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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Instituto de Letras ROSMARI DE MATOS ROLIM REDAÇÃO NO CURSO PRÉ-VESTIBULAR POPULAR Oportunidades e possibilidades de práticas de ensino/aprendizagem de língua numa perspectiva de ação social pela linguagem Porto Alegre 2014

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    Instituto de Letras

    ROSMARI DE MATOS ROLIM

    REDAO NO CURSO PR-VESTIBULAR POPULAR

    Oportunidades e possibilidades de prticas de ensino/aprendizagem de lngua numa

    perspectiva de ao social pela linguagem

    Porto Alegre

    2014

  • ROSMARI DE MATOS ROLIM

    REDAO NO CURSO PR-VESTIBULAR POPULAR

    Oportunidades e possibilidades de prticas de ensino/aprendizagem de lngua numa

    perspectiva de ao social pela linguagem

    Trabalho de Concluso de Curso de

    Licenciatura em Letras do Instituto de

    Letras da Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul.

    Orientador: Prof. Pedro de Moraes Garcez, PhD

    Porto Alegre

    2014

  • A todos os alunos e professores que me permitiram aprender a ensinar e ensinar a aprender.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao meu esposo, Alexandre, pelo incentivo e apoio, determinantes para que eu

    pudesse continuar esta jornada. Sem seu amor, cuidado e parceria, a concluso

    deste trabalho no seria possvel.

    minha filha Tauany, pelo apoio e pela compreenso nos momentos de

    ausncia a que as atividades da graduao me obrigaram.

    Ao meu orientador, Pedro de Moraes Garcez, por todas as oportunidades de

    aprendizagem que me proporcionou e pela generosidade em dar suporte aos

    projetos que visam construo de conhecimentos sobre educao lingustica.

    Sua prtica tem sido um exemplo de equilbrio entre o necessrio rigor

    acadmico e a desejvel disponibilidade para o dilogo que, no meu

    entendimento, devem orientar a relao entre educador e educando.

    Aos meus amigos e irmos de corao, Rosane Marques e Adriano Marinho,

    pelo constante incentivo, pelo suporte emocional e material, pela permanente

    disponibilidade para a construo de conhecimento sobre educao e pelas suas

    anlises realistas de conjuntura que garantiram que eu no me perdesse nesta

    caminhada.

    Aos professores que estiveram ao meu lado durante a maior parte da

    graduao, me apoiando quando estive em dificuldades, me orientando quando

    estive confusa, fazendo as crticas necessrias quando estive equivocada,

    criando oportunidades para aprendizagem quando estive curiosa sobre algo e,

    mais que tudo, sendo exemplares pelo comprometimento com a educao

    lingustica: Luciene Juliano Simes, Pedro de Moraes Garcez e Maria Alice

    Kauer.

    Aos colegas da graduao e queridos amigos Priscila Oliveira Monteiro,

    Isabel dos Santos, Andr Ribeiro, Jacqueline Oliveira (in memoriam), nia Dris,

    Jeferson Tenrio e Vernica Roque, pelas conversas desafiantes, pelas parcerias

    em trabalhos e projetos, pelos questionamentos e crticas, pela disposio em

    debater minhas questes e compartilhar as suas, pelos cafs, pelos abraos e

    pelos h braos. Esses colegas representam o ponto no qual a objetividade e a

    afetividade se encontram nos espaos de aprendizagem.

  • famlia PEAC, que to generosamente me acolheu e que tanto me ensinou.

    Agradeo especialmente ao Jos Humberto Borges, ao Felipe Molski, ao Osvaldo

    Lima, Jssica Fraga, Maria Fernanda Viegas, ao Matheus Rosa e velyn

    Souza, pessoas fundamentais na minha trajetria de aprendizagem como

    professora do curso, pelo suporte no cotidiano das aulas, os questionamentos, os

    contrapontos, as crticas, o apoio pedaggico, as trocas sobre a prtica docente

    ou o auxlio luxuoso em momentos de dificuldade. Estendo esse agradecimento

    especial a todos dessa famlia que foram meus alunos, e que so a razo da

    produo deste trabalho.

  • Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando intervenho, intervindo educo e me

    educo. Pesquiso para conhecer o que ainda no conheo e comunicar ou anunciar a novidade.

    (FREIRE, 1996)

  • RESUMO

    Este trabalho apresenta a trajetria de uma acadmica construindo a identidade

    como professora em sua primeira experincia docente. O propsito dessa

    apresentao contribuir para os registros de prticas de educao lingustica e

    compartilhar conhecimentos que possam ser relevantes aos acadmicos e

    professores de Letras. A exposio dessa memria pretende suscitar reflexes,

    evidenciar dificuldades e questionar mitos e prticas tradicionais de ensino de

    Lngua Portuguesa e de Redao, apontando possibilidades de boas prticas. O

    relato tem incio com a experincia da acadmica de Letras descobrindo-se como

    educadora a partir de uma questo colocada em uma disciplina do currculo da

    licenciatura. Ao aplicar os conhecimentos construdos a partir desse perodo de sua

    formao, como professora de Redao em um curso pr-vestibular, evidencia-se o

    conflito entre a viso do ensino dessa educadora e as expectativas de aprendizagem

    dos alunos. A constatao de que esse conflito engessa a prtica de alunos e de

    professores levou elaborao de uma proposta didtica que, ao colocar os alunos

    em ao pela linguagem, criou oportunidades de superao do medo da escrita. O

    detalhamento da proposta, alguns resultados de sua aplicao e as consideraes

    sobre o desenvolvimento do processo encerram a exposio.

    Palavras-chave: Educao lingustica. Letramento. Lngua portuguesa. Redao. Uso da linguagem

  • RESUMEN

    Este trabajo presenta la trayectoria de una acadmica construyendo la identidad

    como profesora en su primera experiencia docente. El propsito de esa presentacin

    es contribuir a los registros de prcticas de enseanza lingstica y compartir

    conocimientos que puedan ser relevantes a los acadmicos y profesores de Letras.

    Esta exposicin memorial pretende promover reflexiones, evidenciar dificultades y

    cuestionar mitos y prcticas tradicionales de la enseanza de Lengua Portuguesa y

    de Redaccin, sealando buenas prcticas posibles. El relato comienza con la

    experiencia de la acadmica de Letras descubrindose como educadora a partir de

    una cuestin puesta en una asignatura del currculo de la licenciatura. Al emplear los

    conocimientos construidos a partir de este periodo de la formacin como profesora

    de Redaccin en un curso preuniversitario, qued evidente el conflicto entre la visin

    de la enseanza de esta educadora y las expectativas de aprendizaje de los

    estudiantes. El hecho de que esto detiene la prctica de los estudiantes y profesores

    llev al desarrollo de una propuesta didctica que, al poner a los estudiantes en

    accin por el lenguaje, cre oportunidades de superar el miedo a la escritura. Los

    detalles de la propuesta, algunos resultados de su aplicacin y las consideraciones

    sobre el desarrollo del proceso cierran la exposicin.

    PALABRAS CLAVE: Enseanza lingstica; Alfabetismo; Lengua Portuguesa; Redaccin; Uso del lenguaje.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    PEAC - Projeto Educacional Alternativa Cidad

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ................................................................................................... 11

    2 A GRADUANDA EM LETRAS SE DESCOBRE COMO EDUCADORA ......... 13

    2.1 QUAL O PROPSITO DE ENSINAR LNGUA PORTUGUESA? ................ 15

    2.2 ENQUADRAMENTOS DA EDUCAO LINGUSTICA NA DEFINIO DA

    IDENTIDADE DOCENTE ...................................................................................... 16

    3 ENQUADRAMENTO DA LINGUAGEM COMO OBSTCULO

    APRENDIZAGEM.................................................................................................. 18

    3.1 ENCARANDO O CONFLITO DE ENQUADRAMENTO ................................. 19

    3.2 IMPACTO DO CONFLITO NA APRENDIZAGEM .......................................... 20

    4 PEDAGOGIA DO FAZER PELA LINGUAGEM: OBSERVAES DE UMA

    PROFESSORA APRENDIZ ................................................................................. 22

    4.1 PEDAGOGIA DAS DICAS: METFORA DO CONDUTO APLICADA ........ 22

    4.2 O IMPACTO DA PEDAGOGIA DAS DICAS NA APRENDIZAGEM DO ALUNO

    DE CLASSE POPULAR ....................................................................................... 23

    5 DO TEMOR DE ESCREVER CURIOSIDADE EPISTEMOLGICA SOBRE A

    ESCRITA .............................................................................................................. 25

    5.1 DEFININDO O ROTEIRO DE UM PROJETO DE DOCNCIA ...................... 25

    5.1.1 Percurso das reflexes sobre a escrita ................................................... 26

    5.1.1.1 Memria de letramento: um passo na direo da confiana em si e na

    professora ............................................................................................................. 28

    5.1.2 Percurso da interao ............................................................................... 30

    5.1.2.1 Dilogo mediado pelo texto entre professor-leitor-avaliador e aluno-autor-

    avaliado ................................................................................................................. 32

    5.1.3 Percurso da coeso ................................................................................. 33

    6 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................ 34

    7 REFERNCIAS ............................................................................................... 39

  • 11

    1 INTRODUO

    Este trabalho o resultado das observaes e experimentaes de uma

    aluna curiosa que se tornou professora para descobrir como superar o

    analfabetismo funcional1. Esse tema era frequentemente pautado nas mdias de

    massa em 2005, quando resolvi voltar a estudar para completar o ensino mdio

    e, depois, tentar entrar na universidade. A minha curiosidade em relao ao

    tema se transformou em um propsito de aprendizagem como professora por

    algumas razes. Em primeiro lugar, o analfabetismo funcional era

    frequentemente mencionado como um problema dos alunos das classes

    populares2; alunos, portanto, com a mesma origem de classe que a minha. Outra

    que eu tenho uma longa histria de participao social ligada educao

    popular3, que comeou na segunda fase do ensino fundamental pelas mos de

    professores influenciados pela Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1987) e pela

    Teologia da Libertao, o que faz com que eu sempre me sinta mobilizada a agir

    em resoluo de questes que tm a ver com acesso educao. Alm disso, na

    poca em que recomecei a estudar, minha filha cursava o ensino fundamental

    numa escola pblica na comunidade de periferia onde morvamos, e eu sentia o

    seu sofrimento em relao aprendizagem da disciplina e suas queixas de que

    ela no entendia as explicaes da professora por no saber portugus. A

    ltima talvez tenha sido a razo mais relevante, j que eu no tinha

    conhecimento suficiente sobre como ensinar algum a escrever bem e me

    sentia frustrada por no poder ajudar a resolver o problema.

    Entrei no curso de Letras sob a influncia da visibilidade que a questo do

    analfabetismo funcional ganhava nos veculos de comunicao de massa. O

    assunto passou a ser pautado frequentemente nos noticirios, que apresentavam

    1 O termo usado aqui no sentido dado pelo senso comum a partir de sua popularizao ao ser trazido do meio acadmico ao domnio pblico pela

    imprensa nacional. Esse entendimento no concebe a leitura e a escrita como prticas sociais, mas como conhecimento escolar que garante a

    funcionalidade do indivduo na sociedade, ou seja, que ele esteja qualificado para exercer funes no mercado de trabalho.

    2 Como no existe um consenso mnimo sobre o que define as classes sociais no Brasil, este termo usado neste trabalho como se referindo s

    classes C, D e E, conforme classificao por renda feita pelo IBGE.

    3 A Educao Popular tem um longo percurso no Brasil, a partir de um conjunto de prticas e experincias que se forjaram junto s classes

    populares, no cho das fbricas, em sindicatos, nas comunidades de base e igrejas, nas universidades, no campo, na cidade e na floresta, com os

    mais diferentes grupos, os trabalhadores, especialmente os em situao de pobreza, excludos de seus direitos bsicos como tambm em

    experincias que se realizam no mbito da educao formal e da institucionalidade de governos municipais, estaduais e federal. Trecho retirado do

    MARCO DE REFERNCIA DA EDUCAO POPULAR PARA AS POLTICAS PBLICAS, disponvel em:

    http://conae2014.mec.gov.br/images/pdf/MarcodeReferencia.pdf

  • 12

    dados cada vez mais alarmantes em relao ao nmero de analfabetos

    funcionais no pas, em artigos de opinio, que alardeavam o caos na educao, e

    em debates com especialistas que, na maioria das vezes, pareciam terminar em

    consensos de que o problema de fundo era que os jovens de hoje no leem

    (referindo-se leitura literria). Esse consenso ganhava fora nos debates das

    redes sociais, se tornando aparentemente um consenso na sociedade. Ento,

    mesmo que, em alguns momentos, a realidade me parecesse ser diferente

    daquela viso do consenso, eu tambm tinha essa crena de que, por meio do

    estmulo leitura literria, qualquer professor poderia lograr xito na tarefa de

    combater o analfabetismo funcional. Sendo assim, eu s precisava descobrir

    como ter sucesso onde outros no tiveram. No parecia to difcil.

    Logo, porm, percebi que ensinar Lngua Portuguesa exigia saberes que iam

    bem alm do horizonte das minhas expectativas. Nas universidades, muitas

    pessoas talvez desconheam que alunos vindos das classes populares como eu

    sabem muito pouco ou nada sobre como funciona a vida acadmica. Ento,

    minha formao foi, em certo sentido, uma aventura de explorao de um mundo

    novo. Nessa aventura, uma das coisas mais fascinantes que descobri foi uma

    cincia da qual eu nunca ouvira falar, a Lingustica. Foi com essa descoberta que

    eu pude ver toda a complexidade dos saberes necessrios ao professor que tem

    como tarefa oferecer ao aluno oportunidades de desenvolver as competncias

    necessrias para a efetiva participao na sociedade em interaes que exijam o

    uso da escrita. Depois disso, como eu poderia continuar acreditando que bastaria

    ser uma excelente formadora de leitores para que os alunos fossem

    competentes na escrita de qualquer texto que necessitassem ou desejassem

    produzir?

    Ao entrar no Projeto Educacional Alternativa Cidad (doravante PEAC), me vi

    diante do desafio de ensinar Redao em um curso pr-vestibular popular,

    lidando com questes resultantes do conflito entre as prticas tradicionais de

    ensino da disciplina e aquilo que eu considero como boas prticas de ensino4.

    Isso me obrigou a assumir a responsabilidade de pensar metodologicamente.

    Ento, passei a sistematizar uma proposta didtica tendo como norte que:

    4 Prates (2014), no captulo 2, apresenta contextualizao histrica dos pr-vestibulares populares, mostrando desafios epistemolgicos que esses cursos enfrentam em relao aos ideais de educao popular. Recomendo a leitura aos que quiserem ter uma viso mais ampla do contexto em que se d essa

    experincia que relato neste trabalho.

  • 13

    Quanto produo escrita, a grande liberao da escola deve ser que ela possui funes comunicativas, forma de dizer, meio para que a palavra de cada um tenha lugar no debate social letrado. Dessa aprendizagem funcional deriva, em ltima anlise, a constituio da autoria: enquanto o aluno no reconhecer as funes para escrita em sua vida, a escrita no ser sua. (SECRETARIA DE EDUCAO DO ESTADO RIO GRANDE DO SUL, p. 62, 2009)

    Com este trabalho de concluso de curso, pretendo encerrar este meu ciclo

    de formao compartilhando as experincias e reflexes que constituem o que ,

    hoje, essa proposta didtica. Fao isso no por entender que tal proposta possa

    ser tomada como modelo pedaggico, mas por achar que o registro e a reflexo,

    isto , o conhecimento, desse percurso pode ter relevncia para muitos

    graduandos e professores que anseiam como eu por relatos de prticas de

    educao lingustica na rea de Letras.

    Essa trajetria de uma professora aprendiz com uma ideia na cabea e

    muitos obstculos a superar comea na seo 2, a seguir, em que apresento as

    linhas gerais de construo da identidade docente da acadmica de Letras que

    se descobre educadora. Depois, na seo 3, reflito sobre a observao, reflexo

    e interveno dessa professora, em sua primeira experincia docente, ao se

    deparar com um conflito entre a sua viso de ensino e as expectativas de

    aprendizagem dos alunos. Mais adiante, na seo 4, apresento o engendramento

    de uma proposta didtica que, ao colocar os alunos em ao pela linguagem,

    possibilita a superao do medo da escrita. Chego, ento, seo 5, em que

    fao a delimitao das motivaes e objetivos, o detalhamento dos percursos

    planejados e a apresentao de alguns resultados da aplicao desse projeto de

    prticas de leitura, escrita e resoluo de problemas,5 com foco no estudo do

    gnero redao de vestibular. Encerro este relato com breves consideraes

    finais.

    2 A GRADUANDA EM LETRAS SE DESCOBRE COMO EDUCADORA

    Ao entrar no curso de Letras, minha expectativa com relao formao de

    professores era a de encontrar respostas para os problemas no ensino e

    aprendizagem da Lngua Portuguesa que levavam ao analfabetismo funcional.

    5 Ler, escrever e resolver problemas - Priorizar o ensino da leitura, da escrita e da resoluo de problemas requer considerar essas trs

    competncias como resultado de prticas indissociveis e fundamentais para a insero do educando no mundo e sua circulao autnoma e

    responsvel por diferentes reas de atuao humana [...](SECRETARIA DE EDUCAO DO ESTADO RIO GRANDE DO SUL, p. 47, 2009)

  • 14

    Eu esperava desenvolver as competncias necessrias para ser uma professora

    capaz de ensinar a ler e escrever o portugus com autonomia. Eu no tinha

    nenhuma clareza sobre o que seriam essas competncias de ensinar a ler e

    escrever, mas tinha um claro entendimento sobre meu papel como educadora na

    autonomia do educando, devido minha identificao com as palavras de Freire

    (1996):

    No importa com que faixa etria trabalhe o educador ou a educadora. O nosso um trabalho realizado com gente, mida, jovem ou adulta, mas gente em permanente processo de busca. Gente formando-se, mudando, crescendo, reorientando-se, melhorando, mas, porque gente, capaz de negar os valores, de distorcer-se, de recusar, de transgredir. No sendo superior nem inferior a outra prtica profissional, a minha, que a prtica docente, exige de mim um alto nvel de responsabilidade tica de que a minha prpria capacitao cientfica faz parte. (p. 144)

    Em razo daquela falta de clareza, talvez, eu tinha a convico, que parece

    ser compartilhada por grande parte da sociedade brasileira, de que o

    conhecimento acadmico necessrio minha habilitao me tornaria

    compulsoriamente capacitada para ensinar qualquer pessoa a ler e escrever de

    verdade. Essa convico foi desaparecendo enquanto eu avanava nas etapas

    do curso, pois quantas mais definies se apresentavam para conceitos

    fundamentais como leitura, escrita, norma, lngua, linguagem, ensino,

    aprendizagem, etc., menos eu conseguia apreender o objeto de ensino para o

    qual estava me habilitando. Os enquadramentos dados a esses conceitos, tanto

    nos textos tericos quanto nas reflexes dos professores e alunos, pareciam

    ignorar os contextos de ensino e aprendizagem.

    Nas conversas entre colegas da licenciatura, debatamos frequentemente

    sobre prticas de ensino de Lngua Portuguesa. Nesses debates, um dos tpicos

    mais polmicos era o entendimento de cada de um ns sobre qual era o objeto

    de ensino dessa disciplina. Entre tantas abordagens diferentes, eu conseguia

    separar os meus colegas em dois grupos. O primeiro grupo era formado por

    graduandos que sabiam exatamente ou pareciam saber qual objeto de ensino

    se nos apresentava, a norma culta, que eles reconheciam como um conjunto de

    determinadas formas e regras. O segundo grupo era formado pelos graduandos

    para os quais, como eu, a norma culta continuava sendo uma abstrao, apesar

    da formao extremamente qualificada que reconhecamos receber. Isso gerava

    certo sentimento de incapacidade antecipada em alguns de ns, principalmente

  • 15

    entre os que vnhamos das classes populares. Por causa disso, de certo modo,

    experimentvamos um sentimento de fracasso como professores antes mesmo

    do exerccio da profisso. Aquele mesmo sentimento que conhecamos bastante

    bem da nossa histria escolar. Imagino que esse mesmo sentimento seja o

    motivo pelo qual alguns colegas decidiram dedicar-se apenas ao ensino de

    Literatura, justificando que no se sentiam preparados para a responsabilidade

    de ensinar gramtica. Eu tambm no me sentia preparada. Mesmo assim,

    continuava buscando respostas. Entretanto, foi a partir de uma pergunta que um

    professor me deu a oportunidade de mudar a minha perspectiva sobre ensino e

    aprendizagem de lngua.

    2.1 QUAL O PROPSITO DE ENSINAR LNGUA PORTUGUESA?

    Qual o propsito de ensinar Lngua Portuguesa? Essa pergunta feita no

    primeiro dia de aula da disciplina de Lingustica e Ensino e coloca os professores

    em formao diante da necessidade de pensar sobre o que a lngua que se

    ensina e se aprende na escola. Depois de passado o susto inicial, pois a

    atividade consistia de cada aluno elaborar sua resposta por escrito para entreg-

    la, me preocupei em elaborar a explicao certa. Dizia-se entre os alunos que o

    professor era muito exigente, por isso no queria que ele pensasse que eu no

    era capaz de expressar uma opinio consistente sobre o assunto. Sentia que s

    poderia dar uma resposta razovel a essa pergunta se conseguisse, antes,

    saber com certeza o que eu estava entendendo como a Lngua Portuguesa do

    enunciado.

    De qual lngua ele est falando? a lngua sem fala de Saussure? No.

    Aps a leitura do Curso de Lingustica Geral, apreendi a lngua delimitada por

    Saussure como um corpus de estudo cientfico, no como objeto de estudo

    escolar, pois falta a ela a dimenso social. Ento, seria a lngua da variao

    lingustica? Tambm, no, pois os alunos j conhecem as variedades que

    usam, no havendo necessidade de ir escola para aprender seu prprio modo

    de falar (ouvi ou li isso em algum momento da graduao, e faz todo o sentido

    desde ento; mesmo que eu no consiga lembrar quem o autor). Tambm no

    poderia ser a lngua das gramticas, pois, na disciplina de Viso Crtica da

    Gramtica, analisamos diversas gramticas da Lngua Portuguesa e constatamos

  • 16

    como elas diferenciam-se umas das outras, tanto no contedo gramatical que

    abordam quanto nas prescries de usos que fazem. A lngua que deve ser

    praticada com liberdade a partir da gramtica internalizada do aluno como

    defende Luft (1985)? No, essa resposta tambm no me agradava. Apesar do

    respeito que tenho por Luft e de reconhecer a relevncia de suas reflexes sobre

    o ensino de lngua, tenho a sensao de que a sua proposta no parte da

    percepo de um aluno de classe popular como eu, mas de um aluno que

    cresceu em meio letrado (posteriormente, neste trabalho, explicarei melhor essa

    crtica). Finalmente, pensei que o mais correto seria responder que o propsito

    ensinar a norma, definida, por alguns professores, como a fala encontrada no

    meio urbano e a escrita que se encontra nos jornais, revistas, etc.

    No lembro o que respondi naquele texto entregue ao professor no primeiro

    encontro de Lingustica e Ensino, mas devo ter optado por tomar a norma culta

    como objeto de ensino. Fiz isso por ser uma pessoa escolarizada e, como aluna,

    imaginar que, se um professor pergunta, por que existe uma resposta certa.

    Aquela no era, entretanto, uma resposta que me satisfazia completamente. A

    razo dessa insatisfao que a dvida sobre a existncia, de fato, de uma

    norma culta como referncia de bem escrever ou bem falar j circulava entre

    os graduandos. Ao nos depararmos com os textos onde supostamente ficaria

    evidenciada a norma culta (jornais, revistas, etc.), depois de estarmos

    apropriados dos conhecimentos necessrios para analis-los linguisticamente,

    percebamos que a maioria deles continha muitos problemas de expresso

    lingustica que no podiam se apresentar, por exemplo, nas provas de redao

    dos concursos vestibulares.

    2.2 ENQUADRAMENTO DA EDUCAO LINGUSTICA NA DEFINIO DA

    IDENTIDADE DOCENTE

    Ao longo do semestre de estudos, me apropriei de conhecimentos que

    comearam a trazer luz a muitos problemas de enquadramento que eu percebia,

    mas sem muita clareza, sobre conceitos cujo entendimento fundamental na

    formao e na prtica de professores de Portugus. Com o professor Britto

    (2004, p. 120) aprendi que [...] considerando equivocada e ideolgica a

    associao entre norma culta e escrita e a inexistncia de uma modalidade

  • 17

    unificadora das variedades faladas do portugus, no faz sentido insistir que o

    objetivo da escola ensinar o chamado portugus padro. A leitura desse texto

    me libertou daquele sentimento de incapacidade antecipada, do qual tratei acima,

    pois percebi que, se eu no estava apreendendo o objeto de ensino da disciplina

    como uma determinada norma era por que, talvez, isso no fizesse sentido, no

    por eu ser incapaz. Com a professora Soares (2003), aprendi sobre a

    necessidade de ressignificar o conceito de alfabetizao e tive meu primeiro

    contato com a palavra letramento, apresentada no texto como sinnimo de

    alfabetizao funcional, que foi o que me motivou a querer aprender a ensinar

    portugus. Com a professora Kleiman (1995, p. 19), aprendi que letramento

    um conjunto de prticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simblico

    e enquanto tecnologia, em contexto especfico, para objetivos especficos e que

    as prticas sociais que usam a escrita no contexto especfico da escola so

    somente mais um tipo dessas prticas. Nisso, entre tantas outras coisas, aprendi

    que o bom professor de uma disciplina de ensino de lngua cria oportunidades

    de aprendizagem para que o aluno possa fazer, na vida, aquilo que desejar ou

    necessitar fazer por meio da escrita. Isso mudou a minha perspectiva sobre

    ensino de lngua.

    Dessa nova perspectiva, passei a pensar que no importa ao professor em

    formao descobrir acima de tudo qual o contedo lingustico que constitui a

    disciplina, mas como poder oferecer aos seus alunos oportunidades de

    aprendizagem que os coloque em ao pela linguagem de forma refletida com o

    propsito de garantir-lhes o acesso escrita e aos discursos que se organizam a

    partir dela. (BRITTO, 2004, p. 120, nfase no original). Passei a considerar que

    os objetos da escrita so os textos de gneros discursivos que circulam nas

    diversas esferas de atividade dos cidados de sociedades complexas

    contemporneas e que o analfabeto funcional no um indivduo desqualificado

    para cumprir suas funes numa sociedade centrada na escrita, mas algum que

    no teve acesso s prticas de leitura e escrita necessrias para agir socialmente

    mediante alguns desses objetos. Foi preciso, para essa minha mudana de

    viso, superar a crena de que h um contedo lingustico dado a priori, o qual

    eu deveria apreender em sua completude para poder ensin-lo. Superada essa

    crena, passei a me reconhecer, ento, como uma educadora que precisa criar

    oportunidades de aprendizagem que preparem o aluno para a participao social

  • 18

    em contextos que exijam o uso da escrita como tecnologia e como sistema

    simblico. Apesar de ter muito a aprender sobre boas prticas de ensino, isso me

    fez sentir bastante capaz de encarar o desafio de dar aulas. Logo em seguida,

    assumi a disciplina de Redao numa turma do PEAC.

    Depois de cada aula de Lingustica e Ensino, fazamos acalorados debates

    entre alguns alunos sobre as provocaes colocadas pelo professor naquele dia.

    Costumvamos dizer que ele fazia sair fumacinha da nossa cabea, nos fazia

    usar o crebro at ele doer, e isso era muito bom, pois aprendamos muito. Por

    isso, quando um aluno me disse a mesma coisa ao final de uma aula, comecei a

    pensar que a minha experincia e reflexes no processo de aprender a ensinar

    pudessem ter relevncia suficiente para serem compartilhadas neste trabalho6.

    3 ENQUADRAMENTO DA LINGUAGEM COMO OBSTCULO

    APRENDIZAGEM

    Quando comecei a dar aulas no PEAC, meu projeto previa uma abordagem

    interacional dos contedos, diferentemente do ensino tradicional, que no

    considera a escrita da redao como atividade de interao entre sujeitos

    situados em contexto definido. Apesar da pouca experincia, eu intua que

    haveria conflitos entre a minha proposta de aula e aquilo que os alunos

    reconhecem como aula de Redao (talvez restrita a dicas de como escrever

    corretamente) , mas estava disposta a transform-los em possibilidades de

    aprendizagem.

    O que uma redao de vestibular? Por que preciso escrever esse texto na

    prova? Para quem eu escrevo? Onde e como se estabelece essa interlocuo?

    Que usos da linguagem essa interlocuo exige e quais as regras que a

    regulam? Quem sou eu para escrever esse texto? Essas e outras questes

    deveriam ser objeto de estudo e reflexo dos alunos durante a preparao da

    escrita da primeira redao. Eu esperava que o aluno, desse modo situado,

    encarasse as prticas de leitura e escrita com maior expectativa de sucesso do

    que de fracasso, aumentando a sua disposio de engajamento naquilo que eu

    propunha. Tenho vivido experincias que confirmam essa minha expectativa.

    6 Franchi (1986) compartilha sua experincia, tambm com alunos das classes populares, em sua busca, como a minha, por ensinar a escrever bem

  • 19

    3.1 ENCARANDO O CONFLITO DE ENQUADRAMENTO

    Depois de algumas semanas de aula, eu recebia retornos positivos de muitos

    alunos cada vez mais engajados nas atividades, que diziam estar aprendendo

    muito desse jeito que tu ensina. Havia, porm, uma parte dos alunos que

    demonstrava frustrao com as atividades, pois, pelo que eu podia observar, de

    fato, eles no reconheciam aquela prtica como aula de Redao Tanto uns

    quanto outros alunos tinham o propsito de aprender, sobre isso no havia

    dvidas. Eu, por minha vez, tinha o propsito de ensinar o que eles precisavam

    saber e tinha certeza de ter planejado atividades que pudessem proporcionar

    isso. Ento, qual era de fato o problema? Se, para boa parte dos alunos, essa

    metodologia estava servindo ao propsito de aprender mais sobre a escrita da

    redao, qual era o rudo na minha comunicao com a outra parte dos alunos

    que os fazia se sentirem frustrados em suas expectativas de aprendizagem?

    Diante dessa realidade, resolvi compartilhar minhas impresses com a turma

    e, assim, pude ouvir as impresses dos alunos insatisfeitos. Pelas falas desses

    alunos, me parecia que as suas expectativas de aprendizagem estavam ligadas a

    expectativas em relao ao contedo j consagrado da disciplina e ao modo de

    estud-lo: Achei que a gente ia fazer uma redao pra corrigir. Quero ver

    quantos pontos eu fao.; A gente no vai aprender a fazer introduo,

    desenvolvimento e concluso?; E quando a gente vai aprender o que se bota

    dentro da redao?; E quando a gente vai aprender norma culta?. Fiquei

    surpresa por eles no terem percebido que j estvamos fazendo tudo isso

    desde a primeira aula.

    Desde o incio do semestre, fazamos um intenso trabalho de escrita, leitura e

    reflexo em torno de uma proposta de redao de um vestibular passado da

    UFRGS. No final, o objetivo era de que cada aluno definisse, tomando a proposta

    como incio da interlocuo, as linhas gerais de uma redao que iria produzir a

    partir dela. Para ilustrar melhor, fui relembrando cada atividade e explicando

    como estvamos trabalhando em algumas ou cada uma delas: noo de norma

    culta; problemas de inadequao na escrita gerados por influncia da oralidade;

    noes de introduo, desenvolvimento e concluso durante as atividades de

    leitura e interpretao da proposta, etc. Tambm lembrei que eles j comeavam

  • 20

    a escrever a sua primeira redao nas atividades de preparao da escrita e j

    tinham acesso a uma srie de contedos que fazia parte do que eles

    expressavam como expectativa. Se as mesmas atividades haviam sido

    oferecidas a todos, por que esses alunos pareciam no reconhec-las como

    atividades que os fizesse aprender? Na minha percepo, eles supunham haver

    um conhecimento fechado sobre redao, contendo o modo certo de dizer o que

    tem que ser dito em norma culta. Esse conhecimento, ento, se fosse explicado

    de forma clara, seria absorvido por eles, que o colocariam num texto ao qual

    eu daria uma nota, confirmando, desse modo, se fracassaram ou no na

    absoro daquele conhecimento. Ora, nada poderia ser mais distante dos meus

    propsitos como professora, mas nada mais prximo de algo sobre o qual eu

    aprendera pouco tempo antes: conflito de enquadramento sobre a linguagem.

    3,2 IMPACTO DO CONFLITO NA APRENDIZAGEM

    H pouco eu acabara de ler A metfora do conduto, um caso de conflito de

    enquadramento na nossa linguagem sobre a linguagem, no qual Reddy (2000)

    confronta dois modelos que explicam o processo de comunicao humana. O

    primeiro modelo, apresentado como metfora do conduto, configura-se a partir da

    ideia de que a linguagem transfere diretamente os pensamentos e sentimentos

    de uma pessoa para outra sem erros ou imprecises, desde que se saiba

    colocar corretamente as ideias ou sentimentos nas palavras. O outro modelo,

    apresentado como metfora dos construtores de instrumentos, configura-se a

    partir da ideia de que, para fazer algo com outras pessoas, necessrio que se

    lance mo de sinais exteriores e que se trabalhe na resoluo de possveis

    problemas de entendimento se quisermos levar a comunicao adiante, j que

    nossas percepes internas so inacessveis ao exterior. Reddy (2000) aponta o

    conflito em que estamos colocados permanentemente por conta das diferenas

    de enquadramento sobre a linguagem:

    Nos termos da metfora do conduto, o que requer explicao falha em comunicar. O sucesso parece ser automtico. Porm, se pensarmos nos termos do paradigma dos construtores de instrumentos, nossa expectativa precisamente o contrrio. Falha parcial de comunicao ou divergncias de leitura de um nico texto no so aberraes. So tendncias inerentes ao sistema que s podem ser neutralizadas por esforos contnuos e grandes quantidades de interao verbal. (p. 23)

  • 21

    No que diz respeito ao ensino de Lngua Portuguesa, minhas vivncias como

    professora e aluna tm me levado a pensar que o impacto desse conflito sobre a

    aprendizagem forte, danoso e tem sido pouco considerado quando os

    problemas sobre a prtica docente esto em debate. Por causa desse

    entendimento, tenho tentado me antecipar aos danos, colocando essa questo

    no centro das reflexes dos alunos desde as primeiras aulas.

    Nas leituras dos textos produzidos pelos alunos, tenho encontrado grande

    nmero de expresses que coincidem com a viso expressa na metfora do

    conduto. Essas expresses aparecem frequentemente, no questionrio que eles

    respondem no primeiro dia de aula, como resposta ao que segue: o que voc

    espera aprender numa aula de Redao?. Estas so algumas respostas

    exemplares: aprender a pr no papel o que se passa na cabea ou opinio;

    saber colocar o meu conhecimento no papel; colocar minhas ideias e

    pensamentos de uma melhor forma. Entre todos eles, o fragmento que

    considero mais emblemtico dessa viso eu encontrei num texto cujo tema era

    minha relao com a leitura e a escrita: Eu gosto de ler, nem tanto de escrever.

    At tento, mas absorver melhor que passar.

    Apoiada na produo dos meus alunos, a prtica tem me levado a manter um

    aprendizado constante de como oferecer, desde o comeo das aulas, atividades

    que proporcionem outro enquadramento sobre a linguagem aos envolvidos

    nessas atividades. Trazer esse problema luz a cada ano com melhor

    planejamento e com propsitos mais claros tem melhorado significativamente os

    resultados com relao ao desenvolvimento das competncias dos alunos.

    Considero que o melhor resultado, porm, a libertao que significa para o

    aluno descobrir que acertar na escrita depende de um determinado trabalho,

    que coisa que ele pode aprender praticando, no de uma capacidade de

    absorver e expelir conhecimentos, cujo processo de aquisio obscuro. Para

    um aluno das classes populares, que est acostumado a aprender fazendo, isso

    tem muito valor.

  • 22

    4. PEDAGOGIA DO FAZER PELA LINGUAGEM: OBSERVAES DE UMA

    PROFESSORA APRENDIZ7

    Mesmo num curso alternativo como o PEAC, se acaba obedecendo mesma

    organizao disciplinar dos cursos tradicionais. Professores que tm a educao

    interdisciplinar como fundamento terico-metodolgico de sua prtica, como eu,

    at conseguem preparar aulas especiais em conjunto com professores de outras

    disciplinas, mas raro que se consiga avanar mais do que isso. Essa situao

    bastante compreensvel, dadas as dificuldades estruturais para a manuteno do

    funcionamento desse tipo de curso, que organizado de forma colaborativa em

    espaos cedidos por instituies ou entidades da sociedade civil. Era essa a

    realidade, portanto, que me apresentava a minha primeira experincia docente:

    precisava criar um plano de aulas a partir dos parmetros do que eu considero

    como boas prticas de ensino, mas respeitando as limitaes de tempo e espao

    que a organizao desse tipo de curso impe.

    4.1 PEDAGOGIA DAS DICAS: METFORA DO CONDUTO APLICADA8

    No que diz respeito organizao curricular dos chamados cursinhos, h

    uma especificidade bastante relevante: criou-se uma disciplina, que no

    componente curricular da escola, dedicada apenas ao estudo de redao de

    vestibular. Isso se deve ao fato, imagino, de que a prova de Redao a nica

    do concurso vestibular que exige como resposta uma produo textual. Na

    prtica, a disciplina de Lngua Portuguesa costuma se focar no estudo de regras

    gramaticais que possam vir a ser problematizadas nas provas. Na tradio de

    ensino desses cursos, as aulas se constituem de dicas de portugus. A partir

    dessa lgica, de se presumir que as aulas de Redao deveriam se constituir

    de prticas de leitura e escrita com foco na produo de redaes. Ento, por

    que isso no est acontecendo na maioria desses cursos?

    No ensino tradicional de Redao, as aulas so focadas naquilo que se

    consagrou como contedo da disciplina: dicas de como fazer introduo,

    7 No captulo 4 de Prates (2014), o leitor poder encontrar uma anlise sobre aulas de Redao de um curso pr-vestibular popular, a partir do olhar

    de um observador participante, que se assemelha, em alguns aspectos, com a anlise que apresento neste captulo.

    8 Na subseo 4.2.1 de seu trabalho, Prates (2014) analisa prticas dessa pedagogia, a qual ele se refere como ensino de macetes.

  • 23

    desenvolvimento e concluso; tcnicas de argumentao; dicas de quais

    recursos lingusticos podem passar melhor determinadas ideias, etc. Em

    algumas verses mais progressistas, tambm se d muita importncia

    promoo de discusses temticas9. Paralelamente a essas atividades, a escrita

    de redaes funciona, mais ou menos, da mesma maneira na maioria dos

    cursos: os alunos escrevem redaes, em casa, sobre diversos temas de

    vestibulares anteriores, que eles recebem publicados em apostila; os textos

    produzidos so corrigidos e devolvidos com os erros assinalados conforme os

    critrios de avaliao da universidade correspondente. Se o aluno quiser

    entender quais erros cometeu, dever procurar posteriormente um professor ou

    um monitor que o atenda para tirar as dvidas. Ento, na prtica, tanto na Lngua

    Portuguesa como na Redao se oferece basicamente a mesma coisa: dicas

    sobre o modo certo de escrever em norma culta.

    4.2 O IMPACTO DA PEDAGOGIA DAS DICAS NA APRENDIZAGEM DO

    ALUNO DE CLASSE POPULAR

    Essa opo preferencial dos pr-vestibulares pela pedagogia das dicas nega

    aos alunos o direito participao em prticas de escrita para a construo de

    conhecimento sobre redao de vestibular, que o que se supe da finalidade

    da disciplina. certo que h pouco tempo em sala de aula para abordar os

    contedos considerados imprescindveis na preparao do aluno para as provas

    do concurso, mas sintetizar esses contedos em um pacote de dicas no resolve

    o problema; pelo contrrio, gera obstculos para a aprendizagem.

    O que eu estou chamando de pedagogia das dicas parece se fundar

    naquele enquadramento sobre a comunicao que a entende como um conduto,

    em conjunto com uma tradio de ensino voltado para as classes dominantes

    que, educadas formalmente, poderiam assim expressar a sua clareza de

    pensamento. Essa pedagogia supe que o contedo das aulas ser bem

    interpretado e apreendido se for bem comunicado. E o faz porque, alm disso,

    tambm supe um aluno com longa histria de letramento, pois s ele ter

    condies de bem interpretar e apreender dicas para que possa fazer melhor

    9 Na subseo 4.1.1 de Prates (2014), o leitor encontrar uma anlise bastante detalhada deste tipo de prtica, que visa formao cidad. Por

    minha vez, apresento minhas consideraes sobre a prtica de debates em salas de aula de redao na seo 6 deste trabalho.

  • 24

    aquilo que j sabe fazer. O pressuposto implcito dessa pedagogia o mesmo

    que se explicita na proposta de ensino de Luft (1985), sobre a qual iniciei a crtica

    na seo anterior deste trabalho:

    Melhorar, primeiro, a expresso oral [...]. Depois, paralelamente, introduzir e aperfeioar a expresso escrita [...]. No falo em formar escritores, que escritor no se faz na escola: falo de todo indivduo normal, escolarizado, que deveria ser capaz de usar a lngua escrita na vida profissional, com desembarao e segurana. Antes de tudo isso, o pressuposto de uma boa comunicao: a clareza de pensamento. [...] (p.34)

    O enquadramento sobre a linguagem que subjaz a essas vises de ensino

    prejudica especialmente as classes populares, pois o que se entende como

    clareza de pensamento , na verdade, resultado de maior acesso dos alunos de

    classe mdia e alta participao efetiva em vrias esferas sociais por meio da

    leitura e produo de diversos gneros da escrita. Certamente, para esses

    alunos bastar melhorar a expresso lingustica para que sejam bem

    sucedidos, por exemplo, na tarefa de escrever uma redao de vestibular,

    enquanto os alunos das classes populares estaro fadados a fracassar na

    tentativa de colocar o pensamento com clareza no papel, j que no tiveram o

    acesso s mesmas prticas. Os professores de qualquer camada social que

    tomem como parmetro de sua prtica essa viso de ensino, sempre tero que

    lidar com a tarefa de descobrir como avaliar a clareza de pensamento do aluno

    sem entrar-lhe cabea adentro.

    A partir das minhas observaes e reflexes, na prtica de sala de aula com a

    primeira turma que assumi no PEAC, passei a considerar que a pedagogia das

    dicas geradora de diversas impossibilidades de aprendizagem de redao de

    vestibular para o aluno de classes populares. Isso me levou a pensar nas tantas

    possibilidades que a disciplina de Redao oferece ao professor interessado em

    experimentar uma pedagogia que coloque os alunos em ao pela linguagem.

    Passei, ento, a planejar um roteiro de aprendizagem no qual eu pudesse

    abordar o contedo esperado, mas de tal modo que as atividades questionassem

    a viso de que possvel passar o pensamento para o papel e de que o

    professor tem as dicas certas para se conseguir isso ao mesmo tempo em que

    mostrassem que toda a produo de texto interao e, sendo assim, exige

    trabalho de linguagem.

  • 25

    5 DO TEMOR DE ESCREVER CURIOSIDADE EPISTEMOLGICA SOBRE

    A ESCRITA

    Nas notas de observao da minha primeira experincia de docncia no

    PEAC, destaquei que a maioria dos alunos temia a escrita. Algumas vezes, boa

    parte da turma se retirava durante a aula no momento em que eu propunha uma

    atividade de produo de texto. Se eu pedisse que escrevessem redaes em

    casa, apenas dois ou trs alunos faziam a tarefa. Na poca, trazer essa

    discusso para a turma foi inevitvel: ouvi as consideraes deles e falei sobre a

    importncia de escreverem; expliquei que cada produo escrita, ao ser lida por

    mim, abriria um dilogo sobre os problemas especficos de cada texto; procurei

    demonstrar como, nesse dilogo, poderamos refletir sobre as alteraes

    necessrias para adequar o texto ao que se espera de uma redao de

    vestibular. No consegui, porm, resultados minimamente satisfatrios por meio

    dessa abordagem.

    Mais de uma vez levei essa questo para as consideraes da turma, mas os

    alunos continuaram tendo mais medo de escrever do que confiana em mim

    como leitora. Alguns deles, aparentemente pressionados pela minha insistncia,

    comearam a se justificar no final das aulas, expressando falta de coragem para

    comear. Era frustrante essa situao de aprendizagem engessada pelo medo.

    Pensando sobre o impacto dessa frustrao no engajamento dos alunos, decidi

    planejar dinmicas que apontassem para a superao do medo de escrever e da

    desconfiana em relao ao professor como leitor do texto do aluno.

    5.1 DEFININDO O ROTEIRO DE UM PROJETO DE DOCNCIA

    Com base nessas observaes que fiz no primeiro ano, constru meu projeto

    de ensino para as prximas turmas. Comecei por planejar a oferta de atividades

    de modo que os alunos, mesmo que apenas uma vez, percorressem

    refletidamente uma simulao daquele roteiro10 que j est internalizado

    10 A ideia de roteirizar as atividades do projeto eu tomei de emprstimo, sem prvia consulta, de reflexes do professor Pedro Garcez em conversas

    que tivemos sobre boas prticas de ensino. No sei se o resultado da minha ousadia se aproxima sequer do que ele expressou naquela conversa,

    mas foi o que eu pude produzir a partir do que apreendi.

  • 26

    naqueles alunos que tm longa histria de prticas de escrita. Estabeleci que

    esse roteiro fosse dividido em trs percursos.

    5.1.1 Percurso das reflexes sobre a escrita

    O aluno que tem mais participao em prticas sociais que requerem a escrita

    no seu cotidiano tem possivelmente mais oportunidades de fazer reflexes sobre

    a escrita do que a maioria dos meus alunos, cuja vida cotidiana na sua maior

    parte prescinde dessas interaes. Por esse motivo, o roteiro de aprendizagem

    do projeto inicia seu percurso no ponto em que cada um questionado, de modo

    que precise fazer algumas dessas reflexes para produzir respostas.

    O primeiro passo do aluno responder questes que podem suscitar

    reflexes sobre a prpria aprendizagem. As perguntas indagam sobre o que se

    espera aprender na disciplina e se o aluno j escreveu redaes a partir de uma

    proposta de concurso vestibular11.

    O prximo passo a apresentao do projeto de ensino. Esse um momento

    importante, pois muitas das prticas de ensino que tenho observado parecem

    prometer uma mercadoria que no podem entregar. A anlise que fiz sobre o

    que eu chamo de pedagogia das dicas parece demonstrar isso. Por essa razo,

    fao questo de apresentar o projeto aos alunos para garantir a oferta de uma

    mercadoria que eu possa entregar, ou seja, que a aprendizagem se dar pelas

    prticas de leitura e escrita e que, por isso, as aulas sero baseadas nos retornos

    que o professor-leitor oferece aos alunos e vice-versa, no em frmulas prontas

    para serem aplicadas na hora de escrever a redao. No quero que os alunos

    sigam irrefletidamente o caminho apontado por mim, mas que eles se

    responsabilizem pelo prprio aprendizado. O sucesso dessa proposta, no meu

    entendimento, depende de que o aprendiz tenha o mapa da caminhada e a

    cincia do destino.

    Para que os alunos vissem o gnero redao de vestibular como a coisa

    que iriam estudar e compreendessem que os percursos do projeto procuram

    lev-los a conhec-la em diversas de suas dimenses, pensei numa dinmica de

    11 Tenho feito esta pergunta a cada nova turma. Cada turma para a qual lecionei tinha aproximadamente sessenta alunos. No decorrer de trs anos,

    no mais de dez alunos por turma respondeu de forma afirmativa a ela, ou seja, o conjunto dos alunos era bem pouco experiente neste tipo de

    interao. Essa observao foi bastante relevante no planejamento do segundo percurso do projeto. Somente neste quarto ano de docncia, a maioria

    da turma era experiente.

  • 27

    apresentao que pudesse catalisar essa reflexo. Por isso, a apresentao do

    projeto gira em torno da interpretao de uma frase de Jos Saramago12 que

    escrevo no quadro quando entro na sala de aula: [...] para conhecer as coisas,

    h que dar-lhes a volta, dar-lhes a volta toda [...]. Os alunos so convidados a ler

    essa frase, interpret-la e, depois, compartilhar essa interpretao em voz alta.

    Minha expectativa era de que os alunos compartilhassem suas interpretaes da

    frase lida de modo que, em pouco tempo, estivssemos todos conversando sobre

    o projeto a partir de um mesmo entendimento sobre ele, mas, como costuma

    acontecer com qualquer plano de aulas, na prtica a teoria outra. Assim,

    diferentemente do esperado, o que aconteceu na primeira vez em que propus

    essa atividade foi que os alunos ficaram um bom tempo olhando para aquela

    frase como se ela estivesse escrita em outra lngua. Essa frustrao da minha

    expectativa em relao a um resultado de reflexo sobre o projeto me fez mudar

    a dinmica e aprender uma das mais importantes lies como professora: em

    aula de portugus toda reflexo deve ser lingustica13.

    Diante do impasse, como sempre fao, procurei encarar o problema para

    buscar soluo. Ento, fui para o fundo da sala e, como meus alunos, fiquei

    lendo e relendo aquela frase para tentar entender o que dificultava o trabalho de

    interpretao deles. Logo, lembrei de que se tratava de um trecho tirado de uma

    fala de um escritor portugus. Percebi, ento, que os alunos estavam realmente

    diante de uma frase escrita em uma lngua que no conheciam, dado que, para

    proceder s relaes sinttico-semnticas, o portugus brasileiro e o portugus

    lusitano apresentam modos diferentes de uso dos recursos lingusticos. Logo,

    pensei: Se eu apresentar outra construo para esta frase, que esteja mais

    prxima das construes que os alunos conhecem, eles podero fazer sentido do

    que est escrito?. Ento, para testar essa hiptese, fui at o quadro e escrevi a

    frase de outro modo: pra gente conhecer as coisas, tem que fazer a volta nelas;

    mas tem que fazer a volta toda. Logo que leram, os alunos comearam a rir.

    Muitos deles disseram coisas como: Ah, agora sim d pra entender!.

    Depois disso, alguns alunos se sentiram vontade para dizer o que

    interpretaram ao ler o original. Muitos deles entenderam que para conhecer as

    coisas seria preciso fornecer a elas (dar-lhes) alguma outra coisa, que seria a

    12 So falas do escritor Jos Saramago em entrevista no documentrio Janela da alma (2001), do diretor Walter Salles.

    13 Na seo 6 deste trabalho fao algumas consideraes sobre esse entendimento.

  • 28

    volta toda. Como a interpretao no fazia sentido, eles resolveram no falar

    nada. O engajamento dos alunos a partir desse momento me possibilitou falar

    sobre as diferenas sintticas e semnticas entre as duas frases e,

    consequentemente, gerou uma produtiva discusso sobre o roteiro de

    aprendizagem, cuja apresentao era o propsito desta dinmica.

    Desde esse episdio, o momento da apresentao passou a tambm ser o

    momento de delimitao mnima do que seja a norma culta, em comparao

    norma popular. Passei a usar essas duas denominaes apenas em sala de

    aula, para fins didticos, depois do entendimento dessa delimitao. Nesse

    entendimento, define-se, grosso modo, a norma popular como a expresso

    lingustica adequada ao cotidiano dos alunos e norma culta como a expresso

    lingustica adequada escrita da redao de vestibular.

    Depois dessa dinmica de apresentao, passamos ao prximo passo deste

    percurso, que tem sido o mesmo desde o incio: escrita de um texto que

    responda sobre a relao do aluno com a leitura e a escrita. Essas memrias de

    letramento tm sido meu ponto de partida, a cada nova turma, para ajustar o

    projeto s necessidades de aprendizagem mais especificas de cada aluno e,

    tambm, do conjunto de alunos.

    5.1.1.1 Memria de letramento: um passo na direo da confiana em si e na

    professora

    Durante a graduao tive acesso s memrias de letramento de professores

    africanos14, produto do trabalho deles em um curso de formao continuada do

    Programa Linguagem das Letras e dos Nmeros. Ao fazer essas leituras, gostei

    muito da proposta de trabalhar as memrias dos alunos para abordar o tema do

    letramento. Posteriormente, eu mesma passei pela experincia de escrever

    minhas memrias a pedido do professor da disciplina de Gramtica e Estilo.

    Revisitar minhas frustraes e alegrias ao longo da minha histria de

    aprendizagem de escrita me fez querer proporcionar a mesma oportunidade aos

    meus alunos, pois, ao fazer esse processo, aprendi muito sobre minha prpria

    14 Memrias de Letramento: vidas em lngua portuguesa. Projeto Jos Aparecido Oliveira_Formao Presencial de Lngua Portuguesa - Programa

    Linguagem das Letras e dos Nmeros - Fortaleza, Jul/Ago 2009 MEC/MCT/CAPES.

  • 29

    relao com a aprendizagem, por isso achei que essa dinmica se encaixava

    bem neste percurso.

    No solicito reescrita dessas memrias, pois o gnero que estrutura o projeto

    a redao de vestibular. No fao, portanto, uma leitura avaliativa desse texto,

    mas uma leitura engajada no propsito de conhecer melhor aquele grupo de

    alunos, suas expectativas em relao ao que as aulas tm para oferecer, os

    obstculos que se impem a cada um na prtica de leitura e da escrita, os

    temores com relao aprendizagem, etc. Por causa disso, o retorno que dou a

    cada aluno sobre a escrita de seu texto apenas o questiona em relao aos

    trechos no compreendidos durante a leitura e o encoraja a exercitar a escrita.

    Tambm fao comentrios explicando como determinadas atividades previstas

    no projeto de aula podero ajudar em dificuldades especficas tratadas pelo aluno

    em seu relato.

    Nas memrias que li, h poucos relatos de alunos que tm a prtica de leitura

    e escrita como parte do cotidiano. Em sua maioria, as histrias revelam uma

    srie de obstculos objetivos e subjetivos com relao s prticas de leitura e de

    escrita. Por isso, a aula em que devolvo esses textos a eles dedicada

    especialmente a trazer informaes e propor reflexes que os faa questionar a

    prpria culpa em no saber portugus, que um sentimento expresso

    recorrentemente nos relatos. Para propor a superao dessa viso sobre si

    mesmo, trabalho com a ideia de que, se eles passaram por todas as etapas de

    ensino escolar e esto aptos a concorrer a uma vaga na universidade, h

    potencialmente as mesmas condies individuais de aprenderem. Tambm

    trabalho com a ideia de que nem todos tm o mesmo capital cultural15 daqueles

    alunos com maior histria de letramento, e isso no culpa de quem no teve

    acesso a esse capital, mas de uma conjuntura social. A cada ano mudam os

    alunos, mas essa culpa em relao a uma suposta incapacidade de aprender a

    escrever continua sendo majoritria entre os relatos. Acredito que seja esse o

    motivo de tantos deles se manifestarem aliviados depois dessa aula.

    Uma das manifestaes mais marcantes que recebi foi de uma aluna que

    relatou, em seu texto, ter sido agredida pelo pai por causa de uma nota baixa em

    Lngua Portuguesa. Em suas memrias, ela dizia que, a partir daquele momento,

    15 Para entender do que se trata, os alunos assistem ao vdeo Capital Cultural, da UNIVESP, que explica esse conceito , desenvolvido pelo

    socilogo francs Pierre Bourdieu. O vdeo pode ser acessado em http://www.youtube.com/watch?v=a3eO6-D4nHo.

  • 30

    passou a ter bloqueios quando precisava escrever. Ento, no final dessa aula

    de devoluo dos textos, em meio ao alarido dos outros alunos que se juntavam

    em volta da minha mesa para dar suas impresses sobre o que se discutiu

    naquele dia, essa aluna me pergunta se pode me dar um abrao. Digo que sim,

    meio sem entender. Ela, ento, me d um abrao muito forte e diz: Profe, muito

    obrigada pela aula. Agora, eu no tenho mais medo de escrever. Depois disso,

    saiu sorridente e me deixou, ali, numa felicidade imensa. Essa aluna passou para

    o curso de Cincias Sociais da UFRGS naquele ano. Recentemente a encontrei

    perto do Campus Centro num sbado. Ela se dirigia a uma oficina de produo

    de textos em um projeto de extenso da universidade e me disse a razo: Tenho

    que continuar me qualificando pra escrever melhor, n? Eu quero fazer coisas na

    universidade e preciso disso. Acho que eu no poderia ter melhor retorno sobre

    a validade dessa etapa de reflexo sobre a escrita para o engajamento dos

    alunos na aprendizagem, at mesmo depois que saem do curso.

    Posteriormente, neste percurso, ocupamos algumas aulas com atividades

    construdas a partir dos textos de memria dos alunos. Essas atividades

    abordam: oralidade x norma culta; delimitao das caractersticas dos gneros do

    discurso; enquadramento sobre a linguagem; etc.; porm, no h motivo para

    detalh-las aqui.

    5.1.2 Percurso da interao

    Mesmo com a reflexo do primeiro percurso, a maioria dos meus alunos teve

    muitas dificuldades para comear a escrever, pois havia muitos saberes

    necessrios participao em interaes mediadas pela escrita que ele no

    podia mobilizar para compreender a proposta de redao. No se pode supor

    que, nessas condies, o aprendiz seja bem-sucedido na tarefa de escrever uma

    redao de vestibular sem que tenha, pelo menos, refletido sobre a interlocuo

    que se d entre ele e a instituio de ensino na qual pleiteia uma vaga como

    discente no dia da prova. Por essa razo, estabeleci a interao como prximo

    percurso do roteiro de aprendizagem.

    Este segundo percurso coloca o aluno em ao pela linguagem, oferecendo

    oportunidades de construo de conhecimento sobre as especificidades dessa

    interao ao mesmo tempo em que o engaja na tarefa de construo do projeto

  • 31

    de escrita de uma redao. Essa dinmica se fundamenta no entendimento de

    que as pessoas sabem como, onde, por que, com quem e para quais propsitos

    esto interagindo com as outras. Sendo assim, tendo o conhecimento

    necessrio, essas pessoas lanaro mo dos recursos de comunicao

    adequados para terem sucesso nessa tarefa. No sendo desse modo, o fracasso

    na interao uma grande possibilidade.

    Para quem eu escrevo? Que texto esse? Quem sou eu para escrever tal

    texto? Esses so os questionamentos de norteiam o aluno neste percurso. As

    respostas a esses questionamentos s podem ser produzidas na interao, que

    tento simular no conjunto de atividades oferecidas. Essas atividades tm incio

    pela leitura coletiva de uma proposta16 de redao, j que esse o texto que d

    incio interlocuo entre o vestibulando e a instituio de ensino. Como recurso

    didtico, divido a proposta em trs partes: textos de apoio, grficos/tabelas e

    orientaes. Desse modo, vou indicando aos alunos, durante a leitura, em que

    parte se determina o tema, em que parte se fornece subsdios para entendimento

    do recorte temtico e em que parte se obtm dados para embasar os

    argumentos.

    Pelo carter institucional dessa interlocuo, o texto do primeiro locutor

    determina obrigatoriamente os parmetros de estrutura, de contedo e de

    expresso lingustica do texto do segundo. Entendido isso, proponho uma nova

    leitura da mesma proposta. O objetivo dessa nova leitura que o aluno responda

    questes que indagam sobre qual o assunto a respeito do qual ele deve

    desenvolver seu texto, a sua opinio sobre esse assunto, as razes que o levam

    a pensar desse modo, os exemplos que poderiam ilustrar essas razes, as

    concluses que se poderia tirar da sua anlise e quais propostas poderiam

    solucionar possveis problemas apontados nessa anlise. Ao responder essas

    questes, cada aluno ser levado a encontrar os parmetros determinados pelo

    seu interlocutor na proposta para o desenvolvimento de sua redao. Ao mesmo

    tempo, ele ter construdo um esqueleto do texto.

    Assim, neste momento do roteiro, os alunos comeam a trabalhar com a

    lgica da progresso temtica dentro da estrutura usual de uma redao de

    vestibular: introduo, que delimita o tema e apresenta o ponto de vista;

    16 Uso preferencialmente uma proposta de redao do concurso vestibular da UFRGS ou uma do ENEM dos anos anteriores. Procuro escolher uma proposta que trate

    de questes que estejam sendo problematizadas pela sociedade naquele momento.

  • 32

    desenvolvimento, que apresenta as razes que justificam o ponto de vista;

    concluso, que sintetiza o ponto de vista e apresenta proposta de soluo para

    eventuais problemas abordados no desenvolvimento. Quando os alunos

    entregam a primeira escrita da redao solicitada, se d incio s interaes

    professor-aluno com propsito de promover as alteraes necessrias

    adequao do texto.

    5.1.2.1 Dilogo mediado pelo texto entre professor-leitor-avaliador e aluno-autor-

    avaliado

    O retorno que dou aos alunos sobre cada texto que eles escrevem se d em

    trs modos: como avaliadora, como leitora e como professora. Do primeiro modo,

    fao a correo conforme os critrios dos concursos vestibulares. Do segundo,

    questiono a coerncia do texto. Do terceiro, destaco problemas de expresso

    lingustica, contedo e estrutura e, dependendo do caso, indico possibilidades de

    soluo. Pode-se pensar que metodologia muito trabalhosa para ser

    empregada num curso pr-vestibular, mas toda a interao exige trabalho de

    linguagem. isto, afinal, que tento mostrar aos alunos com este projeto: fazer

    sentido em qualquer interao exige trabalho. Desse modo, acredito, estabeleo

    um compromisso dialgico de apoio ao aluno que se dispuser a trabalhar na

    reescrita do texto.

    Um retorno que ilustra bem o quanto esse esforo do professor pode afetar

    positivamente o engajamento dos alunos a reao de um deles ao receber,

    pela primeira vez, um texto avaliado por mim. Esse aluno, depois de receber o

    texto comentado, exclama para a sua colega, mostrando a folha de comentrios:

    Olha, tem feedback! Nunca recebi uma redao com feedback na escola.

    Ento, pergunto o que foi que o deixou to admirado. Ele responde que achou

    muito tri o modo como eu dei o retorno da minha leitura dos textos que eles

    produziram. Isso feedback, n, sora?. Eu tinha isso l na minha empresa.

    muito bom! Eu aprendi um monte com os feedbacks l da empresa. Nunca tinha

    visto feedback na escola. Esse aluno foi um dos mais engajados nas atividades

    durante aquele ano e passou na UFRGS.

    Seguindo neste percurso, o processo de reescrita desses textos se

    desenvolve fora das aulas, em interlocues que estabeleo com cada aluno

  • 33

    disposto a levar a tarefa adiante. Paralelamente a isso, os alunos estudam a

    estrutura e o contedo de um texto de nvel excelente do mesmo concurso17 em

    atividades de leitura, desconstruo, reconstruo e sntese. A escolha de usar

    como objeto desse estudo um texto resultante da mesma proposta de escrita

    com a qual o aluno est trabalhando tem o propsito de subsidi-lo nas tentativas

    de reescrita de seu prprio texto. Entendo que no se pode esperar sucesso na

    apreenso de como um tema progride na estrutura de redao oferecendo aos

    alunos modelos de introduo, desenvolvimento ou concluso destacados de seu

    contexto original, como se faz no ensino tradicional. Pelas minhas observaes,

    no tenho dvidas de que muito proveitoso para quem est reescrevendo uma

    redao poder trabalhar desse modo. Essa dinmica de aprendizagem passa a

    estimular o aluno a querer saber mais, ou, nas palavras de uma aluna no final de

    uma dessas aulas, com esse jeito de aprender, eu descobri que escrever tem

    lgica e at me d vontade de aprender mais. Nos dois ltimos anos, os alunos

    tm chegado ao final deste percurso com a curiosidade de aprender o que muitos

    deles tm chamado de a lgica da lngua, ou seja, como no jogar

    aleatoriamente as palavras no papel, mas fazer um encadeamento entre as

    partes do texto para que ele faa sentido como um todo. Na norma popular,

    tem lgica aquilo que faz sentido. muito animador v-los entusiasmados com

    essa descoberta e expressando, em suas prprias palavras, a aprendizagem que

    tiveram. interessante perceber que um grande nmero de alunos, nas turmas

    para as quais lecionei, tm se expressado do mesmo modo. Ento, atualmente,

    quando, nesta fase do projeto, o aluno me diz que agora est vendo que o

    portugus tem lgica, eu entendo que ele comea a ficar curioso sobre como

    usar os recursos lingusticos que do continuidade ao texto. Esse aluno, eu

    costumo dizer, est no ponto para tirar o melhor proveito das atividades do

    prximo percurso.

    5.1.3 Percurso da coeso

    Tradicionalmente, nas aulas de redao, o trabalho sobre coeso focado

    em aulas de nexo. Nessas aulas, costuma-se explanar sobre os termos mais

    17 Uso textos publicados pelas instituies responsveis pelos concursos ou escritos por alunos das turmas anteriores.

  • 34

    usados para passar determinadas ideias para o leitor. O resultado desse tipo de

    abordagem a construo, no imaginrio do aluno, de uma realidade na qual os

    nexos so termos mgicos que tornam coerentes e coesos quaisquer fragmentos

    de texto junto ao qual forem colocados. As consequncias dessa viso no

    desempenho dos alunos me preocuparam quando, ao devolver uma redao cuja

    concluso estava desconectada do resto, o autor me perguntou: Mas eu usei o

    portanto. No o portanto que d a ideia de concluso?

    Para mudar esse imaginrio, o ltimo percurso, o da coeso textual, segue no

    sentido da construo de conhecimentos sobre o trabalho de estabelecer as

    relaes internas que instauram a continuidade do texto. A caminhada por este

    percurso se d pela resoluo de problemas de expresso lingustica, a partir da

    premissa de que os nexos so procedimentos de uso de recursos lingusticos,

    no palavras mgicas. Para isso, me apoio metodologicamente em Antunes

    (2005). Todas as dinmicas deste percurso colocam os alunos em tarefas de

    reescrita de textos com problemas de expresso lingustica. Algumas vezes as

    tarefas so feitas em duplas, outras vezes fazemos coletivamente a resoluo

    dos problemas do texto projetado numa tela. Essas tarefas so feitas usando

    refletidamente os recursos lingusticos para proceder adequadamente s

    relaes de reiterao, associao e conexo.

    Tenho recebido, ao longo do tempo, retornos positivos dos alunos sobre

    essas atividades. Muitos relataram que, depois de participar dessas aulas,

    comearam at a ler melhor.

    6 CONSIDERAES FINAIS

    Eu escolhi fazer a licenciatura em Letras na busca por respostas para a

    questo do analfabetismo funcional. Na busca por essa resposta, descobri um

    problema que, em minha opinio, precisa ser superado: o medo da escrita atinge

    alunos e professores de tal modo que engessa o ensino e a aprendizagem.18

    Pode parecer estranho ao leitor que eu inclua professores como vtimas

    desse medo, mas tenho razes para pensar desse modo. Ao longo desses anos

    de graduao e de docncia tenho visto muito colegas desistirem de dar aulas

    18 A aprendizagem acontece na interao com o outro e em vivncias significativas com o conhecimento. Ensino: criar condies para aprendizagem a base para

    desenvolver um vnculo com o conhecimento. (SIMES, 2012)

  • 35

    quando se veem diante de uma pilha de textos para avaliar. Do meu ponto de

    vista, o motivo dessas desistncias no tem a ver com uma suposta

    incompetncia dessas pessoas para fazer essas avaliaes, mas pelo medo do

    texto ruim do aluno. Na nossa formao, no estamos acostumados a ver o

    texto que considerado ruim, aquele que apresenta problemas, como um objeto

    de estudos. O que tem recebido a maior parte da ateno nos estudos

    lingusticos no currculo da licenciatura em Letras so os textos exemplares de

    boa escrita. Os professores em formao tm se acostumado a reconhecer um

    texto bem escrito e a apontar nele aquilo que o caracteriza como tal. Raro,

    porm, e aqui fica uma crtica, so as prticas nas quais o futuro professor possa

    avaliar textos com problemas de coeso e coerncia, aprendendo a apontar

    neles o que lhes falta para serem considerados bons textos.

    Foi somente numa disciplina eletiva, Gramtica e Estilo, que vi um professor

    estimular os graduandos a lerem os textos ruins. Durante um semestre o

    professor Paulo Guedes19 nos fez trabalhar na avaliao e reescrita de diversos

    textos com problemas, que foram produzidos por alguns de seus alunos. Os

    textos eram projetados num telo ou impressos em papel para que todos ns os

    reescrevssemos coletivamente, refletindo e debatendo sobre cada um dos

    problemas e as possveis solues para eles. Assim como a aprendizagem na

    disciplina de Lingustica e Ensino me fez enfrentar o medo de ensinar, o que

    aprendi na disciplina de Gramtica e Estilo me fez perder o medo dos textos dos

    alunos.

    Todos esses medos relacionados escrita dos quais tratei neste trabalho so

    uma realidade, considerando os relatos de alunos e professores a que j tive

    acesso e a minha prpria vivncia como aluna e como professora. No foi o

    acaso que me fez superar esses medos, mas a ao de professores que me

    ofereceram oportunidades de conhecer e experimentar outros modos de fazer

    aprender e ensinar Lngua Portuguesa. Nos ltimos quatro anos, como

    professora de Redao do PEAC, venho tentando fazer o mesmo. Por isso, se h

    valor no roteiro de aprendizagem que apresentei neste trabalho, do modo como

    se configura hoje, que ele resulta de uma construo dialgica de

    conhecimento com esses alunos. O estabelecimento dos percursos que hoje se

    19 A curiosidade do professor Paulo Guedes sobre os textos dos seus alunos me ensinou a ter a mesma curiosidade. Em Guedes (2002), texto

    fundamental para qualquer professor de Lngua Portuguesa, se tem a oportunidade de aprender muito sobre como e por que ler o texto dos alunos.

  • 36

    configuram como um projeto de docncia se deu nessa relao dialgica,

    fundada no entendimento de que Todos podem escrever para expressar tudo

    quanto nos diz respeito, em diferentes gneros de discurso e por meio dos mais

    variados recursos lingusticos. No h erro nisso, nem mesmo e, principalmente,

    quando aquele que escreve o aluno. (SECRETARIA DE EDUCAO DO

    ESTADO RIO GRANDE DO SUL, p. 76, 2009)

    Percebo, ao fazer essas consideraes finais, que o modo como o projeto foi

    apresentado aqui pode vir a frustrar expectativas de leitores interessados no

    detalhamento das atividades previstas em cada percurso. O detalhamento,

    porm, fugiria ao propsito deste trabalho20. Sendo assim, como forma de

    compensar o leitor por essa limitao, enumero alguns entendimentos que

    norteiam o planejamento das minhas aulas no processo permanente de

    aprendizagem de boas prticas a que tenho me proposto:

    1) Os elementos que organizam as aulas so os textos que oferecem

    oportunidades de construir competncias e habilidades21 para a produo de

    redao de vestibular: proposta de redao de vestibular, redao de

    vestibular, artigo de opinio, editorial, charge, tabela, mapa, grfico,

    manifesto.

    2) A reflexo sobre os usos da lngua e os sentidos que esses usos adquirem

    em diversos textos a serem estudados durante o projeto exigem um

    planejamento de atividades que coloque os alunos em ao pela linguagem.

    Essa reflexo fundamental para a construo de conhecimentos sobre o

    repertrio lingustico que eles podero mobilizar nos contextos de produo

    de redao de vestibular. Para que a reflexo leve construo de

    conhecimentos sobre o portugus, ela deve partir dos problemas concretos de

    uso da lngua com os quais o aluno se depara para a produo de sentidos

    nesses contextos. No basta que o professor, por exemplo, aponte na

    redao de um aluno que determinado recurso foi usado inadequadamente ou

    que ele zerou a redao por ter fugido ao tema. necessrio coloc-lo em

    atividades de reflexo sobre esse mesmo problema, como a reelaborao dos

    20 Existe um detalhamento dessas atividades no meu relatrio final da disciplina de Estgio II

    21 A definio do que so competncias e habilidades nesse contexto podem ser bem compreendidos na leitura de Secretaria de Educao do

    Estado Rio Grande do Sul. /Departamento Pedaggico (2009, p.70-71)

  • 37

    fragmentos do texto em que ocorreu o uso inadequado de recursos ou a

    releitura da proposta do texto em que ocorreu a fuga ao tema.22 Essas

    atividades daro ao aluno a oportunidade de encontrar solues para

    reescrever um texto melhor.

    3) Debate s faz sentido como atividade pedaggica se o objetivo preparao

    do aluno para participar de debates, o que no o caso dos alunos da

    disciplina de Redao. Por isso, eu no incluo esse tipo de atividade no

    projeto de aulas. Sei que uma prtica comum e muito cara a professores de

    Redao dos cursinhos pr-vestibulares que a defendem com os seguintes

    argumentos: importante para a formao crtica; treina a habilidade de

    argumentao. Quanto formao crtica, entendo o desenvolvimento do

    senso crtico dos alunos como inerente educao lingustica, pois por

    meio da linguagem que os sujeitos participam socialmente, produzindo e

    negociando sentidos em diversos contextos interacionais em diferentes

    situaes de sua vida cotidiana. A leitura, a escrita e a resoluo de

    problemas dos textos em torno dos quais se organiza o projeto de

    aprendizagem que proponho j visa formao crtica dos alunos. Ao ler, o

    sujeito reage e se posiciona criticamente; ao escrever, expressa significados

    com vistas participao social em interao com o outro; ao resolver

    problemas, pode agir sobre os sentidos do texto para participar com

    autonomia de atividades diversas. A educao para a cidadania

    indissocivel do ensino das competncias de ler, escrever e resolver

    problemas. Quanto preparao para argumentao, o desenvolvimento da

    habilidade de argumentar est entre os objetivos de ensino do projeto e se d

    em tarefas contextualizadas, no havendo razes para transpor para a sala

    de aula uma prtica social distinta da produo de redao de vestibular,

    como o debate, para alcanar esse objetivo.

    4) As discusses temticas no so desconectadas da produo de sentidos

    dos textos em torno dos quais as aulas so organizadas. Os temas esto nos

    textos. Ao lidar com variados textos o aluno tambm est lidando com

    variados temas. Nos processos de construo de sentido dos textos, para

    participar das atividades propostas em sala de aula, criam-se oportunidades

    22 Na subseo 5.1.2 e 5. 1. 3, se pode ter uma ideia de como isto ocorre nas minhas aulas.

  • 38

    de reflexo, individual ou coletiva, sobre esses temas. Descolar os momentos

    de reflexo temtica dos momentos de reflexo lingustica23 fora uma ruptura

    entre essas duas prticas, que so, de fato, integradas.

    5) Toda a reflexo proposta aos alunos deve ser lingustica, ou seja, deve ser

    sobre os usos da lngua e os sentidos que se constroem pela participao de

    sujeitos histricos em diversos contextos de interao, no sobre o contedo

    discursivo de determinados textos oferecidos como leitura aos alunos apenas

    para essa finalidade.

    No final de cada ano letivo peo que os alunos faam um texto cujo tema :

    qual a sua relao com a leitura e a escrita aps este ano de aprendizagem na

    disciplina de Redao? Este trecho, retirado de um desses textos, como tantos

    outro que j li, revela uma aluna que comea a elaborar suas prprias reflexes

    sobre aprender e ensinar a ler e escrever:

    Na escola aprendemos a escrever sem de fato escrever. S ouvir como fazer um bom texto no nos qualifica para tal. Desenvolver uma redao, por exemplo, algo que se consegue atravs da prtica. Quando fazemos um texto, no sabemos o que o leitor est pensando e se ele est conseguindo entender o que queremos dizer.

    O mais importante objetivo da minha prtica, que estabeleci aps ler os

    primeiros textos sobre a relao dos meus alunos com a escrita, era que eles

    superassem o medo de escrever. Hoje, quando aprecio os resultados, no s

    pelo engajamento dos alunos nas atividades, mas, tambm, pelo que est no

    texto final de cada um, s posso dizer que cumpri plenamente o meu objetivo.

    Tenho visto muitos alunos entrando em universidades durante esses anos de

    docncia, e isso me deixa gratificada por, de algum modo, fazer parte das suas

    conquistas. Mesmo, porm, que meus alunos no consigam entrar na

    universidade, o que importa que a relao deles com a escrita nunca mais ser

    de medo.

    23 Em Secretaria de Educao do Estado Rio Grande do Sul (p. 71-81, 2009) encontra-se um excelente texto explicando essa prtica

  • 39

    7 REFERNCIAS

    ANTUNES, I. Lutar com Palavras: coeso e coerncia. So Paulo: Parbola Editorial, 2005. BRITTO, L. P. L. O ensino escolar da lngua portuguesa como poltica lingustica: o ensino de escrita x ensino de norma. Revista Internacional de Lingustica Iberoamerciana, 1(3), 119-140, 2004. FRANCHI, E. E as crianas eram difceis: a redao na escola. So Paulo: Martins Fontes, 1986. FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessrios prtica educativa. So Paulo: Paz e Terra, 1996. FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. GUEDES, Paulo Coimbra. Da Redao Escolar ao Texto: um manual de redao. Porto Alegre: UFRGS, 2002. KLEIMAN, A. B. Os Significados do Letramento: uma nova perspectiva sobre a prtica social da escrita. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1995. LUFT, C. P. Lngua e Liberdade: por uma nova concepo de lngua e seu ensino. Porto Alegre: L&PM, 1985. PRATES, A. S. Vestibular e Cidadania: um olhar sobre as aulas de Redao de um curso pr-vestibular popular Instituto de Letras, UFRGS, Porto Alegre, 2014. SECRETARIA DE EDUCAO DO ESTADO RIO GRANDE DO SUL. /DEPARTAMENTO PEDAGGICO. Referenciais Curriculares do Estado do Rio Grande do Sul: Linguagens, cdigos e suas tecnologias. Porto Alegre: SEDUC/RS, 2009. SIMES, L. J.; RAMOS, J. W.; MARCHI, D.; FILIPOUSKI, A. M. Leitura e Autoria: planejamento em Lngua Portuguesa e Literatura. Erechim, RS: Edelbra, 2012. SOARES, M. B. Alfabetizao: a ressignificao do conceito. Alfabetizao e Cidadania, n 16, p 9-17, jul, 2003. REDDY, M. J. A metfora do conduto, um caso de conflito de enquadramento na nossa linguagem sobre a linguagem. Cadernos de Traduo, Porto Alegre, n 9, p. 9-54, janeiro-maro, 2000.