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ANEMIA ANCILOSTOMÓTICA: ESTUDO DA FISIOPATOLOGIA Victório Maspes * Michiru Tamigaki ** MASPES, V. & TAMIGAKI, M. Anemia ancilostomótica: estudo da fisiopatologia. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 15:611-22, 1981. RESUMO: Foram estudados 17 casos de ancilostomose e determinados alguns parâmetros hematológicos como: dosagem de hemoglobina, do ferro sérico e da transferrina, contagem de hemácias, hematócrito, volume cor- puscular médio (VCM) e hemoglobina corpuscular média (HCM). O estudo incluiu também a obtenção de alguns dados eritrocinéticos, como a deter- minação da velocidade de decaimento do ferro plasmático (T 1V2 do 59 Fe) e da incorporação do ferro à hemoglobina. O estudo radioisotópico permitiu ainda determinar o volume de sangue e a quantidade de hemoglobina perdida nas fezes, bem como o teor de ferro reabsorvido dessa hemoglobina. Es- tabeleceram também o grau de infecção através da contagem de ovos e de vermes nas fezes. Os doentes não apresentaram evidente alteração nutricional. A carência de ferro foi o fator comum a todos os casos que exibiram anemia, constituindo a base fisiopatológica da anemia ancilosto- mótica. O verme fixado à mucosa duodenal suga o sangue do hospedeiro e esta espoliação de sangue a longo prazo provoca a anemia. O volume de sangue perdido é geralmente proporcional ao grau de infecção, mas a quan- tidade de hemoglobina perdida mostrou ser independente do volume de sangue espoliado. A reabsorção de grande parte do ferro da hemoglobina perdida na luz intestinal concorre para que a anemia se estabeleça mais tardiamente que em outras hemorragias como a vaginal. Os indivíduos anê- micos foram submetidos a transfusões de sangue e com isso apresentaram melhora clínica e laboratorial, imediata mas temporária. A cura clínica foi estabelecida somente após tratamento adequado com vermífugos. UNITERMOS: Ancilostomose. Anemia. Hematologia. * Do Serviço de Hematologia da Faculdade de Medicina da USP Av. Dr. Arnaldo, 455 _ 01246 — São Paulo, SP — Brasil; do Laboratório de Hematologia da Unidade de Ensino e Pesquisa do Hospital Universitário. Caixa Postal 20876 01000 — São Paulo, SP — Brasil. ** Do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP — Av. Dr. Arnaldo, 455 01246 — São Paulo, SP — Brasil. INTRODUÇÃO Dentre os primeiros trabalhos da literatura nacional que abordaram a anemia ancilosto- mótica, na década de 30, sobressaíram os de Osvaldo Cruz 3, 4, 5, 6, 7 . Este renomado pesquisador efetuou vários estudos em indi- víduos ancilostomóticos, e determinou as condições sócio-econômicas e nutricionais. Correlacionou então a anemia ancilostomó- tica com o estado nutricional, de vez que eram indivíduos portadores de grande para- sitose e de deficiente estado nutricional. Os métodos mais recentes de pesquisa, entre- tanto, trouxeram importantes contribuições para a elucidação da fisiopatologia da anemia ancilostomótica. Desse modo, esses novos conhecimentos vieram mostrar que a

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ANEMIA ANCILOSTOMÓTICA: ESTUDO DA FISIOPATOLOGIA

Victório Maspes *Michiru Tamigaki **

MASPES, V. & TAMIGAKI, M. Anemia ancilostomótica: estudo da fisiopatologia. Rev.Saúde públ., S. Paulo, 15:611-22, 1981.

RESUMO: Foram estudados 17 casos de ancilostomose e determinadosalguns parâmetros hematológicos como: dosagem de hemoglobina, do ferrosérico e da transferrina, contagem de hemácias, hematócrito, volume cor-puscular médio (VCM) e hemoglobina corpuscular média (HCM). O estudoincluiu também a obtenção de alguns dados eritrocinéticos, como a deter-minação da velocidade de decaimento do ferro plasmático (T1V2 do 59Fe) eda incorporação do ferro à hemoglobina. O estudo radioisotópico permitiuainda determinar o volume de sangue e a quantidade de hemoglobina perdidanas fezes, bem como o teor de ferro reabsorvido dessa hemoglobina. Es-tabeleceram também o grau de infecção através da contagem de ovos ede vermes nas fezes. Os doentes não apresentaram evidente alteraçãonutricional. A carência de ferro foi o fator comum a todos os casos queexibiram anemia, constituindo a base fisiopatológica da anemia ancilosto-mótica. O verme fixado à mucosa duodenal suga o sangue do hospedeiroe esta espoliação de sangue a longo prazo provoca a anemia. O volume desangue perdido é geralmente proporcional ao grau de infecção, mas a quan-tidade de hemoglobina perdida mostrou ser independente do volume desangue espoliado. A reabsorção de grande parte do ferro da hemoglobinaperdida na luz intestinal concorre para que a anemia se estabeleça maistardiamente que em outras hemorragias como a vaginal. Os indivíduos anê-micos foram submetidos a transfusões de sangue e com isso apresentarammelhora clínica e laboratorial, imediata mas temporária. A cura clínicafoi estabelecida somente após tratamento adequado com vermífugos.

UNITERMOS: Ancilostomose. Anemia. Hematologia.

* Do Serviço de Hematologia da Faculdade de Medicina da USP — Av. Dr. Arnaldo, 455_ 01246 — São Paulo, SP — Brasil; do Laboratório de Hematologia da Unidade de Ensinoe Pesquisa do Hospital Universitário. Caixa Postal 20876 — 01000 — São Paulo, SP — Brasil.

* * Do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP — Av. Dr. Arnaldo,455 — 01246 — São Paulo, SP — Brasil.

INTRODUÇÃO

Dentre os primeiros trabalhos da l i teraturanacional que abordaram a anemia ancilosto-mótica, na década de 30, sobressaíram osde Osvaldo Cruz 3, 4, 5, 6, 7. Este renomadopesquisador efetuou vários estudos em indi-víduos ancilostomóticos, e determinou ascondições sócio-econômicas e nutricionais.Correlacionou então a anemia ancilostomó-

tica com o estado nutricional, de vez queeram indivíduos portadores de grande para-sitose e de deficiente estado nutricional. Osmétodos mais recentes de pesquisa, entre-tanto, trouxeram importantes contribuiçõespara a elucidação da fisiopatologia daanemia ancilostomótica. Desse modo, essesnovos conhecimentos vieram mostrar que a

base fisiopatológica das anemias ancilosto-mótica e nu t r i c iona l não são coincidentes.

A anemia nu t r i c iona l apresenta mecanismofisiopatológico diverso do da anemia anci-lostomótica. Na ancilostomose, a anemiadecorre essencialmente da espoliação defe r ro , e confunde-se com qualquer outraanemia ferropênica. Esta anemia dependequase que exclusivamente da carência def e r r o ocasionada pelas perdas sangüíneas,o que não ocorre na anemia nu t r ic iona l .Nesta ú l t ima , a def ic iência proteica podeconst i tuir um dos aspectos fisiopatológicosda anemia. Por outro lado, a análise dosdados de eritrocinese mostra uma grandedef i c i ênc ia no transporte de oxigênio naanemia ancilostomótica, fato esse que nãofoi observado por Viteri na anemia do des-nut r ido proteico-energético 19.

A d i f i cu ldade de encontrar-se um indi-víduo com desnutrição proteico-energéticapura em nosso meio ainda induz a mui taconfusão no estudo da f is iopatologia dasduas entidades. Isto ocorre porque, em vir-tude das más condições sócio-econômicase de higiene, os desnutr idos são tambémparasitados.

O presente t rabalho visa con t r ibu i r parao estudo fisiopatológico do ind iv íduo porta-dor de anemia ancilostomótica. Assim, foramestudados pacientes portadores de infecçãoancilostomótica, a maior ia dos quais comsevera anemia, mas sem desnutrição pro-teico-energética evidente. Os seguintes testesforam efetuados: dosagem de proteínasséricas, do ferro sérico, da transferrina eda hemoglobina no sangue; determinaçãodo humatócrito, contagem das hemácias, nosangue, cálculo do volume corpuscular médio(VCM) e da hemoglobina corpuscular média(HCM); determinação do volume de sangueperdido nas fezes, da quantidade de hemo-globina perdida nas fezes e do fer ro reabsor-vido dessa hemoglobina; determinação davelocidade de decaimento do fer ro plasmá-tico (T 1/2 de 59Fe) e da incorporação do f e r r oà hemoglobina. Estudou-se ainda o grau deinfecção ancilostomótica através da contagemde ovos e de vermes nas fezes. Todos os

pacientes anêmicos foram t r ans fund idos com1.000 ml a 2.000 ml de sangue, de acordocom o grau de anemia.

MATERIAL E MÉTODOS

Foram estudados 17 doentes portadoresde ancilostomíase, internados no Serviço deHematologia do Hospital das Clínicas daFaculdade de Medicina da USP. Do total,15 casos eram portadores de acentuado e osdois restantes, de leve grau de infecção.Houve casos de associação com outrasparasitoses como ascaríase, tr icuríase egiardíase. Nenhum dos casos apresentousitomas ou dados laboratoriais que suge-rissem desnutrição proteico-energética.

A hemoglobina foi dosada pelo métododa oxihemoglobina em meio alcalino

O hematócrito foi de terminado pela téc-nica do microhematócrito.

A contagem de hemácias foi e fe tuada emcâmara de Neubauer .

O ferro sérico e a transferrina total foramdosados pelo método de Ramsay mod i f i -cado 16.

As proteínas totais séricas foram dosadaspelo método de Gornall e col.11, e o fracio-namento albumina-globulina foi efetuado pelaprecipitação das g lobul inas com sul f i to desódio a 2 1 % .

A velocidade de decaimento do ferro plas-mático (T 1/2 de 59Fe) e a incorporação doferro à hemoglobina foram calculadas se-gundo técnica descrita por Maspes e col.14.

A determinação da quantidade de sangueperdido nas fezes obedeceu aos seguintespassos: as hemácias do doente foram mar-cadas com o radiocromato de sódio (51 Cr),acrescentando-se o material radioativo, emdoses adequadas, a 20 ml de sangue venosocolhido com anticoagulante. Após 30 min deincubação no meio ambiente, o sangue mar-cado era reinjetado. O rad iofer ro (õ9 Fe)foi também injetado, em doses adequadas,7 dias antes do radiocromo pois, nessesdoentes, que são carentes de f e r ro , esse

período de tempo é suficiente para que hajaincorporação total do radioferro . Esses doisprocedimentos obedeceram à técnica des-crita por Maspes e col.14. Dois dias apósa marcação com o radiocromo, iniciava-sea coleta de fezes, administrando-se aodoente 2 g de carmim, em cápsulas gelati-nosas, e recomendando-se evacuar em reci-piente adequado. Tão logo as fezes se tor-nassem avermelhadas, as mesmas eram colo-cadas em um pote de 2kg de capacidade,previamente tarado. Esta colheita continuavamesmo após a normalização da cor dasfezes. Quatro a seis dias após, à mesmahora da ingestão do carmim inicial, eramadministradas ao doente outras 2 g de car-mim, recomendando-se observar as fezes apart ir desse momento. Para tal, o doentepassava a evacuar normalmente em outrorecipiente, e a colocar as fezes no pote atéque o material se tornasse avermelhado,quando então deveria ser desprezado.O pote era pesado a seguir, a fim de cal-cular o total das fezes nos 4 a 6 dias. Emseguida, o material do pote era homoge-neizado, e uma amostra de cerca de 4 gera colocada em um tubo de contagem deradioatividade. Este tubo, que havia sidopesado anteriormente, era novamente pesadopara obter-se o peso das fezes nele colocado.A seguir, o tubo era centrifugado, paraequalizar a geometria das medidas deradiotividade. Durante esse período, o doenteera mantido em regime alimentar pobre emresíduos. Além disso, 2 g de cascara sagradaeram administradas todas as noites, com ointuito de evitar a constipação intestinal eo endurecimento das fezes.

Amostras de sangue eram colhidas comanticoagulante 24 h antes do início da coletade fezes, além de 2 a 3 amostras duranteo período de coleta. Essas amostras eramlisadas com saponina, e de cada amostraum volume de 4 ml era colocado em tubode contagem. A medida da radioatividadedessas amostras tornou possível a obtençãode uma curva, com a qual se calculou aatividade média do sangue no período decoleta das fezes.

As contagens de radioatividade dasamostras eram efetuadas num mesmo dia,a fim de evitar o cálculo do decaimentofísico.

Sabe-se que o cromo injetado e perdidonas fezes não é reabsorvido2 , 8. A quantidadede sangue perdida nas fezes por dia foientão calculada como se segue:

Sendo:Sp = sangue perdido nas fezes por dia

em mil i l i t ros.51 Crf = contagens por minuto do 51 Cr por

grama de fezes.51 Crs = contagens por minuto do 51 Cr por

mil i l i t ro de sangue.P = Peso médio das fezes de 24 h.

A quantidade total de hemoglobina perdidapor dia pela via digestiva será:

Sendo:

Hp = hemoglobina total perdida pela viadigestiva em gramas.

Hb = concentração de hemoglobina nosangue em gramas por dl.

O ferro total da hemoglobina perdida pordia pela via digestiva foi calculado atravésda seguinte fó rmu la :

Sendo:

Hfe = fe r ro total da hemoglobina perdidapor dia.

3,35 = teor de ferro em mg por grama dehemoblobina.

A atividade do 59 Fe por grama de hemo-globina no sangue foi calculada pelaseguinte fó rmu la :

Sendo:

H59Fe = número de c . p . m . de 59Fe porgrama de hemoglobina.

S59Fe = número de c . p . m . por ml desangue.

A atividade radioativa do ferro nasfezes de 24 h será:

Sendo:59Fet — número de c . p . m . de 59Fe nas

fezes de 24 h.59Fef = número de c . p . m . de 59Fe por

grama de fezes.

Calcula-se a atividade radioativa do ferroda hemoglobina total perdida por dia nasfezes através da seguinte fórmula:

Sendo:

H59Fet = número de c . p . m . do 59Fe totalda hemoglobina perdida pordia.

Portanto, a percentagem do ferro dahemoglobina perdida e eliminada com asfezes de 24 h é calculada como se segue:

Finalmente, o ferro da hemoglobinaperdido e reabsorvido por dia será:

Sendo:

Fer = ferro hemoglobínico reabsorvidoem mg por dia.

Portanto, a percentagem do ferro hemo-globínico reabsorvido por dia será:

(9) Fer% = 100 — Fe%

Para a contagem de ovos nas fezes de24 h utilizou-se o método de Ferreira 9,10,13.

A contagem de vermes foi efetuada atravésdo método de Amato Neto 1, após doseadequada de tetracloroetileno.

RESULTADOS

A Tabela 1 mostra a idade dos 17 doentesestudados, que variou de 10 a 35 anos.Sete dos casos pertenciam ao sexo mas-culino e 10 casos ao sexo feminino. O pesocorporal dos doentes variou de 25 a 59 kg.

Seis casos referiram que os sintomas deanemia, como cansaço fácil, palpitações efraqueza geral, se iniciaram havia menosde 1 ano, e seis casos, entre 1 a 5 anos,enquanto nos restantes cinco casos ossintomas surgiram mais de 5 anos antesda internação (Tabela 1).

Em dois casos (no 6 e no 9) constatou-sea presença de esplenomegalia na ocasião doexame clínico, a qual foi mais tarde expli-cada pela presença de Schistosoma mansoni,cujos ovos foram identificados somentequando se procedeu à contagem de ovosnas fezes (Tabela 1).

A Tabela 2 mostra as taxas de hemo-globina e de hematócrito, determinadas noprimeiro atendimento aos 17 doentes. Osresultados variaram de 1,8 g/dl a 13,0 g/dlde hemoglobina e de 7% a 41% de hemató-crito. Na mesma Tabela, observa-se que avariação do no de eritrocitos, em 15 casos,foi de 0,8 X 1 0 6 / m m 3 a 4,2 X 10 6 /mm 3 ,enquanto a hemoglobina corpuscular médiavariou de 16pg a 30 pg, e o volume corpus-cular médio, de 60 u3a 97 u3.

A Tabela 3 mostra que a taxa de hemo-globina dos 17 casos, após internação,variou de 2,3 g/dl a 13,0 g/dl.

Quanto às proteínas totais, houve umavariação de 5,8 g/dl a 9,0 g/dl, como constana Tabela 3, enquanto a albúmina sérica

mostrou-se variável de 2,6 g/dl a 6,3 g/dle as globulinas séricas, de 1,5 g/dl a 3,7g/dl, nos 17 casos.

O ferro sérico, nos 17 casos, apresentouuma variação de 18 ug/dl a 155 ug/dl,enquanto a transferrina total mostrou umavariação de 272 ug/dl a 499 ug/dl, em 14casos (Tabela 3).

Os valores do T1/2 de 59 Fe e da incorpo-ração do ferro à hemoglobina foram deter-minados em 8 casos. A variação do primeirofoi de 13 a 41 min, e a da incorporaçãodo ferro foi de 80 a 100% (Tabela 4).

Pode-se observar ainda na Tabela 4que a hemorragia intestinal nos 17 casosmostrou-se variável de 0,2 ml a 199,4ml desangue por dia, e a perda hemoglobínicaintestinal variou de 0,03 g/dia a 5,4 g/dia.O ferro total perdido na hemorragia intes-tinal mostrou uma variação de 0,1 mg/dia a18,1 mg/dia. Quanto ao ferro reabsorvidoda hemorragia, determinado nesses 8 casos,mostrou uma variação de 1,6 mg/dia a 11,9

mg/dia e, percentualmente, de 38 a 68%.Calculou-se também o ferro efetivamenteperdido nas fezes em 8 casos e que varioude 2,1 mg/dia a 6,2 mg/dia.

O número de ovos nas fezes, no períodode 24 h, determinado em 14 casos, mostrouuma variação de 75 X 10 3 a 12.200 X 103,enquanto o número de ovos por grama defezes variou de 0,6 X 103 a 120 X 103

(Tabela 5). O número de vermes varioude 15 a 2.655, em 11 casos (Tabela 5).

A Tabela 6 mostra que o volume desangue transfundido em 15 casos variou de1.000 ml a 2.000 ml.

DISCUSSÃO

Uma das condições que mais colaborampara confundir a anemia ancilostomóticacom a do desnutrido protéico-energético éa grande semelhança quanto ao aspectoclínico. O desenvolvimento físico e intelectualnão é normal, ou seja, há atraso no cresci-mento pondo-estatural e na escolaridade.

Na desnutrição proteico-energética, ossintomas clínicos devem-se à carência ali-mentar. Esta deficiência protéica afeta ocrescimento e, conseqüentemente, influi nofuncionamento do sistema nervoso, o queprejudica o desenvolvimento psíquico.

Na anemia ancilostomótica, a carência deferro conduz à deficiente produção de hemo-globina. Conseqüentemente, o transporte deoxigênio torna-se insuficiente. Desse modo,o organismo não pode sintetizar as proteínasnecessárias, em virtude da falta do elementomais importante no seu metabolismo, ooxigênio. Existe, portanto, uma deficiênciano transporte de oxigênio na anemia anci-lostomótica, que segundo Viteri1 9 não estápresente na anemia do desnutrido protéico-energético.

Nos casos deste estudo houve detecçãoclínica de deficiência no transporte deoxigênio, isto é, sintomas de fraqueza geralacompanhadas de cansaço fácil mas recupe-ração rápida. Este fato foi observado prin-cipalmente nos doentes mais jovens queconseguiam desenvolver boa atividade física,porém durante curto período de tempo.

Do ponto de vista laboratorial, a anemiaancilostomótica apresenta eritrócitos comhipocromia, microcitose e anisocitose acen-tuadas, e nos casos mais graves há nume-rosos poiquilocitos. Por outro lado, a"anemia" do desnutrido proteico-energéticoé normocítica e normocrômica, ou entãomoderadamente hipocrômica mas quasesempre normocítica. É notável também asdiferenças no grau de anemia. Esta é maisacentuada nos casos de ancilostomose, comofoi demonstrada por Marcondes e col.12. Noscasos deste estudo, cerca de metade dospacientes anêmicos apresentaram microci-tose, enquanto a hipocromia estava presenteem 11 desses casos (Tabela 2). Quinze dos17 casos estudados apresentaram baixosníveis de hemoglobina (Tabelas 2 e 3).Houve, em alguns casos, grande modifica-ção na taxa de hemoglobina, conforme mos-tram as Tabelas 2 e 3. Isso porque emmuitos casos vários dias decorreram entreo atendimento ambulatorial e a internação.

Durante esse intervalo de tempo, algunscasos mostraram piora do estado clínico,motivo pelo qual foram transfundidos (casosno 1, no 8 e no9). Apenas em um destescasos a anemia não foi conseqüente à espo-liação de sangue pelos vermes mas sim àsmetrorragias (caso no 16). Estes mesmos15 casos foram submetidos à transfusão de1.000 a 2.000 ml de sangue em 48 h (Tabela6). Houve elevação do teor de hemoglobina aníveis normais ou próximos do normal(Tabela 6) e, do ponto de vista clínico,os doentes transfundidos mostraram acen-tuada melhora ou mesmo cura dos sintomas.Entretanto, na carência proteico-energética,os resultados das transfusões são bemdiversos: geralmente não há melhora doquadro clínico-laboratorial e, por vezes, aocontrário, ocorre agravamento do estadogeral, em virtude da repercussão no setorcirculatório.

A grande diferença entre a anemia dodesnutrido e a do ancilostomótico reside nomecanismo fisiopatológico. Na anemia an-cilostomótica, ocorre espoliação de sanguepelo verme fixado na mucosa duodenal. Osancilostomídeos mudam freqüentemente oseu ponto de fixação para a sucção desangue, e isto determina múltiplas lesõesna mucosa duodenal. A cicatrização dessaslesões condiciona o gradual desaparecimentodas pregas da mucosa17. Desse modo, aárea de absorção do ferro ingerido torna-selimitada, o que agrava a carência dessemetal no organismo. O verme não acarretaalteração no setor proteico do hospedeiro,pois a quantidade de proteína espoliada émuito pequena. Nos casos deste trabalho,apenas um mostrou hipoalbuminemia (casono 5) (Tabela 3).

Estudos hemodinâmicos, como a eritro-cinese, contribuem para o melhor conheci-mento da fisiopatologia da anemia ancilos-tomótica. Assim, o "turnover" do ferroplasmático e eritrocitário é muito rápidona anemia ancilostomótica15. Outrossim, astaxas de ferro plasmático mostram-se muitobaixas na anemia ancilostomótica, enquantonos desnutridos essas taxas apresentam-se

dentro dos limites normais, como demonstraViteri 19.

O teor de fe r ro plasmático mostrou-sebaixo em todos os casos, exceto no casono 17. Este caso era portador de leve graude parasitose e de leve espoliação hemor-rágica, mas a auto-medicação à base deferro provocou a moderada elevação dofer ro plasmático (Tabela 3). Todos oscasos submetidos à eritrocinese mostraramvalores de T1/2 de 59 Fe abaixo do normal ,o que indica um "turnover" de ferro plas-mático e eri trocitário mais rápido que onormal. Além disso, a incorporação do fe r roà hemoglobina foi máxima em 6 casos equase total nos outros dois casos.

As perdas de sangue intestinal provocadaspela infecção ancilostomótica foram volu-mosas em alguns casos, como o no 5 (199ml por d ia ) , e geralmente foram proporcio-nais ao grau de infecção (Tabelas 4 e 5).Deve-se levar em consideração que as con-dições hemostáticas do indivíduo podemi n f l u i r no volume espoliado. Pode-se notarcomo esses volumes de sangue podem atingircif ras elevadas, em relação à volemia, quandose comparam os casos no 2 e no 7.

O caso no 2 é uma criança de 25 kg depeso corporal que apresentou perda desangue diária de 23,7 ml, e o caso no 7 éde um adulto de 55 kg, cujo volume desangue perdido foi quase equivalente (22,0ml por dia) ao do caso no 2 (Tabelas 1e 4). O caso no 7, que havia sido trans-fundido antes da internação, e porisso nãomostrava anemia (Tabelas 2 e 3), manteve-seem estado de equilíbrio hematimétricodurante o decorrer do estudo. Nos casosno 16 e no 17, a perda hemorrágica foimuito pequena, o que se explica pelopequeno grau de infecção.

Pode-se notar, na Tabela 4, que, emboraa perda de sangue fosse das menores (22,0ml por dia) , a perda de homoglobina foiintermediária (2,3 g/dia) no caso no 7, emcomparação com os demais casos. Nos casosno 12 e 15 observa-se que os teores dehemoglobina perdida foram equivalentes,mas o volume de sangue perdido nas fezes

foi quase o dobro do 1o em relação ao2o caso. Por outro lado, a taxa de hemo-globina no sangue deste último caso mos-trou-se maior (6,9g/dl) que o dobro da dolo (2,8g/dl) (Tabela 3). Isso mostra quea patogenia da infecção ancilostomóticafundamenta-se no conteúdo em hemoglobinae não no volume de sangue sugado do indi-víduo 18.

Nota-se também que, para contrabalançara perda hemorrágica, todos os doentesreabsorveram considerável quantidade dofer ro perdido na hemorragia intestinal(Tabela 4). Desse modo, o ferro efetiva-mente perdido nas fezes foi bem menorque o total contido no volume de sangueperdido (Tabela 4). Apenas o caso no 12mostrou reabsorção nula do fe r ro da hemor-ragia intestinal, por motivos que não seconseguiu determinar .

A reabsorção do ferro pela mucosa intes-tinal explica a diferença que existe entreas perdas hemorrágicas pela via digestivae as que ocorrem através de outras viascomo a vaginal. A evolução clínica, nestaúlt ima eventualidade, é mais rápida, emvirtude da impossibilidade de reabsorção doferro pela mucosa vaginal. É o que ocorreuno caso no 16, que apresentava metrorragias,embora a discreta infecção verminótica pro-vocasse pequena perda de sangue intestinal(Tabelas 4 e 5). As metrorragias, que nãoeram constantes nem tão volumosas comoas perdas de sangue intestinais dos demaiscasos, conduziu o doente à carência de fer romais rapidamente.

Ao f ina l do estudo, todos os casos foramsubmetidos a adequado tratamento antiver-minótico, o que permit iu a manutenção dacura clínica. No entanto, pôde-se observar,em estudo paralelo, que os doentes ancilos-tomóticos transfundidos, mas não tratadoscom vermífugos, permanecem longo períodode tempo sem anemia.

CONCLUSÕES

O estudo de 17 indivíduos parasitadoscom ancilostomídeos permitiu chegar àsseguintes conclusões:

1. Infecções de moderado a acentuado grauconduziram à anemia em 15 casos. Noscasos restantes, portadores de leve graude infecção, um deles não mostroualteração hematológica e o outro apre-sentou anemia como conseqüência demetrorragias.

2. O padrão proteico da anemia ancilos-tomótica mostrou-se normal, com exceçãode um caso que apresentou hipoalbumi-nemia.

3. A hipoferremia, ao lado da maior velo-cidade de renovação do ferro plasmático(T1/2 do 59 Fe) e da elevada incorpo-ração do ferro à hemoglobina, indicaque a carência de ferro foi a causa daanemia ancilostomótica.

4. A grosso modo, há relativa correspon-dência entre o grau de infecção e ovolume de sangue perdido.

5. Quanto mais anêmico o indivíduo para-sitado, maior é o volume de sangue

perdido nas fezes, pois o verme neces-sita tão somente da hemoglobina contidanesse volume.

6. O teor de hemoglobina e, portanto, defer ro perdido na hemorragia intestinal,foi muito grande nos casos de moderadoa elevado grau de infecção.

7. A reabsorção de considerável porçãodo fer ro da hemorragia intestinal atingiupercentuais variáveis entre 38% a 68%nos casos deste estudo. A reabsorçãode ferro, nessas condições, constituiuum mecanismo de defesa do organismocontra a rápida progressão da anemia.

8. A transfusão de sangue nos doentesanêmicos produziu melhora clínica elaboratorial imediata.

AGRADECIMENTOS

Ao Prof . Dr. Yaro Ribeiro Gandra, daFaculdade de Saúde Pública da USP, pelosvaliosos conselhos e sugestões.

MASPES, V. & TAMIGAKI, M. [Ancylostomotic anemia: a contribution to the studyof its physiopathology]. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 15:611-22, 1981.

ABSTRACT: Seventeen ancylostomotic patients was studied and severalhematological parameters: hemoglobin level, serum iron level and transferrin,erythrocyte count, hematocrit, mean corpuscular volume (VCM) and meancorpuscular hemoglobin (HCM) was established. This study also includedthe determination of several erythrokinetic data such as plasma iron turnoverand red cell iron turnover. Radioisothopic assays also permitted the estima-tion of blood volume and hemoglobin lost through feces, as well as theamount of iron absorbed from this hemoglobin. The authors also establishedthe intensity of the patient's infection by egg and worm counts. Thepatients presented no evident nutritional abnormality. Iron deficiency wasthe common factor found among those who had anemia, and it constitutesthe physiopathologic basis of ancylostomotic anemia. The worms fixed onthe intestinal epithelium suck the host's blood and this long-term bloodspoliation produces anemia. The volume of blood lost is generally propor-tional to the degree of infection, but the fall in the patient's hemoglobinlevel was found to be independent of the spoliated blood volume. The greatamount of iron which is absorved from the hemoglobin shed into thefeces contributes to the later establishment of anemia as compared to thatof other hemorrhages, as for instance, vaginal hemorrhages. The anemicpatients were submitted to blood transfusions and thereafter presented animmediate although temporary clinical and laboratorial improvement. Asteady clinical improvement, however, was established only after adequateworm therapy.

UNITERMS: Ancylostomiasis. Anemia. Hematology.

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Recebido para publicação em 30/04/1981Aprovado para publicação em 17/11/1981