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7/24/2019 ANDRADE, Luis Antônio (2010) Corporeidade, Cognição e Linguagem.pdf http://slidepdf.com/reader/full/andrade-luis-antonio-2010-corporeidade-cognicao-e-linguagempdf 1/14  33 Corporeidade, cognição e linguagem Corporeity, cognition and language Luiz Antonio Andrade a,   , Liliane Bels Reis b  e Beto Vianna c a, b Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil; c Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil Resumo Neste ensaio, propomos uma articulação entre os conceitos de corporeidade, cognição e linguagem, a partir de uma abordagem sistêmica tendo como principal referencial teórico as coerências explicativas da escola chilena da Biologia do Conhecer. Para tanto, tomamos como centrais as distinções entre o domínio da fisiologia e do comportamento, entre conhecer e conhecimento, propondo um conceito para este último, e entre domínio linguístico e linguagem, explicitando as consequências dessas distinções na descrição do viver e do humano. Dois resultados discerníveis desse imbrincamento dos conceitos, bem como das distinções propostas, são: a) a compreensão da cognição e dos processos relacionais co- ontogênicos (isto é, entre sistemas ontogênicos), tal como o domínio lingüístico), na dinâmica do vivo, em geral; e b) a compreensão do humano a partir de um modo de vida particular centrado na prática do linguajar e na co-construção do conhecimento. © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (3): 033-046. Palavras-chave: cognição; conhecer; conhecimento; linguagem; epistemologia; biologia do conhecer.  Abstract  In this essay we propose a link between the concepts of embodiment, cognition and language,  from the point of view of systems theory within the explanatory coherences of the Chilean school of Biology of Cognition. It is thus central to our discussion, the distinctions made between the domains of physiology and behavior, between knowing and knowledge, offering a concept for the last, and between the linguistic domain and language, making explicit the consequences of these distinctions in the description of the living and human beings. Two discernible results of this interweaving of concepts and the distinctions proposed are: a) the direct implication of knowing and the co-ontogenic relationships (i. e., between ontogenic systems), as it is the case of the linguistic domain, in the dynamics of the living in general; and b) to propose a distinction of the human being from a particular way of living based on the  practice of languaging and the co-construction of knowledge.  © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (3): 033-046.  Keywords : cognition, knowing; knowledge; language; epistemology; biology of cognition. Ensaio Ciências & Cognição 2010; Vol 15 (3): 033-046 < http://www.cienciasecognicao.org > © Ciências & Cognição Submetido em 07/10/2010 | Aceito em 05/12/2010 | ISSN 1806-5821 Publicado on line em 15 de agosto de 2010   E-mail para correspondência: E-mail: [email protected] .

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Corporeidade cogniccedilatildeo e linguagem

Corporeity cognition and language

Luiz Antonio Andradea Liliane Bels Reisb e Beto Viannac

a bUniversidade Federal Fluminense (UFF) Niteroacutei Rio de Janeiro Brasil cUniversidadeFederal de Minas Gerais (UFMG) Belo Horizonte Minas Gerais Brasil

Resumo

Neste ensaio propomos uma articulaccedilatildeo entre os conceitos de corporeidade cogniccedilatildeo elinguagem a partir de uma abordagem sistecircmica tendo como principal referencial teoacuterico ascoerecircncias explicativas da escola chilena da Biologia do Conhecer Para tanto tomamos comocentrais as distinccedilotildees entre o domiacutenio da fisiologia e do comportamento entre conhecer econhecimento propondo um conceito para este uacuteltimo e entre domiacutenio linguiacutestico elinguagem explicitando as consequecircncias dessas distinccedilotildees na descriccedilatildeo do viver e dohumano Dois resultados discerniacuteveis desse imbrincamento dos conceitos bem como dasdistinccedilotildees propostas satildeo a) a compreensatildeo da cogniccedilatildeo e dos processos relacionais co-ontogecircnicos (isto eacute entre sistemas ontogecircnicos) tal como o domiacutenio linguumliacutestico) na dinacircmicado vivo em geral e b) a compreensatildeo do humano a partir de um modo de vida particular

centrado na praacutetica do linguajar e na co-construccedilatildeo do conhecimento copy Cien Cogn 2010Vol 15 (3) 033-046

Palavras-chave cogniccedilatildeo conhecer conhecimento linguagemepistemologia biologia do conhecer

Abstract

In this essay we propose a link between the concepts of embodiment cognition and language from the point of view of systems theory within the explanatory coherences of the Chileanschool of Biology of Cognition It is thus central to our discussion the distinctions madebetween the domains of physiology and behavior between knowing and knowledge offering a

concept for the last and between the linguistic domain and language making explicit theconsequences of these distinctions in the description of the living and human beings Twodiscernible results of this interweaving of concepts and the distinctions proposed are a) thedirect implication of knowing and the co-ontogenic relationships (i e between ontogenicsystems) as it is the case of the linguistic domain in the dynamics of the living in general andb) to propose a distinction of the human being from a particular way of living based on the

practice of languaging and the co-construction of knowledge copy Cien Cogn 2010 Vol 15 (3)033-046

Keywords cognition knowing knowledge language epistemology biologyof cognition

Ensaio

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1 Introduccedilatildeo

ldquoTu dizes eu e orgulhas-te desta palavra Mas haacute qualquer coisa de maior em que terecusas a acreditar eacute o teu corpo e a sua grande razatildeo ele natildeo diz Eu mas procede

como Eurdquo (Friedrich Nietzsche)

O principal objetivo deste ensaio eacute fazer uma articulaccedilatildeo entre os termos anunciados -corporeidade cogniccedilatildeo e linguagem ndash para no final dialogar com a ideia expressa na epiacutegrafesupracitada de autoria do grande filoacutesofo alematildeo Friedrich Nietzsche (2006 39)Apontado o objetivo e as questotildees para as quais dirigiremos nossa reflexatildeo iniciaremos pornos perguntar o que eacute cogniccedilatildeo

Para o Dicionaacuterio Aureacutelio da Liacutengua Portuguesa (Ferreira 1999) o termo cogniccedilatildeoassume os dois sentidos principais (A1) aquisiccedilatildeo de um conhecimento e (A2) conhecimentopercepccedilatildeo Estes mesmos sentidos aparecem tambeacutem no ldquoMerriam-Webster Dictionaryrdquo(1986) que considera cogniccedilatildeo o ldquoato ou processo de conhecer incluindo a consciecircncia e o

julgamento e tambeacutem o produto deste ato ndash o conhecimento (MW1)Uma definiccedilatildeo com maior abrangecircncia nos eacute oferecida por Vieira (2001 296) na

Enciclopeacutedia Einaudi Assim para este autor a ldquocogniccedilatildeo abrange um conjunto de processosque integrados ao niacutevel de centros nervosos permitem a um organismo animal orientar o seucomportamento de forma adaptativa perante as variaccedilotildees do ambiente em que se situardquo

Ainda que a definiccedilatildeo supracitada incorpore uma parcela significativa da escalazooloacutegica ndash os animais com centros nervosos - uma proposta ainda mais radical afirma que oconhecer pode ser extensivo agrave todos os seres vivos agrave toda escala bioloacutegica incluindoportanto os animais sem centros nervosos os vegetais e mesmo os seres unicelulareseucariotas e procariotas (Maturana e Varela 1990)

Fica evidente que a afirmaccedilatildeo proferida por estes uacuteltimos autores contraria de uma soacutevez o senso comum o conteuacutedo dos dicionaacuterios e a ideia jaacute muito estabelecida inclusive naacademia de que a cogniccedilatildeo estaacute associada agraves espeacutecies dotadas de centros nervosos (emespecial os organismos tradicionalmente conotados como ldquosuperioresrdquo em uma escala que seaproxima do humano) ou ainda associada agrave razatildeo e ao pensamento atributos tradicionais denossa proacutepria espeacutecie Sendo assim ao concordarmos que a cogniccedilatildeo pode ser estendida agravetodos os seres vivos (Andrade e Silva 2005a) somos convocados a propor uma boa

justificativa para essa posiccedilatildeo que esperamos compartilhar com vocecirc leitor com o convitepara que vocecirc tambeacutem possa aceitaacute-la

Como este ponto eacute fundamental para todo o raciociacutenio que faremos ao longo desteensaio apresentaremos os argumentos pausadamente com muitos exemplos esperando que

eles se tornem claros e aceitaacuteveis2 Sobre a cogniccedilatildeo e o conhecer

Quando nos encontramos com a pergunta sobre o conhecer (ou sobre a cogniccedilatildeo) navida cotidiana geralmente fazemos referecircncia agrave conduta adequada de um organismo em facede um contexto especificado por um observador ou por uma comunidade de observadores(Maturana 2001) Senatildeo vejamos

Exemplo 1 um professor quer aferir o conhecer dos seus estudantes O que ele fazResposta especifica um contexto de teste (prova teoacuterica eou praacutetica) e avalia a conduta(escrita oral comportamental) dos estudantes em face do contexto especificado por ele

(situaccedilatildeo de teste)

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Exemplo 2 um time contrata um jogador estrangeiro ateacute entatildeo completamentedesconhecido da torcida O estaacutedio estaacute lotado O que eacute que a torcida tem de observar parareconhecer se o novo jogador eacute bom (conhece sabe) de bola Resposta analisa a sua condutaem face do contexto do jogo entre as quatro linhas do gramado

Note que no primeiro exemplo o observador eacute uma uacutenica pessoa e o seu julgamentopoderaacute ser soberano se natildeo houver equiacutevocos eou reclamaccedilotildees generalizas caso em quepoderaacute haver um questionamento por parte dos estudantes e em certas situaccedilotildees ateacute aconvocaccedilatildeo de uma banca examinadora para referendar ou natildeo a correccedilatildeo do professor Noexemplo 2 a comunidade de observadores eacute composta por milhares de pessoas ou mesmo demilhotildees se o jogo for televisionado e portanto o julgamento sobre o desempenho do jogador- se ele eacute ruim razoaacutevel bom ou craque - dependeraacute de vaacuterios fatores dentre os quais aatuaccedilatildeo do atleta no campo as condiccedilotildees do jogo e tambeacutem o grau de conhecimento eexigecircncia do observador eou da comunidade de observadores em termos da arte futeboliacutestica

Tomando estes dois exemplos em conjunto gostariacuteamos de ressaltar que o conhecerenquanto comentaacuterio sobre uma conduta eacute relativo e portanto quanto maior o nuacutemero de

observadores e de comentaacuterios aumenta tambeacutem a chance de ocorrer divergecircnciasSe os exemplos e a argumentaccedilatildeo acima foi entendida e aceita fica evidente que a

questatildeo sobre o conhecer passa necessariamente pelas experiecircncias da vida cotidiana eportanto o que devemos explicar quando nos perguntamos sobre o conhecer eacute a experiecircncia -o experienciar ndash e eacute prontamente isso que vincula a questatildeo do conhecer agrave biologia Essavinculaccedilatildeo tem sido enfatizada de forma original por alguns autores (Piaget 1970 1975Maturana e Varela 1997) no entanto para o nosso propoacutesito neste ensaio eacute suficiente quefaccedilamos a seguinte pergunta cognitiva como o ser vivo se manteacutem vivo

Como eacute evidente a resposta para essa pergunta estaraacute sempre vinculada agrave biologiaporque qualquer que seja o domiacutenio especificado pelo observador ele estaraacute sempre fazendouma referecircncia ao viver e ao seguir vivendo de um ou outro organismo em face de umcontexto de um nicho

Nesta oacutetica podemos ampliar a definiccedilatildeo do conhecer para fora do acircmbito humano eassim aceitar que todos os organismos vivos atuais possuem uma conduta adequada aoscontextos (nichos) em que vivem e portanto estatildeo em ato contiacutenuo de conhecer o mundo emque vivem justificando-se assim o aforismo ldquoviver eacute conhecerrdquo anunciado pelosneurobioacutelogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (1990 1997)

Eacute precisamente este ldquose manter vivordquo em acoplamento estrutural com o meio queestamos conotando como o conhecer bioloacutegico Ou seja todo organismo vivo estaacute momentoa momento em ato contiacutenuo do conhecer

Assim natildeo devemos nos surpreender (exemplo 3) quando um paacutessaro mergulha para

capturar um peixe abaixo da linha drsquoaacutegua e mesmo sem conhecer a lei de refraccedilatildeo de Snell(n1middotsenθ1 = n2middotsenθ2) eacute bem sucedido em seu empreendimento E o peixe que conhecia omundo drsquoaacutegua eacute interrompido bruscamente no seu ato contiacutenuo de conhecer o mundo(drsquoaacutegua) perde o acoplamento estrutural com o seu meio e morre Nesse caso tanto o paacutessaroquanto o peixe conhecem o mundo em que vivem e podem morrer quando deixam de estar emato contiacutenuo de conhecer isto eacute quando perdem o acoplamento estrutural com o meioMorre-se quando se deixa de saber viver Morre-se quando se deixa de conhecer

Ainda que para muitos parece uma heresia aceitar que os vegetais tambeacutem conhecemo mundo em que vivem argumentamos que o conhecer dos vegetais em seu nicho ecoloacutegico eacuteuma situaccedilatildeo isoacutefora (da mesma forma) daquela relatada anteriormente sobre o professor comseus estudantes (ex 1) ou da torcida em relaccedilatildeo ao jogador (ex 2) Ou seja o que o

observador aponta como o conhecer eacute sempre uma conduta adequada de um organismo emface de um contexto Eacute a partir deste entendimento que deveremos compreender os dizeres do

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grande naturalista Charles Darwin (2002) em sua obra claacutessica ldquo A origem das espeacuteciesrdquo de1989 quando ele comparou a extremidade das raiacutezes das plantas com o sistema nervoso dosanimais apontando a capacidade das raiacutezes de captar sinais do resto do corpo do vegetal ecom isto direcionar os seus proacuteprios movimentos Destarte se os vegetais tambeacutem possuem

uma conduta adequada ao contexto em que vivem haacute de se concluir que eles tambeacutemconhecem o mundo em que vivem mesmo que esta conduta seja mais difiacutecil de serobservada como o lento movimento das raiacutezes geralmente para baixo o lento movimento dasgavinhas as mudanccedilas na disposiccedilatildeo angular das folhas em resposta aos raios de sol aabertura ou fechamento dos estocircmatos em resposta ao calor a produccedilatildeo de neacutectar e desubstacircncias que mimetizam a accedilatildeo de feromocircnios de insetos atraindo-os para si e garantindoo processo da polinizaccedilatildeo Assim a partir do conjunto de mudanccedilas condutuais das plantasem face ao mundo que as cercam advogamos que elas assim como os outros entes bioloacutegicosque com elas constroem e compartilham a teia da vida conhecem o mundo em que vivem

E os seres unicelulares Advogamos que eles tambeacutem conhecem o mundo em quevivem Haacute de se ressaltar que eles estatildeo no planeta terra desde a origem da vida estimada

hoje em 38 bilhotildees de anos e portanto haacute mais tempo que a totalidade das espeacuteciesmulticelulares Aleacutem disto os unicelulares apresentam grande diversidade bioloacutegica e umenorme nuacutemero de estrateacutegias bioquiacutemicas para exploraccedilatildeo de diferentes nichos ecoloacutegicosincluindo lugares escaldantes gelados radioativos aacutecidos ou baacutesicos e ainda as profundezasdo mar e da terra Em estudos de possiacuteveis cenaacuterios catastroacuteficos os microrganismos semprelevam vantagens em termos de sobrevivecircncia A tiacutetulo de exemplo organismos como osestromatoacutelitos apresentam-se em ato contiacutenuo de conhecer o mundo em que vivem haacute bilhotildeesde anos

Haacute de se fazer agora uma distinccedilatildeo importante enquanto os animais com centrosnervosos diferenciados e complexos como o de nossa proacutepria espeacutecie ndash H Sapiens - podemapresentar um aprendizado relativamente raacutepido cumulativo transgeracional e cultural oconhecer dos outros organismos vivos deriva-se geralmente de processos histoacutericos longosAssim por exemplo sabe-se atraveacutes de registros paleontoloacutegicos que as interaccedilotildeescooperativas eou simbiocircnticas entre alguns insetos e as plantas com flores datam doCretaacuteceo haacute cerca de 100 milhotildees de anos atraacutes (Dawkins 2004) Mas mesmo assim tanto osinsetos quanto as plantas possuem uma histoacuteria filogeneacutetica ainda muito mais remota A esteconhecer produto desta longa histoacuteria filogeneacutetica no planeta denomina-se conhecerfilogeneacutetico ou evolutivo (Vieira 2001 Andrade e Silva 2005b)

Haja vista que o conhecer e o conhecimento satildeo usados indistintamente tanto pelosdicionaacuterios quanto pela maioria dos autores para definir cogniccedilatildeo noacutes nos perguntamosexiste alguma distinccedilatildeo entre eles

3 Sobre a distinccedilatildeo entre o conhecer e o conhecimento

Em artigo anterior (Andrade e Silva 2005a) propusemos uma distinccedilatildeo entre oconhecer e o conhecimento que vai para aleacutem da simples diferenccedila morfossintaacutetica destasduas palavras verbo e substantivo respectivamente Ou seja ainda que possamos afirmar quetodos os organismos vivos satildeo sistemas cognitivos e portanto capazes de conhecer o mundoem que vivem natildeo podemos afirmar no entanto que todos os organismos vivos satildeo capazesde produzir conhecimento haja vista que aquilo que noacutes chamamos de conhecimento natildeo eacuteum simples produto do conhecer mas sobretudo o produto advindo do processo sistemaacuteticodo conhecer que inclui aleacutem do produto advindo do conhecer a referecircncia agrave histoacuteria do

processo ou seja atraveacutes das recursotildees linguiacutesticas Sendo o conhecimento um produtomediado pela linguagem fica evidente tambeacutem que eacute atraveacutes das recursotildees linguiacutesticas que se

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constroem os diferentes sistemas de conhecimento tais quais mito religiatildeo filosofia ciecircnciae a arte

Se o conhecimento pode ser intermediado pela linguagem como compreendecirc-lo noacircmbito desta uacuteltima

Fizemos uma primeira aproximaccedilatildeo agrave questatildeo supracitada apontando o conhecimentocomo um meta-enredo que vai aleacutem dos ldquoenredos explicativos e dos enredos fenomecircnicosrdquo(Andrade e Silva 2005a 37)

Mas o que eacute um enredo explicativo O que eacute uma explicaccedilatildeoComo nos ensina Maturana (1997) uma explicaccedilatildeo eacute a proposiccedilatildeo de um mecanismo

gerativo que posto a operar (a funcionar) gera o fenocircmeno que se quer explicarExistem perguntas que pedem uma descriccedilatildeo e outras que pedem uma explicaccedilatildeo Por

exemplo Vocecirc gosta de chuva Esta pergunta pede um juiacutezo de valor que pode conter umadescriccedilatildeo Por outro lado quando perguntamos O que eacute a chuva Porque chove Estasperguntas pedem uma explicaccedilatildeo Ou seja dentro da pergunta estaacute embutido algo como medecirc um mecanismo que posto a operar gere o fenocircmeno que se quer explicar - a chuva

Ao expandir este tipo de argumento em um trabalho recente (Andrade 2010)chegamos a propor um conceito para conhecimento a partir das seguintes consideraccedilotildees

a) Considerando que o conhecimento eacute exclusivo do humano concluiacutemos que ele eacute umproduto do conhecer cultural humano e portanto o adjetivo cultural que demarca tantoas intermediaccedilotildees linguiacutesticas quanto a validaccedilatildeo deste produto por uma comunidade deobservadores deva estar na definiccedilatildeo conceitual de conhecimento

b) Considerando que grande parte do conhecimento humano eacute(i) constituiacutedo de enredos explicativos para enredos fenomecircnicos(ii) aceito por diferentes comunidades humanas dependendo dos diferentes criteacuterios de

validaccedilatildeo que estas mesmas comunidades humanas admitam em seu aceitar(iii)

erigido em grandes sistemas (mitologia religiatildeo filosofia e ciecircncia) a partir de (i) ede (ii)

Concluiacutemos que os enredos explicativos e a aceitaccedilatildeo dos mesmos por umadeterminada comunidade devam estar contidos na definiccedilatildeo conceitual de conhecimento

Considerando que tanto o conhecimento filosoacutefico quanto o cientiacutefico natildeo serestringem agrave produccedilatildeo de enredos explicativos e que a filosofia mais do que a ciecircncia eacute a arteda produccedilatildeo de conceitos (Deleuze e Guattari 1992) concluiacutemos que as formulaccedilotildeesconceituais devam constar da definiccedilatildeo de conhecimento

Considerando que o conhecimento humano eacute tambeacutem expresso por produtos de

ordem artiacutestica tecnoloacutegica e cientiacutefica e que estes produtos podem ser abstratos ouconcretos criados ou recriados concluiacutemos que os mesmos tambeacutem devam estar contidos nadefiniccedilatildeo conceitual de conhecimento

Assim conhecimento eacute o resultado do conhecer cultural humano expresso atraveacutes deenredos explicativos para enredos fenomecircnicos e de formulaccedilotildees conceituais estando tambeacutemincluso neste gecircnero de produto os objetos artiacutesticos religiosos filosoacuteficos tecnoloacutegicos ecientiacuteficos abstratos ou concretos criados ou recriados aceitos e utilizados por umadeterminada comunidade humana

Tendo afirmado que as recursotildees linguiacutesticas satildeo condiccedilotildees necessaacuterias para aproduccedilatildeo do conhecimento expandiremos o nosso entendimento sobre a linguagem tendo aBiologia do Conhecer como referencial teoacuterico

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4 Relaccedilatildeo corpo e linguagem nas ciecircncias linguiacutesticas

A pergunta sobre a relaccedilatildeo entre corpo e linguagem eacute quase tatildeo antiga quanto aproacutepria consideraccedilatildeo do fenocircmeno na linguagem no humano Essa discussatildeo de longa estirpe

abrange aleacutem da pergunta sobre as estruturas e processos anatocircmicos e fisioloacutegicosenvolvidos na produccedilatildeo e percepccedilatildeo dos sons da fala (uma tradiccedilatildeo bem estabelecida naIacutendia e natildeo na Greacutecia claacutessica) As estruturas e processos gerativos das regularidades quepermitem na linguagem o que observamos e comentamos como ldquoentendimento muacutetuordquoassim como as palavras as frases o significado o dizer e o modo de dizer sobre o mundoQuando Platatildeo propotildee haacute 2 mil anos no Craacutetilo (1994) o debate sobre as palavras seremartifiacutecios humanos ou relacionarem-se naturalmente agraves coisas ele estaacute perguntandoimplicitamente se haacute processos inerentes ao humano que decircem conta do fenocircmeno dasignificaccedilatildeo ou da denotaccedilatildeo (do apontar para as coisas do mundo)

Agrave primeira vista portanto a problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre corpo e linguagemparece ter que dar conta desses trecircs elementos que surgem na descriccedilatildeo tal como

tradicionalmente colocado no pensamento ocidental a) o fenocircmeno da linguagem no qualobservamos regularidades na descriccedilatildeo do mundo b) corpos humanos que de algum modoproduzem permitem ou experimentam a linguagem c) e um mundo situado fora dessescorpos que eacute descrito significado ou denotado pela linguagem e portanto direta ouindiretamente por aqueles corpos que produzem permitem ou experimentam a linguagemNa perspectiva da inter-relaccedilatildeo entre estes trecircs elementos mencionados - corpo linguagem emundo - a pergunta sobre o entendimento muacutetuo dos seres humanos acerca do mundo atraveacutesda linguagem eacute uma pergunta sobre a emergecircncia do significado

Em ciecircncia linguiacutestica aceita-se geralmente que o significado seja um aspecto dosigno linguiacutestico - pertinente portanto apenas ao universo do humano - que nos permiteldquoselecionar um ou outro aspecto do mundo natildeo-linguiacutesticordquo (Trask 2006 265) Para que osignificado cumpra o que promete ele deve ao mesmo tempo denotar (apontar para algo nomundo) e ter sentido (relacionar-se com os demais signos de um sistema linguiacutestico) Porexemplo a palavra ldquohumanardquo denota um ser no mundo com tais e tais propriedadesconsensualmente admitidas E a palavra ldquohumanardquo encerra os sentidos de membro de certaespeacutecie bioloacutegica ser feminino ou pessoa sensiacutevel na medida em que se relacionelinguisticamente com termos como ldquoser vivordquo ldquominha colega de trabalhordquo ldquohumanitaacuteriordquo eassim por diante

Essa abordagem do significado nos diz algo mais sobre a inter-relaccedilatildeo entre corpo elinguagem Ela nos diz que o mundo soacute eacute dado ao conhecimento do corpo pela linguagem (ouseja eacute pela linguagem que o corpo tem acesso ao mundo) E por outro lado que corpo e

mundo existem independente um do outro e ambos independente da linguagem mesmo quenatildeo haja nenhum modo de se ter acesso ao mundo a natildeo ser pela linguagem O mundo seriaentatildeo ldquoum soacuterdquo uma mesma realidade ainda que ao acessar o mundo pela linguagem doiscorpos (ou um corpo em momentos diferentes) possam experienciar mundos distintos(Eicheverria 1994)

Mas como de daacute entatildeo o fenocircmeno que observamos em que corpos individuais (sereshumanos individuais) tenham o mesmo acesso ao mundo - acesso a um mesmo mundo - oupelo menos experimentem uma regularidade na descriccedilatildeo desse mundo permitindo-osconversar sobre esse mundo de modo mutuamente compreensiacutevel As duas respostastradicionais em ciecircncias linguiacutesticas para essa questatildeo eacute que a linguagem eacute universal nohumano e por outro lado que a linguagem eacute especiacutefica da espeacutecie humana Ou seja de algum

modo (a resposta particular varia segundo determinadas linhas de pesquisa escolas ecorrentes de pensamento) estamos naturalmente equipados para produzir processar ou

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experienciar a linguagem de modo semelhante enquanto membros da mesma espeacutecie Porexemplo para a escola da gramaacutetica gerativa uma das mais influentes em ciecircnciaslinguiacutesticas e ligada ao cognitivismo no contexto das ciecircncias cognitivas o processo gerativobaacutesico da linguagem eacute a sintaxe a manipulaccedilatildeo de siacutembolos como um processo

geneticamente disponiacutevel na constituiccedilatildeo da arquitetura neural do humano que permite umaconvergecircncia do desenvolvimento linguiacutestico de qualquer falante (ceteris paribus) em umamesma comunidade de fala Podemos hierarquizar esse domiacutenio de explicaccedilotildees como noEsquema 1 abaixo

Corpo gt sintaxe gt interaccedilatildeo (linguagem)

Esquema 1 - Hierarquia do domiacutenio de explicaccedilotildees linguumliacutesticas

Explicitando a hierarquia acima a) o corpo humano possui tais e tais caracteriacutesticasanatocircmicas e fisioloacutegicas universais e especiacuteficas da espeacutecie b) essas caracteriacutesticas

universais produzem regularidades gerativas como a sintaxe c) finalmente essasregularidades permitem a interaccedilatildeo linguiacutestica entre os corpos humanos o conversar oapontar comum para as coisas do mundo

Assim como acontece em muitas outras linhas investigativas da linguiacutestica agramaacutetica gerativa explica a linguagem aceitando como princiacutepio explicativo que alinguagem eacute um produto do corpo no caso mediado pela sintaxe No caso da gramaacuteticagerativa o mecanismo gerativo (a explicaccedilatildeo) da linguagem eacute a sintaxe um sistema demanipulaccedilatildeo de siacutembolos embutido em nossa arquitetura neural Outras explicaccedilotildees de outrasescolas falam do envolvimento do ceacuterebro na accedilatildeo de denotar de apontar para coisas domundo Outras ainda sobre a capacidade cognitiva de aprender a linguagem emcorrespondecircncia com os fatos do mundo Em um e outro caso as regularidades encontradasna linguagem seja a sintaxe ou os siacutembolos ao mesmo tempo em que satildeo produzidas ouaprendidas pelo corpo (humano) tornam-se o mecanismo que explica o fato de podermosconversar uns com os outros acerca do mundo

O problema das abordagens supracitadas eacute que a relaccedilatildeo entre corpo e linguagem natildeoeacute explicitada ainda que o corpo seja apontado como causando a linguagem o corpo aqui eacuteutilizado como um princiacutepio explicativo De onde vem a linguagem Resposta dasregularidades (a sintaxe ou os siacutembolos) E de onde vecircm as regularidades De um corpogeneticamente dotado para produzir tais regularidades Para noacutes no entanto a perguntacrucial sobre a linguagem eacute justamente entender como dado um organismo vivo (que podeser um ser humano) surge o fenocircmeno do conversar do apontarmos juntos para as coisas As

relaccedilotildees entre a corporeidade os domiacutenios linguumliacutesticos e o linguajar humano seratildeo expandidasnos toacutepicos seguintes

5 Relaccedilatildeo corpo e linguagem na abordagem da Biologia do Conhecer

No contexto da escola chilena da Biologia do Conhecer (BC) uma abordagemsistecircmica para a explicaccedilatildeo do viver e do conhecer um sistema vivo eacute uma organizaccedilatildeoautopoieacutetica (Maturana e Varela 1997) Isso faz referecircncia agrave produccedilatildeo (poiesis) no curso doviver dos proacuteprios elementos que constituem a cada momento o sistema vivo Em segundolugar esse sistema (assim como qualquer sistema passiacutevel de uma explicaccedilatildeo cientiacutefica) eacute umsistema determinado estruturalmente Isso significa que tudo o que acontece com o sistema

depende a cada momento de sua proacutepria estrutura e natildeo da instruccedilatildeo interna determinadapelas perturbaccedilotildees externas ainda que as perturbaccedilotildees possam desencadear as mudanccedilas

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internas determinadas pela estrutura do organismo Observar essa dinacircmica organismo-meionos permite dizer enquanto observadores do processo que o sistema muda a cada momentoem congruecircncia com a sua histoacuteria de interaccedilotildees (Vianna 2008) Ainda dentro das coerecircnciasexplicativas da BC devemos fazer a distinccedilatildeo entre organizaccedilatildeo e estrutura A organizaccedilatildeo eacute

o sistema como um todo definido pela relaccedilatildeo entre seus componentes se a organizaccedilatildeo seperde o sistema natildeo existe mais enquanto sistema de um determinado tipo A estrutura (arelaccedilatildeo particular entre os componentes do sistema) pode variar sem perda da organizaccedilatildeo(Maturana e Varela 1990) No caso do vivo essa diferenccedila entre estrutura e organizaccedilatildeo eacutecrucial pois o vivo eacute um sistema dinacircmico variando estruturalmente sem perder aorganizaccedilatildeo ou seja o vivo sofre contiacutenuas mudanccedilas estruturais com conservaccedilatildeo daorganizaccedilatildeo em toda a sua ontogenia do nascimento ateacute a morte sem a perda da organizaccedilatildeoautopoieacutetica (Maturana e Varela 1990 Vianna e Goacutemez-Soriano 2007)

Ao observar um sistema vivo distinguimos dois domiacutenios distintos que natildeo seintersectam operacionalmente (apesar de como observadores possamos apontar umacorrespondecircncia entre os dois) no domiacutenio da fisiologia observamos as relaccedilotildees particulares

e dinacircmicas entre os componentes do organismo e no domiacutenio do comportamentoobservamos o organismo em sua totalidade em interaccedilatildeo com o meio (Maturana 1997)

Como tanto o organismo quanto o meio satildeo sistemas determinados estruturalmentetudo o que acontece com cada um deles eacute determinado pelas respectivas estruturas de ambos enatildeo pela instruccedilatildeo de um sobre o outro No entanto as modificaccedilotildees estruturais por que passao organismo possuem uma correspondecircncia histoacuterica justamente com o curso de suasinteraccedilotildees com o meio o organismo iraacute mudar em congruecircncia com as perturbaccedilotildees do meioassim como o meio iraacute mudar de forma correspondente em acordo com as interaccedilotildees com oorganismo Esse processo de interaccedilotildees recorrentes do organismo em um meio eacute chamado porMaturana e Varela de acoplamento estrutural Conservar o acoplamento estrutural com o meioeacute condiccedilatildeo necessaacuteria para a conservaccedilatildeo da autopoiese - organizaccedilatildeo a que pertence o servivo A histoacuteria ontogeneacutetica e filogeneacutetica em que o vivo se manteacutem em acoplamentoestrutural com o meio mudando a estrutura mas conservando a sua organizaccedilatildeo eacutedenominado de deriva natural Se mais de um organismo estaacute envolvido o processo como umtodo eacute denominado de co-deriva natural (Maturana e Podozis 1992)

No caso do observador descrever dois (ou mais) organismos em interaccedilotildeesrecorrentes o olhar do observador estaraacute direcionado para o sistema como um todo ou sejaaquele constituiacutedo pelos dois ou mais organismos e o entorno Nos termos da BC issosignifica que suas respectivas organizaccedilotildees autopoieacuteticas satildeo conservadas em coerecircncia com ahistoacuteria das relaccedilotildees entre os dois sistemas vivos observados e referenciados Veja queoperacionalmente para o organismo tudo o que existe satildeo perturbaccedilotildees externas que ele iraacute

tratar como perturbaccedilotildees de um ou outro tipo dependendo de sua proacutepria estrutura interna Oorganismo natildeo distingue entre um meio inerte e um sistema vivo Quem faz essa distinccedilatildeosomos noacutes observadores na descriccedilatildeo de um sistema em que podemos observar ao mesmotempo o curso das interaccedilotildees e as mudanccedilas estruturais do organismo ou dos organismosenvolvidos

6 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem

O fato de ser preciso um observador para fazer a distinccedilatildeo entre fisiologia ecomportamento natildeo eacute secundaacuterio mas crucial isso significa que estamos levando em contana explicaccedilatildeo o fundamento bioloacutegico do linguajar que eacute a coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de

accedilotildees em um domiacutenio consensual O observador eacute um organismo (no caso um organismohumano) que diz aquilo que diz de acordo com a sua proacutepria experiecircncia mas diz o que diz a

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outro observador que iraacute escutaacute-lo a partir de uma histoacuteria de interaccedilotildees (ou de uma mesmacomunidade de conversaccedilotildees) e iraacute coordenar suas accedilotildees de forma correspondente agrave interaccedilatildeona linguagem

A manutenccedilatildeo do acoplamento estrutural entre os organismos participantes de uma

interaccedilatildeo recursiva configura um domiacutenio linguiacutestico Veja que para haver um domiacuteniolinguiacutestico nos termos da BC natildeo eacute necessaacuteria a participaccedilatildeo de um organismo humano nainteraccedilatildeo Bastam coordenaccedilotildees de accedilotildees recursivas entre dois ou mais organismos emacoplamento estrutural co-ontogecircnico Ainda uma rede social pode ser formada como umarede de interaccedilotildees consensuais e recursivas entre os membros de uma mesma comunidade deorganismos Nos termos da BC o que eacute peculiar agraves interaccedilotildees humanas eacute que as proacutepriascoordenaccedilotildees de accedilotildees co-ontogecircnicas ou seja o comportamento consensual eacute utilizadocomo elemento para novas coordenaccedilotildees de accedilotildees Linguagem satildeo coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais Eacute como se desse uma volta sobre a voltarecursivamente ou seja incorporando continuamente a experiecircncia e a criaccedilatildeo da novidade(linguiacutestica) no rodar

Ainda que para a Biologia do Conhecer seja possiacutevel que noacutes seres humanospossamos manter coordenaccedilotildees condutuais com outros organismos natildeo-humanos (nossosanimais domeacutesticos por exemplo) natildeo vivemos com eles ininterruptamente na linguagem

Veja que para falar de domiacutenio linguiacutestico e de linguagem aqui natildeo precisamos fazerreferecircncia a nenhum elemento tradicionalmente descrito como caracteriacutestico da fala humanaNenhum som gesto ou desenho particular pertence agrave linguagem Da mesma forma qualquersom gesto ou desenho particular pode pertencer agrave linguagem pois essa eacute definidahistoricamente Se haacute recursatildeo se haacute consenso se no curso da interaccedilatildeo aquele som gesto oudesenho eacute distinguido como um elemento na coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de accedilotildees recursivase consensuais ele faraacute parte da linguagem na descriccedilatildeo do observador (Eicheverria 1994) Omesmo se daacute com outras regularidades percebidas na liacutengua como a sintaxe A sintaxe soacutepode ser descrita como uma regularidade das interaccedilotildees linguiacutesticas a partir do momento emque se tornem consensuais e recursivas Eacute preciso fazer referecircncia agrave histoacuteria ao curso deinteraccedilotildees para se dizer que uma palavra pertence agrave linguagem E como as interaccedilotildeeslinguiacutesticas podem conformar uma comunidade de interaccedilotildees (como no caso humano)podemos dizer que as palavras satildeo ldquonoacutesrdquo nessa rede de interaccedilotildees consensuais e recursivas

Uma exigecircncia na BC eacute que em uma explicaccedilatildeo mecanicista eacute preciso distinguir entreum sistema e seus componentes tratando-os como ldquounidades operacionalmente diferentesque pertencem a conjuntos discretos que geram domiacutenios fenomecircnicos que natildeo seintersectamrdquo (Maturana 1997 27) Isso eacute exatamente o que um observador faz quandodistingue os componentes de um sistema vivo (a fisiologia) ou de outro lado o operar desse

sistema em um meio (o comportamento) Assim fisiologia e conduta satildeo dois domiacuteniosdiferentes operacionalmente disjuntos e natildeo podem ser confundidos sob pena de cometerequiacutevocos na descriccedilatildeo Por exemplo pode se falar que a memoacuteria depende da atividade dasredes neurais enquanto propriedade emergente desta rede mas eacute um equivoco falar que amemoacuteria estaacute guardada nos neurocircnios haja vista que a memoacuteria pertence agrave relaccedilatildeo doindividuo (corpo) com o meio e natildeo do sistema nervoso (domiacutenio da fisiologia) diretamentecom o meio externo Afirmar isto seria um reducionismo Se haacute reduccedilatildeo fenomecircnica aexplicaccedilatildeo pressupotildee uma forccedila vital (vitalismo) e natildeo um mecanismo

Nesta perspectiva devemos tambeacutem distinguir os elementos de uma interaccedilatildeolinguiacutestica (os organismos e os sons gestos ou desenhos utilizados na interaccedilatildeo) e a proacutepriainteraccedilatildeo Nenhum elemento do organismo eacute responsaacutevel por ldquoproduzirrdquo linguagem pois a

linguagem estaacute no domiacutenio interpessoal e natildeo pode portanto ser reduzida agrave fisiologia doorganismo sob pena de um equiacutevoco reducionista Da mesma forma nenhuma palavra (sons

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gestos ou desenhos) ou gramaacutetica pode ser colocada em uma posiccedilatildeo gerativa da linguagem justamente por dependerem do consenso para surgirem As palavras e a gramaacutetica jaacute fazemparte da descriccedilatildeo da linguagem no momento em que esses elementos satildeo descritos como umaparte dela

Destarte o modo de vida humano surge e se conserva na linguagem como modo deconservar sua organizaccedilatildeo Para Maturana (1997 168) o humano vive nesse ldquofluir deinteraccedilotildees recorrentesrdquo E como a fisiologia muda em congruecircncia com a histoacuteria dasinteraccedilotildees do organismo devemos esperar uma correspondecircncia estrutural do organismohumano com o curso de suas interaccedilotildees na linguagem Do mesmo modo ao falarmos doprocesso de denotaccedilatildeo de apontar para um mundo laacute fora com nossas palavras natildeoprecisamos fazer referecircncia nem a uma constituiccedilatildeo cognitiva preacutevia do humano (pois esse eacuteum domiacutenio que natildeo se intersecta com o domiacutenio comportamental) e nem a uma realidadeldquoinformativardquo laacute fora (pois tudo o que acontece com o organismo eacute determinado neleestruturalmente) Falamos da denotaccedilatildeo como se estiveacutessemos apontando para um mundopreacutevio laacute fora mas tudo o que estamos fazendo de fato eacute coordenando nossas accedilotildees com

outros observadoresAssim a denotaccedilatildeo como afirma Maturana (1997 150) ldquonatildeo eacute uma operaccedilatildeo

primitiva Ela requer concordacircncia - consenso - para a especificaccedilatildeo tanto do denotantequanto do denotado Se a denotaccedilatildeo portanto natildeo eacute primitiva natildeo pode ser tampouco umaoperaccedilatildeo linguiacutestica primitivardquo

Se denotaccedilatildeo natildeo eacute uma operaccedilatildeo primitiva natildeo eacute preciso fazer referecircncia a umarealidade externa ldquointermediadardquo pela linguagem De fato apontamos (descrevemos)consensualmente para objetos do mundo e eacute na descriccedilatildeo desse apontar para os objetos demodo consensual que surge ao mesmo tempo a denotaccedilatildeo e os objetos que trazemos agrave matildeono linguajar A linguagem eacute um espaccedilo de relaccedilotildees em que nos movemos e eacute neste moverrecursivo na linguagem que surgem tanto o ato de observar quanto o proacuteprio observador

7 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem natildeo-humana

Iniciaremos este toacutepico fazendo uma pergunta provocativa qual seja eacute possiacutevel falarem linguagem natildeo-humana

Ainda que a BC natildeo utilize o termo ldquolinguagemrdquo para as interaccedilotildees recorrentes natildeo-humanas nesse domiacutenio explicativo podemos pelo menos tratar essas interaccedilotildees de modobem diferente das abordagens tradicionais da psicologia comparada e da etologia

O bonobo (Pan paniscus) Kanzi eacute a estrela nas pesquisas com linguagem siacutemia oulinguagem natildeo-humana da psicologia comparada Kanzi comunica-se basicamente atraveacutes

de um teclado de ldquolexigramasrdquo siacutembolos criados na deacutecada de 70 para experimentos emlinguagem siacutemia mas que posteriormente foram utilizados tambeacutem para o trabalho comcrianccedilas humanas autistas Kanzi estava sempre por perto durante o treinamento de sua matildeeadotiva Matata e foi observado utilizando o teclado algumas vezes No dia seguinte agrave saiacutedade Matata do experimento (para fins de procriaccedilatildeo) houve a primeira tentativa de treinamentoformal de Kanzi Nesse primeiro dia de aula Kanzi utilizou o teclado de lexigramas 120vezes sem ter sido requisitado a fazecirc-lo Comunicou-se fluentemente com a pesquisadora SueSavage-Rumbaugh atraveacutes dos lexigramas e segundo a investigadora sabia o que ossiacutembolos significavam (Savage-Rumbaugh e Lewin 1994)

A carreira de Kanzi prossegue (ainda hoje) com outras conquistas linguiacutesticas ecognitivas tatildeo reveladoras quanto seu desempenho precoce com os lexigramas Kanzi

desenvolveu um repertoacuterio vocal proacuteprio e controlado utilizado em seus processosinteracionais com humanos e outros siacutemios aleacutem da compreensatildeo do inglecircs falado Muito da

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admiraccedilatildeo pelo desempenho de Kanzi vem de sua manipulaccedilatildeo de siacutembolos equivalentesagravequeles utilizados num contexto humano e accedilotildees igualmente apropriadas para o observadorhumano (eacute justamente o desempenhar de ldquoaccedilotildees apropriadasrdquo o que nos leva a dizer aoobservar a performance de Kanzi que o que ele faz eacute linguagem) Pensamos no entanto que

o dado mais fundamental da ontogenia de Kanzi que nos leva a apontaacute-lo como um serlinguiacutestico foram seus processos relacionais Os modos de aquisiccedilatildeo linguiacutestica de Kanzi aomenos inicialmente natildeo eram parte de um experimento formal mas o resultado da relaccedilatildeo co-ontogecircnica estabelecida com a matildee e os cuidadores humanos e da relaccedilatildeo ecoloacutegicaestabelecida com atividades palavras e objetos ligados agrave investigaccedilatildeo cruciais para Kanzioferecer respostas linguiacutesticas consideradas adequadas por seus investigadores independentedo ceticismo do restante da comunidade cientiacutefica No caso de Kanzi e nos termos da BCpodemos dizer que esse organismo pelo menos nos momentos em que ele coordena juntocom os investigadores accedilotildees consensuais coordenadas estaacute na linguagem com osobservadores humanos Frans de Wall (2007) relata vaacuterios exemplos dessas recursotildeeslinguiacutesticas de bonobos com humanos em seu livro intitulado ldquoEu primatardquo

Outro caso interessante que talvez natildeo diga respeito agrave linguagem (nos termos da BC)mas ao menos agraves coordenaccedilotildees recursivas que conformam um domiacutenio linguiacutestico eacute o docavalo Clever Hans (Candland 1993)

Em 1980 Thomas Sebeok organizou sob os auspiacutecios da New York Academy ofSciences um Congresso intitulado ldquoThe Clever Hans Phenomenon Communication withHorses Whales Apes and Peoplerdquo (Candland 1993) O propoacutesito poliacutetico do congresso foimuito mais discerniacutevel que seu conteuacutedo cientiacutefico a comeccedilar pelo tiacutetulo o ldquofenocircmenoClever Hansrdquo cuja simples menccedilatildeo eacute suficiente para lanccedilar suspeitas sobre qualquer pesquisaem linguagem natildeo-humana

O cavalo Clever Hans mobilizou vaacuterios estudiosos no iniacutecio do seacuteculo XX paraentender como esse animal aleacutem de compreender alematildeo falado respondia corretamente agravesperguntas feitas batendo os cascos no chatildeo ou realizando outros movimentos corporais Em1904 foi constituida uma comissatildeo reunindo zooacutelogos professores donos de circo e ateacutemilitares para avaliar o fenocircmeno Os membros da comissatildeo investigavam a possibilidade detruques principalmente pistas natildeo-verbais dadas por seu cuidador Wilhem Von Osten maschegaram agrave conclusatildeo que apesar de natildeo ser possiacutevel avaliar a inteligecircncia de Clever Hansnenhum truque podia ser detectado O psicoacutelogo Oskar Pfungst (aluno de Carl Stumpfmembro da Comissatildeo) continuou os estudos com Hans e por meio de engenhososexperimentos formulou a hipoacutetese de que o cavalo por algum meio natildeo compreendido eracapaz de detectar mudanccedilas comportamentais na audiecircncia iniciando ou completando seusproacuteprios movimentos indicativos da resposta (Candland 1993)

Se a histoacuteria investigativa do cavalo Clever Hans eacute admiraacutevel o mito Clever Hansatingiu uma dimensatildeo cientiacutefica bem maior alimentado igualmente por opositores edefensores dos estudos em linguagem natildeo-humana Segundo esse mito bem difundidoPfungst ldquodesvendou a farsardquo demonstrando que Clever Hans natildeo era nem inteligente nemlinguiacutestico mas um animal induzido por pistas inadvertidas de Van Osten e outros membrosda audiecircncia Para os pesquisadores em linguagem natildeo-humana portanto o desafio eacutedemonstrar para a comunidade acadecircmica que a proacutepria pesquisa natildeo sofre o ldquoefeito CleverHansrdquo seus sujeitos natildeo recebem pistas natildeo-verbais dos investigadores humanos Mas seraacutepossiacutevel isolar experimentalmente na linguagem o siacutembolo dos processos gerativos dessesiacutembolo

Pfungst demonstrou algo que para noacutes eacute mais fundamental que um conhecimento

ldquodenotativordquo ou ldquosimboacutelicordquo de Clever Hans Talvez por sua vivecircncia co-ontogecircnica com otratador talvez por ser um organismo particularmente orientado para as accedilotildees humanas o

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cavalo foi capaz de coordenar suas accedilotildees com as accedilotildees humanas E estando ou natildeo nalinguagem (na condiccedilatildeo de observador) Clever Hans foi capaz de transformar suascoordenaccedilotildees de accedilotildees em palavras - em noacutes na rede conversacional - para a audiecircnciahumana Para os observadores naquele momento Clever Hans estava dizendo algo

8 A emergecircncia da autoconsciecircncia e a epigrafe de Nietzsche

Mesmo reconhecendo que termos como consciecircncia e autoconsciecircncia satildeopolissecircmicos e que os seus significados dependem do referencial teoacuterico a partir do qual sefala e que mesmo dentro de uma mesma teoria ainda assim eles podem ser mateacuteria deintensos debates (Searle 1998) vamos primeiramente nos posicionar e explicitar o queestamos denominando com a expressatildeo ldquoemergecircncia da autoconsciecircnciardquo

Assim o que estamos conotando como emergecircncia da autoconsciecircncia ou auto-reflexividade eacute somente a capacidade do homem de fazer referecircncia a si e ao mundo com oqual interage utilizando o corpo e as recursotildees linguiacutesticas

Acreditamos que a dificuldade de compreender a autoconsciecircncia como um fenocircmenoimanente particular ao viver bioloacutegico humano reside no fato de termos de encontrar omecanismo pelo qual somos capazes de distinguir a noacutes mesmos como se fossemos entidadesindependentes de nosso proacuteprio viver e ao mesmo tempo de especificarmos um eu que noshabita e que portanto eacute dependente de nossa biologia

Este aparente paradoxo pode ser resolvido se aceitarmos que a operaccedilatildeo deautoconsciecircncia eacute uma distinccedilatildeo reflexiva de um ldquoeurdquo forjado na linguagem de tal forma queeste eu natildeo somente constitui o corpo que surge na distinccedilatildeo mas tambeacutem que este eu podeser referenciado como uma abstraccedilatildeo no fluir da rede linguiacutestica

Para tornar mais claro este argumento desdobraremos a questatildeo em duas perguntasquais sejam 1- Como este eu corpoacutereo e abstrato eacute capaz de fazer referecircncia ao mundo e seauto-referenciar ou seja como nos tornamos observadores 2- Como os laccedilos da redelinguiacutestica que nos liga uns aos outros e ao mundo mesmo se mantendo na exterioridade denossa corporeidade nas franjas das relaccedilotildees interpessoais cria em noacutes o que em noacutes eacute tatildeointimo - a autoconsciecircncia

Vamos tentar responder estas duas perguntas e esperamos que ao final tenhamosexplicado nossa indagaccedilatildeo inicial qual seja como nos tornamos autoconscientes no devir

Cocircnscios de que toda explicaccedilatildeo exige tanto uma condiccedilatildeo formal mecanismogerativo quanto uma informal aceitabilidade convidamos o leitor para participar conosco daformulaccedilatildeo de um mecanismo gerativo para a autoconsciecircncia Antes poreacutem faremos umasolicitaccedilatildeo sem a qual seraacute impossiacutevel caminharmos juntos eacute indispensaacutevel romper com a

crenccedila de que representamos os objetos que estatildeo no mundo em nossa mente como umespelhoA razatildeo de nosso alerta e de nossa controversa adveacutem do fato de que tanto a ceacutelula

nervosa quanto o sistema nervoso como um todo eacute sensiacutevel somente agrave intensidade dos sinaisquiacutemicos de seu proacuteprio modo de operar e portanto natildeo podem captar e processarinformaccedilotildees ou qualidades do mundo laacute fora como muacutesica cheiro sabor cores etc Ou sejanatildeo haacute uma correspondecircncia ponto a ponto do que acreditamos ser o mundo laacute fora com oque acreditamos ser o mundo de dentro - nossa mente Somente para se ter uma ideia daordem de grandeza e do diferencial que separa estes dois mundos para os duzentos outrezentos milhotildees de receptores sensoriais haacute cerca de dez bilhotildees de sinapses no sistemanervoso sugerindo que as dinacircmicas internas de nosso proacuteprio organismo ao se

entrecruzarem com as perturbaccedilotildees advindas do meio externo participam na criaccedilatildeo interna

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do que o organismo vecirc ldquosenterdquo e nomeia tais como cores sons e sensaccedilotildees (Von Foster1994)

Quais as consequecircncias desse entendimento para nossa discussatildeoA consequecircncia mais fundamental eacute a de que o mundo laacute fora com os seus objetos e

acontecimentos natildeo preacute-existem ao observador pois que eles natildeo satildeo entidades primaacuterias aoato de observar e portanto independentes da biologia do observador As caracteriacutesticas quesupostamente satildeo dadas agraves coisas mostram-se tambeacutem como caracteriacutesticas do observador Ascores natildeo estatildeo laacute fora independentes de nossa biologia mas tambeacutem natildeo estatildeo caacute dentroindependentes de nosso mundo cultural Se isso eacute assim nega-se tanto o realismo de ummundo predeterminado que o organismo eacute capaz de representar quanto o idealismo que tomaa percepccedilatildeo como uma projeccedilatildeo de um mundo interno predeterminado (Varela et al 2003)

Eacute com essa dupla negaccedilatildeo que se diz que os objetos natildeo antecedem agrave distinccedilatildeo quedeles eacute feita pelo observador Os objetos surgem na praacutexis do viver do observador e o que eacuteessa praacutexis do viver humano senatildeo as coordenaccedilotildees de coordenaccedilotildees de accedilotildees que realizamosem nosso cotidiano

Seguindo esta linha de raciociacutenio o observar surge no domiacutenio das coerecircnciasexperienciais inerentes ao proacuteprio viver Ao darmos ecircnfase ao processo deslocamos a posiccedilatildeodo observador de ente corporificado para ente operacional

Se o leitor aceitou que eacute impossiacutevel a este ente operacional fazer referecircncia a algo forade seu domiacutenio de experiecircncias fora de sua proacutepria histoacuteria deduz-se que os objetos o corpoe suas partes e por extensatildeo o proacuteprio ldquoeurdquo surgem no operar das coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais ou seja na linguagem Eacute importante notar que emboraenclausurados em nossa proacutepria biologia noacutes soacute nos tornamos observadores na presenccedila dooutro ao partilharmos do processo recursivo e transgeracional que eacute o viver na linguagem

O importante eacute que noacutes repetimos esse processo conservado transgeracionalmente emcada ontogenia Assim quando nascemos e nos inserimos no mundo atraveacutes das primeirastriangulaccedilotildees criadas pelo apontar da matildee no sentido lato deste termo para um objeto quepode ser o nosso corpo ou parte dele jaacute estamos na linguagem

A necessidade do outro fundado na relaccedilatildeo jaacute nos coloca frente ao desafio deresponder agrave segunda questatildeo anteriormente formulada qual seja como os laccedilos de uma redelinguiacutestica podem criar em noacutes o que em noacutes eacute tatildeo intimo - a autoconsciecircncia

A Biologia do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode serentendido como uma co-emergecircncia da experiecircncia de um mundo vivido e da identidade doeu vivente (Varela et al 2003) No entanto haacute de se fazer uma ressalva a experiecircncia eacuteclaramente um evento pessoal mas isso natildeo significa que seja um evento privado no sentidode algum tipo de sujeito isolado que caiu de paacutera-quedas sobre um mundo objetivo

previamente dado Se aceitarmos a ressalva que a experiecircncia eacute tanto um evento pessoalporque necessariamente auto-referencial mas tambeacutem coletivo porque necessariamenterelacional poderemos compreender o surgimento de seres vivos capazes de fazer referecircnciaao mundo e se auto-referenciar sem termos de apelar para uma transcendecircncia ou para aimanecircncia de um suposto ldquoeurdquo independente e centro desta vivecircncia (Varela et al 2003)

Seria este o entendimento de Nietzsche (que noacutes recusamos a acreditar) o corpo queprocede como um ldquoeurdquo sem precisar falar

9 Referencias bibliograacuteficas

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1 Introduccedilatildeo

ldquoTu dizes eu e orgulhas-te desta palavra Mas haacute qualquer coisa de maior em que terecusas a acreditar eacute o teu corpo e a sua grande razatildeo ele natildeo diz Eu mas procede

como Eurdquo (Friedrich Nietzsche)

O principal objetivo deste ensaio eacute fazer uma articulaccedilatildeo entre os termos anunciados -corporeidade cogniccedilatildeo e linguagem ndash para no final dialogar com a ideia expressa na epiacutegrafesupracitada de autoria do grande filoacutesofo alematildeo Friedrich Nietzsche (2006 39)Apontado o objetivo e as questotildees para as quais dirigiremos nossa reflexatildeo iniciaremos pornos perguntar o que eacute cogniccedilatildeo

Para o Dicionaacuterio Aureacutelio da Liacutengua Portuguesa (Ferreira 1999) o termo cogniccedilatildeoassume os dois sentidos principais (A1) aquisiccedilatildeo de um conhecimento e (A2) conhecimentopercepccedilatildeo Estes mesmos sentidos aparecem tambeacutem no ldquoMerriam-Webster Dictionaryrdquo(1986) que considera cogniccedilatildeo o ldquoato ou processo de conhecer incluindo a consciecircncia e o

julgamento e tambeacutem o produto deste ato ndash o conhecimento (MW1)Uma definiccedilatildeo com maior abrangecircncia nos eacute oferecida por Vieira (2001 296) na

Enciclopeacutedia Einaudi Assim para este autor a ldquocogniccedilatildeo abrange um conjunto de processosque integrados ao niacutevel de centros nervosos permitem a um organismo animal orientar o seucomportamento de forma adaptativa perante as variaccedilotildees do ambiente em que se situardquo

Ainda que a definiccedilatildeo supracitada incorpore uma parcela significativa da escalazooloacutegica ndash os animais com centros nervosos - uma proposta ainda mais radical afirma que oconhecer pode ser extensivo agrave todos os seres vivos agrave toda escala bioloacutegica incluindoportanto os animais sem centros nervosos os vegetais e mesmo os seres unicelulareseucariotas e procariotas (Maturana e Varela 1990)

Fica evidente que a afirmaccedilatildeo proferida por estes uacuteltimos autores contraria de uma soacutevez o senso comum o conteuacutedo dos dicionaacuterios e a ideia jaacute muito estabelecida inclusive naacademia de que a cogniccedilatildeo estaacute associada agraves espeacutecies dotadas de centros nervosos (emespecial os organismos tradicionalmente conotados como ldquosuperioresrdquo em uma escala que seaproxima do humano) ou ainda associada agrave razatildeo e ao pensamento atributos tradicionais denossa proacutepria espeacutecie Sendo assim ao concordarmos que a cogniccedilatildeo pode ser estendida agravetodos os seres vivos (Andrade e Silva 2005a) somos convocados a propor uma boa

justificativa para essa posiccedilatildeo que esperamos compartilhar com vocecirc leitor com o convitepara que vocecirc tambeacutem possa aceitaacute-la

Como este ponto eacute fundamental para todo o raciociacutenio que faremos ao longo desteensaio apresentaremos os argumentos pausadamente com muitos exemplos esperando que

eles se tornem claros e aceitaacuteveis2 Sobre a cogniccedilatildeo e o conhecer

Quando nos encontramos com a pergunta sobre o conhecer (ou sobre a cogniccedilatildeo) navida cotidiana geralmente fazemos referecircncia agrave conduta adequada de um organismo em facede um contexto especificado por um observador ou por uma comunidade de observadores(Maturana 2001) Senatildeo vejamos

Exemplo 1 um professor quer aferir o conhecer dos seus estudantes O que ele fazResposta especifica um contexto de teste (prova teoacuterica eou praacutetica) e avalia a conduta(escrita oral comportamental) dos estudantes em face do contexto especificado por ele

(situaccedilatildeo de teste)

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Exemplo 2 um time contrata um jogador estrangeiro ateacute entatildeo completamentedesconhecido da torcida O estaacutedio estaacute lotado O que eacute que a torcida tem de observar parareconhecer se o novo jogador eacute bom (conhece sabe) de bola Resposta analisa a sua condutaem face do contexto do jogo entre as quatro linhas do gramado

Note que no primeiro exemplo o observador eacute uma uacutenica pessoa e o seu julgamentopoderaacute ser soberano se natildeo houver equiacutevocos eou reclamaccedilotildees generalizas caso em quepoderaacute haver um questionamento por parte dos estudantes e em certas situaccedilotildees ateacute aconvocaccedilatildeo de uma banca examinadora para referendar ou natildeo a correccedilatildeo do professor Noexemplo 2 a comunidade de observadores eacute composta por milhares de pessoas ou mesmo demilhotildees se o jogo for televisionado e portanto o julgamento sobre o desempenho do jogador- se ele eacute ruim razoaacutevel bom ou craque - dependeraacute de vaacuterios fatores dentre os quais aatuaccedilatildeo do atleta no campo as condiccedilotildees do jogo e tambeacutem o grau de conhecimento eexigecircncia do observador eou da comunidade de observadores em termos da arte futeboliacutestica

Tomando estes dois exemplos em conjunto gostariacuteamos de ressaltar que o conhecerenquanto comentaacuterio sobre uma conduta eacute relativo e portanto quanto maior o nuacutemero de

observadores e de comentaacuterios aumenta tambeacutem a chance de ocorrer divergecircnciasSe os exemplos e a argumentaccedilatildeo acima foi entendida e aceita fica evidente que a

questatildeo sobre o conhecer passa necessariamente pelas experiecircncias da vida cotidiana eportanto o que devemos explicar quando nos perguntamos sobre o conhecer eacute a experiecircncia -o experienciar ndash e eacute prontamente isso que vincula a questatildeo do conhecer agrave biologia Essavinculaccedilatildeo tem sido enfatizada de forma original por alguns autores (Piaget 1970 1975Maturana e Varela 1997) no entanto para o nosso propoacutesito neste ensaio eacute suficiente quefaccedilamos a seguinte pergunta cognitiva como o ser vivo se manteacutem vivo

Como eacute evidente a resposta para essa pergunta estaraacute sempre vinculada agrave biologiaporque qualquer que seja o domiacutenio especificado pelo observador ele estaraacute sempre fazendouma referecircncia ao viver e ao seguir vivendo de um ou outro organismo em face de umcontexto de um nicho

Nesta oacutetica podemos ampliar a definiccedilatildeo do conhecer para fora do acircmbito humano eassim aceitar que todos os organismos vivos atuais possuem uma conduta adequada aoscontextos (nichos) em que vivem e portanto estatildeo em ato contiacutenuo de conhecer o mundo emque vivem justificando-se assim o aforismo ldquoviver eacute conhecerrdquo anunciado pelosneurobioacutelogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (1990 1997)

Eacute precisamente este ldquose manter vivordquo em acoplamento estrutural com o meio queestamos conotando como o conhecer bioloacutegico Ou seja todo organismo vivo estaacute momentoa momento em ato contiacutenuo do conhecer

Assim natildeo devemos nos surpreender (exemplo 3) quando um paacutessaro mergulha para

capturar um peixe abaixo da linha drsquoaacutegua e mesmo sem conhecer a lei de refraccedilatildeo de Snell(n1middotsenθ1 = n2middotsenθ2) eacute bem sucedido em seu empreendimento E o peixe que conhecia omundo drsquoaacutegua eacute interrompido bruscamente no seu ato contiacutenuo de conhecer o mundo(drsquoaacutegua) perde o acoplamento estrutural com o seu meio e morre Nesse caso tanto o paacutessaroquanto o peixe conhecem o mundo em que vivem e podem morrer quando deixam de estar emato contiacutenuo de conhecer isto eacute quando perdem o acoplamento estrutural com o meioMorre-se quando se deixa de saber viver Morre-se quando se deixa de conhecer

Ainda que para muitos parece uma heresia aceitar que os vegetais tambeacutem conhecemo mundo em que vivem argumentamos que o conhecer dos vegetais em seu nicho ecoloacutegico eacuteuma situaccedilatildeo isoacutefora (da mesma forma) daquela relatada anteriormente sobre o professor comseus estudantes (ex 1) ou da torcida em relaccedilatildeo ao jogador (ex 2) Ou seja o que o

observador aponta como o conhecer eacute sempre uma conduta adequada de um organismo emface de um contexto Eacute a partir deste entendimento que deveremos compreender os dizeres do

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grande naturalista Charles Darwin (2002) em sua obra claacutessica ldquo A origem das espeacuteciesrdquo de1989 quando ele comparou a extremidade das raiacutezes das plantas com o sistema nervoso dosanimais apontando a capacidade das raiacutezes de captar sinais do resto do corpo do vegetal ecom isto direcionar os seus proacuteprios movimentos Destarte se os vegetais tambeacutem possuem

uma conduta adequada ao contexto em que vivem haacute de se concluir que eles tambeacutemconhecem o mundo em que vivem mesmo que esta conduta seja mais difiacutecil de serobservada como o lento movimento das raiacutezes geralmente para baixo o lento movimento dasgavinhas as mudanccedilas na disposiccedilatildeo angular das folhas em resposta aos raios de sol aabertura ou fechamento dos estocircmatos em resposta ao calor a produccedilatildeo de neacutectar e desubstacircncias que mimetizam a accedilatildeo de feromocircnios de insetos atraindo-os para si e garantindoo processo da polinizaccedilatildeo Assim a partir do conjunto de mudanccedilas condutuais das plantasem face ao mundo que as cercam advogamos que elas assim como os outros entes bioloacutegicosque com elas constroem e compartilham a teia da vida conhecem o mundo em que vivem

E os seres unicelulares Advogamos que eles tambeacutem conhecem o mundo em quevivem Haacute de se ressaltar que eles estatildeo no planeta terra desde a origem da vida estimada

hoje em 38 bilhotildees de anos e portanto haacute mais tempo que a totalidade das espeacuteciesmulticelulares Aleacutem disto os unicelulares apresentam grande diversidade bioloacutegica e umenorme nuacutemero de estrateacutegias bioquiacutemicas para exploraccedilatildeo de diferentes nichos ecoloacutegicosincluindo lugares escaldantes gelados radioativos aacutecidos ou baacutesicos e ainda as profundezasdo mar e da terra Em estudos de possiacuteveis cenaacuterios catastroacuteficos os microrganismos semprelevam vantagens em termos de sobrevivecircncia A tiacutetulo de exemplo organismos como osestromatoacutelitos apresentam-se em ato contiacutenuo de conhecer o mundo em que vivem haacute bilhotildeesde anos

Haacute de se fazer agora uma distinccedilatildeo importante enquanto os animais com centrosnervosos diferenciados e complexos como o de nossa proacutepria espeacutecie ndash H Sapiens - podemapresentar um aprendizado relativamente raacutepido cumulativo transgeracional e cultural oconhecer dos outros organismos vivos deriva-se geralmente de processos histoacutericos longosAssim por exemplo sabe-se atraveacutes de registros paleontoloacutegicos que as interaccedilotildeescooperativas eou simbiocircnticas entre alguns insetos e as plantas com flores datam doCretaacuteceo haacute cerca de 100 milhotildees de anos atraacutes (Dawkins 2004) Mas mesmo assim tanto osinsetos quanto as plantas possuem uma histoacuteria filogeneacutetica ainda muito mais remota A esteconhecer produto desta longa histoacuteria filogeneacutetica no planeta denomina-se conhecerfilogeneacutetico ou evolutivo (Vieira 2001 Andrade e Silva 2005b)

Haja vista que o conhecer e o conhecimento satildeo usados indistintamente tanto pelosdicionaacuterios quanto pela maioria dos autores para definir cogniccedilatildeo noacutes nos perguntamosexiste alguma distinccedilatildeo entre eles

3 Sobre a distinccedilatildeo entre o conhecer e o conhecimento

Em artigo anterior (Andrade e Silva 2005a) propusemos uma distinccedilatildeo entre oconhecer e o conhecimento que vai para aleacutem da simples diferenccedila morfossintaacutetica destasduas palavras verbo e substantivo respectivamente Ou seja ainda que possamos afirmar quetodos os organismos vivos satildeo sistemas cognitivos e portanto capazes de conhecer o mundoem que vivem natildeo podemos afirmar no entanto que todos os organismos vivos satildeo capazesde produzir conhecimento haja vista que aquilo que noacutes chamamos de conhecimento natildeo eacuteum simples produto do conhecer mas sobretudo o produto advindo do processo sistemaacuteticodo conhecer que inclui aleacutem do produto advindo do conhecer a referecircncia agrave histoacuteria do

processo ou seja atraveacutes das recursotildees linguiacutesticas Sendo o conhecimento um produtomediado pela linguagem fica evidente tambeacutem que eacute atraveacutes das recursotildees linguiacutesticas que se

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constroem os diferentes sistemas de conhecimento tais quais mito religiatildeo filosofia ciecircnciae a arte

Se o conhecimento pode ser intermediado pela linguagem como compreendecirc-lo noacircmbito desta uacuteltima

Fizemos uma primeira aproximaccedilatildeo agrave questatildeo supracitada apontando o conhecimentocomo um meta-enredo que vai aleacutem dos ldquoenredos explicativos e dos enredos fenomecircnicosrdquo(Andrade e Silva 2005a 37)

Mas o que eacute um enredo explicativo O que eacute uma explicaccedilatildeoComo nos ensina Maturana (1997) uma explicaccedilatildeo eacute a proposiccedilatildeo de um mecanismo

gerativo que posto a operar (a funcionar) gera o fenocircmeno que se quer explicarExistem perguntas que pedem uma descriccedilatildeo e outras que pedem uma explicaccedilatildeo Por

exemplo Vocecirc gosta de chuva Esta pergunta pede um juiacutezo de valor que pode conter umadescriccedilatildeo Por outro lado quando perguntamos O que eacute a chuva Porque chove Estasperguntas pedem uma explicaccedilatildeo Ou seja dentro da pergunta estaacute embutido algo como medecirc um mecanismo que posto a operar gere o fenocircmeno que se quer explicar - a chuva

Ao expandir este tipo de argumento em um trabalho recente (Andrade 2010)chegamos a propor um conceito para conhecimento a partir das seguintes consideraccedilotildees

a) Considerando que o conhecimento eacute exclusivo do humano concluiacutemos que ele eacute umproduto do conhecer cultural humano e portanto o adjetivo cultural que demarca tantoas intermediaccedilotildees linguiacutesticas quanto a validaccedilatildeo deste produto por uma comunidade deobservadores deva estar na definiccedilatildeo conceitual de conhecimento

b) Considerando que grande parte do conhecimento humano eacute(i) constituiacutedo de enredos explicativos para enredos fenomecircnicos(ii) aceito por diferentes comunidades humanas dependendo dos diferentes criteacuterios de

validaccedilatildeo que estas mesmas comunidades humanas admitam em seu aceitar(iii)

erigido em grandes sistemas (mitologia religiatildeo filosofia e ciecircncia) a partir de (i) ede (ii)

Concluiacutemos que os enredos explicativos e a aceitaccedilatildeo dos mesmos por umadeterminada comunidade devam estar contidos na definiccedilatildeo conceitual de conhecimento

Considerando que tanto o conhecimento filosoacutefico quanto o cientiacutefico natildeo serestringem agrave produccedilatildeo de enredos explicativos e que a filosofia mais do que a ciecircncia eacute a arteda produccedilatildeo de conceitos (Deleuze e Guattari 1992) concluiacutemos que as formulaccedilotildeesconceituais devam constar da definiccedilatildeo de conhecimento

Considerando que o conhecimento humano eacute tambeacutem expresso por produtos de

ordem artiacutestica tecnoloacutegica e cientiacutefica e que estes produtos podem ser abstratos ouconcretos criados ou recriados concluiacutemos que os mesmos tambeacutem devam estar contidos nadefiniccedilatildeo conceitual de conhecimento

Assim conhecimento eacute o resultado do conhecer cultural humano expresso atraveacutes deenredos explicativos para enredos fenomecircnicos e de formulaccedilotildees conceituais estando tambeacutemincluso neste gecircnero de produto os objetos artiacutesticos religiosos filosoacuteficos tecnoloacutegicos ecientiacuteficos abstratos ou concretos criados ou recriados aceitos e utilizados por umadeterminada comunidade humana

Tendo afirmado que as recursotildees linguiacutesticas satildeo condiccedilotildees necessaacuterias para aproduccedilatildeo do conhecimento expandiremos o nosso entendimento sobre a linguagem tendo aBiologia do Conhecer como referencial teoacuterico

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4 Relaccedilatildeo corpo e linguagem nas ciecircncias linguiacutesticas

A pergunta sobre a relaccedilatildeo entre corpo e linguagem eacute quase tatildeo antiga quanto aproacutepria consideraccedilatildeo do fenocircmeno na linguagem no humano Essa discussatildeo de longa estirpe

abrange aleacutem da pergunta sobre as estruturas e processos anatocircmicos e fisioloacutegicosenvolvidos na produccedilatildeo e percepccedilatildeo dos sons da fala (uma tradiccedilatildeo bem estabelecida naIacutendia e natildeo na Greacutecia claacutessica) As estruturas e processos gerativos das regularidades quepermitem na linguagem o que observamos e comentamos como ldquoentendimento muacutetuordquoassim como as palavras as frases o significado o dizer e o modo de dizer sobre o mundoQuando Platatildeo propotildee haacute 2 mil anos no Craacutetilo (1994) o debate sobre as palavras seremartifiacutecios humanos ou relacionarem-se naturalmente agraves coisas ele estaacute perguntandoimplicitamente se haacute processos inerentes ao humano que decircem conta do fenocircmeno dasignificaccedilatildeo ou da denotaccedilatildeo (do apontar para as coisas do mundo)

Agrave primeira vista portanto a problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre corpo e linguagemparece ter que dar conta desses trecircs elementos que surgem na descriccedilatildeo tal como

tradicionalmente colocado no pensamento ocidental a) o fenocircmeno da linguagem no qualobservamos regularidades na descriccedilatildeo do mundo b) corpos humanos que de algum modoproduzem permitem ou experimentam a linguagem c) e um mundo situado fora dessescorpos que eacute descrito significado ou denotado pela linguagem e portanto direta ouindiretamente por aqueles corpos que produzem permitem ou experimentam a linguagemNa perspectiva da inter-relaccedilatildeo entre estes trecircs elementos mencionados - corpo linguagem emundo - a pergunta sobre o entendimento muacutetuo dos seres humanos acerca do mundo atraveacutesda linguagem eacute uma pergunta sobre a emergecircncia do significado

Em ciecircncia linguiacutestica aceita-se geralmente que o significado seja um aspecto dosigno linguiacutestico - pertinente portanto apenas ao universo do humano - que nos permiteldquoselecionar um ou outro aspecto do mundo natildeo-linguiacutesticordquo (Trask 2006 265) Para que osignificado cumpra o que promete ele deve ao mesmo tempo denotar (apontar para algo nomundo) e ter sentido (relacionar-se com os demais signos de um sistema linguiacutestico) Porexemplo a palavra ldquohumanardquo denota um ser no mundo com tais e tais propriedadesconsensualmente admitidas E a palavra ldquohumanardquo encerra os sentidos de membro de certaespeacutecie bioloacutegica ser feminino ou pessoa sensiacutevel na medida em que se relacionelinguisticamente com termos como ldquoser vivordquo ldquominha colega de trabalhordquo ldquohumanitaacuteriordquo eassim por diante

Essa abordagem do significado nos diz algo mais sobre a inter-relaccedilatildeo entre corpo elinguagem Ela nos diz que o mundo soacute eacute dado ao conhecimento do corpo pela linguagem (ouseja eacute pela linguagem que o corpo tem acesso ao mundo) E por outro lado que corpo e

mundo existem independente um do outro e ambos independente da linguagem mesmo quenatildeo haja nenhum modo de se ter acesso ao mundo a natildeo ser pela linguagem O mundo seriaentatildeo ldquoum soacuterdquo uma mesma realidade ainda que ao acessar o mundo pela linguagem doiscorpos (ou um corpo em momentos diferentes) possam experienciar mundos distintos(Eicheverria 1994)

Mas como de daacute entatildeo o fenocircmeno que observamos em que corpos individuais (sereshumanos individuais) tenham o mesmo acesso ao mundo - acesso a um mesmo mundo - oupelo menos experimentem uma regularidade na descriccedilatildeo desse mundo permitindo-osconversar sobre esse mundo de modo mutuamente compreensiacutevel As duas respostastradicionais em ciecircncias linguiacutesticas para essa questatildeo eacute que a linguagem eacute universal nohumano e por outro lado que a linguagem eacute especiacutefica da espeacutecie humana Ou seja de algum

modo (a resposta particular varia segundo determinadas linhas de pesquisa escolas ecorrentes de pensamento) estamos naturalmente equipados para produzir processar ou

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experienciar a linguagem de modo semelhante enquanto membros da mesma espeacutecie Porexemplo para a escola da gramaacutetica gerativa uma das mais influentes em ciecircnciaslinguiacutesticas e ligada ao cognitivismo no contexto das ciecircncias cognitivas o processo gerativobaacutesico da linguagem eacute a sintaxe a manipulaccedilatildeo de siacutembolos como um processo

geneticamente disponiacutevel na constituiccedilatildeo da arquitetura neural do humano que permite umaconvergecircncia do desenvolvimento linguiacutestico de qualquer falante (ceteris paribus) em umamesma comunidade de fala Podemos hierarquizar esse domiacutenio de explicaccedilotildees como noEsquema 1 abaixo

Corpo gt sintaxe gt interaccedilatildeo (linguagem)

Esquema 1 - Hierarquia do domiacutenio de explicaccedilotildees linguumliacutesticas

Explicitando a hierarquia acima a) o corpo humano possui tais e tais caracteriacutesticasanatocircmicas e fisioloacutegicas universais e especiacuteficas da espeacutecie b) essas caracteriacutesticas

universais produzem regularidades gerativas como a sintaxe c) finalmente essasregularidades permitem a interaccedilatildeo linguiacutestica entre os corpos humanos o conversar oapontar comum para as coisas do mundo

Assim como acontece em muitas outras linhas investigativas da linguiacutestica agramaacutetica gerativa explica a linguagem aceitando como princiacutepio explicativo que alinguagem eacute um produto do corpo no caso mediado pela sintaxe No caso da gramaacuteticagerativa o mecanismo gerativo (a explicaccedilatildeo) da linguagem eacute a sintaxe um sistema demanipulaccedilatildeo de siacutembolos embutido em nossa arquitetura neural Outras explicaccedilotildees de outrasescolas falam do envolvimento do ceacuterebro na accedilatildeo de denotar de apontar para coisas domundo Outras ainda sobre a capacidade cognitiva de aprender a linguagem emcorrespondecircncia com os fatos do mundo Em um e outro caso as regularidades encontradasna linguagem seja a sintaxe ou os siacutembolos ao mesmo tempo em que satildeo produzidas ouaprendidas pelo corpo (humano) tornam-se o mecanismo que explica o fato de podermosconversar uns com os outros acerca do mundo

O problema das abordagens supracitadas eacute que a relaccedilatildeo entre corpo e linguagem natildeoeacute explicitada ainda que o corpo seja apontado como causando a linguagem o corpo aqui eacuteutilizado como um princiacutepio explicativo De onde vem a linguagem Resposta dasregularidades (a sintaxe ou os siacutembolos) E de onde vecircm as regularidades De um corpogeneticamente dotado para produzir tais regularidades Para noacutes no entanto a perguntacrucial sobre a linguagem eacute justamente entender como dado um organismo vivo (que podeser um ser humano) surge o fenocircmeno do conversar do apontarmos juntos para as coisas As

relaccedilotildees entre a corporeidade os domiacutenios linguumliacutesticos e o linguajar humano seratildeo expandidasnos toacutepicos seguintes

5 Relaccedilatildeo corpo e linguagem na abordagem da Biologia do Conhecer

No contexto da escola chilena da Biologia do Conhecer (BC) uma abordagemsistecircmica para a explicaccedilatildeo do viver e do conhecer um sistema vivo eacute uma organizaccedilatildeoautopoieacutetica (Maturana e Varela 1997) Isso faz referecircncia agrave produccedilatildeo (poiesis) no curso doviver dos proacuteprios elementos que constituem a cada momento o sistema vivo Em segundolugar esse sistema (assim como qualquer sistema passiacutevel de uma explicaccedilatildeo cientiacutefica) eacute umsistema determinado estruturalmente Isso significa que tudo o que acontece com o sistema

depende a cada momento de sua proacutepria estrutura e natildeo da instruccedilatildeo interna determinadapelas perturbaccedilotildees externas ainda que as perturbaccedilotildees possam desencadear as mudanccedilas

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internas determinadas pela estrutura do organismo Observar essa dinacircmica organismo-meionos permite dizer enquanto observadores do processo que o sistema muda a cada momentoem congruecircncia com a sua histoacuteria de interaccedilotildees (Vianna 2008) Ainda dentro das coerecircnciasexplicativas da BC devemos fazer a distinccedilatildeo entre organizaccedilatildeo e estrutura A organizaccedilatildeo eacute

o sistema como um todo definido pela relaccedilatildeo entre seus componentes se a organizaccedilatildeo seperde o sistema natildeo existe mais enquanto sistema de um determinado tipo A estrutura (arelaccedilatildeo particular entre os componentes do sistema) pode variar sem perda da organizaccedilatildeo(Maturana e Varela 1990) No caso do vivo essa diferenccedila entre estrutura e organizaccedilatildeo eacutecrucial pois o vivo eacute um sistema dinacircmico variando estruturalmente sem perder aorganizaccedilatildeo ou seja o vivo sofre contiacutenuas mudanccedilas estruturais com conservaccedilatildeo daorganizaccedilatildeo em toda a sua ontogenia do nascimento ateacute a morte sem a perda da organizaccedilatildeoautopoieacutetica (Maturana e Varela 1990 Vianna e Goacutemez-Soriano 2007)

Ao observar um sistema vivo distinguimos dois domiacutenios distintos que natildeo seintersectam operacionalmente (apesar de como observadores possamos apontar umacorrespondecircncia entre os dois) no domiacutenio da fisiologia observamos as relaccedilotildees particulares

e dinacircmicas entre os componentes do organismo e no domiacutenio do comportamentoobservamos o organismo em sua totalidade em interaccedilatildeo com o meio (Maturana 1997)

Como tanto o organismo quanto o meio satildeo sistemas determinados estruturalmentetudo o que acontece com cada um deles eacute determinado pelas respectivas estruturas de ambos enatildeo pela instruccedilatildeo de um sobre o outro No entanto as modificaccedilotildees estruturais por que passao organismo possuem uma correspondecircncia histoacuterica justamente com o curso de suasinteraccedilotildees com o meio o organismo iraacute mudar em congruecircncia com as perturbaccedilotildees do meioassim como o meio iraacute mudar de forma correspondente em acordo com as interaccedilotildees com oorganismo Esse processo de interaccedilotildees recorrentes do organismo em um meio eacute chamado porMaturana e Varela de acoplamento estrutural Conservar o acoplamento estrutural com o meioeacute condiccedilatildeo necessaacuteria para a conservaccedilatildeo da autopoiese - organizaccedilatildeo a que pertence o servivo A histoacuteria ontogeneacutetica e filogeneacutetica em que o vivo se manteacutem em acoplamentoestrutural com o meio mudando a estrutura mas conservando a sua organizaccedilatildeo eacutedenominado de deriva natural Se mais de um organismo estaacute envolvido o processo como umtodo eacute denominado de co-deriva natural (Maturana e Podozis 1992)

No caso do observador descrever dois (ou mais) organismos em interaccedilotildeesrecorrentes o olhar do observador estaraacute direcionado para o sistema como um todo ou sejaaquele constituiacutedo pelos dois ou mais organismos e o entorno Nos termos da BC issosignifica que suas respectivas organizaccedilotildees autopoieacuteticas satildeo conservadas em coerecircncia com ahistoacuteria das relaccedilotildees entre os dois sistemas vivos observados e referenciados Veja queoperacionalmente para o organismo tudo o que existe satildeo perturbaccedilotildees externas que ele iraacute

tratar como perturbaccedilotildees de um ou outro tipo dependendo de sua proacutepria estrutura interna Oorganismo natildeo distingue entre um meio inerte e um sistema vivo Quem faz essa distinccedilatildeosomos noacutes observadores na descriccedilatildeo de um sistema em que podemos observar ao mesmotempo o curso das interaccedilotildees e as mudanccedilas estruturais do organismo ou dos organismosenvolvidos

6 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem

O fato de ser preciso um observador para fazer a distinccedilatildeo entre fisiologia ecomportamento natildeo eacute secundaacuterio mas crucial isso significa que estamos levando em contana explicaccedilatildeo o fundamento bioloacutegico do linguajar que eacute a coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de

accedilotildees em um domiacutenio consensual O observador eacute um organismo (no caso um organismohumano) que diz aquilo que diz de acordo com a sua proacutepria experiecircncia mas diz o que diz a

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outro observador que iraacute escutaacute-lo a partir de uma histoacuteria de interaccedilotildees (ou de uma mesmacomunidade de conversaccedilotildees) e iraacute coordenar suas accedilotildees de forma correspondente agrave interaccedilatildeona linguagem

A manutenccedilatildeo do acoplamento estrutural entre os organismos participantes de uma

interaccedilatildeo recursiva configura um domiacutenio linguiacutestico Veja que para haver um domiacuteniolinguiacutestico nos termos da BC natildeo eacute necessaacuteria a participaccedilatildeo de um organismo humano nainteraccedilatildeo Bastam coordenaccedilotildees de accedilotildees recursivas entre dois ou mais organismos emacoplamento estrutural co-ontogecircnico Ainda uma rede social pode ser formada como umarede de interaccedilotildees consensuais e recursivas entre os membros de uma mesma comunidade deorganismos Nos termos da BC o que eacute peculiar agraves interaccedilotildees humanas eacute que as proacutepriascoordenaccedilotildees de accedilotildees co-ontogecircnicas ou seja o comportamento consensual eacute utilizadocomo elemento para novas coordenaccedilotildees de accedilotildees Linguagem satildeo coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais Eacute como se desse uma volta sobre a voltarecursivamente ou seja incorporando continuamente a experiecircncia e a criaccedilatildeo da novidade(linguiacutestica) no rodar

Ainda que para a Biologia do Conhecer seja possiacutevel que noacutes seres humanospossamos manter coordenaccedilotildees condutuais com outros organismos natildeo-humanos (nossosanimais domeacutesticos por exemplo) natildeo vivemos com eles ininterruptamente na linguagem

Veja que para falar de domiacutenio linguiacutestico e de linguagem aqui natildeo precisamos fazerreferecircncia a nenhum elemento tradicionalmente descrito como caracteriacutestico da fala humanaNenhum som gesto ou desenho particular pertence agrave linguagem Da mesma forma qualquersom gesto ou desenho particular pode pertencer agrave linguagem pois essa eacute definidahistoricamente Se haacute recursatildeo se haacute consenso se no curso da interaccedilatildeo aquele som gesto oudesenho eacute distinguido como um elemento na coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de accedilotildees recursivase consensuais ele faraacute parte da linguagem na descriccedilatildeo do observador (Eicheverria 1994) Omesmo se daacute com outras regularidades percebidas na liacutengua como a sintaxe A sintaxe soacutepode ser descrita como uma regularidade das interaccedilotildees linguiacutesticas a partir do momento emque se tornem consensuais e recursivas Eacute preciso fazer referecircncia agrave histoacuteria ao curso deinteraccedilotildees para se dizer que uma palavra pertence agrave linguagem E como as interaccedilotildeeslinguiacutesticas podem conformar uma comunidade de interaccedilotildees (como no caso humano)podemos dizer que as palavras satildeo ldquonoacutesrdquo nessa rede de interaccedilotildees consensuais e recursivas

Uma exigecircncia na BC eacute que em uma explicaccedilatildeo mecanicista eacute preciso distinguir entreum sistema e seus componentes tratando-os como ldquounidades operacionalmente diferentesque pertencem a conjuntos discretos que geram domiacutenios fenomecircnicos que natildeo seintersectamrdquo (Maturana 1997 27) Isso eacute exatamente o que um observador faz quandodistingue os componentes de um sistema vivo (a fisiologia) ou de outro lado o operar desse

sistema em um meio (o comportamento) Assim fisiologia e conduta satildeo dois domiacuteniosdiferentes operacionalmente disjuntos e natildeo podem ser confundidos sob pena de cometerequiacutevocos na descriccedilatildeo Por exemplo pode se falar que a memoacuteria depende da atividade dasredes neurais enquanto propriedade emergente desta rede mas eacute um equivoco falar que amemoacuteria estaacute guardada nos neurocircnios haja vista que a memoacuteria pertence agrave relaccedilatildeo doindividuo (corpo) com o meio e natildeo do sistema nervoso (domiacutenio da fisiologia) diretamentecom o meio externo Afirmar isto seria um reducionismo Se haacute reduccedilatildeo fenomecircnica aexplicaccedilatildeo pressupotildee uma forccedila vital (vitalismo) e natildeo um mecanismo

Nesta perspectiva devemos tambeacutem distinguir os elementos de uma interaccedilatildeolinguiacutestica (os organismos e os sons gestos ou desenhos utilizados na interaccedilatildeo) e a proacutepriainteraccedilatildeo Nenhum elemento do organismo eacute responsaacutevel por ldquoproduzirrdquo linguagem pois a

linguagem estaacute no domiacutenio interpessoal e natildeo pode portanto ser reduzida agrave fisiologia doorganismo sob pena de um equiacutevoco reducionista Da mesma forma nenhuma palavra (sons

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gestos ou desenhos) ou gramaacutetica pode ser colocada em uma posiccedilatildeo gerativa da linguagem justamente por dependerem do consenso para surgirem As palavras e a gramaacutetica jaacute fazemparte da descriccedilatildeo da linguagem no momento em que esses elementos satildeo descritos como umaparte dela

Destarte o modo de vida humano surge e se conserva na linguagem como modo deconservar sua organizaccedilatildeo Para Maturana (1997 168) o humano vive nesse ldquofluir deinteraccedilotildees recorrentesrdquo E como a fisiologia muda em congruecircncia com a histoacuteria dasinteraccedilotildees do organismo devemos esperar uma correspondecircncia estrutural do organismohumano com o curso de suas interaccedilotildees na linguagem Do mesmo modo ao falarmos doprocesso de denotaccedilatildeo de apontar para um mundo laacute fora com nossas palavras natildeoprecisamos fazer referecircncia nem a uma constituiccedilatildeo cognitiva preacutevia do humano (pois esse eacuteum domiacutenio que natildeo se intersecta com o domiacutenio comportamental) e nem a uma realidadeldquoinformativardquo laacute fora (pois tudo o que acontece com o organismo eacute determinado neleestruturalmente) Falamos da denotaccedilatildeo como se estiveacutessemos apontando para um mundopreacutevio laacute fora mas tudo o que estamos fazendo de fato eacute coordenando nossas accedilotildees com

outros observadoresAssim a denotaccedilatildeo como afirma Maturana (1997 150) ldquonatildeo eacute uma operaccedilatildeo

primitiva Ela requer concordacircncia - consenso - para a especificaccedilatildeo tanto do denotantequanto do denotado Se a denotaccedilatildeo portanto natildeo eacute primitiva natildeo pode ser tampouco umaoperaccedilatildeo linguiacutestica primitivardquo

Se denotaccedilatildeo natildeo eacute uma operaccedilatildeo primitiva natildeo eacute preciso fazer referecircncia a umarealidade externa ldquointermediadardquo pela linguagem De fato apontamos (descrevemos)consensualmente para objetos do mundo e eacute na descriccedilatildeo desse apontar para os objetos demodo consensual que surge ao mesmo tempo a denotaccedilatildeo e os objetos que trazemos agrave matildeono linguajar A linguagem eacute um espaccedilo de relaccedilotildees em que nos movemos e eacute neste moverrecursivo na linguagem que surgem tanto o ato de observar quanto o proacuteprio observador

7 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem natildeo-humana

Iniciaremos este toacutepico fazendo uma pergunta provocativa qual seja eacute possiacutevel falarem linguagem natildeo-humana

Ainda que a BC natildeo utilize o termo ldquolinguagemrdquo para as interaccedilotildees recorrentes natildeo-humanas nesse domiacutenio explicativo podemos pelo menos tratar essas interaccedilotildees de modobem diferente das abordagens tradicionais da psicologia comparada e da etologia

O bonobo (Pan paniscus) Kanzi eacute a estrela nas pesquisas com linguagem siacutemia oulinguagem natildeo-humana da psicologia comparada Kanzi comunica-se basicamente atraveacutes

de um teclado de ldquolexigramasrdquo siacutembolos criados na deacutecada de 70 para experimentos emlinguagem siacutemia mas que posteriormente foram utilizados tambeacutem para o trabalho comcrianccedilas humanas autistas Kanzi estava sempre por perto durante o treinamento de sua matildeeadotiva Matata e foi observado utilizando o teclado algumas vezes No dia seguinte agrave saiacutedade Matata do experimento (para fins de procriaccedilatildeo) houve a primeira tentativa de treinamentoformal de Kanzi Nesse primeiro dia de aula Kanzi utilizou o teclado de lexigramas 120vezes sem ter sido requisitado a fazecirc-lo Comunicou-se fluentemente com a pesquisadora SueSavage-Rumbaugh atraveacutes dos lexigramas e segundo a investigadora sabia o que ossiacutembolos significavam (Savage-Rumbaugh e Lewin 1994)

A carreira de Kanzi prossegue (ainda hoje) com outras conquistas linguiacutesticas ecognitivas tatildeo reveladoras quanto seu desempenho precoce com os lexigramas Kanzi

desenvolveu um repertoacuterio vocal proacuteprio e controlado utilizado em seus processosinteracionais com humanos e outros siacutemios aleacutem da compreensatildeo do inglecircs falado Muito da

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admiraccedilatildeo pelo desempenho de Kanzi vem de sua manipulaccedilatildeo de siacutembolos equivalentesagravequeles utilizados num contexto humano e accedilotildees igualmente apropriadas para o observadorhumano (eacute justamente o desempenhar de ldquoaccedilotildees apropriadasrdquo o que nos leva a dizer aoobservar a performance de Kanzi que o que ele faz eacute linguagem) Pensamos no entanto que

o dado mais fundamental da ontogenia de Kanzi que nos leva a apontaacute-lo como um serlinguiacutestico foram seus processos relacionais Os modos de aquisiccedilatildeo linguiacutestica de Kanzi aomenos inicialmente natildeo eram parte de um experimento formal mas o resultado da relaccedilatildeo co-ontogecircnica estabelecida com a matildee e os cuidadores humanos e da relaccedilatildeo ecoloacutegicaestabelecida com atividades palavras e objetos ligados agrave investigaccedilatildeo cruciais para Kanzioferecer respostas linguiacutesticas consideradas adequadas por seus investigadores independentedo ceticismo do restante da comunidade cientiacutefica No caso de Kanzi e nos termos da BCpodemos dizer que esse organismo pelo menos nos momentos em que ele coordena juntocom os investigadores accedilotildees consensuais coordenadas estaacute na linguagem com osobservadores humanos Frans de Wall (2007) relata vaacuterios exemplos dessas recursotildeeslinguiacutesticas de bonobos com humanos em seu livro intitulado ldquoEu primatardquo

Outro caso interessante que talvez natildeo diga respeito agrave linguagem (nos termos da BC)mas ao menos agraves coordenaccedilotildees recursivas que conformam um domiacutenio linguiacutestico eacute o docavalo Clever Hans (Candland 1993)

Em 1980 Thomas Sebeok organizou sob os auspiacutecios da New York Academy ofSciences um Congresso intitulado ldquoThe Clever Hans Phenomenon Communication withHorses Whales Apes and Peoplerdquo (Candland 1993) O propoacutesito poliacutetico do congresso foimuito mais discerniacutevel que seu conteuacutedo cientiacutefico a comeccedilar pelo tiacutetulo o ldquofenocircmenoClever Hansrdquo cuja simples menccedilatildeo eacute suficiente para lanccedilar suspeitas sobre qualquer pesquisaem linguagem natildeo-humana

O cavalo Clever Hans mobilizou vaacuterios estudiosos no iniacutecio do seacuteculo XX paraentender como esse animal aleacutem de compreender alematildeo falado respondia corretamente agravesperguntas feitas batendo os cascos no chatildeo ou realizando outros movimentos corporais Em1904 foi constituida uma comissatildeo reunindo zooacutelogos professores donos de circo e ateacutemilitares para avaliar o fenocircmeno Os membros da comissatildeo investigavam a possibilidade detruques principalmente pistas natildeo-verbais dadas por seu cuidador Wilhem Von Osten maschegaram agrave conclusatildeo que apesar de natildeo ser possiacutevel avaliar a inteligecircncia de Clever Hansnenhum truque podia ser detectado O psicoacutelogo Oskar Pfungst (aluno de Carl Stumpfmembro da Comissatildeo) continuou os estudos com Hans e por meio de engenhososexperimentos formulou a hipoacutetese de que o cavalo por algum meio natildeo compreendido eracapaz de detectar mudanccedilas comportamentais na audiecircncia iniciando ou completando seusproacuteprios movimentos indicativos da resposta (Candland 1993)

Se a histoacuteria investigativa do cavalo Clever Hans eacute admiraacutevel o mito Clever Hansatingiu uma dimensatildeo cientiacutefica bem maior alimentado igualmente por opositores edefensores dos estudos em linguagem natildeo-humana Segundo esse mito bem difundidoPfungst ldquodesvendou a farsardquo demonstrando que Clever Hans natildeo era nem inteligente nemlinguiacutestico mas um animal induzido por pistas inadvertidas de Van Osten e outros membrosda audiecircncia Para os pesquisadores em linguagem natildeo-humana portanto o desafio eacutedemonstrar para a comunidade acadecircmica que a proacutepria pesquisa natildeo sofre o ldquoefeito CleverHansrdquo seus sujeitos natildeo recebem pistas natildeo-verbais dos investigadores humanos Mas seraacutepossiacutevel isolar experimentalmente na linguagem o siacutembolo dos processos gerativos dessesiacutembolo

Pfungst demonstrou algo que para noacutes eacute mais fundamental que um conhecimento

ldquodenotativordquo ou ldquosimboacutelicordquo de Clever Hans Talvez por sua vivecircncia co-ontogecircnica com otratador talvez por ser um organismo particularmente orientado para as accedilotildees humanas o

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cavalo foi capaz de coordenar suas accedilotildees com as accedilotildees humanas E estando ou natildeo nalinguagem (na condiccedilatildeo de observador) Clever Hans foi capaz de transformar suascoordenaccedilotildees de accedilotildees em palavras - em noacutes na rede conversacional - para a audiecircnciahumana Para os observadores naquele momento Clever Hans estava dizendo algo

8 A emergecircncia da autoconsciecircncia e a epigrafe de Nietzsche

Mesmo reconhecendo que termos como consciecircncia e autoconsciecircncia satildeopolissecircmicos e que os seus significados dependem do referencial teoacuterico a partir do qual sefala e que mesmo dentro de uma mesma teoria ainda assim eles podem ser mateacuteria deintensos debates (Searle 1998) vamos primeiramente nos posicionar e explicitar o queestamos denominando com a expressatildeo ldquoemergecircncia da autoconsciecircnciardquo

Assim o que estamos conotando como emergecircncia da autoconsciecircncia ou auto-reflexividade eacute somente a capacidade do homem de fazer referecircncia a si e ao mundo com oqual interage utilizando o corpo e as recursotildees linguiacutesticas

Acreditamos que a dificuldade de compreender a autoconsciecircncia como um fenocircmenoimanente particular ao viver bioloacutegico humano reside no fato de termos de encontrar omecanismo pelo qual somos capazes de distinguir a noacutes mesmos como se fossemos entidadesindependentes de nosso proacuteprio viver e ao mesmo tempo de especificarmos um eu que noshabita e que portanto eacute dependente de nossa biologia

Este aparente paradoxo pode ser resolvido se aceitarmos que a operaccedilatildeo deautoconsciecircncia eacute uma distinccedilatildeo reflexiva de um ldquoeurdquo forjado na linguagem de tal forma queeste eu natildeo somente constitui o corpo que surge na distinccedilatildeo mas tambeacutem que este eu podeser referenciado como uma abstraccedilatildeo no fluir da rede linguiacutestica

Para tornar mais claro este argumento desdobraremos a questatildeo em duas perguntasquais sejam 1- Como este eu corpoacutereo e abstrato eacute capaz de fazer referecircncia ao mundo e seauto-referenciar ou seja como nos tornamos observadores 2- Como os laccedilos da redelinguiacutestica que nos liga uns aos outros e ao mundo mesmo se mantendo na exterioridade denossa corporeidade nas franjas das relaccedilotildees interpessoais cria em noacutes o que em noacutes eacute tatildeointimo - a autoconsciecircncia

Vamos tentar responder estas duas perguntas e esperamos que ao final tenhamosexplicado nossa indagaccedilatildeo inicial qual seja como nos tornamos autoconscientes no devir

Cocircnscios de que toda explicaccedilatildeo exige tanto uma condiccedilatildeo formal mecanismogerativo quanto uma informal aceitabilidade convidamos o leitor para participar conosco daformulaccedilatildeo de um mecanismo gerativo para a autoconsciecircncia Antes poreacutem faremos umasolicitaccedilatildeo sem a qual seraacute impossiacutevel caminharmos juntos eacute indispensaacutevel romper com a

crenccedila de que representamos os objetos que estatildeo no mundo em nossa mente como umespelhoA razatildeo de nosso alerta e de nossa controversa adveacutem do fato de que tanto a ceacutelula

nervosa quanto o sistema nervoso como um todo eacute sensiacutevel somente agrave intensidade dos sinaisquiacutemicos de seu proacuteprio modo de operar e portanto natildeo podem captar e processarinformaccedilotildees ou qualidades do mundo laacute fora como muacutesica cheiro sabor cores etc Ou sejanatildeo haacute uma correspondecircncia ponto a ponto do que acreditamos ser o mundo laacute fora com oque acreditamos ser o mundo de dentro - nossa mente Somente para se ter uma ideia daordem de grandeza e do diferencial que separa estes dois mundos para os duzentos outrezentos milhotildees de receptores sensoriais haacute cerca de dez bilhotildees de sinapses no sistemanervoso sugerindo que as dinacircmicas internas de nosso proacuteprio organismo ao se

entrecruzarem com as perturbaccedilotildees advindas do meio externo participam na criaccedilatildeo interna

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do que o organismo vecirc ldquosenterdquo e nomeia tais como cores sons e sensaccedilotildees (Von Foster1994)

Quais as consequecircncias desse entendimento para nossa discussatildeoA consequecircncia mais fundamental eacute a de que o mundo laacute fora com os seus objetos e

acontecimentos natildeo preacute-existem ao observador pois que eles natildeo satildeo entidades primaacuterias aoato de observar e portanto independentes da biologia do observador As caracteriacutesticas quesupostamente satildeo dadas agraves coisas mostram-se tambeacutem como caracteriacutesticas do observador Ascores natildeo estatildeo laacute fora independentes de nossa biologia mas tambeacutem natildeo estatildeo caacute dentroindependentes de nosso mundo cultural Se isso eacute assim nega-se tanto o realismo de ummundo predeterminado que o organismo eacute capaz de representar quanto o idealismo que tomaa percepccedilatildeo como uma projeccedilatildeo de um mundo interno predeterminado (Varela et al 2003)

Eacute com essa dupla negaccedilatildeo que se diz que os objetos natildeo antecedem agrave distinccedilatildeo quedeles eacute feita pelo observador Os objetos surgem na praacutexis do viver do observador e o que eacuteessa praacutexis do viver humano senatildeo as coordenaccedilotildees de coordenaccedilotildees de accedilotildees que realizamosem nosso cotidiano

Seguindo esta linha de raciociacutenio o observar surge no domiacutenio das coerecircnciasexperienciais inerentes ao proacuteprio viver Ao darmos ecircnfase ao processo deslocamos a posiccedilatildeodo observador de ente corporificado para ente operacional

Se o leitor aceitou que eacute impossiacutevel a este ente operacional fazer referecircncia a algo forade seu domiacutenio de experiecircncias fora de sua proacutepria histoacuteria deduz-se que os objetos o corpoe suas partes e por extensatildeo o proacuteprio ldquoeurdquo surgem no operar das coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais ou seja na linguagem Eacute importante notar que emboraenclausurados em nossa proacutepria biologia noacutes soacute nos tornamos observadores na presenccedila dooutro ao partilharmos do processo recursivo e transgeracional que eacute o viver na linguagem

O importante eacute que noacutes repetimos esse processo conservado transgeracionalmente emcada ontogenia Assim quando nascemos e nos inserimos no mundo atraveacutes das primeirastriangulaccedilotildees criadas pelo apontar da matildee no sentido lato deste termo para um objeto quepode ser o nosso corpo ou parte dele jaacute estamos na linguagem

A necessidade do outro fundado na relaccedilatildeo jaacute nos coloca frente ao desafio deresponder agrave segunda questatildeo anteriormente formulada qual seja como os laccedilos de uma redelinguiacutestica podem criar em noacutes o que em noacutes eacute tatildeo intimo - a autoconsciecircncia

A Biologia do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode serentendido como uma co-emergecircncia da experiecircncia de um mundo vivido e da identidade doeu vivente (Varela et al 2003) No entanto haacute de se fazer uma ressalva a experiecircncia eacuteclaramente um evento pessoal mas isso natildeo significa que seja um evento privado no sentidode algum tipo de sujeito isolado que caiu de paacutera-quedas sobre um mundo objetivo

previamente dado Se aceitarmos a ressalva que a experiecircncia eacute tanto um evento pessoalporque necessariamente auto-referencial mas tambeacutem coletivo porque necessariamenterelacional poderemos compreender o surgimento de seres vivos capazes de fazer referecircnciaao mundo e se auto-referenciar sem termos de apelar para uma transcendecircncia ou para aimanecircncia de um suposto ldquoeurdquo independente e centro desta vivecircncia (Varela et al 2003)

Seria este o entendimento de Nietzsche (que noacutes recusamos a acreditar) o corpo queprocede como um ldquoeurdquo sem precisar falar

9 Referencias bibliograacuteficas

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Exemplo 2 um time contrata um jogador estrangeiro ateacute entatildeo completamentedesconhecido da torcida O estaacutedio estaacute lotado O que eacute que a torcida tem de observar parareconhecer se o novo jogador eacute bom (conhece sabe) de bola Resposta analisa a sua condutaem face do contexto do jogo entre as quatro linhas do gramado

Note que no primeiro exemplo o observador eacute uma uacutenica pessoa e o seu julgamentopoderaacute ser soberano se natildeo houver equiacutevocos eou reclamaccedilotildees generalizas caso em quepoderaacute haver um questionamento por parte dos estudantes e em certas situaccedilotildees ateacute aconvocaccedilatildeo de uma banca examinadora para referendar ou natildeo a correccedilatildeo do professor Noexemplo 2 a comunidade de observadores eacute composta por milhares de pessoas ou mesmo demilhotildees se o jogo for televisionado e portanto o julgamento sobre o desempenho do jogador- se ele eacute ruim razoaacutevel bom ou craque - dependeraacute de vaacuterios fatores dentre os quais aatuaccedilatildeo do atleta no campo as condiccedilotildees do jogo e tambeacutem o grau de conhecimento eexigecircncia do observador eou da comunidade de observadores em termos da arte futeboliacutestica

Tomando estes dois exemplos em conjunto gostariacuteamos de ressaltar que o conhecerenquanto comentaacuterio sobre uma conduta eacute relativo e portanto quanto maior o nuacutemero de

observadores e de comentaacuterios aumenta tambeacutem a chance de ocorrer divergecircnciasSe os exemplos e a argumentaccedilatildeo acima foi entendida e aceita fica evidente que a

questatildeo sobre o conhecer passa necessariamente pelas experiecircncias da vida cotidiana eportanto o que devemos explicar quando nos perguntamos sobre o conhecer eacute a experiecircncia -o experienciar ndash e eacute prontamente isso que vincula a questatildeo do conhecer agrave biologia Essavinculaccedilatildeo tem sido enfatizada de forma original por alguns autores (Piaget 1970 1975Maturana e Varela 1997) no entanto para o nosso propoacutesito neste ensaio eacute suficiente quefaccedilamos a seguinte pergunta cognitiva como o ser vivo se manteacutem vivo

Como eacute evidente a resposta para essa pergunta estaraacute sempre vinculada agrave biologiaporque qualquer que seja o domiacutenio especificado pelo observador ele estaraacute sempre fazendouma referecircncia ao viver e ao seguir vivendo de um ou outro organismo em face de umcontexto de um nicho

Nesta oacutetica podemos ampliar a definiccedilatildeo do conhecer para fora do acircmbito humano eassim aceitar que todos os organismos vivos atuais possuem uma conduta adequada aoscontextos (nichos) em que vivem e portanto estatildeo em ato contiacutenuo de conhecer o mundo emque vivem justificando-se assim o aforismo ldquoviver eacute conhecerrdquo anunciado pelosneurobioacutelogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (1990 1997)

Eacute precisamente este ldquose manter vivordquo em acoplamento estrutural com o meio queestamos conotando como o conhecer bioloacutegico Ou seja todo organismo vivo estaacute momentoa momento em ato contiacutenuo do conhecer

Assim natildeo devemos nos surpreender (exemplo 3) quando um paacutessaro mergulha para

capturar um peixe abaixo da linha drsquoaacutegua e mesmo sem conhecer a lei de refraccedilatildeo de Snell(n1middotsenθ1 = n2middotsenθ2) eacute bem sucedido em seu empreendimento E o peixe que conhecia omundo drsquoaacutegua eacute interrompido bruscamente no seu ato contiacutenuo de conhecer o mundo(drsquoaacutegua) perde o acoplamento estrutural com o seu meio e morre Nesse caso tanto o paacutessaroquanto o peixe conhecem o mundo em que vivem e podem morrer quando deixam de estar emato contiacutenuo de conhecer isto eacute quando perdem o acoplamento estrutural com o meioMorre-se quando se deixa de saber viver Morre-se quando se deixa de conhecer

Ainda que para muitos parece uma heresia aceitar que os vegetais tambeacutem conhecemo mundo em que vivem argumentamos que o conhecer dos vegetais em seu nicho ecoloacutegico eacuteuma situaccedilatildeo isoacutefora (da mesma forma) daquela relatada anteriormente sobre o professor comseus estudantes (ex 1) ou da torcida em relaccedilatildeo ao jogador (ex 2) Ou seja o que o

observador aponta como o conhecer eacute sempre uma conduta adequada de um organismo emface de um contexto Eacute a partir deste entendimento que deveremos compreender os dizeres do

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grande naturalista Charles Darwin (2002) em sua obra claacutessica ldquo A origem das espeacuteciesrdquo de1989 quando ele comparou a extremidade das raiacutezes das plantas com o sistema nervoso dosanimais apontando a capacidade das raiacutezes de captar sinais do resto do corpo do vegetal ecom isto direcionar os seus proacuteprios movimentos Destarte se os vegetais tambeacutem possuem

uma conduta adequada ao contexto em que vivem haacute de se concluir que eles tambeacutemconhecem o mundo em que vivem mesmo que esta conduta seja mais difiacutecil de serobservada como o lento movimento das raiacutezes geralmente para baixo o lento movimento dasgavinhas as mudanccedilas na disposiccedilatildeo angular das folhas em resposta aos raios de sol aabertura ou fechamento dos estocircmatos em resposta ao calor a produccedilatildeo de neacutectar e desubstacircncias que mimetizam a accedilatildeo de feromocircnios de insetos atraindo-os para si e garantindoo processo da polinizaccedilatildeo Assim a partir do conjunto de mudanccedilas condutuais das plantasem face ao mundo que as cercam advogamos que elas assim como os outros entes bioloacutegicosque com elas constroem e compartilham a teia da vida conhecem o mundo em que vivem

E os seres unicelulares Advogamos que eles tambeacutem conhecem o mundo em quevivem Haacute de se ressaltar que eles estatildeo no planeta terra desde a origem da vida estimada

hoje em 38 bilhotildees de anos e portanto haacute mais tempo que a totalidade das espeacuteciesmulticelulares Aleacutem disto os unicelulares apresentam grande diversidade bioloacutegica e umenorme nuacutemero de estrateacutegias bioquiacutemicas para exploraccedilatildeo de diferentes nichos ecoloacutegicosincluindo lugares escaldantes gelados radioativos aacutecidos ou baacutesicos e ainda as profundezasdo mar e da terra Em estudos de possiacuteveis cenaacuterios catastroacuteficos os microrganismos semprelevam vantagens em termos de sobrevivecircncia A tiacutetulo de exemplo organismos como osestromatoacutelitos apresentam-se em ato contiacutenuo de conhecer o mundo em que vivem haacute bilhotildeesde anos

Haacute de se fazer agora uma distinccedilatildeo importante enquanto os animais com centrosnervosos diferenciados e complexos como o de nossa proacutepria espeacutecie ndash H Sapiens - podemapresentar um aprendizado relativamente raacutepido cumulativo transgeracional e cultural oconhecer dos outros organismos vivos deriva-se geralmente de processos histoacutericos longosAssim por exemplo sabe-se atraveacutes de registros paleontoloacutegicos que as interaccedilotildeescooperativas eou simbiocircnticas entre alguns insetos e as plantas com flores datam doCretaacuteceo haacute cerca de 100 milhotildees de anos atraacutes (Dawkins 2004) Mas mesmo assim tanto osinsetos quanto as plantas possuem uma histoacuteria filogeneacutetica ainda muito mais remota A esteconhecer produto desta longa histoacuteria filogeneacutetica no planeta denomina-se conhecerfilogeneacutetico ou evolutivo (Vieira 2001 Andrade e Silva 2005b)

Haja vista que o conhecer e o conhecimento satildeo usados indistintamente tanto pelosdicionaacuterios quanto pela maioria dos autores para definir cogniccedilatildeo noacutes nos perguntamosexiste alguma distinccedilatildeo entre eles

3 Sobre a distinccedilatildeo entre o conhecer e o conhecimento

Em artigo anterior (Andrade e Silva 2005a) propusemos uma distinccedilatildeo entre oconhecer e o conhecimento que vai para aleacutem da simples diferenccedila morfossintaacutetica destasduas palavras verbo e substantivo respectivamente Ou seja ainda que possamos afirmar quetodos os organismos vivos satildeo sistemas cognitivos e portanto capazes de conhecer o mundoem que vivem natildeo podemos afirmar no entanto que todos os organismos vivos satildeo capazesde produzir conhecimento haja vista que aquilo que noacutes chamamos de conhecimento natildeo eacuteum simples produto do conhecer mas sobretudo o produto advindo do processo sistemaacuteticodo conhecer que inclui aleacutem do produto advindo do conhecer a referecircncia agrave histoacuteria do

processo ou seja atraveacutes das recursotildees linguiacutesticas Sendo o conhecimento um produtomediado pela linguagem fica evidente tambeacutem que eacute atraveacutes das recursotildees linguiacutesticas que se

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constroem os diferentes sistemas de conhecimento tais quais mito religiatildeo filosofia ciecircnciae a arte

Se o conhecimento pode ser intermediado pela linguagem como compreendecirc-lo noacircmbito desta uacuteltima

Fizemos uma primeira aproximaccedilatildeo agrave questatildeo supracitada apontando o conhecimentocomo um meta-enredo que vai aleacutem dos ldquoenredos explicativos e dos enredos fenomecircnicosrdquo(Andrade e Silva 2005a 37)

Mas o que eacute um enredo explicativo O que eacute uma explicaccedilatildeoComo nos ensina Maturana (1997) uma explicaccedilatildeo eacute a proposiccedilatildeo de um mecanismo

gerativo que posto a operar (a funcionar) gera o fenocircmeno que se quer explicarExistem perguntas que pedem uma descriccedilatildeo e outras que pedem uma explicaccedilatildeo Por

exemplo Vocecirc gosta de chuva Esta pergunta pede um juiacutezo de valor que pode conter umadescriccedilatildeo Por outro lado quando perguntamos O que eacute a chuva Porque chove Estasperguntas pedem uma explicaccedilatildeo Ou seja dentro da pergunta estaacute embutido algo como medecirc um mecanismo que posto a operar gere o fenocircmeno que se quer explicar - a chuva

Ao expandir este tipo de argumento em um trabalho recente (Andrade 2010)chegamos a propor um conceito para conhecimento a partir das seguintes consideraccedilotildees

a) Considerando que o conhecimento eacute exclusivo do humano concluiacutemos que ele eacute umproduto do conhecer cultural humano e portanto o adjetivo cultural que demarca tantoas intermediaccedilotildees linguiacutesticas quanto a validaccedilatildeo deste produto por uma comunidade deobservadores deva estar na definiccedilatildeo conceitual de conhecimento

b) Considerando que grande parte do conhecimento humano eacute(i) constituiacutedo de enredos explicativos para enredos fenomecircnicos(ii) aceito por diferentes comunidades humanas dependendo dos diferentes criteacuterios de

validaccedilatildeo que estas mesmas comunidades humanas admitam em seu aceitar(iii)

erigido em grandes sistemas (mitologia religiatildeo filosofia e ciecircncia) a partir de (i) ede (ii)

Concluiacutemos que os enredos explicativos e a aceitaccedilatildeo dos mesmos por umadeterminada comunidade devam estar contidos na definiccedilatildeo conceitual de conhecimento

Considerando que tanto o conhecimento filosoacutefico quanto o cientiacutefico natildeo serestringem agrave produccedilatildeo de enredos explicativos e que a filosofia mais do que a ciecircncia eacute a arteda produccedilatildeo de conceitos (Deleuze e Guattari 1992) concluiacutemos que as formulaccedilotildeesconceituais devam constar da definiccedilatildeo de conhecimento

Considerando que o conhecimento humano eacute tambeacutem expresso por produtos de

ordem artiacutestica tecnoloacutegica e cientiacutefica e que estes produtos podem ser abstratos ouconcretos criados ou recriados concluiacutemos que os mesmos tambeacutem devam estar contidos nadefiniccedilatildeo conceitual de conhecimento

Assim conhecimento eacute o resultado do conhecer cultural humano expresso atraveacutes deenredos explicativos para enredos fenomecircnicos e de formulaccedilotildees conceituais estando tambeacutemincluso neste gecircnero de produto os objetos artiacutesticos religiosos filosoacuteficos tecnoloacutegicos ecientiacuteficos abstratos ou concretos criados ou recriados aceitos e utilizados por umadeterminada comunidade humana

Tendo afirmado que as recursotildees linguiacutesticas satildeo condiccedilotildees necessaacuterias para aproduccedilatildeo do conhecimento expandiremos o nosso entendimento sobre a linguagem tendo aBiologia do Conhecer como referencial teoacuterico

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4 Relaccedilatildeo corpo e linguagem nas ciecircncias linguiacutesticas

A pergunta sobre a relaccedilatildeo entre corpo e linguagem eacute quase tatildeo antiga quanto aproacutepria consideraccedilatildeo do fenocircmeno na linguagem no humano Essa discussatildeo de longa estirpe

abrange aleacutem da pergunta sobre as estruturas e processos anatocircmicos e fisioloacutegicosenvolvidos na produccedilatildeo e percepccedilatildeo dos sons da fala (uma tradiccedilatildeo bem estabelecida naIacutendia e natildeo na Greacutecia claacutessica) As estruturas e processos gerativos das regularidades quepermitem na linguagem o que observamos e comentamos como ldquoentendimento muacutetuordquoassim como as palavras as frases o significado o dizer e o modo de dizer sobre o mundoQuando Platatildeo propotildee haacute 2 mil anos no Craacutetilo (1994) o debate sobre as palavras seremartifiacutecios humanos ou relacionarem-se naturalmente agraves coisas ele estaacute perguntandoimplicitamente se haacute processos inerentes ao humano que decircem conta do fenocircmeno dasignificaccedilatildeo ou da denotaccedilatildeo (do apontar para as coisas do mundo)

Agrave primeira vista portanto a problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre corpo e linguagemparece ter que dar conta desses trecircs elementos que surgem na descriccedilatildeo tal como

tradicionalmente colocado no pensamento ocidental a) o fenocircmeno da linguagem no qualobservamos regularidades na descriccedilatildeo do mundo b) corpos humanos que de algum modoproduzem permitem ou experimentam a linguagem c) e um mundo situado fora dessescorpos que eacute descrito significado ou denotado pela linguagem e portanto direta ouindiretamente por aqueles corpos que produzem permitem ou experimentam a linguagemNa perspectiva da inter-relaccedilatildeo entre estes trecircs elementos mencionados - corpo linguagem emundo - a pergunta sobre o entendimento muacutetuo dos seres humanos acerca do mundo atraveacutesda linguagem eacute uma pergunta sobre a emergecircncia do significado

Em ciecircncia linguiacutestica aceita-se geralmente que o significado seja um aspecto dosigno linguiacutestico - pertinente portanto apenas ao universo do humano - que nos permiteldquoselecionar um ou outro aspecto do mundo natildeo-linguiacutesticordquo (Trask 2006 265) Para que osignificado cumpra o que promete ele deve ao mesmo tempo denotar (apontar para algo nomundo) e ter sentido (relacionar-se com os demais signos de um sistema linguiacutestico) Porexemplo a palavra ldquohumanardquo denota um ser no mundo com tais e tais propriedadesconsensualmente admitidas E a palavra ldquohumanardquo encerra os sentidos de membro de certaespeacutecie bioloacutegica ser feminino ou pessoa sensiacutevel na medida em que se relacionelinguisticamente com termos como ldquoser vivordquo ldquominha colega de trabalhordquo ldquohumanitaacuteriordquo eassim por diante

Essa abordagem do significado nos diz algo mais sobre a inter-relaccedilatildeo entre corpo elinguagem Ela nos diz que o mundo soacute eacute dado ao conhecimento do corpo pela linguagem (ouseja eacute pela linguagem que o corpo tem acesso ao mundo) E por outro lado que corpo e

mundo existem independente um do outro e ambos independente da linguagem mesmo quenatildeo haja nenhum modo de se ter acesso ao mundo a natildeo ser pela linguagem O mundo seriaentatildeo ldquoum soacuterdquo uma mesma realidade ainda que ao acessar o mundo pela linguagem doiscorpos (ou um corpo em momentos diferentes) possam experienciar mundos distintos(Eicheverria 1994)

Mas como de daacute entatildeo o fenocircmeno que observamos em que corpos individuais (sereshumanos individuais) tenham o mesmo acesso ao mundo - acesso a um mesmo mundo - oupelo menos experimentem uma regularidade na descriccedilatildeo desse mundo permitindo-osconversar sobre esse mundo de modo mutuamente compreensiacutevel As duas respostastradicionais em ciecircncias linguiacutesticas para essa questatildeo eacute que a linguagem eacute universal nohumano e por outro lado que a linguagem eacute especiacutefica da espeacutecie humana Ou seja de algum

modo (a resposta particular varia segundo determinadas linhas de pesquisa escolas ecorrentes de pensamento) estamos naturalmente equipados para produzir processar ou

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experienciar a linguagem de modo semelhante enquanto membros da mesma espeacutecie Porexemplo para a escola da gramaacutetica gerativa uma das mais influentes em ciecircnciaslinguiacutesticas e ligada ao cognitivismo no contexto das ciecircncias cognitivas o processo gerativobaacutesico da linguagem eacute a sintaxe a manipulaccedilatildeo de siacutembolos como um processo

geneticamente disponiacutevel na constituiccedilatildeo da arquitetura neural do humano que permite umaconvergecircncia do desenvolvimento linguiacutestico de qualquer falante (ceteris paribus) em umamesma comunidade de fala Podemos hierarquizar esse domiacutenio de explicaccedilotildees como noEsquema 1 abaixo

Corpo gt sintaxe gt interaccedilatildeo (linguagem)

Esquema 1 - Hierarquia do domiacutenio de explicaccedilotildees linguumliacutesticas

Explicitando a hierarquia acima a) o corpo humano possui tais e tais caracteriacutesticasanatocircmicas e fisioloacutegicas universais e especiacuteficas da espeacutecie b) essas caracteriacutesticas

universais produzem regularidades gerativas como a sintaxe c) finalmente essasregularidades permitem a interaccedilatildeo linguiacutestica entre os corpos humanos o conversar oapontar comum para as coisas do mundo

Assim como acontece em muitas outras linhas investigativas da linguiacutestica agramaacutetica gerativa explica a linguagem aceitando como princiacutepio explicativo que alinguagem eacute um produto do corpo no caso mediado pela sintaxe No caso da gramaacuteticagerativa o mecanismo gerativo (a explicaccedilatildeo) da linguagem eacute a sintaxe um sistema demanipulaccedilatildeo de siacutembolos embutido em nossa arquitetura neural Outras explicaccedilotildees de outrasescolas falam do envolvimento do ceacuterebro na accedilatildeo de denotar de apontar para coisas domundo Outras ainda sobre a capacidade cognitiva de aprender a linguagem emcorrespondecircncia com os fatos do mundo Em um e outro caso as regularidades encontradasna linguagem seja a sintaxe ou os siacutembolos ao mesmo tempo em que satildeo produzidas ouaprendidas pelo corpo (humano) tornam-se o mecanismo que explica o fato de podermosconversar uns com os outros acerca do mundo

O problema das abordagens supracitadas eacute que a relaccedilatildeo entre corpo e linguagem natildeoeacute explicitada ainda que o corpo seja apontado como causando a linguagem o corpo aqui eacuteutilizado como um princiacutepio explicativo De onde vem a linguagem Resposta dasregularidades (a sintaxe ou os siacutembolos) E de onde vecircm as regularidades De um corpogeneticamente dotado para produzir tais regularidades Para noacutes no entanto a perguntacrucial sobre a linguagem eacute justamente entender como dado um organismo vivo (que podeser um ser humano) surge o fenocircmeno do conversar do apontarmos juntos para as coisas As

relaccedilotildees entre a corporeidade os domiacutenios linguumliacutesticos e o linguajar humano seratildeo expandidasnos toacutepicos seguintes

5 Relaccedilatildeo corpo e linguagem na abordagem da Biologia do Conhecer

No contexto da escola chilena da Biologia do Conhecer (BC) uma abordagemsistecircmica para a explicaccedilatildeo do viver e do conhecer um sistema vivo eacute uma organizaccedilatildeoautopoieacutetica (Maturana e Varela 1997) Isso faz referecircncia agrave produccedilatildeo (poiesis) no curso doviver dos proacuteprios elementos que constituem a cada momento o sistema vivo Em segundolugar esse sistema (assim como qualquer sistema passiacutevel de uma explicaccedilatildeo cientiacutefica) eacute umsistema determinado estruturalmente Isso significa que tudo o que acontece com o sistema

depende a cada momento de sua proacutepria estrutura e natildeo da instruccedilatildeo interna determinadapelas perturbaccedilotildees externas ainda que as perturbaccedilotildees possam desencadear as mudanccedilas

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internas determinadas pela estrutura do organismo Observar essa dinacircmica organismo-meionos permite dizer enquanto observadores do processo que o sistema muda a cada momentoem congruecircncia com a sua histoacuteria de interaccedilotildees (Vianna 2008) Ainda dentro das coerecircnciasexplicativas da BC devemos fazer a distinccedilatildeo entre organizaccedilatildeo e estrutura A organizaccedilatildeo eacute

o sistema como um todo definido pela relaccedilatildeo entre seus componentes se a organizaccedilatildeo seperde o sistema natildeo existe mais enquanto sistema de um determinado tipo A estrutura (arelaccedilatildeo particular entre os componentes do sistema) pode variar sem perda da organizaccedilatildeo(Maturana e Varela 1990) No caso do vivo essa diferenccedila entre estrutura e organizaccedilatildeo eacutecrucial pois o vivo eacute um sistema dinacircmico variando estruturalmente sem perder aorganizaccedilatildeo ou seja o vivo sofre contiacutenuas mudanccedilas estruturais com conservaccedilatildeo daorganizaccedilatildeo em toda a sua ontogenia do nascimento ateacute a morte sem a perda da organizaccedilatildeoautopoieacutetica (Maturana e Varela 1990 Vianna e Goacutemez-Soriano 2007)

Ao observar um sistema vivo distinguimos dois domiacutenios distintos que natildeo seintersectam operacionalmente (apesar de como observadores possamos apontar umacorrespondecircncia entre os dois) no domiacutenio da fisiologia observamos as relaccedilotildees particulares

e dinacircmicas entre os componentes do organismo e no domiacutenio do comportamentoobservamos o organismo em sua totalidade em interaccedilatildeo com o meio (Maturana 1997)

Como tanto o organismo quanto o meio satildeo sistemas determinados estruturalmentetudo o que acontece com cada um deles eacute determinado pelas respectivas estruturas de ambos enatildeo pela instruccedilatildeo de um sobre o outro No entanto as modificaccedilotildees estruturais por que passao organismo possuem uma correspondecircncia histoacuterica justamente com o curso de suasinteraccedilotildees com o meio o organismo iraacute mudar em congruecircncia com as perturbaccedilotildees do meioassim como o meio iraacute mudar de forma correspondente em acordo com as interaccedilotildees com oorganismo Esse processo de interaccedilotildees recorrentes do organismo em um meio eacute chamado porMaturana e Varela de acoplamento estrutural Conservar o acoplamento estrutural com o meioeacute condiccedilatildeo necessaacuteria para a conservaccedilatildeo da autopoiese - organizaccedilatildeo a que pertence o servivo A histoacuteria ontogeneacutetica e filogeneacutetica em que o vivo se manteacutem em acoplamentoestrutural com o meio mudando a estrutura mas conservando a sua organizaccedilatildeo eacutedenominado de deriva natural Se mais de um organismo estaacute envolvido o processo como umtodo eacute denominado de co-deriva natural (Maturana e Podozis 1992)

No caso do observador descrever dois (ou mais) organismos em interaccedilotildeesrecorrentes o olhar do observador estaraacute direcionado para o sistema como um todo ou sejaaquele constituiacutedo pelos dois ou mais organismos e o entorno Nos termos da BC issosignifica que suas respectivas organizaccedilotildees autopoieacuteticas satildeo conservadas em coerecircncia com ahistoacuteria das relaccedilotildees entre os dois sistemas vivos observados e referenciados Veja queoperacionalmente para o organismo tudo o que existe satildeo perturbaccedilotildees externas que ele iraacute

tratar como perturbaccedilotildees de um ou outro tipo dependendo de sua proacutepria estrutura interna Oorganismo natildeo distingue entre um meio inerte e um sistema vivo Quem faz essa distinccedilatildeosomos noacutes observadores na descriccedilatildeo de um sistema em que podemos observar ao mesmotempo o curso das interaccedilotildees e as mudanccedilas estruturais do organismo ou dos organismosenvolvidos

6 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem

O fato de ser preciso um observador para fazer a distinccedilatildeo entre fisiologia ecomportamento natildeo eacute secundaacuterio mas crucial isso significa que estamos levando em contana explicaccedilatildeo o fundamento bioloacutegico do linguajar que eacute a coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de

accedilotildees em um domiacutenio consensual O observador eacute um organismo (no caso um organismohumano) que diz aquilo que diz de acordo com a sua proacutepria experiecircncia mas diz o que diz a

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outro observador que iraacute escutaacute-lo a partir de uma histoacuteria de interaccedilotildees (ou de uma mesmacomunidade de conversaccedilotildees) e iraacute coordenar suas accedilotildees de forma correspondente agrave interaccedilatildeona linguagem

A manutenccedilatildeo do acoplamento estrutural entre os organismos participantes de uma

interaccedilatildeo recursiva configura um domiacutenio linguiacutestico Veja que para haver um domiacuteniolinguiacutestico nos termos da BC natildeo eacute necessaacuteria a participaccedilatildeo de um organismo humano nainteraccedilatildeo Bastam coordenaccedilotildees de accedilotildees recursivas entre dois ou mais organismos emacoplamento estrutural co-ontogecircnico Ainda uma rede social pode ser formada como umarede de interaccedilotildees consensuais e recursivas entre os membros de uma mesma comunidade deorganismos Nos termos da BC o que eacute peculiar agraves interaccedilotildees humanas eacute que as proacutepriascoordenaccedilotildees de accedilotildees co-ontogecircnicas ou seja o comportamento consensual eacute utilizadocomo elemento para novas coordenaccedilotildees de accedilotildees Linguagem satildeo coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais Eacute como se desse uma volta sobre a voltarecursivamente ou seja incorporando continuamente a experiecircncia e a criaccedilatildeo da novidade(linguiacutestica) no rodar

Ainda que para a Biologia do Conhecer seja possiacutevel que noacutes seres humanospossamos manter coordenaccedilotildees condutuais com outros organismos natildeo-humanos (nossosanimais domeacutesticos por exemplo) natildeo vivemos com eles ininterruptamente na linguagem

Veja que para falar de domiacutenio linguiacutestico e de linguagem aqui natildeo precisamos fazerreferecircncia a nenhum elemento tradicionalmente descrito como caracteriacutestico da fala humanaNenhum som gesto ou desenho particular pertence agrave linguagem Da mesma forma qualquersom gesto ou desenho particular pode pertencer agrave linguagem pois essa eacute definidahistoricamente Se haacute recursatildeo se haacute consenso se no curso da interaccedilatildeo aquele som gesto oudesenho eacute distinguido como um elemento na coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de accedilotildees recursivase consensuais ele faraacute parte da linguagem na descriccedilatildeo do observador (Eicheverria 1994) Omesmo se daacute com outras regularidades percebidas na liacutengua como a sintaxe A sintaxe soacutepode ser descrita como uma regularidade das interaccedilotildees linguiacutesticas a partir do momento emque se tornem consensuais e recursivas Eacute preciso fazer referecircncia agrave histoacuteria ao curso deinteraccedilotildees para se dizer que uma palavra pertence agrave linguagem E como as interaccedilotildeeslinguiacutesticas podem conformar uma comunidade de interaccedilotildees (como no caso humano)podemos dizer que as palavras satildeo ldquonoacutesrdquo nessa rede de interaccedilotildees consensuais e recursivas

Uma exigecircncia na BC eacute que em uma explicaccedilatildeo mecanicista eacute preciso distinguir entreum sistema e seus componentes tratando-os como ldquounidades operacionalmente diferentesque pertencem a conjuntos discretos que geram domiacutenios fenomecircnicos que natildeo seintersectamrdquo (Maturana 1997 27) Isso eacute exatamente o que um observador faz quandodistingue os componentes de um sistema vivo (a fisiologia) ou de outro lado o operar desse

sistema em um meio (o comportamento) Assim fisiologia e conduta satildeo dois domiacuteniosdiferentes operacionalmente disjuntos e natildeo podem ser confundidos sob pena de cometerequiacutevocos na descriccedilatildeo Por exemplo pode se falar que a memoacuteria depende da atividade dasredes neurais enquanto propriedade emergente desta rede mas eacute um equivoco falar que amemoacuteria estaacute guardada nos neurocircnios haja vista que a memoacuteria pertence agrave relaccedilatildeo doindividuo (corpo) com o meio e natildeo do sistema nervoso (domiacutenio da fisiologia) diretamentecom o meio externo Afirmar isto seria um reducionismo Se haacute reduccedilatildeo fenomecircnica aexplicaccedilatildeo pressupotildee uma forccedila vital (vitalismo) e natildeo um mecanismo

Nesta perspectiva devemos tambeacutem distinguir os elementos de uma interaccedilatildeolinguiacutestica (os organismos e os sons gestos ou desenhos utilizados na interaccedilatildeo) e a proacutepriainteraccedilatildeo Nenhum elemento do organismo eacute responsaacutevel por ldquoproduzirrdquo linguagem pois a

linguagem estaacute no domiacutenio interpessoal e natildeo pode portanto ser reduzida agrave fisiologia doorganismo sob pena de um equiacutevoco reducionista Da mesma forma nenhuma palavra (sons

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gestos ou desenhos) ou gramaacutetica pode ser colocada em uma posiccedilatildeo gerativa da linguagem justamente por dependerem do consenso para surgirem As palavras e a gramaacutetica jaacute fazemparte da descriccedilatildeo da linguagem no momento em que esses elementos satildeo descritos como umaparte dela

Destarte o modo de vida humano surge e se conserva na linguagem como modo deconservar sua organizaccedilatildeo Para Maturana (1997 168) o humano vive nesse ldquofluir deinteraccedilotildees recorrentesrdquo E como a fisiologia muda em congruecircncia com a histoacuteria dasinteraccedilotildees do organismo devemos esperar uma correspondecircncia estrutural do organismohumano com o curso de suas interaccedilotildees na linguagem Do mesmo modo ao falarmos doprocesso de denotaccedilatildeo de apontar para um mundo laacute fora com nossas palavras natildeoprecisamos fazer referecircncia nem a uma constituiccedilatildeo cognitiva preacutevia do humano (pois esse eacuteum domiacutenio que natildeo se intersecta com o domiacutenio comportamental) e nem a uma realidadeldquoinformativardquo laacute fora (pois tudo o que acontece com o organismo eacute determinado neleestruturalmente) Falamos da denotaccedilatildeo como se estiveacutessemos apontando para um mundopreacutevio laacute fora mas tudo o que estamos fazendo de fato eacute coordenando nossas accedilotildees com

outros observadoresAssim a denotaccedilatildeo como afirma Maturana (1997 150) ldquonatildeo eacute uma operaccedilatildeo

primitiva Ela requer concordacircncia - consenso - para a especificaccedilatildeo tanto do denotantequanto do denotado Se a denotaccedilatildeo portanto natildeo eacute primitiva natildeo pode ser tampouco umaoperaccedilatildeo linguiacutestica primitivardquo

Se denotaccedilatildeo natildeo eacute uma operaccedilatildeo primitiva natildeo eacute preciso fazer referecircncia a umarealidade externa ldquointermediadardquo pela linguagem De fato apontamos (descrevemos)consensualmente para objetos do mundo e eacute na descriccedilatildeo desse apontar para os objetos demodo consensual que surge ao mesmo tempo a denotaccedilatildeo e os objetos que trazemos agrave matildeono linguajar A linguagem eacute um espaccedilo de relaccedilotildees em que nos movemos e eacute neste moverrecursivo na linguagem que surgem tanto o ato de observar quanto o proacuteprio observador

7 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem natildeo-humana

Iniciaremos este toacutepico fazendo uma pergunta provocativa qual seja eacute possiacutevel falarem linguagem natildeo-humana

Ainda que a BC natildeo utilize o termo ldquolinguagemrdquo para as interaccedilotildees recorrentes natildeo-humanas nesse domiacutenio explicativo podemos pelo menos tratar essas interaccedilotildees de modobem diferente das abordagens tradicionais da psicologia comparada e da etologia

O bonobo (Pan paniscus) Kanzi eacute a estrela nas pesquisas com linguagem siacutemia oulinguagem natildeo-humana da psicologia comparada Kanzi comunica-se basicamente atraveacutes

de um teclado de ldquolexigramasrdquo siacutembolos criados na deacutecada de 70 para experimentos emlinguagem siacutemia mas que posteriormente foram utilizados tambeacutem para o trabalho comcrianccedilas humanas autistas Kanzi estava sempre por perto durante o treinamento de sua matildeeadotiva Matata e foi observado utilizando o teclado algumas vezes No dia seguinte agrave saiacutedade Matata do experimento (para fins de procriaccedilatildeo) houve a primeira tentativa de treinamentoformal de Kanzi Nesse primeiro dia de aula Kanzi utilizou o teclado de lexigramas 120vezes sem ter sido requisitado a fazecirc-lo Comunicou-se fluentemente com a pesquisadora SueSavage-Rumbaugh atraveacutes dos lexigramas e segundo a investigadora sabia o que ossiacutembolos significavam (Savage-Rumbaugh e Lewin 1994)

A carreira de Kanzi prossegue (ainda hoje) com outras conquistas linguiacutesticas ecognitivas tatildeo reveladoras quanto seu desempenho precoce com os lexigramas Kanzi

desenvolveu um repertoacuterio vocal proacuteprio e controlado utilizado em seus processosinteracionais com humanos e outros siacutemios aleacutem da compreensatildeo do inglecircs falado Muito da

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admiraccedilatildeo pelo desempenho de Kanzi vem de sua manipulaccedilatildeo de siacutembolos equivalentesagravequeles utilizados num contexto humano e accedilotildees igualmente apropriadas para o observadorhumano (eacute justamente o desempenhar de ldquoaccedilotildees apropriadasrdquo o que nos leva a dizer aoobservar a performance de Kanzi que o que ele faz eacute linguagem) Pensamos no entanto que

o dado mais fundamental da ontogenia de Kanzi que nos leva a apontaacute-lo como um serlinguiacutestico foram seus processos relacionais Os modos de aquisiccedilatildeo linguiacutestica de Kanzi aomenos inicialmente natildeo eram parte de um experimento formal mas o resultado da relaccedilatildeo co-ontogecircnica estabelecida com a matildee e os cuidadores humanos e da relaccedilatildeo ecoloacutegicaestabelecida com atividades palavras e objetos ligados agrave investigaccedilatildeo cruciais para Kanzioferecer respostas linguiacutesticas consideradas adequadas por seus investigadores independentedo ceticismo do restante da comunidade cientiacutefica No caso de Kanzi e nos termos da BCpodemos dizer que esse organismo pelo menos nos momentos em que ele coordena juntocom os investigadores accedilotildees consensuais coordenadas estaacute na linguagem com osobservadores humanos Frans de Wall (2007) relata vaacuterios exemplos dessas recursotildeeslinguiacutesticas de bonobos com humanos em seu livro intitulado ldquoEu primatardquo

Outro caso interessante que talvez natildeo diga respeito agrave linguagem (nos termos da BC)mas ao menos agraves coordenaccedilotildees recursivas que conformam um domiacutenio linguiacutestico eacute o docavalo Clever Hans (Candland 1993)

Em 1980 Thomas Sebeok organizou sob os auspiacutecios da New York Academy ofSciences um Congresso intitulado ldquoThe Clever Hans Phenomenon Communication withHorses Whales Apes and Peoplerdquo (Candland 1993) O propoacutesito poliacutetico do congresso foimuito mais discerniacutevel que seu conteuacutedo cientiacutefico a comeccedilar pelo tiacutetulo o ldquofenocircmenoClever Hansrdquo cuja simples menccedilatildeo eacute suficiente para lanccedilar suspeitas sobre qualquer pesquisaem linguagem natildeo-humana

O cavalo Clever Hans mobilizou vaacuterios estudiosos no iniacutecio do seacuteculo XX paraentender como esse animal aleacutem de compreender alematildeo falado respondia corretamente agravesperguntas feitas batendo os cascos no chatildeo ou realizando outros movimentos corporais Em1904 foi constituida uma comissatildeo reunindo zooacutelogos professores donos de circo e ateacutemilitares para avaliar o fenocircmeno Os membros da comissatildeo investigavam a possibilidade detruques principalmente pistas natildeo-verbais dadas por seu cuidador Wilhem Von Osten maschegaram agrave conclusatildeo que apesar de natildeo ser possiacutevel avaliar a inteligecircncia de Clever Hansnenhum truque podia ser detectado O psicoacutelogo Oskar Pfungst (aluno de Carl Stumpfmembro da Comissatildeo) continuou os estudos com Hans e por meio de engenhososexperimentos formulou a hipoacutetese de que o cavalo por algum meio natildeo compreendido eracapaz de detectar mudanccedilas comportamentais na audiecircncia iniciando ou completando seusproacuteprios movimentos indicativos da resposta (Candland 1993)

Se a histoacuteria investigativa do cavalo Clever Hans eacute admiraacutevel o mito Clever Hansatingiu uma dimensatildeo cientiacutefica bem maior alimentado igualmente por opositores edefensores dos estudos em linguagem natildeo-humana Segundo esse mito bem difundidoPfungst ldquodesvendou a farsardquo demonstrando que Clever Hans natildeo era nem inteligente nemlinguiacutestico mas um animal induzido por pistas inadvertidas de Van Osten e outros membrosda audiecircncia Para os pesquisadores em linguagem natildeo-humana portanto o desafio eacutedemonstrar para a comunidade acadecircmica que a proacutepria pesquisa natildeo sofre o ldquoefeito CleverHansrdquo seus sujeitos natildeo recebem pistas natildeo-verbais dos investigadores humanos Mas seraacutepossiacutevel isolar experimentalmente na linguagem o siacutembolo dos processos gerativos dessesiacutembolo

Pfungst demonstrou algo que para noacutes eacute mais fundamental que um conhecimento

ldquodenotativordquo ou ldquosimboacutelicordquo de Clever Hans Talvez por sua vivecircncia co-ontogecircnica com otratador talvez por ser um organismo particularmente orientado para as accedilotildees humanas o

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cavalo foi capaz de coordenar suas accedilotildees com as accedilotildees humanas E estando ou natildeo nalinguagem (na condiccedilatildeo de observador) Clever Hans foi capaz de transformar suascoordenaccedilotildees de accedilotildees em palavras - em noacutes na rede conversacional - para a audiecircnciahumana Para os observadores naquele momento Clever Hans estava dizendo algo

8 A emergecircncia da autoconsciecircncia e a epigrafe de Nietzsche

Mesmo reconhecendo que termos como consciecircncia e autoconsciecircncia satildeopolissecircmicos e que os seus significados dependem do referencial teoacuterico a partir do qual sefala e que mesmo dentro de uma mesma teoria ainda assim eles podem ser mateacuteria deintensos debates (Searle 1998) vamos primeiramente nos posicionar e explicitar o queestamos denominando com a expressatildeo ldquoemergecircncia da autoconsciecircnciardquo

Assim o que estamos conotando como emergecircncia da autoconsciecircncia ou auto-reflexividade eacute somente a capacidade do homem de fazer referecircncia a si e ao mundo com oqual interage utilizando o corpo e as recursotildees linguiacutesticas

Acreditamos que a dificuldade de compreender a autoconsciecircncia como um fenocircmenoimanente particular ao viver bioloacutegico humano reside no fato de termos de encontrar omecanismo pelo qual somos capazes de distinguir a noacutes mesmos como se fossemos entidadesindependentes de nosso proacuteprio viver e ao mesmo tempo de especificarmos um eu que noshabita e que portanto eacute dependente de nossa biologia

Este aparente paradoxo pode ser resolvido se aceitarmos que a operaccedilatildeo deautoconsciecircncia eacute uma distinccedilatildeo reflexiva de um ldquoeurdquo forjado na linguagem de tal forma queeste eu natildeo somente constitui o corpo que surge na distinccedilatildeo mas tambeacutem que este eu podeser referenciado como uma abstraccedilatildeo no fluir da rede linguiacutestica

Para tornar mais claro este argumento desdobraremos a questatildeo em duas perguntasquais sejam 1- Como este eu corpoacutereo e abstrato eacute capaz de fazer referecircncia ao mundo e seauto-referenciar ou seja como nos tornamos observadores 2- Como os laccedilos da redelinguiacutestica que nos liga uns aos outros e ao mundo mesmo se mantendo na exterioridade denossa corporeidade nas franjas das relaccedilotildees interpessoais cria em noacutes o que em noacutes eacute tatildeointimo - a autoconsciecircncia

Vamos tentar responder estas duas perguntas e esperamos que ao final tenhamosexplicado nossa indagaccedilatildeo inicial qual seja como nos tornamos autoconscientes no devir

Cocircnscios de que toda explicaccedilatildeo exige tanto uma condiccedilatildeo formal mecanismogerativo quanto uma informal aceitabilidade convidamos o leitor para participar conosco daformulaccedilatildeo de um mecanismo gerativo para a autoconsciecircncia Antes poreacutem faremos umasolicitaccedilatildeo sem a qual seraacute impossiacutevel caminharmos juntos eacute indispensaacutevel romper com a

crenccedila de que representamos os objetos que estatildeo no mundo em nossa mente como umespelhoA razatildeo de nosso alerta e de nossa controversa adveacutem do fato de que tanto a ceacutelula

nervosa quanto o sistema nervoso como um todo eacute sensiacutevel somente agrave intensidade dos sinaisquiacutemicos de seu proacuteprio modo de operar e portanto natildeo podem captar e processarinformaccedilotildees ou qualidades do mundo laacute fora como muacutesica cheiro sabor cores etc Ou sejanatildeo haacute uma correspondecircncia ponto a ponto do que acreditamos ser o mundo laacute fora com oque acreditamos ser o mundo de dentro - nossa mente Somente para se ter uma ideia daordem de grandeza e do diferencial que separa estes dois mundos para os duzentos outrezentos milhotildees de receptores sensoriais haacute cerca de dez bilhotildees de sinapses no sistemanervoso sugerindo que as dinacircmicas internas de nosso proacuteprio organismo ao se

entrecruzarem com as perturbaccedilotildees advindas do meio externo participam na criaccedilatildeo interna

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do que o organismo vecirc ldquosenterdquo e nomeia tais como cores sons e sensaccedilotildees (Von Foster1994)

Quais as consequecircncias desse entendimento para nossa discussatildeoA consequecircncia mais fundamental eacute a de que o mundo laacute fora com os seus objetos e

acontecimentos natildeo preacute-existem ao observador pois que eles natildeo satildeo entidades primaacuterias aoato de observar e portanto independentes da biologia do observador As caracteriacutesticas quesupostamente satildeo dadas agraves coisas mostram-se tambeacutem como caracteriacutesticas do observador Ascores natildeo estatildeo laacute fora independentes de nossa biologia mas tambeacutem natildeo estatildeo caacute dentroindependentes de nosso mundo cultural Se isso eacute assim nega-se tanto o realismo de ummundo predeterminado que o organismo eacute capaz de representar quanto o idealismo que tomaa percepccedilatildeo como uma projeccedilatildeo de um mundo interno predeterminado (Varela et al 2003)

Eacute com essa dupla negaccedilatildeo que se diz que os objetos natildeo antecedem agrave distinccedilatildeo quedeles eacute feita pelo observador Os objetos surgem na praacutexis do viver do observador e o que eacuteessa praacutexis do viver humano senatildeo as coordenaccedilotildees de coordenaccedilotildees de accedilotildees que realizamosem nosso cotidiano

Seguindo esta linha de raciociacutenio o observar surge no domiacutenio das coerecircnciasexperienciais inerentes ao proacuteprio viver Ao darmos ecircnfase ao processo deslocamos a posiccedilatildeodo observador de ente corporificado para ente operacional

Se o leitor aceitou que eacute impossiacutevel a este ente operacional fazer referecircncia a algo forade seu domiacutenio de experiecircncias fora de sua proacutepria histoacuteria deduz-se que os objetos o corpoe suas partes e por extensatildeo o proacuteprio ldquoeurdquo surgem no operar das coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais ou seja na linguagem Eacute importante notar que emboraenclausurados em nossa proacutepria biologia noacutes soacute nos tornamos observadores na presenccedila dooutro ao partilharmos do processo recursivo e transgeracional que eacute o viver na linguagem

O importante eacute que noacutes repetimos esse processo conservado transgeracionalmente emcada ontogenia Assim quando nascemos e nos inserimos no mundo atraveacutes das primeirastriangulaccedilotildees criadas pelo apontar da matildee no sentido lato deste termo para um objeto quepode ser o nosso corpo ou parte dele jaacute estamos na linguagem

A necessidade do outro fundado na relaccedilatildeo jaacute nos coloca frente ao desafio deresponder agrave segunda questatildeo anteriormente formulada qual seja como os laccedilos de uma redelinguiacutestica podem criar em noacutes o que em noacutes eacute tatildeo intimo - a autoconsciecircncia

A Biologia do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode serentendido como uma co-emergecircncia da experiecircncia de um mundo vivido e da identidade doeu vivente (Varela et al 2003) No entanto haacute de se fazer uma ressalva a experiecircncia eacuteclaramente um evento pessoal mas isso natildeo significa que seja um evento privado no sentidode algum tipo de sujeito isolado que caiu de paacutera-quedas sobre um mundo objetivo

previamente dado Se aceitarmos a ressalva que a experiecircncia eacute tanto um evento pessoalporque necessariamente auto-referencial mas tambeacutem coletivo porque necessariamenterelacional poderemos compreender o surgimento de seres vivos capazes de fazer referecircnciaao mundo e se auto-referenciar sem termos de apelar para uma transcendecircncia ou para aimanecircncia de um suposto ldquoeurdquo independente e centro desta vivecircncia (Varela et al 2003)

Seria este o entendimento de Nietzsche (que noacutes recusamos a acreditar) o corpo queprocede como um ldquoeurdquo sem precisar falar

9 Referencias bibliograacuteficas

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grande naturalista Charles Darwin (2002) em sua obra claacutessica ldquo A origem das espeacuteciesrdquo de1989 quando ele comparou a extremidade das raiacutezes das plantas com o sistema nervoso dosanimais apontando a capacidade das raiacutezes de captar sinais do resto do corpo do vegetal ecom isto direcionar os seus proacuteprios movimentos Destarte se os vegetais tambeacutem possuem

uma conduta adequada ao contexto em que vivem haacute de se concluir que eles tambeacutemconhecem o mundo em que vivem mesmo que esta conduta seja mais difiacutecil de serobservada como o lento movimento das raiacutezes geralmente para baixo o lento movimento dasgavinhas as mudanccedilas na disposiccedilatildeo angular das folhas em resposta aos raios de sol aabertura ou fechamento dos estocircmatos em resposta ao calor a produccedilatildeo de neacutectar e desubstacircncias que mimetizam a accedilatildeo de feromocircnios de insetos atraindo-os para si e garantindoo processo da polinizaccedilatildeo Assim a partir do conjunto de mudanccedilas condutuais das plantasem face ao mundo que as cercam advogamos que elas assim como os outros entes bioloacutegicosque com elas constroem e compartilham a teia da vida conhecem o mundo em que vivem

E os seres unicelulares Advogamos que eles tambeacutem conhecem o mundo em quevivem Haacute de se ressaltar que eles estatildeo no planeta terra desde a origem da vida estimada

hoje em 38 bilhotildees de anos e portanto haacute mais tempo que a totalidade das espeacuteciesmulticelulares Aleacutem disto os unicelulares apresentam grande diversidade bioloacutegica e umenorme nuacutemero de estrateacutegias bioquiacutemicas para exploraccedilatildeo de diferentes nichos ecoloacutegicosincluindo lugares escaldantes gelados radioativos aacutecidos ou baacutesicos e ainda as profundezasdo mar e da terra Em estudos de possiacuteveis cenaacuterios catastroacuteficos os microrganismos semprelevam vantagens em termos de sobrevivecircncia A tiacutetulo de exemplo organismos como osestromatoacutelitos apresentam-se em ato contiacutenuo de conhecer o mundo em que vivem haacute bilhotildeesde anos

Haacute de se fazer agora uma distinccedilatildeo importante enquanto os animais com centrosnervosos diferenciados e complexos como o de nossa proacutepria espeacutecie ndash H Sapiens - podemapresentar um aprendizado relativamente raacutepido cumulativo transgeracional e cultural oconhecer dos outros organismos vivos deriva-se geralmente de processos histoacutericos longosAssim por exemplo sabe-se atraveacutes de registros paleontoloacutegicos que as interaccedilotildeescooperativas eou simbiocircnticas entre alguns insetos e as plantas com flores datam doCretaacuteceo haacute cerca de 100 milhotildees de anos atraacutes (Dawkins 2004) Mas mesmo assim tanto osinsetos quanto as plantas possuem uma histoacuteria filogeneacutetica ainda muito mais remota A esteconhecer produto desta longa histoacuteria filogeneacutetica no planeta denomina-se conhecerfilogeneacutetico ou evolutivo (Vieira 2001 Andrade e Silva 2005b)

Haja vista que o conhecer e o conhecimento satildeo usados indistintamente tanto pelosdicionaacuterios quanto pela maioria dos autores para definir cogniccedilatildeo noacutes nos perguntamosexiste alguma distinccedilatildeo entre eles

3 Sobre a distinccedilatildeo entre o conhecer e o conhecimento

Em artigo anterior (Andrade e Silva 2005a) propusemos uma distinccedilatildeo entre oconhecer e o conhecimento que vai para aleacutem da simples diferenccedila morfossintaacutetica destasduas palavras verbo e substantivo respectivamente Ou seja ainda que possamos afirmar quetodos os organismos vivos satildeo sistemas cognitivos e portanto capazes de conhecer o mundoem que vivem natildeo podemos afirmar no entanto que todos os organismos vivos satildeo capazesde produzir conhecimento haja vista que aquilo que noacutes chamamos de conhecimento natildeo eacuteum simples produto do conhecer mas sobretudo o produto advindo do processo sistemaacuteticodo conhecer que inclui aleacutem do produto advindo do conhecer a referecircncia agrave histoacuteria do

processo ou seja atraveacutes das recursotildees linguiacutesticas Sendo o conhecimento um produtomediado pela linguagem fica evidente tambeacutem que eacute atraveacutes das recursotildees linguiacutesticas que se

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constroem os diferentes sistemas de conhecimento tais quais mito religiatildeo filosofia ciecircnciae a arte

Se o conhecimento pode ser intermediado pela linguagem como compreendecirc-lo noacircmbito desta uacuteltima

Fizemos uma primeira aproximaccedilatildeo agrave questatildeo supracitada apontando o conhecimentocomo um meta-enredo que vai aleacutem dos ldquoenredos explicativos e dos enredos fenomecircnicosrdquo(Andrade e Silva 2005a 37)

Mas o que eacute um enredo explicativo O que eacute uma explicaccedilatildeoComo nos ensina Maturana (1997) uma explicaccedilatildeo eacute a proposiccedilatildeo de um mecanismo

gerativo que posto a operar (a funcionar) gera o fenocircmeno que se quer explicarExistem perguntas que pedem uma descriccedilatildeo e outras que pedem uma explicaccedilatildeo Por

exemplo Vocecirc gosta de chuva Esta pergunta pede um juiacutezo de valor que pode conter umadescriccedilatildeo Por outro lado quando perguntamos O que eacute a chuva Porque chove Estasperguntas pedem uma explicaccedilatildeo Ou seja dentro da pergunta estaacute embutido algo como medecirc um mecanismo que posto a operar gere o fenocircmeno que se quer explicar - a chuva

Ao expandir este tipo de argumento em um trabalho recente (Andrade 2010)chegamos a propor um conceito para conhecimento a partir das seguintes consideraccedilotildees

a) Considerando que o conhecimento eacute exclusivo do humano concluiacutemos que ele eacute umproduto do conhecer cultural humano e portanto o adjetivo cultural que demarca tantoas intermediaccedilotildees linguiacutesticas quanto a validaccedilatildeo deste produto por uma comunidade deobservadores deva estar na definiccedilatildeo conceitual de conhecimento

b) Considerando que grande parte do conhecimento humano eacute(i) constituiacutedo de enredos explicativos para enredos fenomecircnicos(ii) aceito por diferentes comunidades humanas dependendo dos diferentes criteacuterios de

validaccedilatildeo que estas mesmas comunidades humanas admitam em seu aceitar(iii)

erigido em grandes sistemas (mitologia religiatildeo filosofia e ciecircncia) a partir de (i) ede (ii)

Concluiacutemos que os enredos explicativos e a aceitaccedilatildeo dos mesmos por umadeterminada comunidade devam estar contidos na definiccedilatildeo conceitual de conhecimento

Considerando que tanto o conhecimento filosoacutefico quanto o cientiacutefico natildeo serestringem agrave produccedilatildeo de enredos explicativos e que a filosofia mais do que a ciecircncia eacute a arteda produccedilatildeo de conceitos (Deleuze e Guattari 1992) concluiacutemos que as formulaccedilotildeesconceituais devam constar da definiccedilatildeo de conhecimento

Considerando que o conhecimento humano eacute tambeacutem expresso por produtos de

ordem artiacutestica tecnoloacutegica e cientiacutefica e que estes produtos podem ser abstratos ouconcretos criados ou recriados concluiacutemos que os mesmos tambeacutem devam estar contidos nadefiniccedilatildeo conceitual de conhecimento

Assim conhecimento eacute o resultado do conhecer cultural humano expresso atraveacutes deenredos explicativos para enredos fenomecircnicos e de formulaccedilotildees conceituais estando tambeacutemincluso neste gecircnero de produto os objetos artiacutesticos religiosos filosoacuteficos tecnoloacutegicos ecientiacuteficos abstratos ou concretos criados ou recriados aceitos e utilizados por umadeterminada comunidade humana

Tendo afirmado que as recursotildees linguiacutesticas satildeo condiccedilotildees necessaacuterias para aproduccedilatildeo do conhecimento expandiremos o nosso entendimento sobre a linguagem tendo aBiologia do Conhecer como referencial teoacuterico

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4 Relaccedilatildeo corpo e linguagem nas ciecircncias linguiacutesticas

A pergunta sobre a relaccedilatildeo entre corpo e linguagem eacute quase tatildeo antiga quanto aproacutepria consideraccedilatildeo do fenocircmeno na linguagem no humano Essa discussatildeo de longa estirpe

abrange aleacutem da pergunta sobre as estruturas e processos anatocircmicos e fisioloacutegicosenvolvidos na produccedilatildeo e percepccedilatildeo dos sons da fala (uma tradiccedilatildeo bem estabelecida naIacutendia e natildeo na Greacutecia claacutessica) As estruturas e processos gerativos das regularidades quepermitem na linguagem o que observamos e comentamos como ldquoentendimento muacutetuordquoassim como as palavras as frases o significado o dizer e o modo de dizer sobre o mundoQuando Platatildeo propotildee haacute 2 mil anos no Craacutetilo (1994) o debate sobre as palavras seremartifiacutecios humanos ou relacionarem-se naturalmente agraves coisas ele estaacute perguntandoimplicitamente se haacute processos inerentes ao humano que decircem conta do fenocircmeno dasignificaccedilatildeo ou da denotaccedilatildeo (do apontar para as coisas do mundo)

Agrave primeira vista portanto a problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre corpo e linguagemparece ter que dar conta desses trecircs elementos que surgem na descriccedilatildeo tal como

tradicionalmente colocado no pensamento ocidental a) o fenocircmeno da linguagem no qualobservamos regularidades na descriccedilatildeo do mundo b) corpos humanos que de algum modoproduzem permitem ou experimentam a linguagem c) e um mundo situado fora dessescorpos que eacute descrito significado ou denotado pela linguagem e portanto direta ouindiretamente por aqueles corpos que produzem permitem ou experimentam a linguagemNa perspectiva da inter-relaccedilatildeo entre estes trecircs elementos mencionados - corpo linguagem emundo - a pergunta sobre o entendimento muacutetuo dos seres humanos acerca do mundo atraveacutesda linguagem eacute uma pergunta sobre a emergecircncia do significado

Em ciecircncia linguiacutestica aceita-se geralmente que o significado seja um aspecto dosigno linguiacutestico - pertinente portanto apenas ao universo do humano - que nos permiteldquoselecionar um ou outro aspecto do mundo natildeo-linguiacutesticordquo (Trask 2006 265) Para que osignificado cumpra o que promete ele deve ao mesmo tempo denotar (apontar para algo nomundo) e ter sentido (relacionar-se com os demais signos de um sistema linguiacutestico) Porexemplo a palavra ldquohumanardquo denota um ser no mundo com tais e tais propriedadesconsensualmente admitidas E a palavra ldquohumanardquo encerra os sentidos de membro de certaespeacutecie bioloacutegica ser feminino ou pessoa sensiacutevel na medida em que se relacionelinguisticamente com termos como ldquoser vivordquo ldquominha colega de trabalhordquo ldquohumanitaacuteriordquo eassim por diante

Essa abordagem do significado nos diz algo mais sobre a inter-relaccedilatildeo entre corpo elinguagem Ela nos diz que o mundo soacute eacute dado ao conhecimento do corpo pela linguagem (ouseja eacute pela linguagem que o corpo tem acesso ao mundo) E por outro lado que corpo e

mundo existem independente um do outro e ambos independente da linguagem mesmo quenatildeo haja nenhum modo de se ter acesso ao mundo a natildeo ser pela linguagem O mundo seriaentatildeo ldquoum soacuterdquo uma mesma realidade ainda que ao acessar o mundo pela linguagem doiscorpos (ou um corpo em momentos diferentes) possam experienciar mundos distintos(Eicheverria 1994)

Mas como de daacute entatildeo o fenocircmeno que observamos em que corpos individuais (sereshumanos individuais) tenham o mesmo acesso ao mundo - acesso a um mesmo mundo - oupelo menos experimentem uma regularidade na descriccedilatildeo desse mundo permitindo-osconversar sobre esse mundo de modo mutuamente compreensiacutevel As duas respostastradicionais em ciecircncias linguiacutesticas para essa questatildeo eacute que a linguagem eacute universal nohumano e por outro lado que a linguagem eacute especiacutefica da espeacutecie humana Ou seja de algum

modo (a resposta particular varia segundo determinadas linhas de pesquisa escolas ecorrentes de pensamento) estamos naturalmente equipados para produzir processar ou

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experienciar a linguagem de modo semelhante enquanto membros da mesma espeacutecie Porexemplo para a escola da gramaacutetica gerativa uma das mais influentes em ciecircnciaslinguiacutesticas e ligada ao cognitivismo no contexto das ciecircncias cognitivas o processo gerativobaacutesico da linguagem eacute a sintaxe a manipulaccedilatildeo de siacutembolos como um processo

geneticamente disponiacutevel na constituiccedilatildeo da arquitetura neural do humano que permite umaconvergecircncia do desenvolvimento linguiacutestico de qualquer falante (ceteris paribus) em umamesma comunidade de fala Podemos hierarquizar esse domiacutenio de explicaccedilotildees como noEsquema 1 abaixo

Corpo gt sintaxe gt interaccedilatildeo (linguagem)

Esquema 1 - Hierarquia do domiacutenio de explicaccedilotildees linguumliacutesticas

Explicitando a hierarquia acima a) o corpo humano possui tais e tais caracteriacutesticasanatocircmicas e fisioloacutegicas universais e especiacuteficas da espeacutecie b) essas caracteriacutesticas

universais produzem regularidades gerativas como a sintaxe c) finalmente essasregularidades permitem a interaccedilatildeo linguiacutestica entre os corpos humanos o conversar oapontar comum para as coisas do mundo

Assim como acontece em muitas outras linhas investigativas da linguiacutestica agramaacutetica gerativa explica a linguagem aceitando como princiacutepio explicativo que alinguagem eacute um produto do corpo no caso mediado pela sintaxe No caso da gramaacuteticagerativa o mecanismo gerativo (a explicaccedilatildeo) da linguagem eacute a sintaxe um sistema demanipulaccedilatildeo de siacutembolos embutido em nossa arquitetura neural Outras explicaccedilotildees de outrasescolas falam do envolvimento do ceacuterebro na accedilatildeo de denotar de apontar para coisas domundo Outras ainda sobre a capacidade cognitiva de aprender a linguagem emcorrespondecircncia com os fatos do mundo Em um e outro caso as regularidades encontradasna linguagem seja a sintaxe ou os siacutembolos ao mesmo tempo em que satildeo produzidas ouaprendidas pelo corpo (humano) tornam-se o mecanismo que explica o fato de podermosconversar uns com os outros acerca do mundo

O problema das abordagens supracitadas eacute que a relaccedilatildeo entre corpo e linguagem natildeoeacute explicitada ainda que o corpo seja apontado como causando a linguagem o corpo aqui eacuteutilizado como um princiacutepio explicativo De onde vem a linguagem Resposta dasregularidades (a sintaxe ou os siacutembolos) E de onde vecircm as regularidades De um corpogeneticamente dotado para produzir tais regularidades Para noacutes no entanto a perguntacrucial sobre a linguagem eacute justamente entender como dado um organismo vivo (que podeser um ser humano) surge o fenocircmeno do conversar do apontarmos juntos para as coisas As

relaccedilotildees entre a corporeidade os domiacutenios linguumliacutesticos e o linguajar humano seratildeo expandidasnos toacutepicos seguintes

5 Relaccedilatildeo corpo e linguagem na abordagem da Biologia do Conhecer

No contexto da escola chilena da Biologia do Conhecer (BC) uma abordagemsistecircmica para a explicaccedilatildeo do viver e do conhecer um sistema vivo eacute uma organizaccedilatildeoautopoieacutetica (Maturana e Varela 1997) Isso faz referecircncia agrave produccedilatildeo (poiesis) no curso doviver dos proacuteprios elementos que constituem a cada momento o sistema vivo Em segundolugar esse sistema (assim como qualquer sistema passiacutevel de uma explicaccedilatildeo cientiacutefica) eacute umsistema determinado estruturalmente Isso significa que tudo o que acontece com o sistema

depende a cada momento de sua proacutepria estrutura e natildeo da instruccedilatildeo interna determinadapelas perturbaccedilotildees externas ainda que as perturbaccedilotildees possam desencadear as mudanccedilas

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internas determinadas pela estrutura do organismo Observar essa dinacircmica organismo-meionos permite dizer enquanto observadores do processo que o sistema muda a cada momentoem congruecircncia com a sua histoacuteria de interaccedilotildees (Vianna 2008) Ainda dentro das coerecircnciasexplicativas da BC devemos fazer a distinccedilatildeo entre organizaccedilatildeo e estrutura A organizaccedilatildeo eacute

o sistema como um todo definido pela relaccedilatildeo entre seus componentes se a organizaccedilatildeo seperde o sistema natildeo existe mais enquanto sistema de um determinado tipo A estrutura (arelaccedilatildeo particular entre os componentes do sistema) pode variar sem perda da organizaccedilatildeo(Maturana e Varela 1990) No caso do vivo essa diferenccedila entre estrutura e organizaccedilatildeo eacutecrucial pois o vivo eacute um sistema dinacircmico variando estruturalmente sem perder aorganizaccedilatildeo ou seja o vivo sofre contiacutenuas mudanccedilas estruturais com conservaccedilatildeo daorganizaccedilatildeo em toda a sua ontogenia do nascimento ateacute a morte sem a perda da organizaccedilatildeoautopoieacutetica (Maturana e Varela 1990 Vianna e Goacutemez-Soriano 2007)

Ao observar um sistema vivo distinguimos dois domiacutenios distintos que natildeo seintersectam operacionalmente (apesar de como observadores possamos apontar umacorrespondecircncia entre os dois) no domiacutenio da fisiologia observamos as relaccedilotildees particulares

e dinacircmicas entre os componentes do organismo e no domiacutenio do comportamentoobservamos o organismo em sua totalidade em interaccedilatildeo com o meio (Maturana 1997)

Como tanto o organismo quanto o meio satildeo sistemas determinados estruturalmentetudo o que acontece com cada um deles eacute determinado pelas respectivas estruturas de ambos enatildeo pela instruccedilatildeo de um sobre o outro No entanto as modificaccedilotildees estruturais por que passao organismo possuem uma correspondecircncia histoacuterica justamente com o curso de suasinteraccedilotildees com o meio o organismo iraacute mudar em congruecircncia com as perturbaccedilotildees do meioassim como o meio iraacute mudar de forma correspondente em acordo com as interaccedilotildees com oorganismo Esse processo de interaccedilotildees recorrentes do organismo em um meio eacute chamado porMaturana e Varela de acoplamento estrutural Conservar o acoplamento estrutural com o meioeacute condiccedilatildeo necessaacuteria para a conservaccedilatildeo da autopoiese - organizaccedilatildeo a que pertence o servivo A histoacuteria ontogeneacutetica e filogeneacutetica em que o vivo se manteacutem em acoplamentoestrutural com o meio mudando a estrutura mas conservando a sua organizaccedilatildeo eacutedenominado de deriva natural Se mais de um organismo estaacute envolvido o processo como umtodo eacute denominado de co-deriva natural (Maturana e Podozis 1992)

No caso do observador descrever dois (ou mais) organismos em interaccedilotildeesrecorrentes o olhar do observador estaraacute direcionado para o sistema como um todo ou sejaaquele constituiacutedo pelos dois ou mais organismos e o entorno Nos termos da BC issosignifica que suas respectivas organizaccedilotildees autopoieacuteticas satildeo conservadas em coerecircncia com ahistoacuteria das relaccedilotildees entre os dois sistemas vivos observados e referenciados Veja queoperacionalmente para o organismo tudo o que existe satildeo perturbaccedilotildees externas que ele iraacute

tratar como perturbaccedilotildees de um ou outro tipo dependendo de sua proacutepria estrutura interna Oorganismo natildeo distingue entre um meio inerte e um sistema vivo Quem faz essa distinccedilatildeosomos noacutes observadores na descriccedilatildeo de um sistema em que podemos observar ao mesmotempo o curso das interaccedilotildees e as mudanccedilas estruturais do organismo ou dos organismosenvolvidos

6 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem

O fato de ser preciso um observador para fazer a distinccedilatildeo entre fisiologia ecomportamento natildeo eacute secundaacuterio mas crucial isso significa que estamos levando em contana explicaccedilatildeo o fundamento bioloacutegico do linguajar que eacute a coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de

accedilotildees em um domiacutenio consensual O observador eacute um organismo (no caso um organismohumano) que diz aquilo que diz de acordo com a sua proacutepria experiecircncia mas diz o que diz a

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outro observador que iraacute escutaacute-lo a partir de uma histoacuteria de interaccedilotildees (ou de uma mesmacomunidade de conversaccedilotildees) e iraacute coordenar suas accedilotildees de forma correspondente agrave interaccedilatildeona linguagem

A manutenccedilatildeo do acoplamento estrutural entre os organismos participantes de uma

interaccedilatildeo recursiva configura um domiacutenio linguiacutestico Veja que para haver um domiacuteniolinguiacutestico nos termos da BC natildeo eacute necessaacuteria a participaccedilatildeo de um organismo humano nainteraccedilatildeo Bastam coordenaccedilotildees de accedilotildees recursivas entre dois ou mais organismos emacoplamento estrutural co-ontogecircnico Ainda uma rede social pode ser formada como umarede de interaccedilotildees consensuais e recursivas entre os membros de uma mesma comunidade deorganismos Nos termos da BC o que eacute peculiar agraves interaccedilotildees humanas eacute que as proacutepriascoordenaccedilotildees de accedilotildees co-ontogecircnicas ou seja o comportamento consensual eacute utilizadocomo elemento para novas coordenaccedilotildees de accedilotildees Linguagem satildeo coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais Eacute como se desse uma volta sobre a voltarecursivamente ou seja incorporando continuamente a experiecircncia e a criaccedilatildeo da novidade(linguiacutestica) no rodar

Ainda que para a Biologia do Conhecer seja possiacutevel que noacutes seres humanospossamos manter coordenaccedilotildees condutuais com outros organismos natildeo-humanos (nossosanimais domeacutesticos por exemplo) natildeo vivemos com eles ininterruptamente na linguagem

Veja que para falar de domiacutenio linguiacutestico e de linguagem aqui natildeo precisamos fazerreferecircncia a nenhum elemento tradicionalmente descrito como caracteriacutestico da fala humanaNenhum som gesto ou desenho particular pertence agrave linguagem Da mesma forma qualquersom gesto ou desenho particular pode pertencer agrave linguagem pois essa eacute definidahistoricamente Se haacute recursatildeo se haacute consenso se no curso da interaccedilatildeo aquele som gesto oudesenho eacute distinguido como um elemento na coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de accedilotildees recursivase consensuais ele faraacute parte da linguagem na descriccedilatildeo do observador (Eicheverria 1994) Omesmo se daacute com outras regularidades percebidas na liacutengua como a sintaxe A sintaxe soacutepode ser descrita como uma regularidade das interaccedilotildees linguiacutesticas a partir do momento emque se tornem consensuais e recursivas Eacute preciso fazer referecircncia agrave histoacuteria ao curso deinteraccedilotildees para se dizer que uma palavra pertence agrave linguagem E como as interaccedilotildeeslinguiacutesticas podem conformar uma comunidade de interaccedilotildees (como no caso humano)podemos dizer que as palavras satildeo ldquonoacutesrdquo nessa rede de interaccedilotildees consensuais e recursivas

Uma exigecircncia na BC eacute que em uma explicaccedilatildeo mecanicista eacute preciso distinguir entreum sistema e seus componentes tratando-os como ldquounidades operacionalmente diferentesque pertencem a conjuntos discretos que geram domiacutenios fenomecircnicos que natildeo seintersectamrdquo (Maturana 1997 27) Isso eacute exatamente o que um observador faz quandodistingue os componentes de um sistema vivo (a fisiologia) ou de outro lado o operar desse

sistema em um meio (o comportamento) Assim fisiologia e conduta satildeo dois domiacuteniosdiferentes operacionalmente disjuntos e natildeo podem ser confundidos sob pena de cometerequiacutevocos na descriccedilatildeo Por exemplo pode se falar que a memoacuteria depende da atividade dasredes neurais enquanto propriedade emergente desta rede mas eacute um equivoco falar que amemoacuteria estaacute guardada nos neurocircnios haja vista que a memoacuteria pertence agrave relaccedilatildeo doindividuo (corpo) com o meio e natildeo do sistema nervoso (domiacutenio da fisiologia) diretamentecom o meio externo Afirmar isto seria um reducionismo Se haacute reduccedilatildeo fenomecircnica aexplicaccedilatildeo pressupotildee uma forccedila vital (vitalismo) e natildeo um mecanismo

Nesta perspectiva devemos tambeacutem distinguir os elementos de uma interaccedilatildeolinguiacutestica (os organismos e os sons gestos ou desenhos utilizados na interaccedilatildeo) e a proacutepriainteraccedilatildeo Nenhum elemento do organismo eacute responsaacutevel por ldquoproduzirrdquo linguagem pois a

linguagem estaacute no domiacutenio interpessoal e natildeo pode portanto ser reduzida agrave fisiologia doorganismo sob pena de um equiacutevoco reducionista Da mesma forma nenhuma palavra (sons

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gestos ou desenhos) ou gramaacutetica pode ser colocada em uma posiccedilatildeo gerativa da linguagem justamente por dependerem do consenso para surgirem As palavras e a gramaacutetica jaacute fazemparte da descriccedilatildeo da linguagem no momento em que esses elementos satildeo descritos como umaparte dela

Destarte o modo de vida humano surge e se conserva na linguagem como modo deconservar sua organizaccedilatildeo Para Maturana (1997 168) o humano vive nesse ldquofluir deinteraccedilotildees recorrentesrdquo E como a fisiologia muda em congruecircncia com a histoacuteria dasinteraccedilotildees do organismo devemos esperar uma correspondecircncia estrutural do organismohumano com o curso de suas interaccedilotildees na linguagem Do mesmo modo ao falarmos doprocesso de denotaccedilatildeo de apontar para um mundo laacute fora com nossas palavras natildeoprecisamos fazer referecircncia nem a uma constituiccedilatildeo cognitiva preacutevia do humano (pois esse eacuteum domiacutenio que natildeo se intersecta com o domiacutenio comportamental) e nem a uma realidadeldquoinformativardquo laacute fora (pois tudo o que acontece com o organismo eacute determinado neleestruturalmente) Falamos da denotaccedilatildeo como se estiveacutessemos apontando para um mundopreacutevio laacute fora mas tudo o que estamos fazendo de fato eacute coordenando nossas accedilotildees com

outros observadoresAssim a denotaccedilatildeo como afirma Maturana (1997 150) ldquonatildeo eacute uma operaccedilatildeo

primitiva Ela requer concordacircncia - consenso - para a especificaccedilatildeo tanto do denotantequanto do denotado Se a denotaccedilatildeo portanto natildeo eacute primitiva natildeo pode ser tampouco umaoperaccedilatildeo linguiacutestica primitivardquo

Se denotaccedilatildeo natildeo eacute uma operaccedilatildeo primitiva natildeo eacute preciso fazer referecircncia a umarealidade externa ldquointermediadardquo pela linguagem De fato apontamos (descrevemos)consensualmente para objetos do mundo e eacute na descriccedilatildeo desse apontar para os objetos demodo consensual que surge ao mesmo tempo a denotaccedilatildeo e os objetos que trazemos agrave matildeono linguajar A linguagem eacute um espaccedilo de relaccedilotildees em que nos movemos e eacute neste moverrecursivo na linguagem que surgem tanto o ato de observar quanto o proacuteprio observador

7 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem natildeo-humana

Iniciaremos este toacutepico fazendo uma pergunta provocativa qual seja eacute possiacutevel falarem linguagem natildeo-humana

Ainda que a BC natildeo utilize o termo ldquolinguagemrdquo para as interaccedilotildees recorrentes natildeo-humanas nesse domiacutenio explicativo podemos pelo menos tratar essas interaccedilotildees de modobem diferente das abordagens tradicionais da psicologia comparada e da etologia

O bonobo (Pan paniscus) Kanzi eacute a estrela nas pesquisas com linguagem siacutemia oulinguagem natildeo-humana da psicologia comparada Kanzi comunica-se basicamente atraveacutes

de um teclado de ldquolexigramasrdquo siacutembolos criados na deacutecada de 70 para experimentos emlinguagem siacutemia mas que posteriormente foram utilizados tambeacutem para o trabalho comcrianccedilas humanas autistas Kanzi estava sempre por perto durante o treinamento de sua matildeeadotiva Matata e foi observado utilizando o teclado algumas vezes No dia seguinte agrave saiacutedade Matata do experimento (para fins de procriaccedilatildeo) houve a primeira tentativa de treinamentoformal de Kanzi Nesse primeiro dia de aula Kanzi utilizou o teclado de lexigramas 120vezes sem ter sido requisitado a fazecirc-lo Comunicou-se fluentemente com a pesquisadora SueSavage-Rumbaugh atraveacutes dos lexigramas e segundo a investigadora sabia o que ossiacutembolos significavam (Savage-Rumbaugh e Lewin 1994)

A carreira de Kanzi prossegue (ainda hoje) com outras conquistas linguiacutesticas ecognitivas tatildeo reveladoras quanto seu desempenho precoce com os lexigramas Kanzi

desenvolveu um repertoacuterio vocal proacuteprio e controlado utilizado em seus processosinteracionais com humanos e outros siacutemios aleacutem da compreensatildeo do inglecircs falado Muito da

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admiraccedilatildeo pelo desempenho de Kanzi vem de sua manipulaccedilatildeo de siacutembolos equivalentesagravequeles utilizados num contexto humano e accedilotildees igualmente apropriadas para o observadorhumano (eacute justamente o desempenhar de ldquoaccedilotildees apropriadasrdquo o que nos leva a dizer aoobservar a performance de Kanzi que o que ele faz eacute linguagem) Pensamos no entanto que

o dado mais fundamental da ontogenia de Kanzi que nos leva a apontaacute-lo como um serlinguiacutestico foram seus processos relacionais Os modos de aquisiccedilatildeo linguiacutestica de Kanzi aomenos inicialmente natildeo eram parte de um experimento formal mas o resultado da relaccedilatildeo co-ontogecircnica estabelecida com a matildee e os cuidadores humanos e da relaccedilatildeo ecoloacutegicaestabelecida com atividades palavras e objetos ligados agrave investigaccedilatildeo cruciais para Kanzioferecer respostas linguiacutesticas consideradas adequadas por seus investigadores independentedo ceticismo do restante da comunidade cientiacutefica No caso de Kanzi e nos termos da BCpodemos dizer que esse organismo pelo menos nos momentos em que ele coordena juntocom os investigadores accedilotildees consensuais coordenadas estaacute na linguagem com osobservadores humanos Frans de Wall (2007) relata vaacuterios exemplos dessas recursotildeeslinguiacutesticas de bonobos com humanos em seu livro intitulado ldquoEu primatardquo

Outro caso interessante que talvez natildeo diga respeito agrave linguagem (nos termos da BC)mas ao menos agraves coordenaccedilotildees recursivas que conformam um domiacutenio linguiacutestico eacute o docavalo Clever Hans (Candland 1993)

Em 1980 Thomas Sebeok organizou sob os auspiacutecios da New York Academy ofSciences um Congresso intitulado ldquoThe Clever Hans Phenomenon Communication withHorses Whales Apes and Peoplerdquo (Candland 1993) O propoacutesito poliacutetico do congresso foimuito mais discerniacutevel que seu conteuacutedo cientiacutefico a comeccedilar pelo tiacutetulo o ldquofenocircmenoClever Hansrdquo cuja simples menccedilatildeo eacute suficiente para lanccedilar suspeitas sobre qualquer pesquisaem linguagem natildeo-humana

O cavalo Clever Hans mobilizou vaacuterios estudiosos no iniacutecio do seacuteculo XX paraentender como esse animal aleacutem de compreender alematildeo falado respondia corretamente agravesperguntas feitas batendo os cascos no chatildeo ou realizando outros movimentos corporais Em1904 foi constituida uma comissatildeo reunindo zooacutelogos professores donos de circo e ateacutemilitares para avaliar o fenocircmeno Os membros da comissatildeo investigavam a possibilidade detruques principalmente pistas natildeo-verbais dadas por seu cuidador Wilhem Von Osten maschegaram agrave conclusatildeo que apesar de natildeo ser possiacutevel avaliar a inteligecircncia de Clever Hansnenhum truque podia ser detectado O psicoacutelogo Oskar Pfungst (aluno de Carl Stumpfmembro da Comissatildeo) continuou os estudos com Hans e por meio de engenhososexperimentos formulou a hipoacutetese de que o cavalo por algum meio natildeo compreendido eracapaz de detectar mudanccedilas comportamentais na audiecircncia iniciando ou completando seusproacuteprios movimentos indicativos da resposta (Candland 1993)

Se a histoacuteria investigativa do cavalo Clever Hans eacute admiraacutevel o mito Clever Hansatingiu uma dimensatildeo cientiacutefica bem maior alimentado igualmente por opositores edefensores dos estudos em linguagem natildeo-humana Segundo esse mito bem difundidoPfungst ldquodesvendou a farsardquo demonstrando que Clever Hans natildeo era nem inteligente nemlinguiacutestico mas um animal induzido por pistas inadvertidas de Van Osten e outros membrosda audiecircncia Para os pesquisadores em linguagem natildeo-humana portanto o desafio eacutedemonstrar para a comunidade acadecircmica que a proacutepria pesquisa natildeo sofre o ldquoefeito CleverHansrdquo seus sujeitos natildeo recebem pistas natildeo-verbais dos investigadores humanos Mas seraacutepossiacutevel isolar experimentalmente na linguagem o siacutembolo dos processos gerativos dessesiacutembolo

Pfungst demonstrou algo que para noacutes eacute mais fundamental que um conhecimento

ldquodenotativordquo ou ldquosimboacutelicordquo de Clever Hans Talvez por sua vivecircncia co-ontogecircnica com otratador talvez por ser um organismo particularmente orientado para as accedilotildees humanas o

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cavalo foi capaz de coordenar suas accedilotildees com as accedilotildees humanas E estando ou natildeo nalinguagem (na condiccedilatildeo de observador) Clever Hans foi capaz de transformar suascoordenaccedilotildees de accedilotildees em palavras - em noacutes na rede conversacional - para a audiecircnciahumana Para os observadores naquele momento Clever Hans estava dizendo algo

8 A emergecircncia da autoconsciecircncia e a epigrafe de Nietzsche

Mesmo reconhecendo que termos como consciecircncia e autoconsciecircncia satildeopolissecircmicos e que os seus significados dependem do referencial teoacuterico a partir do qual sefala e que mesmo dentro de uma mesma teoria ainda assim eles podem ser mateacuteria deintensos debates (Searle 1998) vamos primeiramente nos posicionar e explicitar o queestamos denominando com a expressatildeo ldquoemergecircncia da autoconsciecircnciardquo

Assim o que estamos conotando como emergecircncia da autoconsciecircncia ou auto-reflexividade eacute somente a capacidade do homem de fazer referecircncia a si e ao mundo com oqual interage utilizando o corpo e as recursotildees linguiacutesticas

Acreditamos que a dificuldade de compreender a autoconsciecircncia como um fenocircmenoimanente particular ao viver bioloacutegico humano reside no fato de termos de encontrar omecanismo pelo qual somos capazes de distinguir a noacutes mesmos como se fossemos entidadesindependentes de nosso proacuteprio viver e ao mesmo tempo de especificarmos um eu que noshabita e que portanto eacute dependente de nossa biologia

Este aparente paradoxo pode ser resolvido se aceitarmos que a operaccedilatildeo deautoconsciecircncia eacute uma distinccedilatildeo reflexiva de um ldquoeurdquo forjado na linguagem de tal forma queeste eu natildeo somente constitui o corpo que surge na distinccedilatildeo mas tambeacutem que este eu podeser referenciado como uma abstraccedilatildeo no fluir da rede linguiacutestica

Para tornar mais claro este argumento desdobraremos a questatildeo em duas perguntasquais sejam 1- Como este eu corpoacutereo e abstrato eacute capaz de fazer referecircncia ao mundo e seauto-referenciar ou seja como nos tornamos observadores 2- Como os laccedilos da redelinguiacutestica que nos liga uns aos outros e ao mundo mesmo se mantendo na exterioridade denossa corporeidade nas franjas das relaccedilotildees interpessoais cria em noacutes o que em noacutes eacute tatildeointimo - a autoconsciecircncia

Vamos tentar responder estas duas perguntas e esperamos que ao final tenhamosexplicado nossa indagaccedilatildeo inicial qual seja como nos tornamos autoconscientes no devir

Cocircnscios de que toda explicaccedilatildeo exige tanto uma condiccedilatildeo formal mecanismogerativo quanto uma informal aceitabilidade convidamos o leitor para participar conosco daformulaccedilatildeo de um mecanismo gerativo para a autoconsciecircncia Antes poreacutem faremos umasolicitaccedilatildeo sem a qual seraacute impossiacutevel caminharmos juntos eacute indispensaacutevel romper com a

crenccedila de que representamos os objetos que estatildeo no mundo em nossa mente como umespelhoA razatildeo de nosso alerta e de nossa controversa adveacutem do fato de que tanto a ceacutelula

nervosa quanto o sistema nervoso como um todo eacute sensiacutevel somente agrave intensidade dos sinaisquiacutemicos de seu proacuteprio modo de operar e portanto natildeo podem captar e processarinformaccedilotildees ou qualidades do mundo laacute fora como muacutesica cheiro sabor cores etc Ou sejanatildeo haacute uma correspondecircncia ponto a ponto do que acreditamos ser o mundo laacute fora com oque acreditamos ser o mundo de dentro - nossa mente Somente para se ter uma ideia daordem de grandeza e do diferencial que separa estes dois mundos para os duzentos outrezentos milhotildees de receptores sensoriais haacute cerca de dez bilhotildees de sinapses no sistemanervoso sugerindo que as dinacircmicas internas de nosso proacuteprio organismo ao se

entrecruzarem com as perturbaccedilotildees advindas do meio externo participam na criaccedilatildeo interna

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do que o organismo vecirc ldquosenterdquo e nomeia tais como cores sons e sensaccedilotildees (Von Foster1994)

Quais as consequecircncias desse entendimento para nossa discussatildeoA consequecircncia mais fundamental eacute a de que o mundo laacute fora com os seus objetos e

acontecimentos natildeo preacute-existem ao observador pois que eles natildeo satildeo entidades primaacuterias aoato de observar e portanto independentes da biologia do observador As caracteriacutesticas quesupostamente satildeo dadas agraves coisas mostram-se tambeacutem como caracteriacutesticas do observador Ascores natildeo estatildeo laacute fora independentes de nossa biologia mas tambeacutem natildeo estatildeo caacute dentroindependentes de nosso mundo cultural Se isso eacute assim nega-se tanto o realismo de ummundo predeterminado que o organismo eacute capaz de representar quanto o idealismo que tomaa percepccedilatildeo como uma projeccedilatildeo de um mundo interno predeterminado (Varela et al 2003)

Eacute com essa dupla negaccedilatildeo que se diz que os objetos natildeo antecedem agrave distinccedilatildeo quedeles eacute feita pelo observador Os objetos surgem na praacutexis do viver do observador e o que eacuteessa praacutexis do viver humano senatildeo as coordenaccedilotildees de coordenaccedilotildees de accedilotildees que realizamosem nosso cotidiano

Seguindo esta linha de raciociacutenio o observar surge no domiacutenio das coerecircnciasexperienciais inerentes ao proacuteprio viver Ao darmos ecircnfase ao processo deslocamos a posiccedilatildeodo observador de ente corporificado para ente operacional

Se o leitor aceitou que eacute impossiacutevel a este ente operacional fazer referecircncia a algo forade seu domiacutenio de experiecircncias fora de sua proacutepria histoacuteria deduz-se que os objetos o corpoe suas partes e por extensatildeo o proacuteprio ldquoeurdquo surgem no operar das coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais ou seja na linguagem Eacute importante notar que emboraenclausurados em nossa proacutepria biologia noacutes soacute nos tornamos observadores na presenccedila dooutro ao partilharmos do processo recursivo e transgeracional que eacute o viver na linguagem

O importante eacute que noacutes repetimos esse processo conservado transgeracionalmente emcada ontogenia Assim quando nascemos e nos inserimos no mundo atraveacutes das primeirastriangulaccedilotildees criadas pelo apontar da matildee no sentido lato deste termo para um objeto quepode ser o nosso corpo ou parte dele jaacute estamos na linguagem

A necessidade do outro fundado na relaccedilatildeo jaacute nos coloca frente ao desafio deresponder agrave segunda questatildeo anteriormente formulada qual seja como os laccedilos de uma redelinguiacutestica podem criar em noacutes o que em noacutes eacute tatildeo intimo - a autoconsciecircncia

A Biologia do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode serentendido como uma co-emergecircncia da experiecircncia de um mundo vivido e da identidade doeu vivente (Varela et al 2003) No entanto haacute de se fazer uma ressalva a experiecircncia eacuteclaramente um evento pessoal mas isso natildeo significa que seja um evento privado no sentidode algum tipo de sujeito isolado que caiu de paacutera-quedas sobre um mundo objetivo

previamente dado Se aceitarmos a ressalva que a experiecircncia eacute tanto um evento pessoalporque necessariamente auto-referencial mas tambeacutem coletivo porque necessariamenterelacional poderemos compreender o surgimento de seres vivos capazes de fazer referecircnciaao mundo e se auto-referenciar sem termos de apelar para uma transcendecircncia ou para aimanecircncia de um suposto ldquoeurdquo independente e centro desta vivecircncia (Varela et al 2003)

Seria este o entendimento de Nietzsche (que noacutes recusamos a acreditar) o corpo queprocede como um ldquoeurdquo sem precisar falar

9 Referencias bibliograacuteficas

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constroem os diferentes sistemas de conhecimento tais quais mito religiatildeo filosofia ciecircnciae a arte

Se o conhecimento pode ser intermediado pela linguagem como compreendecirc-lo noacircmbito desta uacuteltima

Fizemos uma primeira aproximaccedilatildeo agrave questatildeo supracitada apontando o conhecimentocomo um meta-enredo que vai aleacutem dos ldquoenredos explicativos e dos enredos fenomecircnicosrdquo(Andrade e Silva 2005a 37)

Mas o que eacute um enredo explicativo O que eacute uma explicaccedilatildeoComo nos ensina Maturana (1997) uma explicaccedilatildeo eacute a proposiccedilatildeo de um mecanismo

gerativo que posto a operar (a funcionar) gera o fenocircmeno que se quer explicarExistem perguntas que pedem uma descriccedilatildeo e outras que pedem uma explicaccedilatildeo Por

exemplo Vocecirc gosta de chuva Esta pergunta pede um juiacutezo de valor que pode conter umadescriccedilatildeo Por outro lado quando perguntamos O que eacute a chuva Porque chove Estasperguntas pedem uma explicaccedilatildeo Ou seja dentro da pergunta estaacute embutido algo como medecirc um mecanismo que posto a operar gere o fenocircmeno que se quer explicar - a chuva

Ao expandir este tipo de argumento em um trabalho recente (Andrade 2010)chegamos a propor um conceito para conhecimento a partir das seguintes consideraccedilotildees

a) Considerando que o conhecimento eacute exclusivo do humano concluiacutemos que ele eacute umproduto do conhecer cultural humano e portanto o adjetivo cultural que demarca tantoas intermediaccedilotildees linguiacutesticas quanto a validaccedilatildeo deste produto por uma comunidade deobservadores deva estar na definiccedilatildeo conceitual de conhecimento

b) Considerando que grande parte do conhecimento humano eacute(i) constituiacutedo de enredos explicativos para enredos fenomecircnicos(ii) aceito por diferentes comunidades humanas dependendo dos diferentes criteacuterios de

validaccedilatildeo que estas mesmas comunidades humanas admitam em seu aceitar(iii)

erigido em grandes sistemas (mitologia religiatildeo filosofia e ciecircncia) a partir de (i) ede (ii)

Concluiacutemos que os enredos explicativos e a aceitaccedilatildeo dos mesmos por umadeterminada comunidade devam estar contidos na definiccedilatildeo conceitual de conhecimento

Considerando que tanto o conhecimento filosoacutefico quanto o cientiacutefico natildeo serestringem agrave produccedilatildeo de enredos explicativos e que a filosofia mais do que a ciecircncia eacute a arteda produccedilatildeo de conceitos (Deleuze e Guattari 1992) concluiacutemos que as formulaccedilotildeesconceituais devam constar da definiccedilatildeo de conhecimento

Considerando que o conhecimento humano eacute tambeacutem expresso por produtos de

ordem artiacutestica tecnoloacutegica e cientiacutefica e que estes produtos podem ser abstratos ouconcretos criados ou recriados concluiacutemos que os mesmos tambeacutem devam estar contidos nadefiniccedilatildeo conceitual de conhecimento

Assim conhecimento eacute o resultado do conhecer cultural humano expresso atraveacutes deenredos explicativos para enredos fenomecircnicos e de formulaccedilotildees conceituais estando tambeacutemincluso neste gecircnero de produto os objetos artiacutesticos religiosos filosoacuteficos tecnoloacutegicos ecientiacuteficos abstratos ou concretos criados ou recriados aceitos e utilizados por umadeterminada comunidade humana

Tendo afirmado que as recursotildees linguiacutesticas satildeo condiccedilotildees necessaacuterias para aproduccedilatildeo do conhecimento expandiremos o nosso entendimento sobre a linguagem tendo aBiologia do Conhecer como referencial teoacuterico

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4 Relaccedilatildeo corpo e linguagem nas ciecircncias linguiacutesticas

A pergunta sobre a relaccedilatildeo entre corpo e linguagem eacute quase tatildeo antiga quanto aproacutepria consideraccedilatildeo do fenocircmeno na linguagem no humano Essa discussatildeo de longa estirpe

abrange aleacutem da pergunta sobre as estruturas e processos anatocircmicos e fisioloacutegicosenvolvidos na produccedilatildeo e percepccedilatildeo dos sons da fala (uma tradiccedilatildeo bem estabelecida naIacutendia e natildeo na Greacutecia claacutessica) As estruturas e processos gerativos das regularidades quepermitem na linguagem o que observamos e comentamos como ldquoentendimento muacutetuordquoassim como as palavras as frases o significado o dizer e o modo de dizer sobre o mundoQuando Platatildeo propotildee haacute 2 mil anos no Craacutetilo (1994) o debate sobre as palavras seremartifiacutecios humanos ou relacionarem-se naturalmente agraves coisas ele estaacute perguntandoimplicitamente se haacute processos inerentes ao humano que decircem conta do fenocircmeno dasignificaccedilatildeo ou da denotaccedilatildeo (do apontar para as coisas do mundo)

Agrave primeira vista portanto a problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre corpo e linguagemparece ter que dar conta desses trecircs elementos que surgem na descriccedilatildeo tal como

tradicionalmente colocado no pensamento ocidental a) o fenocircmeno da linguagem no qualobservamos regularidades na descriccedilatildeo do mundo b) corpos humanos que de algum modoproduzem permitem ou experimentam a linguagem c) e um mundo situado fora dessescorpos que eacute descrito significado ou denotado pela linguagem e portanto direta ouindiretamente por aqueles corpos que produzem permitem ou experimentam a linguagemNa perspectiva da inter-relaccedilatildeo entre estes trecircs elementos mencionados - corpo linguagem emundo - a pergunta sobre o entendimento muacutetuo dos seres humanos acerca do mundo atraveacutesda linguagem eacute uma pergunta sobre a emergecircncia do significado

Em ciecircncia linguiacutestica aceita-se geralmente que o significado seja um aspecto dosigno linguiacutestico - pertinente portanto apenas ao universo do humano - que nos permiteldquoselecionar um ou outro aspecto do mundo natildeo-linguiacutesticordquo (Trask 2006 265) Para que osignificado cumpra o que promete ele deve ao mesmo tempo denotar (apontar para algo nomundo) e ter sentido (relacionar-se com os demais signos de um sistema linguiacutestico) Porexemplo a palavra ldquohumanardquo denota um ser no mundo com tais e tais propriedadesconsensualmente admitidas E a palavra ldquohumanardquo encerra os sentidos de membro de certaespeacutecie bioloacutegica ser feminino ou pessoa sensiacutevel na medida em que se relacionelinguisticamente com termos como ldquoser vivordquo ldquominha colega de trabalhordquo ldquohumanitaacuteriordquo eassim por diante

Essa abordagem do significado nos diz algo mais sobre a inter-relaccedilatildeo entre corpo elinguagem Ela nos diz que o mundo soacute eacute dado ao conhecimento do corpo pela linguagem (ouseja eacute pela linguagem que o corpo tem acesso ao mundo) E por outro lado que corpo e

mundo existem independente um do outro e ambos independente da linguagem mesmo quenatildeo haja nenhum modo de se ter acesso ao mundo a natildeo ser pela linguagem O mundo seriaentatildeo ldquoum soacuterdquo uma mesma realidade ainda que ao acessar o mundo pela linguagem doiscorpos (ou um corpo em momentos diferentes) possam experienciar mundos distintos(Eicheverria 1994)

Mas como de daacute entatildeo o fenocircmeno que observamos em que corpos individuais (sereshumanos individuais) tenham o mesmo acesso ao mundo - acesso a um mesmo mundo - oupelo menos experimentem uma regularidade na descriccedilatildeo desse mundo permitindo-osconversar sobre esse mundo de modo mutuamente compreensiacutevel As duas respostastradicionais em ciecircncias linguiacutesticas para essa questatildeo eacute que a linguagem eacute universal nohumano e por outro lado que a linguagem eacute especiacutefica da espeacutecie humana Ou seja de algum

modo (a resposta particular varia segundo determinadas linhas de pesquisa escolas ecorrentes de pensamento) estamos naturalmente equipados para produzir processar ou

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experienciar a linguagem de modo semelhante enquanto membros da mesma espeacutecie Porexemplo para a escola da gramaacutetica gerativa uma das mais influentes em ciecircnciaslinguiacutesticas e ligada ao cognitivismo no contexto das ciecircncias cognitivas o processo gerativobaacutesico da linguagem eacute a sintaxe a manipulaccedilatildeo de siacutembolos como um processo

geneticamente disponiacutevel na constituiccedilatildeo da arquitetura neural do humano que permite umaconvergecircncia do desenvolvimento linguiacutestico de qualquer falante (ceteris paribus) em umamesma comunidade de fala Podemos hierarquizar esse domiacutenio de explicaccedilotildees como noEsquema 1 abaixo

Corpo gt sintaxe gt interaccedilatildeo (linguagem)

Esquema 1 - Hierarquia do domiacutenio de explicaccedilotildees linguumliacutesticas

Explicitando a hierarquia acima a) o corpo humano possui tais e tais caracteriacutesticasanatocircmicas e fisioloacutegicas universais e especiacuteficas da espeacutecie b) essas caracteriacutesticas

universais produzem regularidades gerativas como a sintaxe c) finalmente essasregularidades permitem a interaccedilatildeo linguiacutestica entre os corpos humanos o conversar oapontar comum para as coisas do mundo

Assim como acontece em muitas outras linhas investigativas da linguiacutestica agramaacutetica gerativa explica a linguagem aceitando como princiacutepio explicativo que alinguagem eacute um produto do corpo no caso mediado pela sintaxe No caso da gramaacuteticagerativa o mecanismo gerativo (a explicaccedilatildeo) da linguagem eacute a sintaxe um sistema demanipulaccedilatildeo de siacutembolos embutido em nossa arquitetura neural Outras explicaccedilotildees de outrasescolas falam do envolvimento do ceacuterebro na accedilatildeo de denotar de apontar para coisas domundo Outras ainda sobre a capacidade cognitiva de aprender a linguagem emcorrespondecircncia com os fatos do mundo Em um e outro caso as regularidades encontradasna linguagem seja a sintaxe ou os siacutembolos ao mesmo tempo em que satildeo produzidas ouaprendidas pelo corpo (humano) tornam-se o mecanismo que explica o fato de podermosconversar uns com os outros acerca do mundo

O problema das abordagens supracitadas eacute que a relaccedilatildeo entre corpo e linguagem natildeoeacute explicitada ainda que o corpo seja apontado como causando a linguagem o corpo aqui eacuteutilizado como um princiacutepio explicativo De onde vem a linguagem Resposta dasregularidades (a sintaxe ou os siacutembolos) E de onde vecircm as regularidades De um corpogeneticamente dotado para produzir tais regularidades Para noacutes no entanto a perguntacrucial sobre a linguagem eacute justamente entender como dado um organismo vivo (que podeser um ser humano) surge o fenocircmeno do conversar do apontarmos juntos para as coisas As

relaccedilotildees entre a corporeidade os domiacutenios linguumliacutesticos e o linguajar humano seratildeo expandidasnos toacutepicos seguintes

5 Relaccedilatildeo corpo e linguagem na abordagem da Biologia do Conhecer

No contexto da escola chilena da Biologia do Conhecer (BC) uma abordagemsistecircmica para a explicaccedilatildeo do viver e do conhecer um sistema vivo eacute uma organizaccedilatildeoautopoieacutetica (Maturana e Varela 1997) Isso faz referecircncia agrave produccedilatildeo (poiesis) no curso doviver dos proacuteprios elementos que constituem a cada momento o sistema vivo Em segundolugar esse sistema (assim como qualquer sistema passiacutevel de uma explicaccedilatildeo cientiacutefica) eacute umsistema determinado estruturalmente Isso significa que tudo o que acontece com o sistema

depende a cada momento de sua proacutepria estrutura e natildeo da instruccedilatildeo interna determinadapelas perturbaccedilotildees externas ainda que as perturbaccedilotildees possam desencadear as mudanccedilas

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internas determinadas pela estrutura do organismo Observar essa dinacircmica organismo-meionos permite dizer enquanto observadores do processo que o sistema muda a cada momentoem congruecircncia com a sua histoacuteria de interaccedilotildees (Vianna 2008) Ainda dentro das coerecircnciasexplicativas da BC devemos fazer a distinccedilatildeo entre organizaccedilatildeo e estrutura A organizaccedilatildeo eacute

o sistema como um todo definido pela relaccedilatildeo entre seus componentes se a organizaccedilatildeo seperde o sistema natildeo existe mais enquanto sistema de um determinado tipo A estrutura (arelaccedilatildeo particular entre os componentes do sistema) pode variar sem perda da organizaccedilatildeo(Maturana e Varela 1990) No caso do vivo essa diferenccedila entre estrutura e organizaccedilatildeo eacutecrucial pois o vivo eacute um sistema dinacircmico variando estruturalmente sem perder aorganizaccedilatildeo ou seja o vivo sofre contiacutenuas mudanccedilas estruturais com conservaccedilatildeo daorganizaccedilatildeo em toda a sua ontogenia do nascimento ateacute a morte sem a perda da organizaccedilatildeoautopoieacutetica (Maturana e Varela 1990 Vianna e Goacutemez-Soriano 2007)

Ao observar um sistema vivo distinguimos dois domiacutenios distintos que natildeo seintersectam operacionalmente (apesar de como observadores possamos apontar umacorrespondecircncia entre os dois) no domiacutenio da fisiologia observamos as relaccedilotildees particulares

e dinacircmicas entre os componentes do organismo e no domiacutenio do comportamentoobservamos o organismo em sua totalidade em interaccedilatildeo com o meio (Maturana 1997)

Como tanto o organismo quanto o meio satildeo sistemas determinados estruturalmentetudo o que acontece com cada um deles eacute determinado pelas respectivas estruturas de ambos enatildeo pela instruccedilatildeo de um sobre o outro No entanto as modificaccedilotildees estruturais por que passao organismo possuem uma correspondecircncia histoacuterica justamente com o curso de suasinteraccedilotildees com o meio o organismo iraacute mudar em congruecircncia com as perturbaccedilotildees do meioassim como o meio iraacute mudar de forma correspondente em acordo com as interaccedilotildees com oorganismo Esse processo de interaccedilotildees recorrentes do organismo em um meio eacute chamado porMaturana e Varela de acoplamento estrutural Conservar o acoplamento estrutural com o meioeacute condiccedilatildeo necessaacuteria para a conservaccedilatildeo da autopoiese - organizaccedilatildeo a que pertence o servivo A histoacuteria ontogeneacutetica e filogeneacutetica em que o vivo se manteacutem em acoplamentoestrutural com o meio mudando a estrutura mas conservando a sua organizaccedilatildeo eacutedenominado de deriva natural Se mais de um organismo estaacute envolvido o processo como umtodo eacute denominado de co-deriva natural (Maturana e Podozis 1992)

No caso do observador descrever dois (ou mais) organismos em interaccedilotildeesrecorrentes o olhar do observador estaraacute direcionado para o sistema como um todo ou sejaaquele constituiacutedo pelos dois ou mais organismos e o entorno Nos termos da BC issosignifica que suas respectivas organizaccedilotildees autopoieacuteticas satildeo conservadas em coerecircncia com ahistoacuteria das relaccedilotildees entre os dois sistemas vivos observados e referenciados Veja queoperacionalmente para o organismo tudo o que existe satildeo perturbaccedilotildees externas que ele iraacute

tratar como perturbaccedilotildees de um ou outro tipo dependendo de sua proacutepria estrutura interna Oorganismo natildeo distingue entre um meio inerte e um sistema vivo Quem faz essa distinccedilatildeosomos noacutes observadores na descriccedilatildeo de um sistema em que podemos observar ao mesmotempo o curso das interaccedilotildees e as mudanccedilas estruturais do organismo ou dos organismosenvolvidos

6 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem

O fato de ser preciso um observador para fazer a distinccedilatildeo entre fisiologia ecomportamento natildeo eacute secundaacuterio mas crucial isso significa que estamos levando em contana explicaccedilatildeo o fundamento bioloacutegico do linguajar que eacute a coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de

accedilotildees em um domiacutenio consensual O observador eacute um organismo (no caso um organismohumano) que diz aquilo que diz de acordo com a sua proacutepria experiecircncia mas diz o que diz a

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outro observador que iraacute escutaacute-lo a partir de uma histoacuteria de interaccedilotildees (ou de uma mesmacomunidade de conversaccedilotildees) e iraacute coordenar suas accedilotildees de forma correspondente agrave interaccedilatildeona linguagem

A manutenccedilatildeo do acoplamento estrutural entre os organismos participantes de uma

interaccedilatildeo recursiva configura um domiacutenio linguiacutestico Veja que para haver um domiacuteniolinguiacutestico nos termos da BC natildeo eacute necessaacuteria a participaccedilatildeo de um organismo humano nainteraccedilatildeo Bastam coordenaccedilotildees de accedilotildees recursivas entre dois ou mais organismos emacoplamento estrutural co-ontogecircnico Ainda uma rede social pode ser formada como umarede de interaccedilotildees consensuais e recursivas entre os membros de uma mesma comunidade deorganismos Nos termos da BC o que eacute peculiar agraves interaccedilotildees humanas eacute que as proacutepriascoordenaccedilotildees de accedilotildees co-ontogecircnicas ou seja o comportamento consensual eacute utilizadocomo elemento para novas coordenaccedilotildees de accedilotildees Linguagem satildeo coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais Eacute como se desse uma volta sobre a voltarecursivamente ou seja incorporando continuamente a experiecircncia e a criaccedilatildeo da novidade(linguiacutestica) no rodar

Ainda que para a Biologia do Conhecer seja possiacutevel que noacutes seres humanospossamos manter coordenaccedilotildees condutuais com outros organismos natildeo-humanos (nossosanimais domeacutesticos por exemplo) natildeo vivemos com eles ininterruptamente na linguagem

Veja que para falar de domiacutenio linguiacutestico e de linguagem aqui natildeo precisamos fazerreferecircncia a nenhum elemento tradicionalmente descrito como caracteriacutestico da fala humanaNenhum som gesto ou desenho particular pertence agrave linguagem Da mesma forma qualquersom gesto ou desenho particular pode pertencer agrave linguagem pois essa eacute definidahistoricamente Se haacute recursatildeo se haacute consenso se no curso da interaccedilatildeo aquele som gesto oudesenho eacute distinguido como um elemento na coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de accedilotildees recursivase consensuais ele faraacute parte da linguagem na descriccedilatildeo do observador (Eicheverria 1994) Omesmo se daacute com outras regularidades percebidas na liacutengua como a sintaxe A sintaxe soacutepode ser descrita como uma regularidade das interaccedilotildees linguiacutesticas a partir do momento emque se tornem consensuais e recursivas Eacute preciso fazer referecircncia agrave histoacuteria ao curso deinteraccedilotildees para se dizer que uma palavra pertence agrave linguagem E como as interaccedilotildeeslinguiacutesticas podem conformar uma comunidade de interaccedilotildees (como no caso humano)podemos dizer que as palavras satildeo ldquonoacutesrdquo nessa rede de interaccedilotildees consensuais e recursivas

Uma exigecircncia na BC eacute que em uma explicaccedilatildeo mecanicista eacute preciso distinguir entreum sistema e seus componentes tratando-os como ldquounidades operacionalmente diferentesque pertencem a conjuntos discretos que geram domiacutenios fenomecircnicos que natildeo seintersectamrdquo (Maturana 1997 27) Isso eacute exatamente o que um observador faz quandodistingue os componentes de um sistema vivo (a fisiologia) ou de outro lado o operar desse

sistema em um meio (o comportamento) Assim fisiologia e conduta satildeo dois domiacuteniosdiferentes operacionalmente disjuntos e natildeo podem ser confundidos sob pena de cometerequiacutevocos na descriccedilatildeo Por exemplo pode se falar que a memoacuteria depende da atividade dasredes neurais enquanto propriedade emergente desta rede mas eacute um equivoco falar que amemoacuteria estaacute guardada nos neurocircnios haja vista que a memoacuteria pertence agrave relaccedilatildeo doindividuo (corpo) com o meio e natildeo do sistema nervoso (domiacutenio da fisiologia) diretamentecom o meio externo Afirmar isto seria um reducionismo Se haacute reduccedilatildeo fenomecircnica aexplicaccedilatildeo pressupotildee uma forccedila vital (vitalismo) e natildeo um mecanismo

Nesta perspectiva devemos tambeacutem distinguir os elementos de uma interaccedilatildeolinguiacutestica (os organismos e os sons gestos ou desenhos utilizados na interaccedilatildeo) e a proacutepriainteraccedilatildeo Nenhum elemento do organismo eacute responsaacutevel por ldquoproduzirrdquo linguagem pois a

linguagem estaacute no domiacutenio interpessoal e natildeo pode portanto ser reduzida agrave fisiologia doorganismo sob pena de um equiacutevoco reducionista Da mesma forma nenhuma palavra (sons

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gestos ou desenhos) ou gramaacutetica pode ser colocada em uma posiccedilatildeo gerativa da linguagem justamente por dependerem do consenso para surgirem As palavras e a gramaacutetica jaacute fazemparte da descriccedilatildeo da linguagem no momento em que esses elementos satildeo descritos como umaparte dela

Destarte o modo de vida humano surge e se conserva na linguagem como modo deconservar sua organizaccedilatildeo Para Maturana (1997 168) o humano vive nesse ldquofluir deinteraccedilotildees recorrentesrdquo E como a fisiologia muda em congruecircncia com a histoacuteria dasinteraccedilotildees do organismo devemos esperar uma correspondecircncia estrutural do organismohumano com o curso de suas interaccedilotildees na linguagem Do mesmo modo ao falarmos doprocesso de denotaccedilatildeo de apontar para um mundo laacute fora com nossas palavras natildeoprecisamos fazer referecircncia nem a uma constituiccedilatildeo cognitiva preacutevia do humano (pois esse eacuteum domiacutenio que natildeo se intersecta com o domiacutenio comportamental) e nem a uma realidadeldquoinformativardquo laacute fora (pois tudo o que acontece com o organismo eacute determinado neleestruturalmente) Falamos da denotaccedilatildeo como se estiveacutessemos apontando para um mundopreacutevio laacute fora mas tudo o que estamos fazendo de fato eacute coordenando nossas accedilotildees com

outros observadoresAssim a denotaccedilatildeo como afirma Maturana (1997 150) ldquonatildeo eacute uma operaccedilatildeo

primitiva Ela requer concordacircncia - consenso - para a especificaccedilatildeo tanto do denotantequanto do denotado Se a denotaccedilatildeo portanto natildeo eacute primitiva natildeo pode ser tampouco umaoperaccedilatildeo linguiacutestica primitivardquo

Se denotaccedilatildeo natildeo eacute uma operaccedilatildeo primitiva natildeo eacute preciso fazer referecircncia a umarealidade externa ldquointermediadardquo pela linguagem De fato apontamos (descrevemos)consensualmente para objetos do mundo e eacute na descriccedilatildeo desse apontar para os objetos demodo consensual que surge ao mesmo tempo a denotaccedilatildeo e os objetos que trazemos agrave matildeono linguajar A linguagem eacute um espaccedilo de relaccedilotildees em que nos movemos e eacute neste moverrecursivo na linguagem que surgem tanto o ato de observar quanto o proacuteprio observador

7 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem natildeo-humana

Iniciaremos este toacutepico fazendo uma pergunta provocativa qual seja eacute possiacutevel falarem linguagem natildeo-humana

Ainda que a BC natildeo utilize o termo ldquolinguagemrdquo para as interaccedilotildees recorrentes natildeo-humanas nesse domiacutenio explicativo podemos pelo menos tratar essas interaccedilotildees de modobem diferente das abordagens tradicionais da psicologia comparada e da etologia

O bonobo (Pan paniscus) Kanzi eacute a estrela nas pesquisas com linguagem siacutemia oulinguagem natildeo-humana da psicologia comparada Kanzi comunica-se basicamente atraveacutes

de um teclado de ldquolexigramasrdquo siacutembolos criados na deacutecada de 70 para experimentos emlinguagem siacutemia mas que posteriormente foram utilizados tambeacutem para o trabalho comcrianccedilas humanas autistas Kanzi estava sempre por perto durante o treinamento de sua matildeeadotiva Matata e foi observado utilizando o teclado algumas vezes No dia seguinte agrave saiacutedade Matata do experimento (para fins de procriaccedilatildeo) houve a primeira tentativa de treinamentoformal de Kanzi Nesse primeiro dia de aula Kanzi utilizou o teclado de lexigramas 120vezes sem ter sido requisitado a fazecirc-lo Comunicou-se fluentemente com a pesquisadora SueSavage-Rumbaugh atraveacutes dos lexigramas e segundo a investigadora sabia o que ossiacutembolos significavam (Savage-Rumbaugh e Lewin 1994)

A carreira de Kanzi prossegue (ainda hoje) com outras conquistas linguiacutesticas ecognitivas tatildeo reveladoras quanto seu desempenho precoce com os lexigramas Kanzi

desenvolveu um repertoacuterio vocal proacuteprio e controlado utilizado em seus processosinteracionais com humanos e outros siacutemios aleacutem da compreensatildeo do inglecircs falado Muito da

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admiraccedilatildeo pelo desempenho de Kanzi vem de sua manipulaccedilatildeo de siacutembolos equivalentesagravequeles utilizados num contexto humano e accedilotildees igualmente apropriadas para o observadorhumano (eacute justamente o desempenhar de ldquoaccedilotildees apropriadasrdquo o que nos leva a dizer aoobservar a performance de Kanzi que o que ele faz eacute linguagem) Pensamos no entanto que

o dado mais fundamental da ontogenia de Kanzi que nos leva a apontaacute-lo como um serlinguiacutestico foram seus processos relacionais Os modos de aquisiccedilatildeo linguiacutestica de Kanzi aomenos inicialmente natildeo eram parte de um experimento formal mas o resultado da relaccedilatildeo co-ontogecircnica estabelecida com a matildee e os cuidadores humanos e da relaccedilatildeo ecoloacutegicaestabelecida com atividades palavras e objetos ligados agrave investigaccedilatildeo cruciais para Kanzioferecer respostas linguiacutesticas consideradas adequadas por seus investigadores independentedo ceticismo do restante da comunidade cientiacutefica No caso de Kanzi e nos termos da BCpodemos dizer que esse organismo pelo menos nos momentos em que ele coordena juntocom os investigadores accedilotildees consensuais coordenadas estaacute na linguagem com osobservadores humanos Frans de Wall (2007) relata vaacuterios exemplos dessas recursotildeeslinguiacutesticas de bonobos com humanos em seu livro intitulado ldquoEu primatardquo

Outro caso interessante que talvez natildeo diga respeito agrave linguagem (nos termos da BC)mas ao menos agraves coordenaccedilotildees recursivas que conformam um domiacutenio linguiacutestico eacute o docavalo Clever Hans (Candland 1993)

Em 1980 Thomas Sebeok organizou sob os auspiacutecios da New York Academy ofSciences um Congresso intitulado ldquoThe Clever Hans Phenomenon Communication withHorses Whales Apes and Peoplerdquo (Candland 1993) O propoacutesito poliacutetico do congresso foimuito mais discerniacutevel que seu conteuacutedo cientiacutefico a comeccedilar pelo tiacutetulo o ldquofenocircmenoClever Hansrdquo cuja simples menccedilatildeo eacute suficiente para lanccedilar suspeitas sobre qualquer pesquisaem linguagem natildeo-humana

O cavalo Clever Hans mobilizou vaacuterios estudiosos no iniacutecio do seacuteculo XX paraentender como esse animal aleacutem de compreender alematildeo falado respondia corretamente agravesperguntas feitas batendo os cascos no chatildeo ou realizando outros movimentos corporais Em1904 foi constituida uma comissatildeo reunindo zooacutelogos professores donos de circo e ateacutemilitares para avaliar o fenocircmeno Os membros da comissatildeo investigavam a possibilidade detruques principalmente pistas natildeo-verbais dadas por seu cuidador Wilhem Von Osten maschegaram agrave conclusatildeo que apesar de natildeo ser possiacutevel avaliar a inteligecircncia de Clever Hansnenhum truque podia ser detectado O psicoacutelogo Oskar Pfungst (aluno de Carl Stumpfmembro da Comissatildeo) continuou os estudos com Hans e por meio de engenhososexperimentos formulou a hipoacutetese de que o cavalo por algum meio natildeo compreendido eracapaz de detectar mudanccedilas comportamentais na audiecircncia iniciando ou completando seusproacuteprios movimentos indicativos da resposta (Candland 1993)

Se a histoacuteria investigativa do cavalo Clever Hans eacute admiraacutevel o mito Clever Hansatingiu uma dimensatildeo cientiacutefica bem maior alimentado igualmente por opositores edefensores dos estudos em linguagem natildeo-humana Segundo esse mito bem difundidoPfungst ldquodesvendou a farsardquo demonstrando que Clever Hans natildeo era nem inteligente nemlinguiacutestico mas um animal induzido por pistas inadvertidas de Van Osten e outros membrosda audiecircncia Para os pesquisadores em linguagem natildeo-humana portanto o desafio eacutedemonstrar para a comunidade acadecircmica que a proacutepria pesquisa natildeo sofre o ldquoefeito CleverHansrdquo seus sujeitos natildeo recebem pistas natildeo-verbais dos investigadores humanos Mas seraacutepossiacutevel isolar experimentalmente na linguagem o siacutembolo dos processos gerativos dessesiacutembolo

Pfungst demonstrou algo que para noacutes eacute mais fundamental que um conhecimento

ldquodenotativordquo ou ldquosimboacutelicordquo de Clever Hans Talvez por sua vivecircncia co-ontogecircnica com otratador talvez por ser um organismo particularmente orientado para as accedilotildees humanas o

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cavalo foi capaz de coordenar suas accedilotildees com as accedilotildees humanas E estando ou natildeo nalinguagem (na condiccedilatildeo de observador) Clever Hans foi capaz de transformar suascoordenaccedilotildees de accedilotildees em palavras - em noacutes na rede conversacional - para a audiecircnciahumana Para os observadores naquele momento Clever Hans estava dizendo algo

8 A emergecircncia da autoconsciecircncia e a epigrafe de Nietzsche

Mesmo reconhecendo que termos como consciecircncia e autoconsciecircncia satildeopolissecircmicos e que os seus significados dependem do referencial teoacuterico a partir do qual sefala e que mesmo dentro de uma mesma teoria ainda assim eles podem ser mateacuteria deintensos debates (Searle 1998) vamos primeiramente nos posicionar e explicitar o queestamos denominando com a expressatildeo ldquoemergecircncia da autoconsciecircnciardquo

Assim o que estamos conotando como emergecircncia da autoconsciecircncia ou auto-reflexividade eacute somente a capacidade do homem de fazer referecircncia a si e ao mundo com oqual interage utilizando o corpo e as recursotildees linguiacutesticas

Acreditamos que a dificuldade de compreender a autoconsciecircncia como um fenocircmenoimanente particular ao viver bioloacutegico humano reside no fato de termos de encontrar omecanismo pelo qual somos capazes de distinguir a noacutes mesmos como se fossemos entidadesindependentes de nosso proacuteprio viver e ao mesmo tempo de especificarmos um eu que noshabita e que portanto eacute dependente de nossa biologia

Este aparente paradoxo pode ser resolvido se aceitarmos que a operaccedilatildeo deautoconsciecircncia eacute uma distinccedilatildeo reflexiva de um ldquoeurdquo forjado na linguagem de tal forma queeste eu natildeo somente constitui o corpo que surge na distinccedilatildeo mas tambeacutem que este eu podeser referenciado como uma abstraccedilatildeo no fluir da rede linguiacutestica

Para tornar mais claro este argumento desdobraremos a questatildeo em duas perguntasquais sejam 1- Como este eu corpoacutereo e abstrato eacute capaz de fazer referecircncia ao mundo e seauto-referenciar ou seja como nos tornamos observadores 2- Como os laccedilos da redelinguiacutestica que nos liga uns aos outros e ao mundo mesmo se mantendo na exterioridade denossa corporeidade nas franjas das relaccedilotildees interpessoais cria em noacutes o que em noacutes eacute tatildeointimo - a autoconsciecircncia

Vamos tentar responder estas duas perguntas e esperamos que ao final tenhamosexplicado nossa indagaccedilatildeo inicial qual seja como nos tornamos autoconscientes no devir

Cocircnscios de que toda explicaccedilatildeo exige tanto uma condiccedilatildeo formal mecanismogerativo quanto uma informal aceitabilidade convidamos o leitor para participar conosco daformulaccedilatildeo de um mecanismo gerativo para a autoconsciecircncia Antes poreacutem faremos umasolicitaccedilatildeo sem a qual seraacute impossiacutevel caminharmos juntos eacute indispensaacutevel romper com a

crenccedila de que representamos os objetos que estatildeo no mundo em nossa mente como umespelhoA razatildeo de nosso alerta e de nossa controversa adveacutem do fato de que tanto a ceacutelula

nervosa quanto o sistema nervoso como um todo eacute sensiacutevel somente agrave intensidade dos sinaisquiacutemicos de seu proacuteprio modo de operar e portanto natildeo podem captar e processarinformaccedilotildees ou qualidades do mundo laacute fora como muacutesica cheiro sabor cores etc Ou sejanatildeo haacute uma correspondecircncia ponto a ponto do que acreditamos ser o mundo laacute fora com oque acreditamos ser o mundo de dentro - nossa mente Somente para se ter uma ideia daordem de grandeza e do diferencial que separa estes dois mundos para os duzentos outrezentos milhotildees de receptores sensoriais haacute cerca de dez bilhotildees de sinapses no sistemanervoso sugerindo que as dinacircmicas internas de nosso proacuteprio organismo ao se

entrecruzarem com as perturbaccedilotildees advindas do meio externo participam na criaccedilatildeo interna

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do que o organismo vecirc ldquosenterdquo e nomeia tais como cores sons e sensaccedilotildees (Von Foster1994)

Quais as consequecircncias desse entendimento para nossa discussatildeoA consequecircncia mais fundamental eacute a de que o mundo laacute fora com os seus objetos e

acontecimentos natildeo preacute-existem ao observador pois que eles natildeo satildeo entidades primaacuterias aoato de observar e portanto independentes da biologia do observador As caracteriacutesticas quesupostamente satildeo dadas agraves coisas mostram-se tambeacutem como caracteriacutesticas do observador Ascores natildeo estatildeo laacute fora independentes de nossa biologia mas tambeacutem natildeo estatildeo caacute dentroindependentes de nosso mundo cultural Se isso eacute assim nega-se tanto o realismo de ummundo predeterminado que o organismo eacute capaz de representar quanto o idealismo que tomaa percepccedilatildeo como uma projeccedilatildeo de um mundo interno predeterminado (Varela et al 2003)

Eacute com essa dupla negaccedilatildeo que se diz que os objetos natildeo antecedem agrave distinccedilatildeo quedeles eacute feita pelo observador Os objetos surgem na praacutexis do viver do observador e o que eacuteessa praacutexis do viver humano senatildeo as coordenaccedilotildees de coordenaccedilotildees de accedilotildees que realizamosem nosso cotidiano

Seguindo esta linha de raciociacutenio o observar surge no domiacutenio das coerecircnciasexperienciais inerentes ao proacuteprio viver Ao darmos ecircnfase ao processo deslocamos a posiccedilatildeodo observador de ente corporificado para ente operacional

Se o leitor aceitou que eacute impossiacutevel a este ente operacional fazer referecircncia a algo forade seu domiacutenio de experiecircncias fora de sua proacutepria histoacuteria deduz-se que os objetos o corpoe suas partes e por extensatildeo o proacuteprio ldquoeurdquo surgem no operar das coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais ou seja na linguagem Eacute importante notar que emboraenclausurados em nossa proacutepria biologia noacutes soacute nos tornamos observadores na presenccedila dooutro ao partilharmos do processo recursivo e transgeracional que eacute o viver na linguagem

O importante eacute que noacutes repetimos esse processo conservado transgeracionalmente emcada ontogenia Assim quando nascemos e nos inserimos no mundo atraveacutes das primeirastriangulaccedilotildees criadas pelo apontar da matildee no sentido lato deste termo para um objeto quepode ser o nosso corpo ou parte dele jaacute estamos na linguagem

A necessidade do outro fundado na relaccedilatildeo jaacute nos coloca frente ao desafio deresponder agrave segunda questatildeo anteriormente formulada qual seja como os laccedilos de uma redelinguiacutestica podem criar em noacutes o que em noacutes eacute tatildeo intimo - a autoconsciecircncia

A Biologia do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode serentendido como uma co-emergecircncia da experiecircncia de um mundo vivido e da identidade doeu vivente (Varela et al 2003) No entanto haacute de se fazer uma ressalva a experiecircncia eacuteclaramente um evento pessoal mas isso natildeo significa que seja um evento privado no sentidode algum tipo de sujeito isolado que caiu de paacutera-quedas sobre um mundo objetivo

previamente dado Se aceitarmos a ressalva que a experiecircncia eacute tanto um evento pessoalporque necessariamente auto-referencial mas tambeacutem coletivo porque necessariamenterelacional poderemos compreender o surgimento de seres vivos capazes de fazer referecircnciaao mundo e se auto-referenciar sem termos de apelar para uma transcendecircncia ou para aimanecircncia de um suposto ldquoeurdquo independente e centro desta vivecircncia (Varela et al 2003)

Seria este o entendimento de Nietzsche (que noacutes recusamos a acreditar) o corpo queprocede como um ldquoeurdquo sem precisar falar

9 Referencias bibliograacuteficas

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4 Relaccedilatildeo corpo e linguagem nas ciecircncias linguiacutesticas

A pergunta sobre a relaccedilatildeo entre corpo e linguagem eacute quase tatildeo antiga quanto aproacutepria consideraccedilatildeo do fenocircmeno na linguagem no humano Essa discussatildeo de longa estirpe

abrange aleacutem da pergunta sobre as estruturas e processos anatocircmicos e fisioloacutegicosenvolvidos na produccedilatildeo e percepccedilatildeo dos sons da fala (uma tradiccedilatildeo bem estabelecida naIacutendia e natildeo na Greacutecia claacutessica) As estruturas e processos gerativos das regularidades quepermitem na linguagem o que observamos e comentamos como ldquoentendimento muacutetuordquoassim como as palavras as frases o significado o dizer e o modo de dizer sobre o mundoQuando Platatildeo propotildee haacute 2 mil anos no Craacutetilo (1994) o debate sobre as palavras seremartifiacutecios humanos ou relacionarem-se naturalmente agraves coisas ele estaacute perguntandoimplicitamente se haacute processos inerentes ao humano que decircem conta do fenocircmeno dasignificaccedilatildeo ou da denotaccedilatildeo (do apontar para as coisas do mundo)

Agrave primeira vista portanto a problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre corpo e linguagemparece ter que dar conta desses trecircs elementos que surgem na descriccedilatildeo tal como

tradicionalmente colocado no pensamento ocidental a) o fenocircmeno da linguagem no qualobservamos regularidades na descriccedilatildeo do mundo b) corpos humanos que de algum modoproduzem permitem ou experimentam a linguagem c) e um mundo situado fora dessescorpos que eacute descrito significado ou denotado pela linguagem e portanto direta ouindiretamente por aqueles corpos que produzem permitem ou experimentam a linguagemNa perspectiva da inter-relaccedilatildeo entre estes trecircs elementos mencionados - corpo linguagem emundo - a pergunta sobre o entendimento muacutetuo dos seres humanos acerca do mundo atraveacutesda linguagem eacute uma pergunta sobre a emergecircncia do significado

Em ciecircncia linguiacutestica aceita-se geralmente que o significado seja um aspecto dosigno linguiacutestico - pertinente portanto apenas ao universo do humano - que nos permiteldquoselecionar um ou outro aspecto do mundo natildeo-linguiacutesticordquo (Trask 2006 265) Para que osignificado cumpra o que promete ele deve ao mesmo tempo denotar (apontar para algo nomundo) e ter sentido (relacionar-se com os demais signos de um sistema linguiacutestico) Porexemplo a palavra ldquohumanardquo denota um ser no mundo com tais e tais propriedadesconsensualmente admitidas E a palavra ldquohumanardquo encerra os sentidos de membro de certaespeacutecie bioloacutegica ser feminino ou pessoa sensiacutevel na medida em que se relacionelinguisticamente com termos como ldquoser vivordquo ldquominha colega de trabalhordquo ldquohumanitaacuteriordquo eassim por diante

Essa abordagem do significado nos diz algo mais sobre a inter-relaccedilatildeo entre corpo elinguagem Ela nos diz que o mundo soacute eacute dado ao conhecimento do corpo pela linguagem (ouseja eacute pela linguagem que o corpo tem acesso ao mundo) E por outro lado que corpo e

mundo existem independente um do outro e ambos independente da linguagem mesmo quenatildeo haja nenhum modo de se ter acesso ao mundo a natildeo ser pela linguagem O mundo seriaentatildeo ldquoum soacuterdquo uma mesma realidade ainda que ao acessar o mundo pela linguagem doiscorpos (ou um corpo em momentos diferentes) possam experienciar mundos distintos(Eicheverria 1994)

Mas como de daacute entatildeo o fenocircmeno que observamos em que corpos individuais (sereshumanos individuais) tenham o mesmo acesso ao mundo - acesso a um mesmo mundo - oupelo menos experimentem uma regularidade na descriccedilatildeo desse mundo permitindo-osconversar sobre esse mundo de modo mutuamente compreensiacutevel As duas respostastradicionais em ciecircncias linguiacutesticas para essa questatildeo eacute que a linguagem eacute universal nohumano e por outro lado que a linguagem eacute especiacutefica da espeacutecie humana Ou seja de algum

modo (a resposta particular varia segundo determinadas linhas de pesquisa escolas ecorrentes de pensamento) estamos naturalmente equipados para produzir processar ou

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experienciar a linguagem de modo semelhante enquanto membros da mesma espeacutecie Porexemplo para a escola da gramaacutetica gerativa uma das mais influentes em ciecircnciaslinguiacutesticas e ligada ao cognitivismo no contexto das ciecircncias cognitivas o processo gerativobaacutesico da linguagem eacute a sintaxe a manipulaccedilatildeo de siacutembolos como um processo

geneticamente disponiacutevel na constituiccedilatildeo da arquitetura neural do humano que permite umaconvergecircncia do desenvolvimento linguiacutestico de qualquer falante (ceteris paribus) em umamesma comunidade de fala Podemos hierarquizar esse domiacutenio de explicaccedilotildees como noEsquema 1 abaixo

Corpo gt sintaxe gt interaccedilatildeo (linguagem)

Esquema 1 - Hierarquia do domiacutenio de explicaccedilotildees linguumliacutesticas

Explicitando a hierarquia acima a) o corpo humano possui tais e tais caracteriacutesticasanatocircmicas e fisioloacutegicas universais e especiacuteficas da espeacutecie b) essas caracteriacutesticas

universais produzem regularidades gerativas como a sintaxe c) finalmente essasregularidades permitem a interaccedilatildeo linguiacutestica entre os corpos humanos o conversar oapontar comum para as coisas do mundo

Assim como acontece em muitas outras linhas investigativas da linguiacutestica agramaacutetica gerativa explica a linguagem aceitando como princiacutepio explicativo que alinguagem eacute um produto do corpo no caso mediado pela sintaxe No caso da gramaacuteticagerativa o mecanismo gerativo (a explicaccedilatildeo) da linguagem eacute a sintaxe um sistema demanipulaccedilatildeo de siacutembolos embutido em nossa arquitetura neural Outras explicaccedilotildees de outrasescolas falam do envolvimento do ceacuterebro na accedilatildeo de denotar de apontar para coisas domundo Outras ainda sobre a capacidade cognitiva de aprender a linguagem emcorrespondecircncia com os fatos do mundo Em um e outro caso as regularidades encontradasna linguagem seja a sintaxe ou os siacutembolos ao mesmo tempo em que satildeo produzidas ouaprendidas pelo corpo (humano) tornam-se o mecanismo que explica o fato de podermosconversar uns com os outros acerca do mundo

O problema das abordagens supracitadas eacute que a relaccedilatildeo entre corpo e linguagem natildeoeacute explicitada ainda que o corpo seja apontado como causando a linguagem o corpo aqui eacuteutilizado como um princiacutepio explicativo De onde vem a linguagem Resposta dasregularidades (a sintaxe ou os siacutembolos) E de onde vecircm as regularidades De um corpogeneticamente dotado para produzir tais regularidades Para noacutes no entanto a perguntacrucial sobre a linguagem eacute justamente entender como dado um organismo vivo (que podeser um ser humano) surge o fenocircmeno do conversar do apontarmos juntos para as coisas As

relaccedilotildees entre a corporeidade os domiacutenios linguumliacutesticos e o linguajar humano seratildeo expandidasnos toacutepicos seguintes

5 Relaccedilatildeo corpo e linguagem na abordagem da Biologia do Conhecer

No contexto da escola chilena da Biologia do Conhecer (BC) uma abordagemsistecircmica para a explicaccedilatildeo do viver e do conhecer um sistema vivo eacute uma organizaccedilatildeoautopoieacutetica (Maturana e Varela 1997) Isso faz referecircncia agrave produccedilatildeo (poiesis) no curso doviver dos proacuteprios elementos que constituem a cada momento o sistema vivo Em segundolugar esse sistema (assim como qualquer sistema passiacutevel de uma explicaccedilatildeo cientiacutefica) eacute umsistema determinado estruturalmente Isso significa que tudo o que acontece com o sistema

depende a cada momento de sua proacutepria estrutura e natildeo da instruccedilatildeo interna determinadapelas perturbaccedilotildees externas ainda que as perturbaccedilotildees possam desencadear as mudanccedilas

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internas determinadas pela estrutura do organismo Observar essa dinacircmica organismo-meionos permite dizer enquanto observadores do processo que o sistema muda a cada momentoem congruecircncia com a sua histoacuteria de interaccedilotildees (Vianna 2008) Ainda dentro das coerecircnciasexplicativas da BC devemos fazer a distinccedilatildeo entre organizaccedilatildeo e estrutura A organizaccedilatildeo eacute

o sistema como um todo definido pela relaccedilatildeo entre seus componentes se a organizaccedilatildeo seperde o sistema natildeo existe mais enquanto sistema de um determinado tipo A estrutura (arelaccedilatildeo particular entre os componentes do sistema) pode variar sem perda da organizaccedilatildeo(Maturana e Varela 1990) No caso do vivo essa diferenccedila entre estrutura e organizaccedilatildeo eacutecrucial pois o vivo eacute um sistema dinacircmico variando estruturalmente sem perder aorganizaccedilatildeo ou seja o vivo sofre contiacutenuas mudanccedilas estruturais com conservaccedilatildeo daorganizaccedilatildeo em toda a sua ontogenia do nascimento ateacute a morte sem a perda da organizaccedilatildeoautopoieacutetica (Maturana e Varela 1990 Vianna e Goacutemez-Soriano 2007)

Ao observar um sistema vivo distinguimos dois domiacutenios distintos que natildeo seintersectam operacionalmente (apesar de como observadores possamos apontar umacorrespondecircncia entre os dois) no domiacutenio da fisiologia observamos as relaccedilotildees particulares

e dinacircmicas entre os componentes do organismo e no domiacutenio do comportamentoobservamos o organismo em sua totalidade em interaccedilatildeo com o meio (Maturana 1997)

Como tanto o organismo quanto o meio satildeo sistemas determinados estruturalmentetudo o que acontece com cada um deles eacute determinado pelas respectivas estruturas de ambos enatildeo pela instruccedilatildeo de um sobre o outro No entanto as modificaccedilotildees estruturais por que passao organismo possuem uma correspondecircncia histoacuterica justamente com o curso de suasinteraccedilotildees com o meio o organismo iraacute mudar em congruecircncia com as perturbaccedilotildees do meioassim como o meio iraacute mudar de forma correspondente em acordo com as interaccedilotildees com oorganismo Esse processo de interaccedilotildees recorrentes do organismo em um meio eacute chamado porMaturana e Varela de acoplamento estrutural Conservar o acoplamento estrutural com o meioeacute condiccedilatildeo necessaacuteria para a conservaccedilatildeo da autopoiese - organizaccedilatildeo a que pertence o servivo A histoacuteria ontogeneacutetica e filogeneacutetica em que o vivo se manteacutem em acoplamentoestrutural com o meio mudando a estrutura mas conservando a sua organizaccedilatildeo eacutedenominado de deriva natural Se mais de um organismo estaacute envolvido o processo como umtodo eacute denominado de co-deriva natural (Maturana e Podozis 1992)

No caso do observador descrever dois (ou mais) organismos em interaccedilotildeesrecorrentes o olhar do observador estaraacute direcionado para o sistema como um todo ou sejaaquele constituiacutedo pelos dois ou mais organismos e o entorno Nos termos da BC issosignifica que suas respectivas organizaccedilotildees autopoieacuteticas satildeo conservadas em coerecircncia com ahistoacuteria das relaccedilotildees entre os dois sistemas vivos observados e referenciados Veja queoperacionalmente para o organismo tudo o que existe satildeo perturbaccedilotildees externas que ele iraacute

tratar como perturbaccedilotildees de um ou outro tipo dependendo de sua proacutepria estrutura interna Oorganismo natildeo distingue entre um meio inerte e um sistema vivo Quem faz essa distinccedilatildeosomos noacutes observadores na descriccedilatildeo de um sistema em que podemos observar ao mesmotempo o curso das interaccedilotildees e as mudanccedilas estruturais do organismo ou dos organismosenvolvidos

6 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem

O fato de ser preciso um observador para fazer a distinccedilatildeo entre fisiologia ecomportamento natildeo eacute secundaacuterio mas crucial isso significa que estamos levando em contana explicaccedilatildeo o fundamento bioloacutegico do linguajar que eacute a coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de

accedilotildees em um domiacutenio consensual O observador eacute um organismo (no caso um organismohumano) que diz aquilo que diz de acordo com a sua proacutepria experiecircncia mas diz o que diz a

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outro observador que iraacute escutaacute-lo a partir de uma histoacuteria de interaccedilotildees (ou de uma mesmacomunidade de conversaccedilotildees) e iraacute coordenar suas accedilotildees de forma correspondente agrave interaccedilatildeona linguagem

A manutenccedilatildeo do acoplamento estrutural entre os organismos participantes de uma

interaccedilatildeo recursiva configura um domiacutenio linguiacutestico Veja que para haver um domiacuteniolinguiacutestico nos termos da BC natildeo eacute necessaacuteria a participaccedilatildeo de um organismo humano nainteraccedilatildeo Bastam coordenaccedilotildees de accedilotildees recursivas entre dois ou mais organismos emacoplamento estrutural co-ontogecircnico Ainda uma rede social pode ser formada como umarede de interaccedilotildees consensuais e recursivas entre os membros de uma mesma comunidade deorganismos Nos termos da BC o que eacute peculiar agraves interaccedilotildees humanas eacute que as proacutepriascoordenaccedilotildees de accedilotildees co-ontogecircnicas ou seja o comportamento consensual eacute utilizadocomo elemento para novas coordenaccedilotildees de accedilotildees Linguagem satildeo coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais Eacute como se desse uma volta sobre a voltarecursivamente ou seja incorporando continuamente a experiecircncia e a criaccedilatildeo da novidade(linguiacutestica) no rodar

Ainda que para a Biologia do Conhecer seja possiacutevel que noacutes seres humanospossamos manter coordenaccedilotildees condutuais com outros organismos natildeo-humanos (nossosanimais domeacutesticos por exemplo) natildeo vivemos com eles ininterruptamente na linguagem

Veja que para falar de domiacutenio linguiacutestico e de linguagem aqui natildeo precisamos fazerreferecircncia a nenhum elemento tradicionalmente descrito como caracteriacutestico da fala humanaNenhum som gesto ou desenho particular pertence agrave linguagem Da mesma forma qualquersom gesto ou desenho particular pode pertencer agrave linguagem pois essa eacute definidahistoricamente Se haacute recursatildeo se haacute consenso se no curso da interaccedilatildeo aquele som gesto oudesenho eacute distinguido como um elemento na coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de accedilotildees recursivase consensuais ele faraacute parte da linguagem na descriccedilatildeo do observador (Eicheverria 1994) Omesmo se daacute com outras regularidades percebidas na liacutengua como a sintaxe A sintaxe soacutepode ser descrita como uma regularidade das interaccedilotildees linguiacutesticas a partir do momento emque se tornem consensuais e recursivas Eacute preciso fazer referecircncia agrave histoacuteria ao curso deinteraccedilotildees para se dizer que uma palavra pertence agrave linguagem E como as interaccedilotildeeslinguiacutesticas podem conformar uma comunidade de interaccedilotildees (como no caso humano)podemos dizer que as palavras satildeo ldquonoacutesrdquo nessa rede de interaccedilotildees consensuais e recursivas

Uma exigecircncia na BC eacute que em uma explicaccedilatildeo mecanicista eacute preciso distinguir entreum sistema e seus componentes tratando-os como ldquounidades operacionalmente diferentesque pertencem a conjuntos discretos que geram domiacutenios fenomecircnicos que natildeo seintersectamrdquo (Maturana 1997 27) Isso eacute exatamente o que um observador faz quandodistingue os componentes de um sistema vivo (a fisiologia) ou de outro lado o operar desse

sistema em um meio (o comportamento) Assim fisiologia e conduta satildeo dois domiacuteniosdiferentes operacionalmente disjuntos e natildeo podem ser confundidos sob pena de cometerequiacutevocos na descriccedilatildeo Por exemplo pode se falar que a memoacuteria depende da atividade dasredes neurais enquanto propriedade emergente desta rede mas eacute um equivoco falar que amemoacuteria estaacute guardada nos neurocircnios haja vista que a memoacuteria pertence agrave relaccedilatildeo doindividuo (corpo) com o meio e natildeo do sistema nervoso (domiacutenio da fisiologia) diretamentecom o meio externo Afirmar isto seria um reducionismo Se haacute reduccedilatildeo fenomecircnica aexplicaccedilatildeo pressupotildee uma forccedila vital (vitalismo) e natildeo um mecanismo

Nesta perspectiva devemos tambeacutem distinguir os elementos de uma interaccedilatildeolinguiacutestica (os organismos e os sons gestos ou desenhos utilizados na interaccedilatildeo) e a proacutepriainteraccedilatildeo Nenhum elemento do organismo eacute responsaacutevel por ldquoproduzirrdquo linguagem pois a

linguagem estaacute no domiacutenio interpessoal e natildeo pode portanto ser reduzida agrave fisiologia doorganismo sob pena de um equiacutevoco reducionista Da mesma forma nenhuma palavra (sons

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gestos ou desenhos) ou gramaacutetica pode ser colocada em uma posiccedilatildeo gerativa da linguagem justamente por dependerem do consenso para surgirem As palavras e a gramaacutetica jaacute fazemparte da descriccedilatildeo da linguagem no momento em que esses elementos satildeo descritos como umaparte dela

Destarte o modo de vida humano surge e se conserva na linguagem como modo deconservar sua organizaccedilatildeo Para Maturana (1997 168) o humano vive nesse ldquofluir deinteraccedilotildees recorrentesrdquo E como a fisiologia muda em congruecircncia com a histoacuteria dasinteraccedilotildees do organismo devemos esperar uma correspondecircncia estrutural do organismohumano com o curso de suas interaccedilotildees na linguagem Do mesmo modo ao falarmos doprocesso de denotaccedilatildeo de apontar para um mundo laacute fora com nossas palavras natildeoprecisamos fazer referecircncia nem a uma constituiccedilatildeo cognitiva preacutevia do humano (pois esse eacuteum domiacutenio que natildeo se intersecta com o domiacutenio comportamental) e nem a uma realidadeldquoinformativardquo laacute fora (pois tudo o que acontece com o organismo eacute determinado neleestruturalmente) Falamos da denotaccedilatildeo como se estiveacutessemos apontando para um mundopreacutevio laacute fora mas tudo o que estamos fazendo de fato eacute coordenando nossas accedilotildees com

outros observadoresAssim a denotaccedilatildeo como afirma Maturana (1997 150) ldquonatildeo eacute uma operaccedilatildeo

primitiva Ela requer concordacircncia - consenso - para a especificaccedilatildeo tanto do denotantequanto do denotado Se a denotaccedilatildeo portanto natildeo eacute primitiva natildeo pode ser tampouco umaoperaccedilatildeo linguiacutestica primitivardquo

Se denotaccedilatildeo natildeo eacute uma operaccedilatildeo primitiva natildeo eacute preciso fazer referecircncia a umarealidade externa ldquointermediadardquo pela linguagem De fato apontamos (descrevemos)consensualmente para objetos do mundo e eacute na descriccedilatildeo desse apontar para os objetos demodo consensual que surge ao mesmo tempo a denotaccedilatildeo e os objetos que trazemos agrave matildeono linguajar A linguagem eacute um espaccedilo de relaccedilotildees em que nos movemos e eacute neste moverrecursivo na linguagem que surgem tanto o ato de observar quanto o proacuteprio observador

7 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem natildeo-humana

Iniciaremos este toacutepico fazendo uma pergunta provocativa qual seja eacute possiacutevel falarem linguagem natildeo-humana

Ainda que a BC natildeo utilize o termo ldquolinguagemrdquo para as interaccedilotildees recorrentes natildeo-humanas nesse domiacutenio explicativo podemos pelo menos tratar essas interaccedilotildees de modobem diferente das abordagens tradicionais da psicologia comparada e da etologia

O bonobo (Pan paniscus) Kanzi eacute a estrela nas pesquisas com linguagem siacutemia oulinguagem natildeo-humana da psicologia comparada Kanzi comunica-se basicamente atraveacutes

de um teclado de ldquolexigramasrdquo siacutembolos criados na deacutecada de 70 para experimentos emlinguagem siacutemia mas que posteriormente foram utilizados tambeacutem para o trabalho comcrianccedilas humanas autistas Kanzi estava sempre por perto durante o treinamento de sua matildeeadotiva Matata e foi observado utilizando o teclado algumas vezes No dia seguinte agrave saiacutedade Matata do experimento (para fins de procriaccedilatildeo) houve a primeira tentativa de treinamentoformal de Kanzi Nesse primeiro dia de aula Kanzi utilizou o teclado de lexigramas 120vezes sem ter sido requisitado a fazecirc-lo Comunicou-se fluentemente com a pesquisadora SueSavage-Rumbaugh atraveacutes dos lexigramas e segundo a investigadora sabia o que ossiacutembolos significavam (Savage-Rumbaugh e Lewin 1994)

A carreira de Kanzi prossegue (ainda hoje) com outras conquistas linguiacutesticas ecognitivas tatildeo reveladoras quanto seu desempenho precoce com os lexigramas Kanzi

desenvolveu um repertoacuterio vocal proacuteprio e controlado utilizado em seus processosinteracionais com humanos e outros siacutemios aleacutem da compreensatildeo do inglecircs falado Muito da

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admiraccedilatildeo pelo desempenho de Kanzi vem de sua manipulaccedilatildeo de siacutembolos equivalentesagravequeles utilizados num contexto humano e accedilotildees igualmente apropriadas para o observadorhumano (eacute justamente o desempenhar de ldquoaccedilotildees apropriadasrdquo o que nos leva a dizer aoobservar a performance de Kanzi que o que ele faz eacute linguagem) Pensamos no entanto que

o dado mais fundamental da ontogenia de Kanzi que nos leva a apontaacute-lo como um serlinguiacutestico foram seus processos relacionais Os modos de aquisiccedilatildeo linguiacutestica de Kanzi aomenos inicialmente natildeo eram parte de um experimento formal mas o resultado da relaccedilatildeo co-ontogecircnica estabelecida com a matildee e os cuidadores humanos e da relaccedilatildeo ecoloacutegicaestabelecida com atividades palavras e objetos ligados agrave investigaccedilatildeo cruciais para Kanzioferecer respostas linguiacutesticas consideradas adequadas por seus investigadores independentedo ceticismo do restante da comunidade cientiacutefica No caso de Kanzi e nos termos da BCpodemos dizer que esse organismo pelo menos nos momentos em que ele coordena juntocom os investigadores accedilotildees consensuais coordenadas estaacute na linguagem com osobservadores humanos Frans de Wall (2007) relata vaacuterios exemplos dessas recursotildeeslinguiacutesticas de bonobos com humanos em seu livro intitulado ldquoEu primatardquo

Outro caso interessante que talvez natildeo diga respeito agrave linguagem (nos termos da BC)mas ao menos agraves coordenaccedilotildees recursivas que conformam um domiacutenio linguiacutestico eacute o docavalo Clever Hans (Candland 1993)

Em 1980 Thomas Sebeok organizou sob os auspiacutecios da New York Academy ofSciences um Congresso intitulado ldquoThe Clever Hans Phenomenon Communication withHorses Whales Apes and Peoplerdquo (Candland 1993) O propoacutesito poliacutetico do congresso foimuito mais discerniacutevel que seu conteuacutedo cientiacutefico a comeccedilar pelo tiacutetulo o ldquofenocircmenoClever Hansrdquo cuja simples menccedilatildeo eacute suficiente para lanccedilar suspeitas sobre qualquer pesquisaem linguagem natildeo-humana

O cavalo Clever Hans mobilizou vaacuterios estudiosos no iniacutecio do seacuteculo XX paraentender como esse animal aleacutem de compreender alematildeo falado respondia corretamente agravesperguntas feitas batendo os cascos no chatildeo ou realizando outros movimentos corporais Em1904 foi constituida uma comissatildeo reunindo zooacutelogos professores donos de circo e ateacutemilitares para avaliar o fenocircmeno Os membros da comissatildeo investigavam a possibilidade detruques principalmente pistas natildeo-verbais dadas por seu cuidador Wilhem Von Osten maschegaram agrave conclusatildeo que apesar de natildeo ser possiacutevel avaliar a inteligecircncia de Clever Hansnenhum truque podia ser detectado O psicoacutelogo Oskar Pfungst (aluno de Carl Stumpfmembro da Comissatildeo) continuou os estudos com Hans e por meio de engenhososexperimentos formulou a hipoacutetese de que o cavalo por algum meio natildeo compreendido eracapaz de detectar mudanccedilas comportamentais na audiecircncia iniciando ou completando seusproacuteprios movimentos indicativos da resposta (Candland 1993)

Se a histoacuteria investigativa do cavalo Clever Hans eacute admiraacutevel o mito Clever Hansatingiu uma dimensatildeo cientiacutefica bem maior alimentado igualmente por opositores edefensores dos estudos em linguagem natildeo-humana Segundo esse mito bem difundidoPfungst ldquodesvendou a farsardquo demonstrando que Clever Hans natildeo era nem inteligente nemlinguiacutestico mas um animal induzido por pistas inadvertidas de Van Osten e outros membrosda audiecircncia Para os pesquisadores em linguagem natildeo-humana portanto o desafio eacutedemonstrar para a comunidade acadecircmica que a proacutepria pesquisa natildeo sofre o ldquoefeito CleverHansrdquo seus sujeitos natildeo recebem pistas natildeo-verbais dos investigadores humanos Mas seraacutepossiacutevel isolar experimentalmente na linguagem o siacutembolo dos processos gerativos dessesiacutembolo

Pfungst demonstrou algo que para noacutes eacute mais fundamental que um conhecimento

ldquodenotativordquo ou ldquosimboacutelicordquo de Clever Hans Talvez por sua vivecircncia co-ontogecircnica com otratador talvez por ser um organismo particularmente orientado para as accedilotildees humanas o

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cavalo foi capaz de coordenar suas accedilotildees com as accedilotildees humanas E estando ou natildeo nalinguagem (na condiccedilatildeo de observador) Clever Hans foi capaz de transformar suascoordenaccedilotildees de accedilotildees em palavras - em noacutes na rede conversacional - para a audiecircnciahumana Para os observadores naquele momento Clever Hans estava dizendo algo

8 A emergecircncia da autoconsciecircncia e a epigrafe de Nietzsche

Mesmo reconhecendo que termos como consciecircncia e autoconsciecircncia satildeopolissecircmicos e que os seus significados dependem do referencial teoacuterico a partir do qual sefala e que mesmo dentro de uma mesma teoria ainda assim eles podem ser mateacuteria deintensos debates (Searle 1998) vamos primeiramente nos posicionar e explicitar o queestamos denominando com a expressatildeo ldquoemergecircncia da autoconsciecircnciardquo

Assim o que estamos conotando como emergecircncia da autoconsciecircncia ou auto-reflexividade eacute somente a capacidade do homem de fazer referecircncia a si e ao mundo com oqual interage utilizando o corpo e as recursotildees linguiacutesticas

Acreditamos que a dificuldade de compreender a autoconsciecircncia como um fenocircmenoimanente particular ao viver bioloacutegico humano reside no fato de termos de encontrar omecanismo pelo qual somos capazes de distinguir a noacutes mesmos como se fossemos entidadesindependentes de nosso proacuteprio viver e ao mesmo tempo de especificarmos um eu que noshabita e que portanto eacute dependente de nossa biologia

Este aparente paradoxo pode ser resolvido se aceitarmos que a operaccedilatildeo deautoconsciecircncia eacute uma distinccedilatildeo reflexiva de um ldquoeurdquo forjado na linguagem de tal forma queeste eu natildeo somente constitui o corpo que surge na distinccedilatildeo mas tambeacutem que este eu podeser referenciado como uma abstraccedilatildeo no fluir da rede linguiacutestica

Para tornar mais claro este argumento desdobraremos a questatildeo em duas perguntasquais sejam 1- Como este eu corpoacutereo e abstrato eacute capaz de fazer referecircncia ao mundo e seauto-referenciar ou seja como nos tornamos observadores 2- Como os laccedilos da redelinguiacutestica que nos liga uns aos outros e ao mundo mesmo se mantendo na exterioridade denossa corporeidade nas franjas das relaccedilotildees interpessoais cria em noacutes o que em noacutes eacute tatildeointimo - a autoconsciecircncia

Vamos tentar responder estas duas perguntas e esperamos que ao final tenhamosexplicado nossa indagaccedilatildeo inicial qual seja como nos tornamos autoconscientes no devir

Cocircnscios de que toda explicaccedilatildeo exige tanto uma condiccedilatildeo formal mecanismogerativo quanto uma informal aceitabilidade convidamos o leitor para participar conosco daformulaccedilatildeo de um mecanismo gerativo para a autoconsciecircncia Antes poreacutem faremos umasolicitaccedilatildeo sem a qual seraacute impossiacutevel caminharmos juntos eacute indispensaacutevel romper com a

crenccedila de que representamos os objetos que estatildeo no mundo em nossa mente como umespelhoA razatildeo de nosso alerta e de nossa controversa adveacutem do fato de que tanto a ceacutelula

nervosa quanto o sistema nervoso como um todo eacute sensiacutevel somente agrave intensidade dos sinaisquiacutemicos de seu proacuteprio modo de operar e portanto natildeo podem captar e processarinformaccedilotildees ou qualidades do mundo laacute fora como muacutesica cheiro sabor cores etc Ou sejanatildeo haacute uma correspondecircncia ponto a ponto do que acreditamos ser o mundo laacute fora com oque acreditamos ser o mundo de dentro - nossa mente Somente para se ter uma ideia daordem de grandeza e do diferencial que separa estes dois mundos para os duzentos outrezentos milhotildees de receptores sensoriais haacute cerca de dez bilhotildees de sinapses no sistemanervoso sugerindo que as dinacircmicas internas de nosso proacuteprio organismo ao se

entrecruzarem com as perturbaccedilotildees advindas do meio externo participam na criaccedilatildeo interna

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do que o organismo vecirc ldquosenterdquo e nomeia tais como cores sons e sensaccedilotildees (Von Foster1994)

Quais as consequecircncias desse entendimento para nossa discussatildeoA consequecircncia mais fundamental eacute a de que o mundo laacute fora com os seus objetos e

acontecimentos natildeo preacute-existem ao observador pois que eles natildeo satildeo entidades primaacuterias aoato de observar e portanto independentes da biologia do observador As caracteriacutesticas quesupostamente satildeo dadas agraves coisas mostram-se tambeacutem como caracteriacutesticas do observador Ascores natildeo estatildeo laacute fora independentes de nossa biologia mas tambeacutem natildeo estatildeo caacute dentroindependentes de nosso mundo cultural Se isso eacute assim nega-se tanto o realismo de ummundo predeterminado que o organismo eacute capaz de representar quanto o idealismo que tomaa percepccedilatildeo como uma projeccedilatildeo de um mundo interno predeterminado (Varela et al 2003)

Eacute com essa dupla negaccedilatildeo que se diz que os objetos natildeo antecedem agrave distinccedilatildeo quedeles eacute feita pelo observador Os objetos surgem na praacutexis do viver do observador e o que eacuteessa praacutexis do viver humano senatildeo as coordenaccedilotildees de coordenaccedilotildees de accedilotildees que realizamosem nosso cotidiano

Seguindo esta linha de raciociacutenio o observar surge no domiacutenio das coerecircnciasexperienciais inerentes ao proacuteprio viver Ao darmos ecircnfase ao processo deslocamos a posiccedilatildeodo observador de ente corporificado para ente operacional

Se o leitor aceitou que eacute impossiacutevel a este ente operacional fazer referecircncia a algo forade seu domiacutenio de experiecircncias fora de sua proacutepria histoacuteria deduz-se que os objetos o corpoe suas partes e por extensatildeo o proacuteprio ldquoeurdquo surgem no operar das coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais ou seja na linguagem Eacute importante notar que emboraenclausurados em nossa proacutepria biologia noacutes soacute nos tornamos observadores na presenccedila dooutro ao partilharmos do processo recursivo e transgeracional que eacute o viver na linguagem

O importante eacute que noacutes repetimos esse processo conservado transgeracionalmente emcada ontogenia Assim quando nascemos e nos inserimos no mundo atraveacutes das primeirastriangulaccedilotildees criadas pelo apontar da matildee no sentido lato deste termo para um objeto quepode ser o nosso corpo ou parte dele jaacute estamos na linguagem

A necessidade do outro fundado na relaccedilatildeo jaacute nos coloca frente ao desafio deresponder agrave segunda questatildeo anteriormente formulada qual seja como os laccedilos de uma redelinguiacutestica podem criar em noacutes o que em noacutes eacute tatildeo intimo - a autoconsciecircncia

A Biologia do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode serentendido como uma co-emergecircncia da experiecircncia de um mundo vivido e da identidade doeu vivente (Varela et al 2003) No entanto haacute de se fazer uma ressalva a experiecircncia eacuteclaramente um evento pessoal mas isso natildeo significa que seja um evento privado no sentidode algum tipo de sujeito isolado que caiu de paacutera-quedas sobre um mundo objetivo

previamente dado Se aceitarmos a ressalva que a experiecircncia eacute tanto um evento pessoalporque necessariamente auto-referencial mas tambeacutem coletivo porque necessariamenterelacional poderemos compreender o surgimento de seres vivos capazes de fazer referecircnciaao mundo e se auto-referenciar sem termos de apelar para uma transcendecircncia ou para aimanecircncia de um suposto ldquoeurdquo independente e centro desta vivecircncia (Varela et al 2003)

Seria este o entendimento de Nietzsche (que noacutes recusamos a acreditar) o corpo queprocede como um ldquoeurdquo sem precisar falar

9 Referencias bibliograacuteficas

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experienciar a linguagem de modo semelhante enquanto membros da mesma espeacutecie Porexemplo para a escola da gramaacutetica gerativa uma das mais influentes em ciecircnciaslinguiacutesticas e ligada ao cognitivismo no contexto das ciecircncias cognitivas o processo gerativobaacutesico da linguagem eacute a sintaxe a manipulaccedilatildeo de siacutembolos como um processo

geneticamente disponiacutevel na constituiccedilatildeo da arquitetura neural do humano que permite umaconvergecircncia do desenvolvimento linguiacutestico de qualquer falante (ceteris paribus) em umamesma comunidade de fala Podemos hierarquizar esse domiacutenio de explicaccedilotildees como noEsquema 1 abaixo

Corpo gt sintaxe gt interaccedilatildeo (linguagem)

Esquema 1 - Hierarquia do domiacutenio de explicaccedilotildees linguumliacutesticas

Explicitando a hierarquia acima a) o corpo humano possui tais e tais caracteriacutesticasanatocircmicas e fisioloacutegicas universais e especiacuteficas da espeacutecie b) essas caracteriacutesticas

universais produzem regularidades gerativas como a sintaxe c) finalmente essasregularidades permitem a interaccedilatildeo linguiacutestica entre os corpos humanos o conversar oapontar comum para as coisas do mundo

Assim como acontece em muitas outras linhas investigativas da linguiacutestica agramaacutetica gerativa explica a linguagem aceitando como princiacutepio explicativo que alinguagem eacute um produto do corpo no caso mediado pela sintaxe No caso da gramaacuteticagerativa o mecanismo gerativo (a explicaccedilatildeo) da linguagem eacute a sintaxe um sistema demanipulaccedilatildeo de siacutembolos embutido em nossa arquitetura neural Outras explicaccedilotildees de outrasescolas falam do envolvimento do ceacuterebro na accedilatildeo de denotar de apontar para coisas domundo Outras ainda sobre a capacidade cognitiva de aprender a linguagem emcorrespondecircncia com os fatos do mundo Em um e outro caso as regularidades encontradasna linguagem seja a sintaxe ou os siacutembolos ao mesmo tempo em que satildeo produzidas ouaprendidas pelo corpo (humano) tornam-se o mecanismo que explica o fato de podermosconversar uns com os outros acerca do mundo

O problema das abordagens supracitadas eacute que a relaccedilatildeo entre corpo e linguagem natildeoeacute explicitada ainda que o corpo seja apontado como causando a linguagem o corpo aqui eacuteutilizado como um princiacutepio explicativo De onde vem a linguagem Resposta dasregularidades (a sintaxe ou os siacutembolos) E de onde vecircm as regularidades De um corpogeneticamente dotado para produzir tais regularidades Para noacutes no entanto a perguntacrucial sobre a linguagem eacute justamente entender como dado um organismo vivo (que podeser um ser humano) surge o fenocircmeno do conversar do apontarmos juntos para as coisas As

relaccedilotildees entre a corporeidade os domiacutenios linguumliacutesticos e o linguajar humano seratildeo expandidasnos toacutepicos seguintes

5 Relaccedilatildeo corpo e linguagem na abordagem da Biologia do Conhecer

No contexto da escola chilena da Biologia do Conhecer (BC) uma abordagemsistecircmica para a explicaccedilatildeo do viver e do conhecer um sistema vivo eacute uma organizaccedilatildeoautopoieacutetica (Maturana e Varela 1997) Isso faz referecircncia agrave produccedilatildeo (poiesis) no curso doviver dos proacuteprios elementos que constituem a cada momento o sistema vivo Em segundolugar esse sistema (assim como qualquer sistema passiacutevel de uma explicaccedilatildeo cientiacutefica) eacute umsistema determinado estruturalmente Isso significa que tudo o que acontece com o sistema

depende a cada momento de sua proacutepria estrutura e natildeo da instruccedilatildeo interna determinadapelas perturbaccedilotildees externas ainda que as perturbaccedilotildees possam desencadear as mudanccedilas

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internas determinadas pela estrutura do organismo Observar essa dinacircmica organismo-meionos permite dizer enquanto observadores do processo que o sistema muda a cada momentoem congruecircncia com a sua histoacuteria de interaccedilotildees (Vianna 2008) Ainda dentro das coerecircnciasexplicativas da BC devemos fazer a distinccedilatildeo entre organizaccedilatildeo e estrutura A organizaccedilatildeo eacute

o sistema como um todo definido pela relaccedilatildeo entre seus componentes se a organizaccedilatildeo seperde o sistema natildeo existe mais enquanto sistema de um determinado tipo A estrutura (arelaccedilatildeo particular entre os componentes do sistema) pode variar sem perda da organizaccedilatildeo(Maturana e Varela 1990) No caso do vivo essa diferenccedila entre estrutura e organizaccedilatildeo eacutecrucial pois o vivo eacute um sistema dinacircmico variando estruturalmente sem perder aorganizaccedilatildeo ou seja o vivo sofre contiacutenuas mudanccedilas estruturais com conservaccedilatildeo daorganizaccedilatildeo em toda a sua ontogenia do nascimento ateacute a morte sem a perda da organizaccedilatildeoautopoieacutetica (Maturana e Varela 1990 Vianna e Goacutemez-Soriano 2007)

Ao observar um sistema vivo distinguimos dois domiacutenios distintos que natildeo seintersectam operacionalmente (apesar de como observadores possamos apontar umacorrespondecircncia entre os dois) no domiacutenio da fisiologia observamos as relaccedilotildees particulares

e dinacircmicas entre os componentes do organismo e no domiacutenio do comportamentoobservamos o organismo em sua totalidade em interaccedilatildeo com o meio (Maturana 1997)

Como tanto o organismo quanto o meio satildeo sistemas determinados estruturalmentetudo o que acontece com cada um deles eacute determinado pelas respectivas estruturas de ambos enatildeo pela instruccedilatildeo de um sobre o outro No entanto as modificaccedilotildees estruturais por que passao organismo possuem uma correspondecircncia histoacuterica justamente com o curso de suasinteraccedilotildees com o meio o organismo iraacute mudar em congruecircncia com as perturbaccedilotildees do meioassim como o meio iraacute mudar de forma correspondente em acordo com as interaccedilotildees com oorganismo Esse processo de interaccedilotildees recorrentes do organismo em um meio eacute chamado porMaturana e Varela de acoplamento estrutural Conservar o acoplamento estrutural com o meioeacute condiccedilatildeo necessaacuteria para a conservaccedilatildeo da autopoiese - organizaccedilatildeo a que pertence o servivo A histoacuteria ontogeneacutetica e filogeneacutetica em que o vivo se manteacutem em acoplamentoestrutural com o meio mudando a estrutura mas conservando a sua organizaccedilatildeo eacutedenominado de deriva natural Se mais de um organismo estaacute envolvido o processo como umtodo eacute denominado de co-deriva natural (Maturana e Podozis 1992)

No caso do observador descrever dois (ou mais) organismos em interaccedilotildeesrecorrentes o olhar do observador estaraacute direcionado para o sistema como um todo ou sejaaquele constituiacutedo pelos dois ou mais organismos e o entorno Nos termos da BC issosignifica que suas respectivas organizaccedilotildees autopoieacuteticas satildeo conservadas em coerecircncia com ahistoacuteria das relaccedilotildees entre os dois sistemas vivos observados e referenciados Veja queoperacionalmente para o organismo tudo o que existe satildeo perturbaccedilotildees externas que ele iraacute

tratar como perturbaccedilotildees de um ou outro tipo dependendo de sua proacutepria estrutura interna Oorganismo natildeo distingue entre um meio inerte e um sistema vivo Quem faz essa distinccedilatildeosomos noacutes observadores na descriccedilatildeo de um sistema em que podemos observar ao mesmotempo o curso das interaccedilotildees e as mudanccedilas estruturais do organismo ou dos organismosenvolvidos

6 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem

O fato de ser preciso um observador para fazer a distinccedilatildeo entre fisiologia ecomportamento natildeo eacute secundaacuterio mas crucial isso significa que estamos levando em contana explicaccedilatildeo o fundamento bioloacutegico do linguajar que eacute a coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de

accedilotildees em um domiacutenio consensual O observador eacute um organismo (no caso um organismohumano) que diz aquilo que diz de acordo com a sua proacutepria experiecircncia mas diz o que diz a

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outro observador que iraacute escutaacute-lo a partir de uma histoacuteria de interaccedilotildees (ou de uma mesmacomunidade de conversaccedilotildees) e iraacute coordenar suas accedilotildees de forma correspondente agrave interaccedilatildeona linguagem

A manutenccedilatildeo do acoplamento estrutural entre os organismos participantes de uma

interaccedilatildeo recursiva configura um domiacutenio linguiacutestico Veja que para haver um domiacuteniolinguiacutestico nos termos da BC natildeo eacute necessaacuteria a participaccedilatildeo de um organismo humano nainteraccedilatildeo Bastam coordenaccedilotildees de accedilotildees recursivas entre dois ou mais organismos emacoplamento estrutural co-ontogecircnico Ainda uma rede social pode ser formada como umarede de interaccedilotildees consensuais e recursivas entre os membros de uma mesma comunidade deorganismos Nos termos da BC o que eacute peculiar agraves interaccedilotildees humanas eacute que as proacutepriascoordenaccedilotildees de accedilotildees co-ontogecircnicas ou seja o comportamento consensual eacute utilizadocomo elemento para novas coordenaccedilotildees de accedilotildees Linguagem satildeo coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais Eacute como se desse uma volta sobre a voltarecursivamente ou seja incorporando continuamente a experiecircncia e a criaccedilatildeo da novidade(linguiacutestica) no rodar

Ainda que para a Biologia do Conhecer seja possiacutevel que noacutes seres humanospossamos manter coordenaccedilotildees condutuais com outros organismos natildeo-humanos (nossosanimais domeacutesticos por exemplo) natildeo vivemos com eles ininterruptamente na linguagem

Veja que para falar de domiacutenio linguiacutestico e de linguagem aqui natildeo precisamos fazerreferecircncia a nenhum elemento tradicionalmente descrito como caracteriacutestico da fala humanaNenhum som gesto ou desenho particular pertence agrave linguagem Da mesma forma qualquersom gesto ou desenho particular pode pertencer agrave linguagem pois essa eacute definidahistoricamente Se haacute recursatildeo se haacute consenso se no curso da interaccedilatildeo aquele som gesto oudesenho eacute distinguido como um elemento na coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de accedilotildees recursivase consensuais ele faraacute parte da linguagem na descriccedilatildeo do observador (Eicheverria 1994) Omesmo se daacute com outras regularidades percebidas na liacutengua como a sintaxe A sintaxe soacutepode ser descrita como uma regularidade das interaccedilotildees linguiacutesticas a partir do momento emque se tornem consensuais e recursivas Eacute preciso fazer referecircncia agrave histoacuteria ao curso deinteraccedilotildees para se dizer que uma palavra pertence agrave linguagem E como as interaccedilotildeeslinguiacutesticas podem conformar uma comunidade de interaccedilotildees (como no caso humano)podemos dizer que as palavras satildeo ldquonoacutesrdquo nessa rede de interaccedilotildees consensuais e recursivas

Uma exigecircncia na BC eacute que em uma explicaccedilatildeo mecanicista eacute preciso distinguir entreum sistema e seus componentes tratando-os como ldquounidades operacionalmente diferentesque pertencem a conjuntos discretos que geram domiacutenios fenomecircnicos que natildeo seintersectamrdquo (Maturana 1997 27) Isso eacute exatamente o que um observador faz quandodistingue os componentes de um sistema vivo (a fisiologia) ou de outro lado o operar desse

sistema em um meio (o comportamento) Assim fisiologia e conduta satildeo dois domiacuteniosdiferentes operacionalmente disjuntos e natildeo podem ser confundidos sob pena de cometerequiacutevocos na descriccedilatildeo Por exemplo pode se falar que a memoacuteria depende da atividade dasredes neurais enquanto propriedade emergente desta rede mas eacute um equivoco falar que amemoacuteria estaacute guardada nos neurocircnios haja vista que a memoacuteria pertence agrave relaccedilatildeo doindividuo (corpo) com o meio e natildeo do sistema nervoso (domiacutenio da fisiologia) diretamentecom o meio externo Afirmar isto seria um reducionismo Se haacute reduccedilatildeo fenomecircnica aexplicaccedilatildeo pressupotildee uma forccedila vital (vitalismo) e natildeo um mecanismo

Nesta perspectiva devemos tambeacutem distinguir os elementos de uma interaccedilatildeolinguiacutestica (os organismos e os sons gestos ou desenhos utilizados na interaccedilatildeo) e a proacutepriainteraccedilatildeo Nenhum elemento do organismo eacute responsaacutevel por ldquoproduzirrdquo linguagem pois a

linguagem estaacute no domiacutenio interpessoal e natildeo pode portanto ser reduzida agrave fisiologia doorganismo sob pena de um equiacutevoco reducionista Da mesma forma nenhuma palavra (sons

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gestos ou desenhos) ou gramaacutetica pode ser colocada em uma posiccedilatildeo gerativa da linguagem justamente por dependerem do consenso para surgirem As palavras e a gramaacutetica jaacute fazemparte da descriccedilatildeo da linguagem no momento em que esses elementos satildeo descritos como umaparte dela

Destarte o modo de vida humano surge e se conserva na linguagem como modo deconservar sua organizaccedilatildeo Para Maturana (1997 168) o humano vive nesse ldquofluir deinteraccedilotildees recorrentesrdquo E como a fisiologia muda em congruecircncia com a histoacuteria dasinteraccedilotildees do organismo devemos esperar uma correspondecircncia estrutural do organismohumano com o curso de suas interaccedilotildees na linguagem Do mesmo modo ao falarmos doprocesso de denotaccedilatildeo de apontar para um mundo laacute fora com nossas palavras natildeoprecisamos fazer referecircncia nem a uma constituiccedilatildeo cognitiva preacutevia do humano (pois esse eacuteum domiacutenio que natildeo se intersecta com o domiacutenio comportamental) e nem a uma realidadeldquoinformativardquo laacute fora (pois tudo o que acontece com o organismo eacute determinado neleestruturalmente) Falamos da denotaccedilatildeo como se estiveacutessemos apontando para um mundopreacutevio laacute fora mas tudo o que estamos fazendo de fato eacute coordenando nossas accedilotildees com

outros observadoresAssim a denotaccedilatildeo como afirma Maturana (1997 150) ldquonatildeo eacute uma operaccedilatildeo

primitiva Ela requer concordacircncia - consenso - para a especificaccedilatildeo tanto do denotantequanto do denotado Se a denotaccedilatildeo portanto natildeo eacute primitiva natildeo pode ser tampouco umaoperaccedilatildeo linguiacutestica primitivardquo

Se denotaccedilatildeo natildeo eacute uma operaccedilatildeo primitiva natildeo eacute preciso fazer referecircncia a umarealidade externa ldquointermediadardquo pela linguagem De fato apontamos (descrevemos)consensualmente para objetos do mundo e eacute na descriccedilatildeo desse apontar para os objetos demodo consensual que surge ao mesmo tempo a denotaccedilatildeo e os objetos que trazemos agrave matildeono linguajar A linguagem eacute um espaccedilo de relaccedilotildees em que nos movemos e eacute neste moverrecursivo na linguagem que surgem tanto o ato de observar quanto o proacuteprio observador

7 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem natildeo-humana

Iniciaremos este toacutepico fazendo uma pergunta provocativa qual seja eacute possiacutevel falarem linguagem natildeo-humana

Ainda que a BC natildeo utilize o termo ldquolinguagemrdquo para as interaccedilotildees recorrentes natildeo-humanas nesse domiacutenio explicativo podemos pelo menos tratar essas interaccedilotildees de modobem diferente das abordagens tradicionais da psicologia comparada e da etologia

O bonobo (Pan paniscus) Kanzi eacute a estrela nas pesquisas com linguagem siacutemia oulinguagem natildeo-humana da psicologia comparada Kanzi comunica-se basicamente atraveacutes

de um teclado de ldquolexigramasrdquo siacutembolos criados na deacutecada de 70 para experimentos emlinguagem siacutemia mas que posteriormente foram utilizados tambeacutem para o trabalho comcrianccedilas humanas autistas Kanzi estava sempre por perto durante o treinamento de sua matildeeadotiva Matata e foi observado utilizando o teclado algumas vezes No dia seguinte agrave saiacutedade Matata do experimento (para fins de procriaccedilatildeo) houve a primeira tentativa de treinamentoformal de Kanzi Nesse primeiro dia de aula Kanzi utilizou o teclado de lexigramas 120vezes sem ter sido requisitado a fazecirc-lo Comunicou-se fluentemente com a pesquisadora SueSavage-Rumbaugh atraveacutes dos lexigramas e segundo a investigadora sabia o que ossiacutembolos significavam (Savage-Rumbaugh e Lewin 1994)

A carreira de Kanzi prossegue (ainda hoje) com outras conquistas linguiacutesticas ecognitivas tatildeo reveladoras quanto seu desempenho precoce com os lexigramas Kanzi

desenvolveu um repertoacuterio vocal proacuteprio e controlado utilizado em seus processosinteracionais com humanos e outros siacutemios aleacutem da compreensatildeo do inglecircs falado Muito da

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admiraccedilatildeo pelo desempenho de Kanzi vem de sua manipulaccedilatildeo de siacutembolos equivalentesagravequeles utilizados num contexto humano e accedilotildees igualmente apropriadas para o observadorhumano (eacute justamente o desempenhar de ldquoaccedilotildees apropriadasrdquo o que nos leva a dizer aoobservar a performance de Kanzi que o que ele faz eacute linguagem) Pensamos no entanto que

o dado mais fundamental da ontogenia de Kanzi que nos leva a apontaacute-lo como um serlinguiacutestico foram seus processos relacionais Os modos de aquisiccedilatildeo linguiacutestica de Kanzi aomenos inicialmente natildeo eram parte de um experimento formal mas o resultado da relaccedilatildeo co-ontogecircnica estabelecida com a matildee e os cuidadores humanos e da relaccedilatildeo ecoloacutegicaestabelecida com atividades palavras e objetos ligados agrave investigaccedilatildeo cruciais para Kanzioferecer respostas linguiacutesticas consideradas adequadas por seus investigadores independentedo ceticismo do restante da comunidade cientiacutefica No caso de Kanzi e nos termos da BCpodemos dizer que esse organismo pelo menos nos momentos em que ele coordena juntocom os investigadores accedilotildees consensuais coordenadas estaacute na linguagem com osobservadores humanos Frans de Wall (2007) relata vaacuterios exemplos dessas recursotildeeslinguiacutesticas de bonobos com humanos em seu livro intitulado ldquoEu primatardquo

Outro caso interessante que talvez natildeo diga respeito agrave linguagem (nos termos da BC)mas ao menos agraves coordenaccedilotildees recursivas que conformam um domiacutenio linguiacutestico eacute o docavalo Clever Hans (Candland 1993)

Em 1980 Thomas Sebeok organizou sob os auspiacutecios da New York Academy ofSciences um Congresso intitulado ldquoThe Clever Hans Phenomenon Communication withHorses Whales Apes and Peoplerdquo (Candland 1993) O propoacutesito poliacutetico do congresso foimuito mais discerniacutevel que seu conteuacutedo cientiacutefico a comeccedilar pelo tiacutetulo o ldquofenocircmenoClever Hansrdquo cuja simples menccedilatildeo eacute suficiente para lanccedilar suspeitas sobre qualquer pesquisaem linguagem natildeo-humana

O cavalo Clever Hans mobilizou vaacuterios estudiosos no iniacutecio do seacuteculo XX paraentender como esse animal aleacutem de compreender alematildeo falado respondia corretamente agravesperguntas feitas batendo os cascos no chatildeo ou realizando outros movimentos corporais Em1904 foi constituida uma comissatildeo reunindo zooacutelogos professores donos de circo e ateacutemilitares para avaliar o fenocircmeno Os membros da comissatildeo investigavam a possibilidade detruques principalmente pistas natildeo-verbais dadas por seu cuidador Wilhem Von Osten maschegaram agrave conclusatildeo que apesar de natildeo ser possiacutevel avaliar a inteligecircncia de Clever Hansnenhum truque podia ser detectado O psicoacutelogo Oskar Pfungst (aluno de Carl Stumpfmembro da Comissatildeo) continuou os estudos com Hans e por meio de engenhososexperimentos formulou a hipoacutetese de que o cavalo por algum meio natildeo compreendido eracapaz de detectar mudanccedilas comportamentais na audiecircncia iniciando ou completando seusproacuteprios movimentos indicativos da resposta (Candland 1993)

Se a histoacuteria investigativa do cavalo Clever Hans eacute admiraacutevel o mito Clever Hansatingiu uma dimensatildeo cientiacutefica bem maior alimentado igualmente por opositores edefensores dos estudos em linguagem natildeo-humana Segundo esse mito bem difundidoPfungst ldquodesvendou a farsardquo demonstrando que Clever Hans natildeo era nem inteligente nemlinguiacutestico mas um animal induzido por pistas inadvertidas de Van Osten e outros membrosda audiecircncia Para os pesquisadores em linguagem natildeo-humana portanto o desafio eacutedemonstrar para a comunidade acadecircmica que a proacutepria pesquisa natildeo sofre o ldquoefeito CleverHansrdquo seus sujeitos natildeo recebem pistas natildeo-verbais dos investigadores humanos Mas seraacutepossiacutevel isolar experimentalmente na linguagem o siacutembolo dos processos gerativos dessesiacutembolo

Pfungst demonstrou algo que para noacutes eacute mais fundamental que um conhecimento

ldquodenotativordquo ou ldquosimboacutelicordquo de Clever Hans Talvez por sua vivecircncia co-ontogecircnica com otratador talvez por ser um organismo particularmente orientado para as accedilotildees humanas o

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cavalo foi capaz de coordenar suas accedilotildees com as accedilotildees humanas E estando ou natildeo nalinguagem (na condiccedilatildeo de observador) Clever Hans foi capaz de transformar suascoordenaccedilotildees de accedilotildees em palavras - em noacutes na rede conversacional - para a audiecircnciahumana Para os observadores naquele momento Clever Hans estava dizendo algo

8 A emergecircncia da autoconsciecircncia e a epigrafe de Nietzsche

Mesmo reconhecendo que termos como consciecircncia e autoconsciecircncia satildeopolissecircmicos e que os seus significados dependem do referencial teoacuterico a partir do qual sefala e que mesmo dentro de uma mesma teoria ainda assim eles podem ser mateacuteria deintensos debates (Searle 1998) vamos primeiramente nos posicionar e explicitar o queestamos denominando com a expressatildeo ldquoemergecircncia da autoconsciecircnciardquo

Assim o que estamos conotando como emergecircncia da autoconsciecircncia ou auto-reflexividade eacute somente a capacidade do homem de fazer referecircncia a si e ao mundo com oqual interage utilizando o corpo e as recursotildees linguiacutesticas

Acreditamos que a dificuldade de compreender a autoconsciecircncia como um fenocircmenoimanente particular ao viver bioloacutegico humano reside no fato de termos de encontrar omecanismo pelo qual somos capazes de distinguir a noacutes mesmos como se fossemos entidadesindependentes de nosso proacuteprio viver e ao mesmo tempo de especificarmos um eu que noshabita e que portanto eacute dependente de nossa biologia

Este aparente paradoxo pode ser resolvido se aceitarmos que a operaccedilatildeo deautoconsciecircncia eacute uma distinccedilatildeo reflexiva de um ldquoeurdquo forjado na linguagem de tal forma queeste eu natildeo somente constitui o corpo que surge na distinccedilatildeo mas tambeacutem que este eu podeser referenciado como uma abstraccedilatildeo no fluir da rede linguiacutestica

Para tornar mais claro este argumento desdobraremos a questatildeo em duas perguntasquais sejam 1- Como este eu corpoacutereo e abstrato eacute capaz de fazer referecircncia ao mundo e seauto-referenciar ou seja como nos tornamos observadores 2- Como os laccedilos da redelinguiacutestica que nos liga uns aos outros e ao mundo mesmo se mantendo na exterioridade denossa corporeidade nas franjas das relaccedilotildees interpessoais cria em noacutes o que em noacutes eacute tatildeointimo - a autoconsciecircncia

Vamos tentar responder estas duas perguntas e esperamos que ao final tenhamosexplicado nossa indagaccedilatildeo inicial qual seja como nos tornamos autoconscientes no devir

Cocircnscios de que toda explicaccedilatildeo exige tanto uma condiccedilatildeo formal mecanismogerativo quanto uma informal aceitabilidade convidamos o leitor para participar conosco daformulaccedilatildeo de um mecanismo gerativo para a autoconsciecircncia Antes poreacutem faremos umasolicitaccedilatildeo sem a qual seraacute impossiacutevel caminharmos juntos eacute indispensaacutevel romper com a

crenccedila de que representamos os objetos que estatildeo no mundo em nossa mente como umespelhoA razatildeo de nosso alerta e de nossa controversa adveacutem do fato de que tanto a ceacutelula

nervosa quanto o sistema nervoso como um todo eacute sensiacutevel somente agrave intensidade dos sinaisquiacutemicos de seu proacuteprio modo de operar e portanto natildeo podem captar e processarinformaccedilotildees ou qualidades do mundo laacute fora como muacutesica cheiro sabor cores etc Ou sejanatildeo haacute uma correspondecircncia ponto a ponto do que acreditamos ser o mundo laacute fora com oque acreditamos ser o mundo de dentro - nossa mente Somente para se ter uma ideia daordem de grandeza e do diferencial que separa estes dois mundos para os duzentos outrezentos milhotildees de receptores sensoriais haacute cerca de dez bilhotildees de sinapses no sistemanervoso sugerindo que as dinacircmicas internas de nosso proacuteprio organismo ao se

entrecruzarem com as perturbaccedilotildees advindas do meio externo participam na criaccedilatildeo interna

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do que o organismo vecirc ldquosenterdquo e nomeia tais como cores sons e sensaccedilotildees (Von Foster1994)

Quais as consequecircncias desse entendimento para nossa discussatildeoA consequecircncia mais fundamental eacute a de que o mundo laacute fora com os seus objetos e

acontecimentos natildeo preacute-existem ao observador pois que eles natildeo satildeo entidades primaacuterias aoato de observar e portanto independentes da biologia do observador As caracteriacutesticas quesupostamente satildeo dadas agraves coisas mostram-se tambeacutem como caracteriacutesticas do observador Ascores natildeo estatildeo laacute fora independentes de nossa biologia mas tambeacutem natildeo estatildeo caacute dentroindependentes de nosso mundo cultural Se isso eacute assim nega-se tanto o realismo de ummundo predeterminado que o organismo eacute capaz de representar quanto o idealismo que tomaa percepccedilatildeo como uma projeccedilatildeo de um mundo interno predeterminado (Varela et al 2003)

Eacute com essa dupla negaccedilatildeo que se diz que os objetos natildeo antecedem agrave distinccedilatildeo quedeles eacute feita pelo observador Os objetos surgem na praacutexis do viver do observador e o que eacuteessa praacutexis do viver humano senatildeo as coordenaccedilotildees de coordenaccedilotildees de accedilotildees que realizamosem nosso cotidiano

Seguindo esta linha de raciociacutenio o observar surge no domiacutenio das coerecircnciasexperienciais inerentes ao proacuteprio viver Ao darmos ecircnfase ao processo deslocamos a posiccedilatildeodo observador de ente corporificado para ente operacional

Se o leitor aceitou que eacute impossiacutevel a este ente operacional fazer referecircncia a algo forade seu domiacutenio de experiecircncias fora de sua proacutepria histoacuteria deduz-se que os objetos o corpoe suas partes e por extensatildeo o proacuteprio ldquoeurdquo surgem no operar das coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais ou seja na linguagem Eacute importante notar que emboraenclausurados em nossa proacutepria biologia noacutes soacute nos tornamos observadores na presenccedila dooutro ao partilharmos do processo recursivo e transgeracional que eacute o viver na linguagem

O importante eacute que noacutes repetimos esse processo conservado transgeracionalmente emcada ontogenia Assim quando nascemos e nos inserimos no mundo atraveacutes das primeirastriangulaccedilotildees criadas pelo apontar da matildee no sentido lato deste termo para um objeto quepode ser o nosso corpo ou parte dele jaacute estamos na linguagem

A necessidade do outro fundado na relaccedilatildeo jaacute nos coloca frente ao desafio deresponder agrave segunda questatildeo anteriormente formulada qual seja como os laccedilos de uma redelinguiacutestica podem criar em noacutes o que em noacutes eacute tatildeo intimo - a autoconsciecircncia

A Biologia do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode serentendido como uma co-emergecircncia da experiecircncia de um mundo vivido e da identidade doeu vivente (Varela et al 2003) No entanto haacute de se fazer uma ressalva a experiecircncia eacuteclaramente um evento pessoal mas isso natildeo significa que seja um evento privado no sentidode algum tipo de sujeito isolado que caiu de paacutera-quedas sobre um mundo objetivo

previamente dado Se aceitarmos a ressalva que a experiecircncia eacute tanto um evento pessoalporque necessariamente auto-referencial mas tambeacutem coletivo porque necessariamenterelacional poderemos compreender o surgimento de seres vivos capazes de fazer referecircnciaao mundo e se auto-referenciar sem termos de apelar para uma transcendecircncia ou para aimanecircncia de um suposto ldquoeurdquo independente e centro desta vivecircncia (Varela et al 2003)

Seria este o entendimento de Nietzsche (que noacutes recusamos a acreditar) o corpo queprocede como um ldquoeurdquo sem precisar falar

9 Referencias bibliograacuteficas

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internas determinadas pela estrutura do organismo Observar essa dinacircmica organismo-meionos permite dizer enquanto observadores do processo que o sistema muda a cada momentoem congruecircncia com a sua histoacuteria de interaccedilotildees (Vianna 2008) Ainda dentro das coerecircnciasexplicativas da BC devemos fazer a distinccedilatildeo entre organizaccedilatildeo e estrutura A organizaccedilatildeo eacute

o sistema como um todo definido pela relaccedilatildeo entre seus componentes se a organizaccedilatildeo seperde o sistema natildeo existe mais enquanto sistema de um determinado tipo A estrutura (arelaccedilatildeo particular entre os componentes do sistema) pode variar sem perda da organizaccedilatildeo(Maturana e Varela 1990) No caso do vivo essa diferenccedila entre estrutura e organizaccedilatildeo eacutecrucial pois o vivo eacute um sistema dinacircmico variando estruturalmente sem perder aorganizaccedilatildeo ou seja o vivo sofre contiacutenuas mudanccedilas estruturais com conservaccedilatildeo daorganizaccedilatildeo em toda a sua ontogenia do nascimento ateacute a morte sem a perda da organizaccedilatildeoautopoieacutetica (Maturana e Varela 1990 Vianna e Goacutemez-Soriano 2007)

Ao observar um sistema vivo distinguimos dois domiacutenios distintos que natildeo seintersectam operacionalmente (apesar de como observadores possamos apontar umacorrespondecircncia entre os dois) no domiacutenio da fisiologia observamos as relaccedilotildees particulares

e dinacircmicas entre os componentes do organismo e no domiacutenio do comportamentoobservamos o organismo em sua totalidade em interaccedilatildeo com o meio (Maturana 1997)

Como tanto o organismo quanto o meio satildeo sistemas determinados estruturalmentetudo o que acontece com cada um deles eacute determinado pelas respectivas estruturas de ambos enatildeo pela instruccedilatildeo de um sobre o outro No entanto as modificaccedilotildees estruturais por que passao organismo possuem uma correspondecircncia histoacuterica justamente com o curso de suasinteraccedilotildees com o meio o organismo iraacute mudar em congruecircncia com as perturbaccedilotildees do meioassim como o meio iraacute mudar de forma correspondente em acordo com as interaccedilotildees com oorganismo Esse processo de interaccedilotildees recorrentes do organismo em um meio eacute chamado porMaturana e Varela de acoplamento estrutural Conservar o acoplamento estrutural com o meioeacute condiccedilatildeo necessaacuteria para a conservaccedilatildeo da autopoiese - organizaccedilatildeo a que pertence o servivo A histoacuteria ontogeneacutetica e filogeneacutetica em que o vivo se manteacutem em acoplamentoestrutural com o meio mudando a estrutura mas conservando a sua organizaccedilatildeo eacutedenominado de deriva natural Se mais de um organismo estaacute envolvido o processo como umtodo eacute denominado de co-deriva natural (Maturana e Podozis 1992)

No caso do observador descrever dois (ou mais) organismos em interaccedilotildeesrecorrentes o olhar do observador estaraacute direcionado para o sistema como um todo ou sejaaquele constituiacutedo pelos dois ou mais organismos e o entorno Nos termos da BC issosignifica que suas respectivas organizaccedilotildees autopoieacuteticas satildeo conservadas em coerecircncia com ahistoacuteria das relaccedilotildees entre os dois sistemas vivos observados e referenciados Veja queoperacionalmente para o organismo tudo o que existe satildeo perturbaccedilotildees externas que ele iraacute

tratar como perturbaccedilotildees de um ou outro tipo dependendo de sua proacutepria estrutura interna Oorganismo natildeo distingue entre um meio inerte e um sistema vivo Quem faz essa distinccedilatildeosomos noacutes observadores na descriccedilatildeo de um sistema em que podemos observar ao mesmotempo o curso das interaccedilotildees e as mudanccedilas estruturais do organismo ou dos organismosenvolvidos

6 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem

O fato de ser preciso um observador para fazer a distinccedilatildeo entre fisiologia ecomportamento natildeo eacute secundaacuterio mas crucial isso significa que estamos levando em contana explicaccedilatildeo o fundamento bioloacutegico do linguajar que eacute a coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de

accedilotildees em um domiacutenio consensual O observador eacute um organismo (no caso um organismohumano) que diz aquilo que diz de acordo com a sua proacutepria experiecircncia mas diz o que diz a

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outro observador que iraacute escutaacute-lo a partir de uma histoacuteria de interaccedilotildees (ou de uma mesmacomunidade de conversaccedilotildees) e iraacute coordenar suas accedilotildees de forma correspondente agrave interaccedilatildeona linguagem

A manutenccedilatildeo do acoplamento estrutural entre os organismos participantes de uma

interaccedilatildeo recursiva configura um domiacutenio linguiacutestico Veja que para haver um domiacuteniolinguiacutestico nos termos da BC natildeo eacute necessaacuteria a participaccedilatildeo de um organismo humano nainteraccedilatildeo Bastam coordenaccedilotildees de accedilotildees recursivas entre dois ou mais organismos emacoplamento estrutural co-ontogecircnico Ainda uma rede social pode ser formada como umarede de interaccedilotildees consensuais e recursivas entre os membros de uma mesma comunidade deorganismos Nos termos da BC o que eacute peculiar agraves interaccedilotildees humanas eacute que as proacutepriascoordenaccedilotildees de accedilotildees co-ontogecircnicas ou seja o comportamento consensual eacute utilizadocomo elemento para novas coordenaccedilotildees de accedilotildees Linguagem satildeo coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais Eacute como se desse uma volta sobre a voltarecursivamente ou seja incorporando continuamente a experiecircncia e a criaccedilatildeo da novidade(linguiacutestica) no rodar

Ainda que para a Biologia do Conhecer seja possiacutevel que noacutes seres humanospossamos manter coordenaccedilotildees condutuais com outros organismos natildeo-humanos (nossosanimais domeacutesticos por exemplo) natildeo vivemos com eles ininterruptamente na linguagem

Veja que para falar de domiacutenio linguiacutestico e de linguagem aqui natildeo precisamos fazerreferecircncia a nenhum elemento tradicionalmente descrito como caracteriacutestico da fala humanaNenhum som gesto ou desenho particular pertence agrave linguagem Da mesma forma qualquersom gesto ou desenho particular pode pertencer agrave linguagem pois essa eacute definidahistoricamente Se haacute recursatildeo se haacute consenso se no curso da interaccedilatildeo aquele som gesto oudesenho eacute distinguido como um elemento na coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de accedilotildees recursivase consensuais ele faraacute parte da linguagem na descriccedilatildeo do observador (Eicheverria 1994) Omesmo se daacute com outras regularidades percebidas na liacutengua como a sintaxe A sintaxe soacutepode ser descrita como uma regularidade das interaccedilotildees linguiacutesticas a partir do momento emque se tornem consensuais e recursivas Eacute preciso fazer referecircncia agrave histoacuteria ao curso deinteraccedilotildees para se dizer que uma palavra pertence agrave linguagem E como as interaccedilotildeeslinguiacutesticas podem conformar uma comunidade de interaccedilotildees (como no caso humano)podemos dizer que as palavras satildeo ldquonoacutesrdquo nessa rede de interaccedilotildees consensuais e recursivas

Uma exigecircncia na BC eacute que em uma explicaccedilatildeo mecanicista eacute preciso distinguir entreum sistema e seus componentes tratando-os como ldquounidades operacionalmente diferentesque pertencem a conjuntos discretos que geram domiacutenios fenomecircnicos que natildeo seintersectamrdquo (Maturana 1997 27) Isso eacute exatamente o que um observador faz quandodistingue os componentes de um sistema vivo (a fisiologia) ou de outro lado o operar desse

sistema em um meio (o comportamento) Assim fisiologia e conduta satildeo dois domiacuteniosdiferentes operacionalmente disjuntos e natildeo podem ser confundidos sob pena de cometerequiacutevocos na descriccedilatildeo Por exemplo pode se falar que a memoacuteria depende da atividade dasredes neurais enquanto propriedade emergente desta rede mas eacute um equivoco falar que amemoacuteria estaacute guardada nos neurocircnios haja vista que a memoacuteria pertence agrave relaccedilatildeo doindividuo (corpo) com o meio e natildeo do sistema nervoso (domiacutenio da fisiologia) diretamentecom o meio externo Afirmar isto seria um reducionismo Se haacute reduccedilatildeo fenomecircnica aexplicaccedilatildeo pressupotildee uma forccedila vital (vitalismo) e natildeo um mecanismo

Nesta perspectiva devemos tambeacutem distinguir os elementos de uma interaccedilatildeolinguiacutestica (os organismos e os sons gestos ou desenhos utilizados na interaccedilatildeo) e a proacutepriainteraccedilatildeo Nenhum elemento do organismo eacute responsaacutevel por ldquoproduzirrdquo linguagem pois a

linguagem estaacute no domiacutenio interpessoal e natildeo pode portanto ser reduzida agrave fisiologia doorganismo sob pena de um equiacutevoco reducionista Da mesma forma nenhuma palavra (sons

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gestos ou desenhos) ou gramaacutetica pode ser colocada em uma posiccedilatildeo gerativa da linguagem justamente por dependerem do consenso para surgirem As palavras e a gramaacutetica jaacute fazemparte da descriccedilatildeo da linguagem no momento em que esses elementos satildeo descritos como umaparte dela

Destarte o modo de vida humano surge e se conserva na linguagem como modo deconservar sua organizaccedilatildeo Para Maturana (1997 168) o humano vive nesse ldquofluir deinteraccedilotildees recorrentesrdquo E como a fisiologia muda em congruecircncia com a histoacuteria dasinteraccedilotildees do organismo devemos esperar uma correspondecircncia estrutural do organismohumano com o curso de suas interaccedilotildees na linguagem Do mesmo modo ao falarmos doprocesso de denotaccedilatildeo de apontar para um mundo laacute fora com nossas palavras natildeoprecisamos fazer referecircncia nem a uma constituiccedilatildeo cognitiva preacutevia do humano (pois esse eacuteum domiacutenio que natildeo se intersecta com o domiacutenio comportamental) e nem a uma realidadeldquoinformativardquo laacute fora (pois tudo o que acontece com o organismo eacute determinado neleestruturalmente) Falamos da denotaccedilatildeo como se estiveacutessemos apontando para um mundopreacutevio laacute fora mas tudo o que estamos fazendo de fato eacute coordenando nossas accedilotildees com

outros observadoresAssim a denotaccedilatildeo como afirma Maturana (1997 150) ldquonatildeo eacute uma operaccedilatildeo

primitiva Ela requer concordacircncia - consenso - para a especificaccedilatildeo tanto do denotantequanto do denotado Se a denotaccedilatildeo portanto natildeo eacute primitiva natildeo pode ser tampouco umaoperaccedilatildeo linguiacutestica primitivardquo

Se denotaccedilatildeo natildeo eacute uma operaccedilatildeo primitiva natildeo eacute preciso fazer referecircncia a umarealidade externa ldquointermediadardquo pela linguagem De fato apontamos (descrevemos)consensualmente para objetos do mundo e eacute na descriccedilatildeo desse apontar para os objetos demodo consensual que surge ao mesmo tempo a denotaccedilatildeo e os objetos que trazemos agrave matildeono linguajar A linguagem eacute um espaccedilo de relaccedilotildees em que nos movemos e eacute neste moverrecursivo na linguagem que surgem tanto o ato de observar quanto o proacuteprio observador

7 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem natildeo-humana

Iniciaremos este toacutepico fazendo uma pergunta provocativa qual seja eacute possiacutevel falarem linguagem natildeo-humana

Ainda que a BC natildeo utilize o termo ldquolinguagemrdquo para as interaccedilotildees recorrentes natildeo-humanas nesse domiacutenio explicativo podemos pelo menos tratar essas interaccedilotildees de modobem diferente das abordagens tradicionais da psicologia comparada e da etologia

O bonobo (Pan paniscus) Kanzi eacute a estrela nas pesquisas com linguagem siacutemia oulinguagem natildeo-humana da psicologia comparada Kanzi comunica-se basicamente atraveacutes

de um teclado de ldquolexigramasrdquo siacutembolos criados na deacutecada de 70 para experimentos emlinguagem siacutemia mas que posteriormente foram utilizados tambeacutem para o trabalho comcrianccedilas humanas autistas Kanzi estava sempre por perto durante o treinamento de sua matildeeadotiva Matata e foi observado utilizando o teclado algumas vezes No dia seguinte agrave saiacutedade Matata do experimento (para fins de procriaccedilatildeo) houve a primeira tentativa de treinamentoformal de Kanzi Nesse primeiro dia de aula Kanzi utilizou o teclado de lexigramas 120vezes sem ter sido requisitado a fazecirc-lo Comunicou-se fluentemente com a pesquisadora SueSavage-Rumbaugh atraveacutes dos lexigramas e segundo a investigadora sabia o que ossiacutembolos significavam (Savage-Rumbaugh e Lewin 1994)

A carreira de Kanzi prossegue (ainda hoje) com outras conquistas linguiacutesticas ecognitivas tatildeo reveladoras quanto seu desempenho precoce com os lexigramas Kanzi

desenvolveu um repertoacuterio vocal proacuteprio e controlado utilizado em seus processosinteracionais com humanos e outros siacutemios aleacutem da compreensatildeo do inglecircs falado Muito da

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admiraccedilatildeo pelo desempenho de Kanzi vem de sua manipulaccedilatildeo de siacutembolos equivalentesagravequeles utilizados num contexto humano e accedilotildees igualmente apropriadas para o observadorhumano (eacute justamente o desempenhar de ldquoaccedilotildees apropriadasrdquo o que nos leva a dizer aoobservar a performance de Kanzi que o que ele faz eacute linguagem) Pensamos no entanto que

o dado mais fundamental da ontogenia de Kanzi que nos leva a apontaacute-lo como um serlinguiacutestico foram seus processos relacionais Os modos de aquisiccedilatildeo linguiacutestica de Kanzi aomenos inicialmente natildeo eram parte de um experimento formal mas o resultado da relaccedilatildeo co-ontogecircnica estabelecida com a matildee e os cuidadores humanos e da relaccedilatildeo ecoloacutegicaestabelecida com atividades palavras e objetos ligados agrave investigaccedilatildeo cruciais para Kanzioferecer respostas linguiacutesticas consideradas adequadas por seus investigadores independentedo ceticismo do restante da comunidade cientiacutefica No caso de Kanzi e nos termos da BCpodemos dizer que esse organismo pelo menos nos momentos em que ele coordena juntocom os investigadores accedilotildees consensuais coordenadas estaacute na linguagem com osobservadores humanos Frans de Wall (2007) relata vaacuterios exemplos dessas recursotildeeslinguiacutesticas de bonobos com humanos em seu livro intitulado ldquoEu primatardquo

Outro caso interessante que talvez natildeo diga respeito agrave linguagem (nos termos da BC)mas ao menos agraves coordenaccedilotildees recursivas que conformam um domiacutenio linguiacutestico eacute o docavalo Clever Hans (Candland 1993)

Em 1980 Thomas Sebeok organizou sob os auspiacutecios da New York Academy ofSciences um Congresso intitulado ldquoThe Clever Hans Phenomenon Communication withHorses Whales Apes and Peoplerdquo (Candland 1993) O propoacutesito poliacutetico do congresso foimuito mais discerniacutevel que seu conteuacutedo cientiacutefico a comeccedilar pelo tiacutetulo o ldquofenocircmenoClever Hansrdquo cuja simples menccedilatildeo eacute suficiente para lanccedilar suspeitas sobre qualquer pesquisaem linguagem natildeo-humana

O cavalo Clever Hans mobilizou vaacuterios estudiosos no iniacutecio do seacuteculo XX paraentender como esse animal aleacutem de compreender alematildeo falado respondia corretamente agravesperguntas feitas batendo os cascos no chatildeo ou realizando outros movimentos corporais Em1904 foi constituida uma comissatildeo reunindo zooacutelogos professores donos de circo e ateacutemilitares para avaliar o fenocircmeno Os membros da comissatildeo investigavam a possibilidade detruques principalmente pistas natildeo-verbais dadas por seu cuidador Wilhem Von Osten maschegaram agrave conclusatildeo que apesar de natildeo ser possiacutevel avaliar a inteligecircncia de Clever Hansnenhum truque podia ser detectado O psicoacutelogo Oskar Pfungst (aluno de Carl Stumpfmembro da Comissatildeo) continuou os estudos com Hans e por meio de engenhososexperimentos formulou a hipoacutetese de que o cavalo por algum meio natildeo compreendido eracapaz de detectar mudanccedilas comportamentais na audiecircncia iniciando ou completando seusproacuteprios movimentos indicativos da resposta (Candland 1993)

Se a histoacuteria investigativa do cavalo Clever Hans eacute admiraacutevel o mito Clever Hansatingiu uma dimensatildeo cientiacutefica bem maior alimentado igualmente por opositores edefensores dos estudos em linguagem natildeo-humana Segundo esse mito bem difundidoPfungst ldquodesvendou a farsardquo demonstrando que Clever Hans natildeo era nem inteligente nemlinguiacutestico mas um animal induzido por pistas inadvertidas de Van Osten e outros membrosda audiecircncia Para os pesquisadores em linguagem natildeo-humana portanto o desafio eacutedemonstrar para a comunidade acadecircmica que a proacutepria pesquisa natildeo sofre o ldquoefeito CleverHansrdquo seus sujeitos natildeo recebem pistas natildeo-verbais dos investigadores humanos Mas seraacutepossiacutevel isolar experimentalmente na linguagem o siacutembolo dos processos gerativos dessesiacutembolo

Pfungst demonstrou algo que para noacutes eacute mais fundamental que um conhecimento

ldquodenotativordquo ou ldquosimboacutelicordquo de Clever Hans Talvez por sua vivecircncia co-ontogecircnica com otratador talvez por ser um organismo particularmente orientado para as accedilotildees humanas o

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cavalo foi capaz de coordenar suas accedilotildees com as accedilotildees humanas E estando ou natildeo nalinguagem (na condiccedilatildeo de observador) Clever Hans foi capaz de transformar suascoordenaccedilotildees de accedilotildees em palavras - em noacutes na rede conversacional - para a audiecircnciahumana Para os observadores naquele momento Clever Hans estava dizendo algo

8 A emergecircncia da autoconsciecircncia e a epigrafe de Nietzsche

Mesmo reconhecendo que termos como consciecircncia e autoconsciecircncia satildeopolissecircmicos e que os seus significados dependem do referencial teoacuterico a partir do qual sefala e que mesmo dentro de uma mesma teoria ainda assim eles podem ser mateacuteria deintensos debates (Searle 1998) vamos primeiramente nos posicionar e explicitar o queestamos denominando com a expressatildeo ldquoemergecircncia da autoconsciecircnciardquo

Assim o que estamos conotando como emergecircncia da autoconsciecircncia ou auto-reflexividade eacute somente a capacidade do homem de fazer referecircncia a si e ao mundo com oqual interage utilizando o corpo e as recursotildees linguiacutesticas

Acreditamos que a dificuldade de compreender a autoconsciecircncia como um fenocircmenoimanente particular ao viver bioloacutegico humano reside no fato de termos de encontrar omecanismo pelo qual somos capazes de distinguir a noacutes mesmos como se fossemos entidadesindependentes de nosso proacuteprio viver e ao mesmo tempo de especificarmos um eu que noshabita e que portanto eacute dependente de nossa biologia

Este aparente paradoxo pode ser resolvido se aceitarmos que a operaccedilatildeo deautoconsciecircncia eacute uma distinccedilatildeo reflexiva de um ldquoeurdquo forjado na linguagem de tal forma queeste eu natildeo somente constitui o corpo que surge na distinccedilatildeo mas tambeacutem que este eu podeser referenciado como uma abstraccedilatildeo no fluir da rede linguiacutestica

Para tornar mais claro este argumento desdobraremos a questatildeo em duas perguntasquais sejam 1- Como este eu corpoacutereo e abstrato eacute capaz de fazer referecircncia ao mundo e seauto-referenciar ou seja como nos tornamos observadores 2- Como os laccedilos da redelinguiacutestica que nos liga uns aos outros e ao mundo mesmo se mantendo na exterioridade denossa corporeidade nas franjas das relaccedilotildees interpessoais cria em noacutes o que em noacutes eacute tatildeointimo - a autoconsciecircncia

Vamos tentar responder estas duas perguntas e esperamos que ao final tenhamosexplicado nossa indagaccedilatildeo inicial qual seja como nos tornamos autoconscientes no devir

Cocircnscios de que toda explicaccedilatildeo exige tanto uma condiccedilatildeo formal mecanismogerativo quanto uma informal aceitabilidade convidamos o leitor para participar conosco daformulaccedilatildeo de um mecanismo gerativo para a autoconsciecircncia Antes poreacutem faremos umasolicitaccedilatildeo sem a qual seraacute impossiacutevel caminharmos juntos eacute indispensaacutevel romper com a

crenccedila de que representamos os objetos que estatildeo no mundo em nossa mente como umespelhoA razatildeo de nosso alerta e de nossa controversa adveacutem do fato de que tanto a ceacutelula

nervosa quanto o sistema nervoso como um todo eacute sensiacutevel somente agrave intensidade dos sinaisquiacutemicos de seu proacuteprio modo de operar e portanto natildeo podem captar e processarinformaccedilotildees ou qualidades do mundo laacute fora como muacutesica cheiro sabor cores etc Ou sejanatildeo haacute uma correspondecircncia ponto a ponto do que acreditamos ser o mundo laacute fora com oque acreditamos ser o mundo de dentro - nossa mente Somente para se ter uma ideia daordem de grandeza e do diferencial que separa estes dois mundos para os duzentos outrezentos milhotildees de receptores sensoriais haacute cerca de dez bilhotildees de sinapses no sistemanervoso sugerindo que as dinacircmicas internas de nosso proacuteprio organismo ao se

entrecruzarem com as perturbaccedilotildees advindas do meio externo participam na criaccedilatildeo interna

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do que o organismo vecirc ldquosenterdquo e nomeia tais como cores sons e sensaccedilotildees (Von Foster1994)

Quais as consequecircncias desse entendimento para nossa discussatildeoA consequecircncia mais fundamental eacute a de que o mundo laacute fora com os seus objetos e

acontecimentos natildeo preacute-existem ao observador pois que eles natildeo satildeo entidades primaacuterias aoato de observar e portanto independentes da biologia do observador As caracteriacutesticas quesupostamente satildeo dadas agraves coisas mostram-se tambeacutem como caracteriacutesticas do observador Ascores natildeo estatildeo laacute fora independentes de nossa biologia mas tambeacutem natildeo estatildeo caacute dentroindependentes de nosso mundo cultural Se isso eacute assim nega-se tanto o realismo de ummundo predeterminado que o organismo eacute capaz de representar quanto o idealismo que tomaa percepccedilatildeo como uma projeccedilatildeo de um mundo interno predeterminado (Varela et al 2003)

Eacute com essa dupla negaccedilatildeo que se diz que os objetos natildeo antecedem agrave distinccedilatildeo quedeles eacute feita pelo observador Os objetos surgem na praacutexis do viver do observador e o que eacuteessa praacutexis do viver humano senatildeo as coordenaccedilotildees de coordenaccedilotildees de accedilotildees que realizamosem nosso cotidiano

Seguindo esta linha de raciociacutenio o observar surge no domiacutenio das coerecircnciasexperienciais inerentes ao proacuteprio viver Ao darmos ecircnfase ao processo deslocamos a posiccedilatildeodo observador de ente corporificado para ente operacional

Se o leitor aceitou que eacute impossiacutevel a este ente operacional fazer referecircncia a algo forade seu domiacutenio de experiecircncias fora de sua proacutepria histoacuteria deduz-se que os objetos o corpoe suas partes e por extensatildeo o proacuteprio ldquoeurdquo surgem no operar das coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais ou seja na linguagem Eacute importante notar que emboraenclausurados em nossa proacutepria biologia noacutes soacute nos tornamos observadores na presenccedila dooutro ao partilharmos do processo recursivo e transgeracional que eacute o viver na linguagem

O importante eacute que noacutes repetimos esse processo conservado transgeracionalmente emcada ontogenia Assim quando nascemos e nos inserimos no mundo atraveacutes das primeirastriangulaccedilotildees criadas pelo apontar da matildee no sentido lato deste termo para um objeto quepode ser o nosso corpo ou parte dele jaacute estamos na linguagem

A necessidade do outro fundado na relaccedilatildeo jaacute nos coloca frente ao desafio deresponder agrave segunda questatildeo anteriormente formulada qual seja como os laccedilos de uma redelinguiacutestica podem criar em noacutes o que em noacutes eacute tatildeo intimo - a autoconsciecircncia

A Biologia do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode serentendido como uma co-emergecircncia da experiecircncia de um mundo vivido e da identidade doeu vivente (Varela et al 2003) No entanto haacute de se fazer uma ressalva a experiecircncia eacuteclaramente um evento pessoal mas isso natildeo significa que seja um evento privado no sentidode algum tipo de sujeito isolado que caiu de paacutera-quedas sobre um mundo objetivo

previamente dado Se aceitarmos a ressalva que a experiecircncia eacute tanto um evento pessoalporque necessariamente auto-referencial mas tambeacutem coletivo porque necessariamenterelacional poderemos compreender o surgimento de seres vivos capazes de fazer referecircnciaao mundo e se auto-referenciar sem termos de apelar para uma transcendecircncia ou para aimanecircncia de um suposto ldquoeurdquo independente e centro desta vivecircncia (Varela et al 2003)

Seria este o entendimento de Nietzsche (que noacutes recusamos a acreditar) o corpo queprocede como um ldquoeurdquo sem precisar falar

9 Referencias bibliograacuteficas

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outro observador que iraacute escutaacute-lo a partir de uma histoacuteria de interaccedilotildees (ou de uma mesmacomunidade de conversaccedilotildees) e iraacute coordenar suas accedilotildees de forma correspondente agrave interaccedilatildeona linguagem

A manutenccedilatildeo do acoplamento estrutural entre os organismos participantes de uma

interaccedilatildeo recursiva configura um domiacutenio linguiacutestico Veja que para haver um domiacuteniolinguiacutestico nos termos da BC natildeo eacute necessaacuteria a participaccedilatildeo de um organismo humano nainteraccedilatildeo Bastam coordenaccedilotildees de accedilotildees recursivas entre dois ou mais organismos emacoplamento estrutural co-ontogecircnico Ainda uma rede social pode ser formada como umarede de interaccedilotildees consensuais e recursivas entre os membros de uma mesma comunidade deorganismos Nos termos da BC o que eacute peculiar agraves interaccedilotildees humanas eacute que as proacutepriascoordenaccedilotildees de accedilotildees co-ontogecircnicas ou seja o comportamento consensual eacute utilizadocomo elemento para novas coordenaccedilotildees de accedilotildees Linguagem satildeo coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais Eacute como se desse uma volta sobre a voltarecursivamente ou seja incorporando continuamente a experiecircncia e a criaccedilatildeo da novidade(linguiacutestica) no rodar

Ainda que para a Biologia do Conhecer seja possiacutevel que noacutes seres humanospossamos manter coordenaccedilotildees condutuais com outros organismos natildeo-humanos (nossosanimais domeacutesticos por exemplo) natildeo vivemos com eles ininterruptamente na linguagem

Veja que para falar de domiacutenio linguiacutestico e de linguagem aqui natildeo precisamos fazerreferecircncia a nenhum elemento tradicionalmente descrito como caracteriacutestico da fala humanaNenhum som gesto ou desenho particular pertence agrave linguagem Da mesma forma qualquersom gesto ou desenho particular pode pertencer agrave linguagem pois essa eacute definidahistoricamente Se haacute recursatildeo se haacute consenso se no curso da interaccedilatildeo aquele som gesto oudesenho eacute distinguido como um elemento na coordenaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo de accedilotildees recursivase consensuais ele faraacute parte da linguagem na descriccedilatildeo do observador (Eicheverria 1994) Omesmo se daacute com outras regularidades percebidas na liacutengua como a sintaxe A sintaxe soacutepode ser descrita como uma regularidade das interaccedilotildees linguiacutesticas a partir do momento emque se tornem consensuais e recursivas Eacute preciso fazer referecircncia agrave histoacuteria ao curso deinteraccedilotildees para se dizer que uma palavra pertence agrave linguagem E como as interaccedilotildeeslinguiacutesticas podem conformar uma comunidade de interaccedilotildees (como no caso humano)podemos dizer que as palavras satildeo ldquonoacutesrdquo nessa rede de interaccedilotildees consensuais e recursivas

Uma exigecircncia na BC eacute que em uma explicaccedilatildeo mecanicista eacute preciso distinguir entreum sistema e seus componentes tratando-os como ldquounidades operacionalmente diferentesque pertencem a conjuntos discretos que geram domiacutenios fenomecircnicos que natildeo seintersectamrdquo (Maturana 1997 27) Isso eacute exatamente o que um observador faz quandodistingue os componentes de um sistema vivo (a fisiologia) ou de outro lado o operar desse

sistema em um meio (o comportamento) Assim fisiologia e conduta satildeo dois domiacuteniosdiferentes operacionalmente disjuntos e natildeo podem ser confundidos sob pena de cometerequiacutevocos na descriccedilatildeo Por exemplo pode se falar que a memoacuteria depende da atividade dasredes neurais enquanto propriedade emergente desta rede mas eacute um equivoco falar que amemoacuteria estaacute guardada nos neurocircnios haja vista que a memoacuteria pertence agrave relaccedilatildeo doindividuo (corpo) com o meio e natildeo do sistema nervoso (domiacutenio da fisiologia) diretamentecom o meio externo Afirmar isto seria um reducionismo Se haacute reduccedilatildeo fenomecircnica aexplicaccedilatildeo pressupotildee uma forccedila vital (vitalismo) e natildeo um mecanismo

Nesta perspectiva devemos tambeacutem distinguir os elementos de uma interaccedilatildeolinguiacutestica (os organismos e os sons gestos ou desenhos utilizados na interaccedilatildeo) e a proacutepriainteraccedilatildeo Nenhum elemento do organismo eacute responsaacutevel por ldquoproduzirrdquo linguagem pois a

linguagem estaacute no domiacutenio interpessoal e natildeo pode portanto ser reduzida agrave fisiologia doorganismo sob pena de um equiacutevoco reducionista Da mesma forma nenhuma palavra (sons

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gestos ou desenhos) ou gramaacutetica pode ser colocada em uma posiccedilatildeo gerativa da linguagem justamente por dependerem do consenso para surgirem As palavras e a gramaacutetica jaacute fazemparte da descriccedilatildeo da linguagem no momento em que esses elementos satildeo descritos como umaparte dela

Destarte o modo de vida humano surge e se conserva na linguagem como modo deconservar sua organizaccedilatildeo Para Maturana (1997 168) o humano vive nesse ldquofluir deinteraccedilotildees recorrentesrdquo E como a fisiologia muda em congruecircncia com a histoacuteria dasinteraccedilotildees do organismo devemos esperar uma correspondecircncia estrutural do organismohumano com o curso de suas interaccedilotildees na linguagem Do mesmo modo ao falarmos doprocesso de denotaccedilatildeo de apontar para um mundo laacute fora com nossas palavras natildeoprecisamos fazer referecircncia nem a uma constituiccedilatildeo cognitiva preacutevia do humano (pois esse eacuteum domiacutenio que natildeo se intersecta com o domiacutenio comportamental) e nem a uma realidadeldquoinformativardquo laacute fora (pois tudo o que acontece com o organismo eacute determinado neleestruturalmente) Falamos da denotaccedilatildeo como se estiveacutessemos apontando para um mundopreacutevio laacute fora mas tudo o que estamos fazendo de fato eacute coordenando nossas accedilotildees com

outros observadoresAssim a denotaccedilatildeo como afirma Maturana (1997 150) ldquonatildeo eacute uma operaccedilatildeo

primitiva Ela requer concordacircncia - consenso - para a especificaccedilatildeo tanto do denotantequanto do denotado Se a denotaccedilatildeo portanto natildeo eacute primitiva natildeo pode ser tampouco umaoperaccedilatildeo linguiacutestica primitivardquo

Se denotaccedilatildeo natildeo eacute uma operaccedilatildeo primitiva natildeo eacute preciso fazer referecircncia a umarealidade externa ldquointermediadardquo pela linguagem De fato apontamos (descrevemos)consensualmente para objetos do mundo e eacute na descriccedilatildeo desse apontar para os objetos demodo consensual que surge ao mesmo tempo a denotaccedilatildeo e os objetos que trazemos agrave matildeono linguajar A linguagem eacute um espaccedilo de relaccedilotildees em que nos movemos e eacute neste moverrecursivo na linguagem que surgem tanto o ato de observar quanto o proacuteprio observador

7 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem natildeo-humana

Iniciaremos este toacutepico fazendo uma pergunta provocativa qual seja eacute possiacutevel falarem linguagem natildeo-humana

Ainda que a BC natildeo utilize o termo ldquolinguagemrdquo para as interaccedilotildees recorrentes natildeo-humanas nesse domiacutenio explicativo podemos pelo menos tratar essas interaccedilotildees de modobem diferente das abordagens tradicionais da psicologia comparada e da etologia

O bonobo (Pan paniscus) Kanzi eacute a estrela nas pesquisas com linguagem siacutemia oulinguagem natildeo-humana da psicologia comparada Kanzi comunica-se basicamente atraveacutes

de um teclado de ldquolexigramasrdquo siacutembolos criados na deacutecada de 70 para experimentos emlinguagem siacutemia mas que posteriormente foram utilizados tambeacutem para o trabalho comcrianccedilas humanas autistas Kanzi estava sempre por perto durante o treinamento de sua matildeeadotiva Matata e foi observado utilizando o teclado algumas vezes No dia seguinte agrave saiacutedade Matata do experimento (para fins de procriaccedilatildeo) houve a primeira tentativa de treinamentoformal de Kanzi Nesse primeiro dia de aula Kanzi utilizou o teclado de lexigramas 120vezes sem ter sido requisitado a fazecirc-lo Comunicou-se fluentemente com a pesquisadora SueSavage-Rumbaugh atraveacutes dos lexigramas e segundo a investigadora sabia o que ossiacutembolos significavam (Savage-Rumbaugh e Lewin 1994)

A carreira de Kanzi prossegue (ainda hoje) com outras conquistas linguiacutesticas ecognitivas tatildeo reveladoras quanto seu desempenho precoce com os lexigramas Kanzi

desenvolveu um repertoacuterio vocal proacuteprio e controlado utilizado em seus processosinteracionais com humanos e outros siacutemios aleacutem da compreensatildeo do inglecircs falado Muito da

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admiraccedilatildeo pelo desempenho de Kanzi vem de sua manipulaccedilatildeo de siacutembolos equivalentesagravequeles utilizados num contexto humano e accedilotildees igualmente apropriadas para o observadorhumano (eacute justamente o desempenhar de ldquoaccedilotildees apropriadasrdquo o que nos leva a dizer aoobservar a performance de Kanzi que o que ele faz eacute linguagem) Pensamos no entanto que

o dado mais fundamental da ontogenia de Kanzi que nos leva a apontaacute-lo como um serlinguiacutestico foram seus processos relacionais Os modos de aquisiccedilatildeo linguiacutestica de Kanzi aomenos inicialmente natildeo eram parte de um experimento formal mas o resultado da relaccedilatildeo co-ontogecircnica estabelecida com a matildee e os cuidadores humanos e da relaccedilatildeo ecoloacutegicaestabelecida com atividades palavras e objetos ligados agrave investigaccedilatildeo cruciais para Kanzioferecer respostas linguiacutesticas consideradas adequadas por seus investigadores independentedo ceticismo do restante da comunidade cientiacutefica No caso de Kanzi e nos termos da BCpodemos dizer que esse organismo pelo menos nos momentos em que ele coordena juntocom os investigadores accedilotildees consensuais coordenadas estaacute na linguagem com osobservadores humanos Frans de Wall (2007) relata vaacuterios exemplos dessas recursotildeeslinguiacutesticas de bonobos com humanos em seu livro intitulado ldquoEu primatardquo

Outro caso interessante que talvez natildeo diga respeito agrave linguagem (nos termos da BC)mas ao menos agraves coordenaccedilotildees recursivas que conformam um domiacutenio linguiacutestico eacute o docavalo Clever Hans (Candland 1993)

Em 1980 Thomas Sebeok organizou sob os auspiacutecios da New York Academy ofSciences um Congresso intitulado ldquoThe Clever Hans Phenomenon Communication withHorses Whales Apes and Peoplerdquo (Candland 1993) O propoacutesito poliacutetico do congresso foimuito mais discerniacutevel que seu conteuacutedo cientiacutefico a comeccedilar pelo tiacutetulo o ldquofenocircmenoClever Hansrdquo cuja simples menccedilatildeo eacute suficiente para lanccedilar suspeitas sobre qualquer pesquisaem linguagem natildeo-humana

O cavalo Clever Hans mobilizou vaacuterios estudiosos no iniacutecio do seacuteculo XX paraentender como esse animal aleacutem de compreender alematildeo falado respondia corretamente agravesperguntas feitas batendo os cascos no chatildeo ou realizando outros movimentos corporais Em1904 foi constituida uma comissatildeo reunindo zooacutelogos professores donos de circo e ateacutemilitares para avaliar o fenocircmeno Os membros da comissatildeo investigavam a possibilidade detruques principalmente pistas natildeo-verbais dadas por seu cuidador Wilhem Von Osten maschegaram agrave conclusatildeo que apesar de natildeo ser possiacutevel avaliar a inteligecircncia de Clever Hansnenhum truque podia ser detectado O psicoacutelogo Oskar Pfungst (aluno de Carl Stumpfmembro da Comissatildeo) continuou os estudos com Hans e por meio de engenhososexperimentos formulou a hipoacutetese de que o cavalo por algum meio natildeo compreendido eracapaz de detectar mudanccedilas comportamentais na audiecircncia iniciando ou completando seusproacuteprios movimentos indicativos da resposta (Candland 1993)

Se a histoacuteria investigativa do cavalo Clever Hans eacute admiraacutevel o mito Clever Hansatingiu uma dimensatildeo cientiacutefica bem maior alimentado igualmente por opositores edefensores dos estudos em linguagem natildeo-humana Segundo esse mito bem difundidoPfungst ldquodesvendou a farsardquo demonstrando que Clever Hans natildeo era nem inteligente nemlinguiacutestico mas um animal induzido por pistas inadvertidas de Van Osten e outros membrosda audiecircncia Para os pesquisadores em linguagem natildeo-humana portanto o desafio eacutedemonstrar para a comunidade acadecircmica que a proacutepria pesquisa natildeo sofre o ldquoefeito CleverHansrdquo seus sujeitos natildeo recebem pistas natildeo-verbais dos investigadores humanos Mas seraacutepossiacutevel isolar experimentalmente na linguagem o siacutembolo dos processos gerativos dessesiacutembolo

Pfungst demonstrou algo que para noacutes eacute mais fundamental que um conhecimento

ldquodenotativordquo ou ldquosimboacutelicordquo de Clever Hans Talvez por sua vivecircncia co-ontogecircnica com otratador talvez por ser um organismo particularmente orientado para as accedilotildees humanas o

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cavalo foi capaz de coordenar suas accedilotildees com as accedilotildees humanas E estando ou natildeo nalinguagem (na condiccedilatildeo de observador) Clever Hans foi capaz de transformar suascoordenaccedilotildees de accedilotildees em palavras - em noacutes na rede conversacional - para a audiecircnciahumana Para os observadores naquele momento Clever Hans estava dizendo algo

8 A emergecircncia da autoconsciecircncia e a epigrafe de Nietzsche

Mesmo reconhecendo que termos como consciecircncia e autoconsciecircncia satildeopolissecircmicos e que os seus significados dependem do referencial teoacuterico a partir do qual sefala e que mesmo dentro de uma mesma teoria ainda assim eles podem ser mateacuteria deintensos debates (Searle 1998) vamos primeiramente nos posicionar e explicitar o queestamos denominando com a expressatildeo ldquoemergecircncia da autoconsciecircnciardquo

Assim o que estamos conotando como emergecircncia da autoconsciecircncia ou auto-reflexividade eacute somente a capacidade do homem de fazer referecircncia a si e ao mundo com oqual interage utilizando o corpo e as recursotildees linguiacutesticas

Acreditamos que a dificuldade de compreender a autoconsciecircncia como um fenocircmenoimanente particular ao viver bioloacutegico humano reside no fato de termos de encontrar omecanismo pelo qual somos capazes de distinguir a noacutes mesmos como se fossemos entidadesindependentes de nosso proacuteprio viver e ao mesmo tempo de especificarmos um eu que noshabita e que portanto eacute dependente de nossa biologia

Este aparente paradoxo pode ser resolvido se aceitarmos que a operaccedilatildeo deautoconsciecircncia eacute uma distinccedilatildeo reflexiva de um ldquoeurdquo forjado na linguagem de tal forma queeste eu natildeo somente constitui o corpo que surge na distinccedilatildeo mas tambeacutem que este eu podeser referenciado como uma abstraccedilatildeo no fluir da rede linguiacutestica

Para tornar mais claro este argumento desdobraremos a questatildeo em duas perguntasquais sejam 1- Como este eu corpoacutereo e abstrato eacute capaz de fazer referecircncia ao mundo e seauto-referenciar ou seja como nos tornamos observadores 2- Como os laccedilos da redelinguiacutestica que nos liga uns aos outros e ao mundo mesmo se mantendo na exterioridade denossa corporeidade nas franjas das relaccedilotildees interpessoais cria em noacutes o que em noacutes eacute tatildeointimo - a autoconsciecircncia

Vamos tentar responder estas duas perguntas e esperamos que ao final tenhamosexplicado nossa indagaccedilatildeo inicial qual seja como nos tornamos autoconscientes no devir

Cocircnscios de que toda explicaccedilatildeo exige tanto uma condiccedilatildeo formal mecanismogerativo quanto uma informal aceitabilidade convidamos o leitor para participar conosco daformulaccedilatildeo de um mecanismo gerativo para a autoconsciecircncia Antes poreacutem faremos umasolicitaccedilatildeo sem a qual seraacute impossiacutevel caminharmos juntos eacute indispensaacutevel romper com a

crenccedila de que representamos os objetos que estatildeo no mundo em nossa mente como umespelhoA razatildeo de nosso alerta e de nossa controversa adveacutem do fato de que tanto a ceacutelula

nervosa quanto o sistema nervoso como um todo eacute sensiacutevel somente agrave intensidade dos sinaisquiacutemicos de seu proacuteprio modo de operar e portanto natildeo podem captar e processarinformaccedilotildees ou qualidades do mundo laacute fora como muacutesica cheiro sabor cores etc Ou sejanatildeo haacute uma correspondecircncia ponto a ponto do que acreditamos ser o mundo laacute fora com oque acreditamos ser o mundo de dentro - nossa mente Somente para se ter uma ideia daordem de grandeza e do diferencial que separa estes dois mundos para os duzentos outrezentos milhotildees de receptores sensoriais haacute cerca de dez bilhotildees de sinapses no sistemanervoso sugerindo que as dinacircmicas internas de nosso proacuteprio organismo ao se

entrecruzarem com as perturbaccedilotildees advindas do meio externo participam na criaccedilatildeo interna

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do que o organismo vecirc ldquosenterdquo e nomeia tais como cores sons e sensaccedilotildees (Von Foster1994)

Quais as consequecircncias desse entendimento para nossa discussatildeoA consequecircncia mais fundamental eacute a de que o mundo laacute fora com os seus objetos e

acontecimentos natildeo preacute-existem ao observador pois que eles natildeo satildeo entidades primaacuterias aoato de observar e portanto independentes da biologia do observador As caracteriacutesticas quesupostamente satildeo dadas agraves coisas mostram-se tambeacutem como caracteriacutesticas do observador Ascores natildeo estatildeo laacute fora independentes de nossa biologia mas tambeacutem natildeo estatildeo caacute dentroindependentes de nosso mundo cultural Se isso eacute assim nega-se tanto o realismo de ummundo predeterminado que o organismo eacute capaz de representar quanto o idealismo que tomaa percepccedilatildeo como uma projeccedilatildeo de um mundo interno predeterminado (Varela et al 2003)

Eacute com essa dupla negaccedilatildeo que se diz que os objetos natildeo antecedem agrave distinccedilatildeo quedeles eacute feita pelo observador Os objetos surgem na praacutexis do viver do observador e o que eacuteessa praacutexis do viver humano senatildeo as coordenaccedilotildees de coordenaccedilotildees de accedilotildees que realizamosem nosso cotidiano

Seguindo esta linha de raciociacutenio o observar surge no domiacutenio das coerecircnciasexperienciais inerentes ao proacuteprio viver Ao darmos ecircnfase ao processo deslocamos a posiccedilatildeodo observador de ente corporificado para ente operacional

Se o leitor aceitou que eacute impossiacutevel a este ente operacional fazer referecircncia a algo forade seu domiacutenio de experiecircncias fora de sua proacutepria histoacuteria deduz-se que os objetos o corpoe suas partes e por extensatildeo o proacuteprio ldquoeurdquo surgem no operar das coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais ou seja na linguagem Eacute importante notar que emboraenclausurados em nossa proacutepria biologia noacutes soacute nos tornamos observadores na presenccedila dooutro ao partilharmos do processo recursivo e transgeracional que eacute o viver na linguagem

O importante eacute que noacutes repetimos esse processo conservado transgeracionalmente emcada ontogenia Assim quando nascemos e nos inserimos no mundo atraveacutes das primeirastriangulaccedilotildees criadas pelo apontar da matildee no sentido lato deste termo para um objeto quepode ser o nosso corpo ou parte dele jaacute estamos na linguagem

A necessidade do outro fundado na relaccedilatildeo jaacute nos coloca frente ao desafio deresponder agrave segunda questatildeo anteriormente formulada qual seja como os laccedilos de uma redelinguiacutestica podem criar em noacutes o que em noacutes eacute tatildeo intimo - a autoconsciecircncia

A Biologia do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode serentendido como uma co-emergecircncia da experiecircncia de um mundo vivido e da identidade doeu vivente (Varela et al 2003) No entanto haacute de se fazer uma ressalva a experiecircncia eacuteclaramente um evento pessoal mas isso natildeo significa que seja um evento privado no sentidode algum tipo de sujeito isolado que caiu de paacutera-quedas sobre um mundo objetivo

previamente dado Se aceitarmos a ressalva que a experiecircncia eacute tanto um evento pessoalporque necessariamente auto-referencial mas tambeacutem coletivo porque necessariamenterelacional poderemos compreender o surgimento de seres vivos capazes de fazer referecircnciaao mundo e se auto-referenciar sem termos de apelar para uma transcendecircncia ou para aimanecircncia de um suposto ldquoeurdquo independente e centro desta vivecircncia (Varela et al 2003)

Seria este o entendimento de Nietzsche (que noacutes recusamos a acreditar) o corpo queprocede como um ldquoeurdquo sem precisar falar

9 Referencias bibliograacuteficas

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gestos ou desenhos) ou gramaacutetica pode ser colocada em uma posiccedilatildeo gerativa da linguagem justamente por dependerem do consenso para surgirem As palavras e a gramaacutetica jaacute fazemparte da descriccedilatildeo da linguagem no momento em que esses elementos satildeo descritos como umaparte dela

Destarte o modo de vida humano surge e se conserva na linguagem como modo deconservar sua organizaccedilatildeo Para Maturana (1997 168) o humano vive nesse ldquofluir deinteraccedilotildees recorrentesrdquo E como a fisiologia muda em congruecircncia com a histoacuteria dasinteraccedilotildees do organismo devemos esperar uma correspondecircncia estrutural do organismohumano com o curso de suas interaccedilotildees na linguagem Do mesmo modo ao falarmos doprocesso de denotaccedilatildeo de apontar para um mundo laacute fora com nossas palavras natildeoprecisamos fazer referecircncia nem a uma constituiccedilatildeo cognitiva preacutevia do humano (pois esse eacuteum domiacutenio que natildeo se intersecta com o domiacutenio comportamental) e nem a uma realidadeldquoinformativardquo laacute fora (pois tudo o que acontece com o organismo eacute determinado neleestruturalmente) Falamos da denotaccedilatildeo como se estiveacutessemos apontando para um mundopreacutevio laacute fora mas tudo o que estamos fazendo de fato eacute coordenando nossas accedilotildees com

outros observadoresAssim a denotaccedilatildeo como afirma Maturana (1997 150) ldquonatildeo eacute uma operaccedilatildeo

primitiva Ela requer concordacircncia - consenso - para a especificaccedilatildeo tanto do denotantequanto do denotado Se a denotaccedilatildeo portanto natildeo eacute primitiva natildeo pode ser tampouco umaoperaccedilatildeo linguiacutestica primitivardquo

Se denotaccedilatildeo natildeo eacute uma operaccedilatildeo primitiva natildeo eacute preciso fazer referecircncia a umarealidade externa ldquointermediadardquo pela linguagem De fato apontamos (descrevemos)consensualmente para objetos do mundo e eacute na descriccedilatildeo desse apontar para os objetos demodo consensual que surge ao mesmo tempo a denotaccedilatildeo e os objetos que trazemos agrave matildeono linguajar A linguagem eacute um espaccedilo de relaccedilotildees em que nos movemos e eacute neste moverrecursivo na linguagem que surgem tanto o ato de observar quanto o proacuteprio observador

7 Domiacutenio linguiacutestico e linguagem natildeo-humana

Iniciaremos este toacutepico fazendo uma pergunta provocativa qual seja eacute possiacutevel falarem linguagem natildeo-humana

Ainda que a BC natildeo utilize o termo ldquolinguagemrdquo para as interaccedilotildees recorrentes natildeo-humanas nesse domiacutenio explicativo podemos pelo menos tratar essas interaccedilotildees de modobem diferente das abordagens tradicionais da psicologia comparada e da etologia

O bonobo (Pan paniscus) Kanzi eacute a estrela nas pesquisas com linguagem siacutemia oulinguagem natildeo-humana da psicologia comparada Kanzi comunica-se basicamente atraveacutes

de um teclado de ldquolexigramasrdquo siacutembolos criados na deacutecada de 70 para experimentos emlinguagem siacutemia mas que posteriormente foram utilizados tambeacutem para o trabalho comcrianccedilas humanas autistas Kanzi estava sempre por perto durante o treinamento de sua matildeeadotiva Matata e foi observado utilizando o teclado algumas vezes No dia seguinte agrave saiacutedade Matata do experimento (para fins de procriaccedilatildeo) houve a primeira tentativa de treinamentoformal de Kanzi Nesse primeiro dia de aula Kanzi utilizou o teclado de lexigramas 120vezes sem ter sido requisitado a fazecirc-lo Comunicou-se fluentemente com a pesquisadora SueSavage-Rumbaugh atraveacutes dos lexigramas e segundo a investigadora sabia o que ossiacutembolos significavam (Savage-Rumbaugh e Lewin 1994)

A carreira de Kanzi prossegue (ainda hoje) com outras conquistas linguiacutesticas ecognitivas tatildeo reveladoras quanto seu desempenho precoce com os lexigramas Kanzi

desenvolveu um repertoacuterio vocal proacuteprio e controlado utilizado em seus processosinteracionais com humanos e outros siacutemios aleacutem da compreensatildeo do inglecircs falado Muito da

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admiraccedilatildeo pelo desempenho de Kanzi vem de sua manipulaccedilatildeo de siacutembolos equivalentesagravequeles utilizados num contexto humano e accedilotildees igualmente apropriadas para o observadorhumano (eacute justamente o desempenhar de ldquoaccedilotildees apropriadasrdquo o que nos leva a dizer aoobservar a performance de Kanzi que o que ele faz eacute linguagem) Pensamos no entanto que

o dado mais fundamental da ontogenia de Kanzi que nos leva a apontaacute-lo como um serlinguiacutestico foram seus processos relacionais Os modos de aquisiccedilatildeo linguiacutestica de Kanzi aomenos inicialmente natildeo eram parte de um experimento formal mas o resultado da relaccedilatildeo co-ontogecircnica estabelecida com a matildee e os cuidadores humanos e da relaccedilatildeo ecoloacutegicaestabelecida com atividades palavras e objetos ligados agrave investigaccedilatildeo cruciais para Kanzioferecer respostas linguiacutesticas consideradas adequadas por seus investigadores independentedo ceticismo do restante da comunidade cientiacutefica No caso de Kanzi e nos termos da BCpodemos dizer que esse organismo pelo menos nos momentos em que ele coordena juntocom os investigadores accedilotildees consensuais coordenadas estaacute na linguagem com osobservadores humanos Frans de Wall (2007) relata vaacuterios exemplos dessas recursotildeeslinguiacutesticas de bonobos com humanos em seu livro intitulado ldquoEu primatardquo

Outro caso interessante que talvez natildeo diga respeito agrave linguagem (nos termos da BC)mas ao menos agraves coordenaccedilotildees recursivas que conformam um domiacutenio linguiacutestico eacute o docavalo Clever Hans (Candland 1993)

Em 1980 Thomas Sebeok organizou sob os auspiacutecios da New York Academy ofSciences um Congresso intitulado ldquoThe Clever Hans Phenomenon Communication withHorses Whales Apes and Peoplerdquo (Candland 1993) O propoacutesito poliacutetico do congresso foimuito mais discerniacutevel que seu conteuacutedo cientiacutefico a comeccedilar pelo tiacutetulo o ldquofenocircmenoClever Hansrdquo cuja simples menccedilatildeo eacute suficiente para lanccedilar suspeitas sobre qualquer pesquisaem linguagem natildeo-humana

O cavalo Clever Hans mobilizou vaacuterios estudiosos no iniacutecio do seacuteculo XX paraentender como esse animal aleacutem de compreender alematildeo falado respondia corretamente agravesperguntas feitas batendo os cascos no chatildeo ou realizando outros movimentos corporais Em1904 foi constituida uma comissatildeo reunindo zooacutelogos professores donos de circo e ateacutemilitares para avaliar o fenocircmeno Os membros da comissatildeo investigavam a possibilidade detruques principalmente pistas natildeo-verbais dadas por seu cuidador Wilhem Von Osten maschegaram agrave conclusatildeo que apesar de natildeo ser possiacutevel avaliar a inteligecircncia de Clever Hansnenhum truque podia ser detectado O psicoacutelogo Oskar Pfungst (aluno de Carl Stumpfmembro da Comissatildeo) continuou os estudos com Hans e por meio de engenhososexperimentos formulou a hipoacutetese de que o cavalo por algum meio natildeo compreendido eracapaz de detectar mudanccedilas comportamentais na audiecircncia iniciando ou completando seusproacuteprios movimentos indicativos da resposta (Candland 1993)

Se a histoacuteria investigativa do cavalo Clever Hans eacute admiraacutevel o mito Clever Hansatingiu uma dimensatildeo cientiacutefica bem maior alimentado igualmente por opositores edefensores dos estudos em linguagem natildeo-humana Segundo esse mito bem difundidoPfungst ldquodesvendou a farsardquo demonstrando que Clever Hans natildeo era nem inteligente nemlinguiacutestico mas um animal induzido por pistas inadvertidas de Van Osten e outros membrosda audiecircncia Para os pesquisadores em linguagem natildeo-humana portanto o desafio eacutedemonstrar para a comunidade acadecircmica que a proacutepria pesquisa natildeo sofre o ldquoefeito CleverHansrdquo seus sujeitos natildeo recebem pistas natildeo-verbais dos investigadores humanos Mas seraacutepossiacutevel isolar experimentalmente na linguagem o siacutembolo dos processos gerativos dessesiacutembolo

Pfungst demonstrou algo que para noacutes eacute mais fundamental que um conhecimento

ldquodenotativordquo ou ldquosimboacutelicordquo de Clever Hans Talvez por sua vivecircncia co-ontogecircnica com otratador talvez por ser um organismo particularmente orientado para as accedilotildees humanas o

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cavalo foi capaz de coordenar suas accedilotildees com as accedilotildees humanas E estando ou natildeo nalinguagem (na condiccedilatildeo de observador) Clever Hans foi capaz de transformar suascoordenaccedilotildees de accedilotildees em palavras - em noacutes na rede conversacional - para a audiecircnciahumana Para os observadores naquele momento Clever Hans estava dizendo algo

8 A emergecircncia da autoconsciecircncia e a epigrafe de Nietzsche

Mesmo reconhecendo que termos como consciecircncia e autoconsciecircncia satildeopolissecircmicos e que os seus significados dependem do referencial teoacuterico a partir do qual sefala e que mesmo dentro de uma mesma teoria ainda assim eles podem ser mateacuteria deintensos debates (Searle 1998) vamos primeiramente nos posicionar e explicitar o queestamos denominando com a expressatildeo ldquoemergecircncia da autoconsciecircnciardquo

Assim o que estamos conotando como emergecircncia da autoconsciecircncia ou auto-reflexividade eacute somente a capacidade do homem de fazer referecircncia a si e ao mundo com oqual interage utilizando o corpo e as recursotildees linguiacutesticas

Acreditamos que a dificuldade de compreender a autoconsciecircncia como um fenocircmenoimanente particular ao viver bioloacutegico humano reside no fato de termos de encontrar omecanismo pelo qual somos capazes de distinguir a noacutes mesmos como se fossemos entidadesindependentes de nosso proacuteprio viver e ao mesmo tempo de especificarmos um eu que noshabita e que portanto eacute dependente de nossa biologia

Este aparente paradoxo pode ser resolvido se aceitarmos que a operaccedilatildeo deautoconsciecircncia eacute uma distinccedilatildeo reflexiva de um ldquoeurdquo forjado na linguagem de tal forma queeste eu natildeo somente constitui o corpo que surge na distinccedilatildeo mas tambeacutem que este eu podeser referenciado como uma abstraccedilatildeo no fluir da rede linguiacutestica

Para tornar mais claro este argumento desdobraremos a questatildeo em duas perguntasquais sejam 1- Como este eu corpoacutereo e abstrato eacute capaz de fazer referecircncia ao mundo e seauto-referenciar ou seja como nos tornamos observadores 2- Como os laccedilos da redelinguiacutestica que nos liga uns aos outros e ao mundo mesmo se mantendo na exterioridade denossa corporeidade nas franjas das relaccedilotildees interpessoais cria em noacutes o que em noacutes eacute tatildeointimo - a autoconsciecircncia

Vamos tentar responder estas duas perguntas e esperamos que ao final tenhamosexplicado nossa indagaccedilatildeo inicial qual seja como nos tornamos autoconscientes no devir

Cocircnscios de que toda explicaccedilatildeo exige tanto uma condiccedilatildeo formal mecanismogerativo quanto uma informal aceitabilidade convidamos o leitor para participar conosco daformulaccedilatildeo de um mecanismo gerativo para a autoconsciecircncia Antes poreacutem faremos umasolicitaccedilatildeo sem a qual seraacute impossiacutevel caminharmos juntos eacute indispensaacutevel romper com a

crenccedila de que representamos os objetos que estatildeo no mundo em nossa mente como umespelhoA razatildeo de nosso alerta e de nossa controversa adveacutem do fato de que tanto a ceacutelula

nervosa quanto o sistema nervoso como um todo eacute sensiacutevel somente agrave intensidade dos sinaisquiacutemicos de seu proacuteprio modo de operar e portanto natildeo podem captar e processarinformaccedilotildees ou qualidades do mundo laacute fora como muacutesica cheiro sabor cores etc Ou sejanatildeo haacute uma correspondecircncia ponto a ponto do que acreditamos ser o mundo laacute fora com oque acreditamos ser o mundo de dentro - nossa mente Somente para se ter uma ideia daordem de grandeza e do diferencial que separa estes dois mundos para os duzentos outrezentos milhotildees de receptores sensoriais haacute cerca de dez bilhotildees de sinapses no sistemanervoso sugerindo que as dinacircmicas internas de nosso proacuteprio organismo ao se

entrecruzarem com as perturbaccedilotildees advindas do meio externo participam na criaccedilatildeo interna

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do que o organismo vecirc ldquosenterdquo e nomeia tais como cores sons e sensaccedilotildees (Von Foster1994)

Quais as consequecircncias desse entendimento para nossa discussatildeoA consequecircncia mais fundamental eacute a de que o mundo laacute fora com os seus objetos e

acontecimentos natildeo preacute-existem ao observador pois que eles natildeo satildeo entidades primaacuterias aoato de observar e portanto independentes da biologia do observador As caracteriacutesticas quesupostamente satildeo dadas agraves coisas mostram-se tambeacutem como caracteriacutesticas do observador Ascores natildeo estatildeo laacute fora independentes de nossa biologia mas tambeacutem natildeo estatildeo caacute dentroindependentes de nosso mundo cultural Se isso eacute assim nega-se tanto o realismo de ummundo predeterminado que o organismo eacute capaz de representar quanto o idealismo que tomaa percepccedilatildeo como uma projeccedilatildeo de um mundo interno predeterminado (Varela et al 2003)

Eacute com essa dupla negaccedilatildeo que se diz que os objetos natildeo antecedem agrave distinccedilatildeo quedeles eacute feita pelo observador Os objetos surgem na praacutexis do viver do observador e o que eacuteessa praacutexis do viver humano senatildeo as coordenaccedilotildees de coordenaccedilotildees de accedilotildees que realizamosem nosso cotidiano

Seguindo esta linha de raciociacutenio o observar surge no domiacutenio das coerecircnciasexperienciais inerentes ao proacuteprio viver Ao darmos ecircnfase ao processo deslocamos a posiccedilatildeodo observador de ente corporificado para ente operacional

Se o leitor aceitou que eacute impossiacutevel a este ente operacional fazer referecircncia a algo forade seu domiacutenio de experiecircncias fora de sua proacutepria histoacuteria deduz-se que os objetos o corpoe suas partes e por extensatildeo o proacuteprio ldquoeurdquo surgem no operar das coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais ou seja na linguagem Eacute importante notar que emboraenclausurados em nossa proacutepria biologia noacutes soacute nos tornamos observadores na presenccedila dooutro ao partilharmos do processo recursivo e transgeracional que eacute o viver na linguagem

O importante eacute que noacutes repetimos esse processo conservado transgeracionalmente emcada ontogenia Assim quando nascemos e nos inserimos no mundo atraveacutes das primeirastriangulaccedilotildees criadas pelo apontar da matildee no sentido lato deste termo para um objeto quepode ser o nosso corpo ou parte dele jaacute estamos na linguagem

A necessidade do outro fundado na relaccedilatildeo jaacute nos coloca frente ao desafio deresponder agrave segunda questatildeo anteriormente formulada qual seja como os laccedilos de uma redelinguiacutestica podem criar em noacutes o que em noacutes eacute tatildeo intimo - a autoconsciecircncia

A Biologia do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode serentendido como uma co-emergecircncia da experiecircncia de um mundo vivido e da identidade doeu vivente (Varela et al 2003) No entanto haacute de se fazer uma ressalva a experiecircncia eacuteclaramente um evento pessoal mas isso natildeo significa que seja um evento privado no sentidode algum tipo de sujeito isolado que caiu de paacutera-quedas sobre um mundo objetivo

previamente dado Se aceitarmos a ressalva que a experiecircncia eacute tanto um evento pessoalporque necessariamente auto-referencial mas tambeacutem coletivo porque necessariamenterelacional poderemos compreender o surgimento de seres vivos capazes de fazer referecircnciaao mundo e se auto-referenciar sem termos de apelar para uma transcendecircncia ou para aimanecircncia de um suposto ldquoeurdquo independente e centro desta vivecircncia (Varela et al 2003)

Seria este o entendimento de Nietzsche (que noacutes recusamos a acreditar) o corpo queprocede como um ldquoeurdquo sem precisar falar

9 Referencias bibliograacuteficas

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experiecircncia humana Porto Alegre Editora ArtmedVianna B (2008) Desde Darwin Spock e a deriva natural Em Vianna B (Ed) Biologiada libertaccedilatildeo ciecircncia diversidade e responsabilidade Belo Horizonte Ed MazzaVianna B Goacutemez-Soriano R (2007) Grandes siacutemios em linguagem um criacutetica do conceitode evoluccedilatildeo agrave luz das abordagens sistecircmicasrdquo Em Anales del I Congreso Iberoamericano de

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admiraccedilatildeo pelo desempenho de Kanzi vem de sua manipulaccedilatildeo de siacutembolos equivalentesagravequeles utilizados num contexto humano e accedilotildees igualmente apropriadas para o observadorhumano (eacute justamente o desempenhar de ldquoaccedilotildees apropriadasrdquo o que nos leva a dizer aoobservar a performance de Kanzi que o que ele faz eacute linguagem) Pensamos no entanto que

o dado mais fundamental da ontogenia de Kanzi que nos leva a apontaacute-lo como um serlinguiacutestico foram seus processos relacionais Os modos de aquisiccedilatildeo linguiacutestica de Kanzi aomenos inicialmente natildeo eram parte de um experimento formal mas o resultado da relaccedilatildeo co-ontogecircnica estabelecida com a matildee e os cuidadores humanos e da relaccedilatildeo ecoloacutegicaestabelecida com atividades palavras e objetos ligados agrave investigaccedilatildeo cruciais para Kanzioferecer respostas linguiacutesticas consideradas adequadas por seus investigadores independentedo ceticismo do restante da comunidade cientiacutefica No caso de Kanzi e nos termos da BCpodemos dizer que esse organismo pelo menos nos momentos em que ele coordena juntocom os investigadores accedilotildees consensuais coordenadas estaacute na linguagem com osobservadores humanos Frans de Wall (2007) relata vaacuterios exemplos dessas recursotildeeslinguiacutesticas de bonobos com humanos em seu livro intitulado ldquoEu primatardquo

Outro caso interessante que talvez natildeo diga respeito agrave linguagem (nos termos da BC)mas ao menos agraves coordenaccedilotildees recursivas que conformam um domiacutenio linguiacutestico eacute o docavalo Clever Hans (Candland 1993)

Em 1980 Thomas Sebeok organizou sob os auspiacutecios da New York Academy ofSciences um Congresso intitulado ldquoThe Clever Hans Phenomenon Communication withHorses Whales Apes and Peoplerdquo (Candland 1993) O propoacutesito poliacutetico do congresso foimuito mais discerniacutevel que seu conteuacutedo cientiacutefico a comeccedilar pelo tiacutetulo o ldquofenocircmenoClever Hansrdquo cuja simples menccedilatildeo eacute suficiente para lanccedilar suspeitas sobre qualquer pesquisaem linguagem natildeo-humana

O cavalo Clever Hans mobilizou vaacuterios estudiosos no iniacutecio do seacuteculo XX paraentender como esse animal aleacutem de compreender alematildeo falado respondia corretamente agravesperguntas feitas batendo os cascos no chatildeo ou realizando outros movimentos corporais Em1904 foi constituida uma comissatildeo reunindo zooacutelogos professores donos de circo e ateacutemilitares para avaliar o fenocircmeno Os membros da comissatildeo investigavam a possibilidade detruques principalmente pistas natildeo-verbais dadas por seu cuidador Wilhem Von Osten maschegaram agrave conclusatildeo que apesar de natildeo ser possiacutevel avaliar a inteligecircncia de Clever Hansnenhum truque podia ser detectado O psicoacutelogo Oskar Pfungst (aluno de Carl Stumpfmembro da Comissatildeo) continuou os estudos com Hans e por meio de engenhososexperimentos formulou a hipoacutetese de que o cavalo por algum meio natildeo compreendido eracapaz de detectar mudanccedilas comportamentais na audiecircncia iniciando ou completando seusproacuteprios movimentos indicativos da resposta (Candland 1993)

Se a histoacuteria investigativa do cavalo Clever Hans eacute admiraacutevel o mito Clever Hansatingiu uma dimensatildeo cientiacutefica bem maior alimentado igualmente por opositores edefensores dos estudos em linguagem natildeo-humana Segundo esse mito bem difundidoPfungst ldquodesvendou a farsardquo demonstrando que Clever Hans natildeo era nem inteligente nemlinguiacutestico mas um animal induzido por pistas inadvertidas de Van Osten e outros membrosda audiecircncia Para os pesquisadores em linguagem natildeo-humana portanto o desafio eacutedemonstrar para a comunidade acadecircmica que a proacutepria pesquisa natildeo sofre o ldquoefeito CleverHansrdquo seus sujeitos natildeo recebem pistas natildeo-verbais dos investigadores humanos Mas seraacutepossiacutevel isolar experimentalmente na linguagem o siacutembolo dos processos gerativos dessesiacutembolo

Pfungst demonstrou algo que para noacutes eacute mais fundamental que um conhecimento

ldquodenotativordquo ou ldquosimboacutelicordquo de Clever Hans Talvez por sua vivecircncia co-ontogecircnica com otratador talvez por ser um organismo particularmente orientado para as accedilotildees humanas o

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cavalo foi capaz de coordenar suas accedilotildees com as accedilotildees humanas E estando ou natildeo nalinguagem (na condiccedilatildeo de observador) Clever Hans foi capaz de transformar suascoordenaccedilotildees de accedilotildees em palavras - em noacutes na rede conversacional - para a audiecircnciahumana Para os observadores naquele momento Clever Hans estava dizendo algo

8 A emergecircncia da autoconsciecircncia e a epigrafe de Nietzsche

Mesmo reconhecendo que termos como consciecircncia e autoconsciecircncia satildeopolissecircmicos e que os seus significados dependem do referencial teoacuterico a partir do qual sefala e que mesmo dentro de uma mesma teoria ainda assim eles podem ser mateacuteria deintensos debates (Searle 1998) vamos primeiramente nos posicionar e explicitar o queestamos denominando com a expressatildeo ldquoemergecircncia da autoconsciecircnciardquo

Assim o que estamos conotando como emergecircncia da autoconsciecircncia ou auto-reflexividade eacute somente a capacidade do homem de fazer referecircncia a si e ao mundo com oqual interage utilizando o corpo e as recursotildees linguiacutesticas

Acreditamos que a dificuldade de compreender a autoconsciecircncia como um fenocircmenoimanente particular ao viver bioloacutegico humano reside no fato de termos de encontrar omecanismo pelo qual somos capazes de distinguir a noacutes mesmos como se fossemos entidadesindependentes de nosso proacuteprio viver e ao mesmo tempo de especificarmos um eu que noshabita e que portanto eacute dependente de nossa biologia

Este aparente paradoxo pode ser resolvido se aceitarmos que a operaccedilatildeo deautoconsciecircncia eacute uma distinccedilatildeo reflexiva de um ldquoeurdquo forjado na linguagem de tal forma queeste eu natildeo somente constitui o corpo que surge na distinccedilatildeo mas tambeacutem que este eu podeser referenciado como uma abstraccedilatildeo no fluir da rede linguiacutestica

Para tornar mais claro este argumento desdobraremos a questatildeo em duas perguntasquais sejam 1- Como este eu corpoacutereo e abstrato eacute capaz de fazer referecircncia ao mundo e seauto-referenciar ou seja como nos tornamos observadores 2- Como os laccedilos da redelinguiacutestica que nos liga uns aos outros e ao mundo mesmo se mantendo na exterioridade denossa corporeidade nas franjas das relaccedilotildees interpessoais cria em noacutes o que em noacutes eacute tatildeointimo - a autoconsciecircncia

Vamos tentar responder estas duas perguntas e esperamos que ao final tenhamosexplicado nossa indagaccedilatildeo inicial qual seja como nos tornamos autoconscientes no devir

Cocircnscios de que toda explicaccedilatildeo exige tanto uma condiccedilatildeo formal mecanismogerativo quanto uma informal aceitabilidade convidamos o leitor para participar conosco daformulaccedilatildeo de um mecanismo gerativo para a autoconsciecircncia Antes poreacutem faremos umasolicitaccedilatildeo sem a qual seraacute impossiacutevel caminharmos juntos eacute indispensaacutevel romper com a

crenccedila de que representamos os objetos que estatildeo no mundo em nossa mente como umespelhoA razatildeo de nosso alerta e de nossa controversa adveacutem do fato de que tanto a ceacutelula

nervosa quanto o sistema nervoso como um todo eacute sensiacutevel somente agrave intensidade dos sinaisquiacutemicos de seu proacuteprio modo de operar e portanto natildeo podem captar e processarinformaccedilotildees ou qualidades do mundo laacute fora como muacutesica cheiro sabor cores etc Ou sejanatildeo haacute uma correspondecircncia ponto a ponto do que acreditamos ser o mundo laacute fora com oque acreditamos ser o mundo de dentro - nossa mente Somente para se ter uma ideia daordem de grandeza e do diferencial que separa estes dois mundos para os duzentos outrezentos milhotildees de receptores sensoriais haacute cerca de dez bilhotildees de sinapses no sistemanervoso sugerindo que as dinacircmicas internas de nosso proacuteprio organismo ao se

entrecruzarem com as perturbaccedilotildees advindas do meio externo participam na criaccedilatildeo interna

Ciecircncias amp Cogniccedilatildeo 2010 Vol 15 (3) 033-046 lthttpwwwcienciasecognicaoorggt copy Ciecircncias amp Cogniccedilatildeo

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do que o organismo vecirc ldquosenterdquo e nomeia tais como cores sons e sensaccedilotildees (Von Foster1994)

Quais as consequecircncias desse entendimento para nossa discussatildeoA consequecircncia mais fundamental eacute a de que o mundo laacute fora com os seus objetos e

acontecimentos natildeo preacute-existem ao observador pois que eles natildeo satildeo entidades primaacuterias aoato de observar e portanto independentes da biologia do observador As caracteriacutesticas quesupostamente satildeo dadas agraves coisas mostram-se tambeacutem como caracteriacutesticas do observador Ascores natildeo estatildeo laacute fora independentes de nossa biologia mas tambeacutem natildeo estatildeo caacute dentroindependentes de nosso mundo cultural Se isso eacute assim nega-se tanto o realismo de ummundo predeterminado que o organismo eacute capaz de representar quanto o idealismo que tomaa percepccedilatildeo como uma projeccedilatildeo de um mundo interno predeterminado (Varela et al 2003)

Eacute com essa dupla negaccedilatildeo que se diz que os objetos natildeo antecedem agrave distinccedilatildeo quedeles eacute feita pelo observador Os objetos surgem na praacutexis do viver do observador e o que eacuteessa praacutexis do viver humano senatildeo as coordenaccedilotildees de coordenaccedilotildees de accedilotildees que realizamosem nosso cotidiano

Seguindo esta linha de raciociacutenio o observar surge no domiacutenio das coerecircnciasexperienciais inerentes ao proacuteprio viver Ao darmos ecircnfase ao processo deslocamos a posiccedilatildeodo observador de ente corporificado para ente operacional

Se o leitor aceitou que eacute impossiacutevel a este ente operacional fazer referecircncia a algo forade seu domiacutenio de experiecircncias fora de sua proacutepria histoacuteria deduz-se que os objetos o corpoe suas partes e por extensatildeo o proacuteprio ldquoeurdquo surgem no operar das coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais ou seja na linguagem Eacute importante notar que emboraenclausurados em nossa proacutepria biologia noacutes soacute nos tornamos observadores na presenccedila dooutro ao partilharmos do processo recursivo e transgeracional que eacute o viver na linguagem

O importante eacute que noacutes repetimos esse processo conservado transgeracionalmente emcada ontogenia Assim quando nascemos e nos inserimos no mundo atraveacutes das primeirastriangulaccedilotildees criadas pelo apontar da matildee no sentido lato deste termo para um objeto quepode ser o nosso corpo ou parte dele jaacute estamos na linguagem

A necessidade do outro fundado na relaccedilatildeo jaacute nos coloca frente ao desafio deresponder agrave segunda questatildeo anteriormente formulada qual seja como os laccedilos de uma redelinguiacutestica podem criar em noacutes o que em noacutes eacute tatildeo intimo - a autoconsciecircncia

A Biologia do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode serentendido como uma co-emergecircncia da experiecircncia de um mundo vivido e da identidade doeu vivente (Varela et al 2003) No entanto haacute de se fazer uma ressalva a experiecircncia eacuteclaramente um evento pessoal mas isso natildeo significa que seja um evento privado no sentidode algum tipo de sujeito isolado que caiu de paacutera-quedas sobre um mundo objetivo

previamente dado Se aceitarmos a ressalva que a experiecircncia eacute tanto um evento pessoalporque necessariamente auto-referencial mas tambeacutem coletivo porque necessariamenterelacional poderemos compreender o surgimento de seres vivos capazes de fazer referecircnciaao mundo e se auto-referenciar sem termos de apelar para uma transcendecircncia ou para aimanecircncia de um suposto ldquoeurdquo independente e centro desta vivecircncia (Varela et al 2003)

Seria este o entendimento de Nietzsche (que noacutes recusamos a acreditar) o corpo queprocede como um ldquoeurdquo sem precisar falar

9 Referencias bibliograacuteficas

Andrade LAB (2010) Vida cogniccedilatildeo e linguagem Cap 5 Em Aranha G Sholl-Franco

A (orgs) Caminhos da Neuroeducaccedilatildeo 1a

Ed (pp 63-73) Rio de Janeiro Ciecircncias eCogniccedilatildeo

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Andrade LAB Silva EP (2005a) O conhecer e o conhecimento comentaacuterios sobre oviver e o tempo Cien Cogn 4 35-41Disponiacutevel em httpwwwcienciasecognicaoorg Andrade LAB Silva EP (2005b) Dialeacutetica diaacutelogo e conversa consonacircncias edissonacircncias epistemoloacutegicas entre Freire e Maturana Rev Ed Bras 55 (27) 51

Candland D (1993) Feral children amp clever animals reflections on human nature NewYork Oxford University PressDarwin CR (2002) A Origem das Espeacutecies Belo Horizonte Editora ItatiaiaDawkins R (2004) The Ancestors Tale A Pilgrimage to the Dawn of Evolution BostonHoughton Mifflin HarcourtDeleuze G Guattari (1992) O que eacute filosofia Rio de Janeiro Editora 34Eicheverria R (1994) La ontologia del lenguage Santiago do Chile Doacutelmen EdicionesFerreira ABH (1999) Dicionaacuterio Aureacutelio da Liacutengua Portuguesa 2a EdiccedilatildeoMaturana H (2000) O que se observa depende do observador Em Gaia - Uma teoria doconhecimento (pp 61-66) Satildeo Paulo Editora GaiaMaturana H (2001) Cogniccedilatildeo ciecircncia e vida cotidiana Belo Horizonte Editora UFMG

Maturana H (1997) A ontologia da realidade Belo Horizonte Editora UFMGMaturana H Podozis M (1992) Origen de las Especies por medio de la Deriva Natural mdasho La diversificacioacuten de los linajes a traveacutes de la conservacioacuten y cambio de los fenotiposontogeacutenicos Santiago do Chile Direccioacuten de Bibliotecas Archivos y MuseosMaturana H Varela F (1990) El aacuterbol del conocimiento las bases bioloacutegicas delconocimiento humano Madrid DebateMaturana H Varela F (1997) De maacutequinas e seres vivos Autopoiese - a Organizaccedilatildeo doVivo Porto Alegre Editora ArtmedNietzsche F (2006) Assim falava Zaratustra Trad Alex Marins Satildeo Paulo Editora MartinClaretPlatatildeo (1994) Craacutetilo diaacutelogo sobre a justeza dos nomes Versatildeo do grego prefaacutecio e notasdo Pe Dias Palmeira Lisboa Livraria Saacute da Costa EditoraPiaget J (1970) LrsquoEacutepistemologie Geacutenetique Paris Presses Universitaires de FrancePiaget J (1975) A equilibraccedilatildeo das estruturas cognitivas Rio de Janeiro Ed ZaharSavage-Rumbaugh S Lewin R (1994) Kanzi the ape at the brink of the human mind NewYork John Wiley amp SonsSearle J (1998) O misteacuterio da consciecircncia (Uema AYP Safatle V Trad) Satildeo PauloEditora Paz e TerraTrask RL (2006) Dicionaacuterio de linguagem e linguiacutestica (Ilari R Trad Adapt) SatildeoPaulo Ed ContextoVarela FJ Thompson E Rosch E (2003) A mente incorporada ciecircncias cognitivas e

experiecircncia humana Porto Alegre Editora ArtmedVianna B (2008) Desde Darwin Spock e a deriva natural Em Vianna B (Ed) Biologiada libertaccedilatildeo ciecircncia diversidade e responsabilidade Belo Horizonte Ed MazzaVianna B Goacutemez-Soriano R (2007) Grandes siacutemios em linguagem um criacutetica do conceitode evoluccedilatildeo agrave luz das abordagens sistecircmicasrdquo Em Anales del I Congreso Iberoamericano de

Antropologiacutea (versatildeo eletrocircnica) HavanaVieira AB (2001) Cogniccedilatildeo Em Enciclopeacutedia Einaudi vol 34 Lisboa Ed ImprensaNacional ndash Casa da Moedavon Foerster H (1994) Vision y conocimiento disfunciones de segundo ordine Em NuevasParadigmas Cultura y Subjectividad Dora Fried Schnitmann (Hg) Buenos Aires PaidosWall F (2007) Eu primata Porque somos como somos Satildeo Paulo Editora Schwarcz Ltda

Websterrsquos Ninth New Collegiate Dictionary 1986

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cavalo foi capaz de coordenar suas accedilotildees com as accedilotildees humanas E estando ou natildeo nalinguagem (na condiccedilatildeo de observador) Clever Hans foi capaz de transformar suascoordenaccedilotildees de accedilotildees em palavras - em noacutes na rede conversacional - para a audiecircnciahumana Para os observadores naquele momento Clever Hans estava dizendo algo

8 A emergecircncia da autoconsciecircncia e a epigrafe de Nietzsche

Mesmo reconhecendo que termos como consciecircncia e autoconsciecircncia satildeopolissecircmicos e que os seus significados dependem do referencial teoacuterico a partir do qual sefala e que mesmo dentro de uma mesma teoria ainda assim eles podem ser mateacuteria deintensos debates (Searle 1998) vamos primeiramente nos posicionar e explicitar o queestamos denominando com a expressatildeo ldquoemergecircncia da autoconsciecircnciardquo

Assim o que estamos conotando como emergecircncia da autoconsciecircncia ou auto-reflexividade eacute somente a capacidade do homem de fazer referecircncia a si e ao mundo com oqual interage utilizando o corpo e as recursotildees linguiacutesticas

Acreditamos que a dificuldade de compreender a autoconsciecircncia como um fenocircmenoimanente particular ao viver bioloacutegico humano reside no fato de termos de encontrar omecanismo pelo qual somos capazes de distinguir a noacutes mesmos como se fossemos entidadesindependentes de nosso proacuteprio viver e ao mesmo tempo de especificarmos um eu que noshabita e que portanto eacute dependente de nossa biologia

Este aparente paradoxo pode ser resolvido se aceitarmos que a operaccedilatildeo deautoconsciecircncia eacute uma distinccedilatildeo reflexiva de um ldquoeurdquo forjado na linguagem de tal forma queeste eu natildeo somente constitui o corpo que surge na distinccedilatildeo mas tambeacutem que este eu podeser referenciado como uma abstraccedilatildeo no fluir da rede linguiacutestica

Para tornar mais claro este argumento desdobraremos a questatildeo em duas perguntasquais sejam 1- Como este eu corpoacutereo e abstrato eacute capaz de fazer referecircncia ao mundo e seauto-referenciar ou seja como nos tornamos observadores 2- Como os laccedilos da redelinguiacutestica que nos liga uns aos outros e ao mundo mesmo se mantendo na exterioridade denossa corporeidade nas franjas das relaccedilotildees interpessoais cria em noacutes o que em noacutes eacute tatildeointimo - a autoconsciecircncia

Vamos tentar responder estas duas perguntas e esperamos que ao final tenhamosexplicado nossa indagaccedilatildeo inicial qual seja como nos tornamos autoconscientes no devir

Cocircnscios de que toda explicaccedilatildeo exige tanto uma condiccedilatildeo formal mecanismogerativo quanto uma informal aceitabilidade convidamos o leitor para participar conosco daformulaccedilatildeo de um mecanismo gerativo para a autoconsciecircncia Antes poreacutem faremos umasolicitaccedilatildeo sem a qual seraacute impossiacutevel caminharmos juntos eacute indispensaacutevel romper com a

crenccedila de que representamos os objetos que estatildeo no mundo em nossa mente como umespelhoA razatildeo de nosso alerta e de nossa controversa adveacutem do fato de que tanto a ceacutelula

nervosa quanto o sistema nervoso como um todo eacute sensiacutevel somente agrave intensidade dos sinaisquiacutemicos de seu proacuteprio modo de operar e portanto natildeo podem captar e processarinformaccedilotildees ou qualidades do mundo laacute fora como muacutesica cheiro sabor cores etc Ou sejanatildeo haacute uma correspondecircncia ponto a ponto do que acreditamos ser o mundo laacute fora com oque acreditamos ser o mundo de dentro - nossa mente Somente para se ter uma ideia daordem de grandeza e do diferencial que separa estes dois mundos para os duzentos outrezentos milhotildees de receptores sensoriais haacute cerca de dez bilhotildees de sinapses no sistemanervoso sugerindo que as dinacircmicas internas de nosso proacuteprio organismo ao se

entrecruzarem com as perturbaccedilotildees advindas do meio externo participam na criaccedilatildeo interna

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do que o organismo vecirc ldquosenterdquo e nomeia tais como cores sons e sensaccedilotildees (Von Foster1994)

Quais as consequecircncias desse entendimento para nossa discussatildeoA consequecircncia mais fundamental eacute a de que o mundo laacute fora com os seus objetos e

acontecimentos natildeo preacute-existem ao observador pois que eles natildeo satildeo entidades primaacuterias aoato de observar e portanto independentes da biologia do observador As caracteriacutesticas quesupostamente satildeo dadas agraves coisas mostram-se tambeacutem como caracteriacutesticas do observador Ascores natildeo estatildeo laacute fora independentes de nossa biologia mas tambeacutem natildeo estatildeo caacute dentroindependentes de nosso mundo cultural Se isso eacute assim nega-se tanto o realismo de ummundo predeterminado que o organismo eacute capaz de representar quanto o idealismo que tomaa percepccedilatildeo como uma projeccedilatildeo de um mundo interno predeterminado (Varela et al 2003)

Eacute com essa dupla negaccedilatildeo que se diz que os objetos natildeo antecedem agrave distinccedilatildeo quedeles eacute feita pelo observador Os objetos surgem na praacutexis do viver do observador e o que eacuteessa praacutexis do viver humano senatildeo as coordenaccedilotildees de coordenaccedilotildees de accedilotildees que realizamosem nosso cotidiano

Seguindo esta linha de raciociacutenio o observar surge no domiacutenio das coerecircnciasexperienciais inerentes ao proacuteprio viver Ao darmos ecircnfase ao processo deslocamos a posiccedilatildeodo observador de ente corporificado para ente operacional

Se o leitor aceitou que eacute impossiacutevel a este ente operacional fazer referecircncia a algo forade seu domiacutenio de experiecircncias fora de sua proacutepria histoacuteria deduz-se que os objetos o corpoe suas partes e por extensatildeo o proacuteprio ldquoeurdquo surgem no operar das coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais ou seja na linguagem Eacute importante notar que emboraenclausurados em nossa proacutepria biologia noacutes soacute nos tornamos observadores na presenccedila dooutro ao partilharmos do processo recursivo e transgeracional que eacute o viver na linguagem

O importante eacute que noacutes repetimos esse processo conservado transgeracionalmente emcada ontogenia Assim quando nascemos e nos inserimos no mundo atraveacutes das primeirastriangulaccedilotildees criadas pelo apontar da matildee no sentido lato deste termo para um objeto quepode ser o nosso corpo ou parte dele jaacute estamos na linguagem

A necessidade do outro fundado na relaccedilatildeo jaacute nos coloca frente ao desafio deresponder agrave segunda questatildeo anteriormente formulada qual seja como os laccedilos de uma redelinguiacutestica podem criar em noacutes o que em noacutes eacute tatildeo intimo - a autoconsciecircncia

A Biologia do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode serentendido como uma co-emergecircncia da experiecircncia de um mundo vivido e da identidade doeu vivente (Varela et al 2003) No entanto haacute de se fazer uma ressalva a experiecircncia eacuteclaramente um evento pessoal mas isso natildeo significa que seja um evento privado no sentidode algum tipo de sujeito isolado que caiu de paacutera-quedas sobre um mundo objetivo

previamente dado Se aceitarmos a ressalva que a experiecircncia eacute tanto um evento pessoalporque necessariamente auto-referencial mas tambeacutem coletivo porque necessariamenterelacional poderemos compreender o surgimento de seres vivos capazes de fazer referecircnciaao mundo e se auto-referenciar sem termos de apelar para uma transcendecircncia ou para aimanecircncia de um suposto ldquoeurdquo independente e centro desta vivecircncia (Varela et al 2003)

Seria este o entendimento de Nietzsche (que noacutes recusamos a acreditar) o corpo queprocede como um ldquoeurdquo sem precisar falar

9 Referencias bibliograacuteficas

Andrade LAB (2010) Vida cogniccedilatildeo e linguagem Cap 5 Em Aranha G Sholl-Franco

A (orgs) Caminhos da Neuroeducaccedilatildeo 1a

Ed (pp 63-73) Rio de Janeiro Ciecircncias eCogniccedilatildeo

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Andrade LAB Silva EP (2005a) O conhecer e o conhecimento comentaacuterios sobre oviver e o tempo Cien Cogn 4 35-41Disponiacutevel em httpwwwcienciasecognicaoorg Andrade LAB Silva EP (2005b) Dialeacutetica diaacutelogo e conversa consonacircncias edissonacircncias epistemoloacutegicas entre Freire e Maturana Rev Ed Bras 55 (27) 51

Candland D (1993) Feral children amp clever animals reflections on human nature NewYork Oxford University PressDarwin CR (2002) A Origem das Espeacutecies Belo Horizonte Editora ItatiaiaDawkins R (2004) The Ancestors Tale A Pilgrimage to the Dawn of Evolution BostonHoughton Mifflin HarcourtDeleuze G Guattari (1992) O que eacute filosofia Rio de Janeiro Editora 34Eicheverria R (1994) La ontologia del lenguage Santiago do Chile Doacutelmen EdicionesFerreira ABH (1999) Dicionaacuterio Aureacutelio da Liacutengua Portuguesa 2a EdiccedilatildeoMaturana H (2000) O que se observa depende do observador Em Gaia - Uma teoria doconhecimento (pp 61-66) Satildeo Paulo Editora GaiaMaturana H (2001) Cogniccedilatildeo ciecircncia e vida cotidiana Belo Horizonte Editora UFMG

Maturana H (1997) A ontologia da realidade Belo Horizonte Editora UFMGMaturana H Podozis M (1992) Origen de las Especies por medio de la Deriva Natural mdasho La diversificacioacuten de los linajes a traveacutes de la conservacioacuten y cambio de los fenotiposontogeacutenicos Santiago do Chile Direccioacuten de Bibliotecas Archivos y MuseosMaturana H Varela F (1990) El aacuterbol del conocimiento las bases bioloacutegicas delconocimiento humano Madrid DebateMaturana H Varela F (1997) De maacutequinas e seres vivos Autopoiese - a Organizaccedilatildeo doVivo Porto Alegre Editora ArtmedNietzsche F (2006) Assim falava Zaratustra Trad Alex Marins Satildeo Paulo Editora MartinClaretPlatatildeo (1994) Craacutetilo diaacutelogo sobre a justeza dos nomes Versatildeo do grego prefaacutecio e notasdo Pe Dias Palmeira Lisboa Livraria Saacute da Costa EditoraPiaget J (1970) LrsquoEacutepistemologie Geacutenetique Paris Presses Universitaires de FrancePiaget J (1975) A equilibraccedilatildeo das estruturas cognitivas Rio de Janeiro Ed ZaharSavage-Rumbaugh S Lewin R (1994) Kanzi the ape at the brink of the human mind NewYork John Wiley amp SonsSearle J (1998) O misteacuterio da consciecircncia (Uema AYP Safatle V Trad) Satildeo PauloEditora Paz e TerraTrask RL (2006) Dicionaacuterio de linguagem e linguiacutestica (Ilari R Trad Adapt) SatildeoPaulo Ed ContextoVarela FJ Thompson E Rosch E (2003) A mente incorporada ciecircncias cognitivas e

experiecircncia humana Porto Alegre Editora ArtmedVianna B (2008) Desde Darwin Spock e a deriva natural Em Vianna B (Ed) Biologiada libertaccedilatildeo ciecircncia diversidade e responsabilidade Belo Horizonte Ed MazzaVianna B Goacutemez-Soriano R (2007) Grandes siacutemios em linguagem um criacutetica do conceitode evoluccedilatildeo agrave luz das abordagens sistecircmicasrdquo Em Anales del I Congreso Iberoamericano de

Antropologiacutea (versatildeo eletrocircnica) HavanaVieira AB (2001) Cogniccedilatildeo Em Enciclopeacutedia Einaudi vol 34 Lisboa Ed ImprensaNacional ndash Casa da Moedavon Foerster H (1994) Vision y conocimiento disfunciones de segundo ordine Em NuevasParadigmas Cultura y Subjectividad Dora Fried Schnitmann (Hg) Buenos Aires PaidosWall F (2007) Eu primata Porque somos como somos Satildeo Paulo Editora Schwarcz Ltda

Websterrsquos Ninth New Collegiate Dictionary 1986

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do que o organismo vecirc ldquosenterdquo e nomeia tais como cores sons e sensaccedilotildees (Von Foster1994)

Quais as consequecircncias desse entendimento para nossa discussatildeoA consequecircncia mais fundamental eacute a de que o mundo laacute fora com os seus objetos e

acontecimentos natildeo preacute-existem ao observador pois que eles natildeo satildeo entidades primaacuterias aoato de observar e portanto independentes da biologia do observador As caracteriacutesticas quesupostamente satildeo dadas agraves coisas mostram-se tambeacutem como caracteriacutesticas do observador Ascores natildeo estatildeo laacute fora independentes de nossa biologia mas tambeacutem natildeo estatildeo caacute dentroindependentes de nosso mundo cultural Se isso eacute assim nega-se tanto o realismo de ummundo predeterminado que o organismo eacute capaz de representar quanto o idealismo que tomaa percepccedilatildeo como uma projeccedilatildeo de um mundo interno predeterminado (Varela et al 2003)

Eacute com essa dupla negaccedilatildeo que se diz que os objetos natildeo antecedem agrave distinccedilatildeo quedeles eacute feita pelo observador Os objetos surgem na praacutexis do viver do observador e o que eacuteessa praacutexis do viver humano senatildeo as coordenaccedilotildees de coordenaccedilotildees de accedilotildees que realizamosem nosso cotidiano

Seguindo esta linha de raciociacutenio o observar surge no domiacutenio das coerecircnciasexperienciais inerentes ao proacuteprio viver Ao darmos ecircnfase ao processo deslocamos a posiccedilatildeodo observador de ente corporificado para ente operacional

Se o leitor aceitou que eacute impossiacutevel a este ente operacional fazer referecircncia a algo forade seu domiacutenio de experiecircncias fora de sua proacutepria histoacuteria deduz-se que os objetos o corpoe suas partes e por extensatildeo o proacuteprio ldquoeurdquo surgem no operar das coordenaccedilotildees decoordenaccedilotildees condutuais consensuais ou seja na linguagem Eacute importante notar que emboraenclausurados em nossa proacutepria biologia noacutes soacute nos tornamos observadores na presenccedila dooutro ao partilharmos do processo recursivo e transgeracional que eacute o viver na linguagem

O importante eacute que noacutes repetimos esse processo conservado transgeracionalmente emcada ontogenia Assim quando nascemos e nos inserimos no mundo atraveacutes das primeirastriangulaccedilotildees criadas pelo apontar da matildee no sentido lato deste termo para um objeto quepode ser o nosso corpo ou parte dele jaacute estamos na linguagem

A necessidade do outro fundado na relaccedilatildeo jaacute nos coloca frente ao desafio deresponder agrave segunda questatildeo anteriormente formulada qual seja como os laccedilos de uma redelinguiacutestica podem criar em noacutes o que em noacutes eacute tatildeo intimo - a autoconsciecircncia

A Biologia do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode serentendido como uma co-emergecircncia da experiecircncia de um mundo vivido e da identidade doeu vivente (Varela et al 2003) No entanto haacute de se fazer uma ressalva a experiecircncia eacuteclaramente um evento pessoal mas isso natildeo significa que seja um evento privado no sentidode algum tipo de sujeito isolado que caiu de paacutera-quedas sobre um mundo objetivo

previamente dado Se aceitarmos a ressalva que a experiecircncia eacute tanto um evento pessoalporque necessariamente auto-referencial mas tambeacutem coletivo porque necessariamenterelacional poderemos compreender o surgimento de seres vivos capazes de fazer referecircnciaao mundo e se auto-referenciar sem termos de apelar para uma transcendecircncia ou para aimanecircncia de um suposto ldquoeurdquo independente e centro desta vivecircncia (Varela et al 2003)

Seria este o entendimento de Nietzsche (que noacutes recusamos a acreditar) o corpo queprocede como um ldquoeurdquo sem precisar falar

9 Referencias bibliograacuteficas

Andrade LAB (2010) Vida cogniccedilatildeo e linguagem Cap 5 Em Aranha G Sholl-Franco

A (orgs) Caminhos da Neuroeducaccedilatildeo 1a

Ed (pp 63-73) Rio de Janeiro Ciecircncias eCogniccedilatildeo

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Submetido em 07102010 | Aceito em 05122010 | ISSN 1806-5821 ndash Publicado on line em 15 de agosto de 2010

7242019 ANDRADE Luis Antocircnio (2010) Corporeidade Cogniccedilatildeo e Linguagempdf

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Andrade LAB Silva EP (2005a) O conhecer e o conhecimento comentaacuterios sobre oviver e o tempo Cien Cogn 4 35-41Disponiacutevel em httpwwwcienciasecognicaoorg Andrade LAB Silva EP (2005b) Dialeacutetica diaacutelogo e conversa consonacircncias edissonacircncias epistemoloacutegicas entre Freire e Maturana Rev Ed Bras 55 (27) 51

Candland D (1993) Feral children amp clever animals reflections on human nature NewYork Oxford University PressDarwin CR (2002) A Origem das Espeacutecies Belo Horizonte Editora ItatiaiaDawkins R (2004) The Ancestors Tale A Pilgrimage to the Dawn of Evolution BostonHoughton Mifflin HarcourtDeleuze G Guattari (1992) O que eacute filosofia Rio de Janeiro Editora 34Eicheverria R (1994) La ontologia del lenguage Santiago do Chile Doacutelmen EdicionesFerreira ABH (1999) Dicionaacuterio Aureacutelio da Liacutengua Portuguesa 2a EdiccedilatildeoMaturana H (2000) O que se observa depende do observador Em Gaia - Uma teoria doconhecimento (pp 61-66) Satildeo Paulo Editora GaiaMaturana H (2001) Cogniccedilatildeo ciecircncia e vida cotidiana Belo Horizonte Editora UFMG

Maturana H (1997) A ontologia da realidade Belo Horizonte Editora UFMGMaturana H Podozis M (1992) Origen de las Especies por medio de la Deriva Natural mdasho La diversificacioacuten de los linajes a traveacutes de la conservacioacuten y cambio de los fenotiposontogeacutenicos Santiago do Chile Direccioacuten de Bibliotecas Archivos y MuseosMaturana H Varela F (1990) El aacuterbol del conocimiento las bases bioloacutegicas delconocimiento humano Madrid DebateMaturana H Varela F (1997) De maacutequinas e seres vivos Autopoiese - a Organizaccedilatildeo doVivo Porto Alegre Editora ArtmedNietzsche F (2006) Assim falava Zaratustra Trad Alex Marins Satildeo Paulo Editora MartinClaretPlatatildeo (1994) Craacutetilo diaacutelogo sobre a justeza dos nomes Versatildeo do grego prefaacutecio e notasdo Pe Dias Palmeira Lisboa Livraria Saacute da Costa EditoraPiaget J (1970) LrsquoEacutepistemologie Geacutenetique Paris Presses Universitaires de FrancePiaget J (1975) A equilibraccedilatildeo das estruturas cognitivas Rio de Janeiro Ed ZaharSavage-Rumbaugh S Lewin R (1994) Kanzi the ape at the brink of the human mind NewYork John Wiley amp SonsSearle J (1998) O misteacuterio da consciecircncia (Uema AYP Safatle V Trad) Satildeo PauloEditora Paz e TerraTrask RL (2006) Dicionaacuterio de linguagem e linguiacutestica (Ilari R Trad Adapt) SatildeoPaulo Ed ContextoVarela FJ Thompson E Rosch E (2003) A mente incorporada ciecircncias cognitivas e

experiecircncia humana Porto Alegre Editora ArtmedVianna B (2008) Desde Darwin Spock e a deriva natural Em Vianna B (Ed) Biologiada libertaccedilatildeo ciecircncia diversidade e responsabilidade Belo Horizonte Ed MazzaVianna B Goacutemez-Soriano R (2007) Grandes siacutemios em linguagem um criacutetica do conceitode evoluccedilatildeo agrave luz das abordagens sistecircmicasrdquo Em Anales del I Congreso Iberoamericano de

Antropologiacutea (versatildeo eletrocircnica) HavanaVieira AB (2001) Cogniccedilatildeo Em Enciclopeacutedia Einaudi vol 34 Lisboa Ed ImprensaNacional ndash Casa da Moedavon Foerster H (1994) Vision y conocimiento disfunciones de segundo ordine Em NuevasParadigmas Cultura y Subjectividad Dora Fried Schnitmann (Hg) Buenos Aires PaidosWall F (2007) Eu primata Porque somos como somos Satildeo Paulo Editora Schwarcz Ltda

Websterrsquos Ninth New Collegiate Dictionary 1986

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Candland D (1993) Feral children amp clever animals reflections on human nature NewYork Oxford University PressDarwin CR (2002) A Origem das Espeacutecies Belo Horizonte Editora ItatiaiaDawkins R (2004) The Ancestors Tale A Pilgrimage to the Dawn of Evolution BostonHoughton Mifflin HarcourtDeleuze G Guattari (1992) O que eacute filosofia Rio de Janeiro Editora 34Eicheverria R (1994) La ontologia del lenguage Santiago do Chile Doacutelmen EdicionesFerreira ABH (1999) Dicionaacuterio Aureacutelio da Liacutengua Portuguesa 2a EdiccedilatildeoMaturana H (2000) O que se observa depende do observador Em Gaia - Uma teoria doconhecimento (pp 61-66) Satildeo Paulo Editora GaiaMaturana H (2001) Cogniccedilatildeo ciecircncia e vida cotidiana Belo Horizonte Editora UFMG

Maturana H (1997) A ontologia da realidade Belo Horizonte Editora UFMGMaturana H Podozis M (1992) Origen de las Especies por medio de la Deriva Natural mdasho La diversificacioacuten de los linajes a traveacutes de la conservacioacuten y cambio de los fenotiposontogeacutenicos Santiago do Chile Direccioacuten de Bibliotecas Archivos y MuseosMaturana H Varela F (1990) El aacuterbol del conocimiento las bases bioloacutegicas delconocimiento humano Madrid DebateMaturana H Varela F (1997) De maacutequinas e seres vivos Autopoiese - a Organizaccedilatildeo doVivo Porto Alegre Editora ArtmedNietzsche F (2006) Assim falava Zaratustra Trad Alex Marins Satildeo Paulo Editora MartinClaretPlatatildeo (1994) Craacutetilo diaacutelogo sobre a justeza dos nomes Versatildeo do grego prefaacutecio e notasdo Pe Dias Palmeira Lisboa Livraria Saacute da Costa EditoraPiaget J (1970) LrsquoEacutepistemologie Geacutenetique Paris Presses Universitaires de FrancePiaget J (1975) A equilibraccedilatildeo das estruturas cognitivas Rio de Janeiro Ed ZaharSavage-Rumbaugh S Lewin R (1994) Kanzi the ape at the brink of the human mind NewYork John Wiley amp SonsSearle J (1998) O misteacuterio da consciecircncia (Uema AYP Safatle V Trad) Satildeo PauloEditora Paz e TerraTrask RL (2006) Dicionaacuterio de linguagem e linguiacutestica (Ilari R Trad Adapt) SatildeoPaulo Ed ContextoVarela FJ Thompson E Rosch E (2003) A mente incorporada ciecircncias cognitivas e

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