra-

    6 Produo de filmes: desde Lola, a trama auto-referencial e dada como algo que se re-produz. Logo no ser mais que um jogo (O Guarda-chuvas do amor, Duas garotas romnticas) instaurar um circuito fechado de referncias no qual qualquer desvio est concebido como uma variante onde o Mesmo no1 cessa de se apresentar. (traduo nossa)

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    vinsky, Bach, Duke Ellington, Louis Armstrong, Count Basie e o prprio Legrand, de-lineando uma trilha que mescla momentos intensa alegria (Chanson des jumelles, Nous voyageons de ville em ville, Chanson dum jour dt, entre outras) e fervor melanclico (Chanson de Maxence, Chanson de Delphine, Chanson de Simon, entre outras), che-gando a incluir duas bizarras e relativamente alegres canes sobre uma mulher morta a machadadas. Se neste filme j no se utiliza o recurso dos dilogos inteiramente musicados, vamos ver a instituio de outros dispositivos de relevo que terminam por constituir uma estrutura rgida e uma forma singular (ainda que calcada na tradio e numa homenagem ao gnero), como a definio de uma melodia especfica para cada um dos trs casais do filme (Delphine/Maxence, Yvonne/Simon e Solange/Andy); a composio de todas as letras em versos alexandrinos (contando com a cena do jantar na qual os versos so recitados em lugar do canto); a insistente sobreposio de n-meros de dana e aes corriqueiras no mesmo quadro; a disposio espacial (tanto urbana, como dos interiores) determinada pela combinao das cores e por uma intri-cada geometria. Esse conjunto de artif cios meticulosamente armado para dar conta dos encontros e desencontros, para orquestrar o acaso e domar o tempo a partir de uma vistosa e barulhenta utopia.

    Luta de classes, libreto de pera e papel de parede

    Une Chambre en ville o antepenltimo longa-metragem de Demy e um dos poucos filmes do final de sua carreira a obter reconhecimento da crtica, ainda que no tenha sido bem sucedido nas bilheterias. Como Os guarda-chuvas inteiramente cantado e investe, como alis toda a obra de Demy, nas mincias de cenrios, guarda-roupas e mise-en-scene na construo de um mundo que paralelamente fechado e realista, artificial e trivial, fabuloso e verdadeiro.

    Sem a leveza jazzstica de Legrand na composio musical, Une Chambre en ville vai ser estruturado musicalmente como uma pera popular. Mas popular apenas no sentido de que no estamos diante de uma pea estritamente erudita. A trilha de Michel Colombier bem mais austera, muito mais dura, mais escura, mais sombria, buscando equilibrar um mundo de total incongruncia, dividido entre o amor sublime (seja o da ingnua Violette, seja o dos intensamente apaixonados Edith e Franois) e a violncia (f sica e espiritual, venha ela dos preconceitos de Madame Langlois, da sexu-alidade perversa de Edith, das frustraes de Edmond ou das armas da polcia). Assim, Une Chambre en ville teria que necessariamente deixar de lado o esquema dos musi-

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    cais (e seus redutos utpicos tambm) para abraar integralmente o libreto operstico e da tragdia clssica mesmo sem ter que abandonar Hollywood por completo, j que incorpora preciso e o controle na combinao das cores (mais intensas e mais escuras que nos filmes precedentes) e certa simplicidade maniquesta dos melodramas dos anos 50 (perodo no qual se desenrola o filme).

    But the simple material is not played simplistically: though Demy offers melo-dramatic figures of good (the innocent girl friend) and evil (Sandas husband, the cruel owner of a small electronics shop, played with operatic fury by Michel Piccoli), the emotional center of the film is an apparently marginal figure, the landlady, magnificently incarnated by Danielle Darrieux, who must witness the conflict, divided between her affection for Berry and her love for her daughter, between the romantic fulfillment that Berry promises and the financial security provided by Piccoli. All of the expressive tensions of Demys cinema are focused on her: a sober acceptance of reality undermined by a yearning for the abso-lute, an epiphanic romanticism in tragic collision with incontrovertible facts.7 (Rosenbaum, 1992)

    Essa espcie de foco na personagem de Darrieux tambm representa uma acen-tuao, um aprofundamento do tema da luta de classes que j havia sido explorado fartamente por Demy no apenas em Lola e Os guarda-chuvas, mas principalmente em The Pied Piper (o musical de 1972 que Demy realizou na Inglaterra, com trilha so-nora do cantor pop Donovan). Pois, se Une Chambre inscreve sua narrativa a partir da greve real testemunhada por um jovem Demy em Nantes, na verdade seu cerne no a militncia de Franois (embora seu enredo no possa precindir dela), nem a crnica documental dos eventos de 1955. Demy usa o real como uma malha para tecer as linhas do seu melodrama, que depende fudamentalmente da tenso entre Madame

    7 Mas esse material simples no trabalhado de forma simplista: embora Demy oferea figuras melodramticas do bem (a namorada inocente) e do mal (o marido de Sanda, o dono cruel de uma loja de artigos eletrnicos, interpretado com fria operstica por Michel Piccoli), o centro emocional do filme uma figura aparentemente marginal, a dona da casa, magnificamente encarnada por Danielle Darrieux, que testemunha o conflito, dividida entre sua afeio por Berry e seu amor por sua filha, entre a satisfao romntica que promete Berry e a segurana financeira representada por Piccoli . Todas as tenses expressivas do cinema de Demy esto focados nela: a aceitao sbria da realidade minada por um anseio pelo absoluto, um romantismo epifnico em trgica coliso com os fatos incontroversos.

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    Langlois (com toda a sua ambiguidade) e Franois, como, respectivamente, metforas da burguesia decadente e da classe operria.

    O choque entre o realismo (a realidade da cidade de Nantes, da greve de 1955, da gravidez indesejada de Violette, da impotncia de Edmond) e o artif cio excessivo (a msica pesada de Colombier, a mis-en-scne operstica de ambos os suicdios do filme, a nudez sob o casaco de vison de Edith, o dcor destacado, os papis de parede quase protagonistas nas cenas dos quartos na verdade, so dois, um quarto na casa de Madame Langlois, outro no hotel barato onde os amantes consumam sua paixo) desarticula e desestabiliza os efeitos de real pressupostos num plot como este. Tal embate o que pe a nu o dispositivo cinematogrfico, sem, contudo, descart-lo, ou seja, sem descartar a iluso, sem abandonar o artif cio. O que talvez, alis, resuma de modo sinttico o cinema de Demy: filmes imbudos de artif cio, de ilusionismo, mas que esto permanentemente pondo prova a prpria ideia de ilusionismo.

    A revelao dos artif cios de Une Chambre vem atravs de uma chave bem distinta dos filmes anteriormente comentados. Em ambos exemplos, o carter en--chant institua a utopia provinciana, deixava no ar uma doce melancolia e certo charme juvenil. Neste ltimo filme, quando no o francamente grotesco que estabe-lece o tom (sobretudo a partir da crueldade de Edmond, da perverso de Edith ou da decadncia de Madame Langlois), a inclinao profundamente trgica e ao mesmo tempo banal da farsa negra e bizarra que se impe. O encanto se quebrou, o musical como utopia mesmo a sempre ambivalente utopia de Demy j no mais possvel (talvez Demy tente recuperar um pouco do en-chant original no seu ltimo filme, Trois Places por le 26, com Yves Montand). Trs dos protagonistas morrem, dois deles se matam por amor.

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    Links para algumas cenas mencionadas

    http://www.youtube.com/watch?v=LJytqUskcnk (Lola)http://www.youtube.com/watch?v=OD3xCXyvv4c (Model Shop)http://www.youtube.com/watch?v=rw7sCNtYOd0 (Pele de asno)http://www.youtube.com/watch?v=3JS4JMY0JWM (Os guarda-chuvas do amor)http://www.youtube.com/watch?v=-5PR4pE2r6E (Os guarda-chuvas do amor)http://www.youtube.com/watch?v=lLfviMasZ7U (Os guarda-chuvas do amor)http://www.youtube.com/watch?v=5uOMtp57CIM (Duas garotas romnticas)http://www.youtube.com/watch?v=mwS_f5QgZKY (Duas garotas romnticas)http://www.youtube.com/watch?v=kKpFXLQN2sI (Duas garotas romnticas)http://www.youtube.com/watch?v=YIqNbwLvfKM (Duas garotas romnticas)http://www.youtube.com/watch?v=TjEK1K1Je7E&feature=related (um quarto na cidade)http://www.youtube.com/watch?v=Z9VfW7Wsi6Y (um quarto na cidade)http://www.youtube.com/watch?v=_YFE2xtSpKg (um quarto na cidade)http://www.youtube.com/watch?v=mr1etRu-84w (um quarto na cidade)http://www.youtube.com/watch?v=Rh1gc_am4b0 (um quarto na cidade)

    Referncias biblogrficas

    Daney, Serge. Piel de Asno de Jacques Demy in De Baecque, Antoine (org.). La poltica de los autores. Manifiestos de una generacin de cinfilos. Barcelona: Paids, 2003, 133-137.

    _____.Ponto de vista, Dicionrios de Cinema, 29 de setembro de 2009. http://dicionariosdecinema.blogspot.com/2009/09/ponto-de-vista-por-serge-daney.html (acessado em 29 de maio de 2011)

    Dyer, Richard. Only Entertainment. Londres/Nova York: Routledge, 2002. 2 ed. Rancire, Jacques. The emancipated spectator. Londres/Nova York: Verso, 2009. Rosenbaum, Jonathan. A Room in Town in Jonathan Rosebaum.com, 1992. http://www.

    jonathanrosenbaum.com/?p=10608 (acessado em 30 de maio de 2011) Stilwell, Robynn J.. Le Demy-monde: the Bewitched, Bewixt and Between French Musical in Canon,

    Steve e Dauncey, Hugh (orgs.). Popular Music in France. From Chanson to Techno: Culture, Identity and Society. Burlington/Aldershot: Ashgate, 2003, 123- 138.

    Vecchiali, Paul. Los paraguas de Cherburgo, de Jacques Demy in De Baecque, Antoine e Tesson, Charles(orgs.). Una cinefilia a contracorriente. La Nouvelle Vague y el gusto por el cine americano. Barcelona: Paids, 2004, 119-123.