(andorinhas memórias da rsb carmen teixeira)

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1 ANDORINHAS Pequena Memória da Reforma Sanitária Brasileira Carmen Teixeira

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  • 1

    ANDORINHAS Pequena Memria da Reforma Sanitria Brasileira

    Carmen Teixeira

  • 2

    Ficha catalogrfica:

    Teixeira, Carmen Fontes, 1955 -

    TITULO: Andorinhas: pequena memria da Reforma

    Sanitria Brasileira

    Carmen Teixeira. Htera

    Salvador, Bahia, 2011, 149 p.

    1. Reforma Sanitria Brasileira; 2.Poltica de sade no Brasil

    ;3.Movimento sanitrio; 4. Crnicas; 5.Memrias.; 6.Testemunhos.

  • 3

    Para Henrique, Joo, Thiago, Larissa, Yasmin, David, Brbara, Alana, Roberto, Milena, Danilo, Virginia, Michele, Nelson, Fbio, Maurcio, rica, Iracerra, Juliana, Leonardo, Mnica, Ftima, Las, Elisngela, Francisco, Luiz Geovanne... e todos os alunos do Bacharelado Interdisciplinar em Sade.

    ... dando sentidos ao mundo e aos coraes

    sentimentos profundos

    Caetano Veloso

  • 4

    INDICE

    Prefcio

    Introduo

    De volta s origens

    Epifania

    Uma noite de viglia

    Um fator incontrolvel

    A lio de Ceclia

    Encontro em Dias Dvila

    O ncleo baiano do CEBES

    Semeando campos de prtica

  • 5

    Aprender planejamento I

    Aprender planejamento II

    A 8 Conferencia

    O exrcito de Brancaleone

    A criao do ISC

    O Sistema nico de Sade

    CelitaRealce
  • 6

    Prefcio

    As coisas esto no mundo, s que eu preciso aprender.

    Este no um livro de reminiscncias. Embora pautado na memria de

    fatos, sentimentos e pensamentos, um texto vivo. Reflete sobre processos

    com origens comuns, mas redefinidos a cada momento pela ao dos atores

    diante das circunstncias.

    Mais do que pensar na morte, como poderia sugerir a primeira frase do

    livro, o que exala o amor vida e s pessoas que ajudam a dar sentido e

    significado s vidas de outras tantas. No por acaso, a autora apela para

    Gonzaguinha, poeta da nossa gerao, que soube celebrar a vida, apostando

    na pureza das respostas das crianas.

    Mas no s a vida de Carmen e das pessoas que decidiu registrar

    nessas crnicas o que conta. Conta, especialmente, um fenmeno scio-

    histrico que chamamos Reforma Sanitria Brasileira no qual milhares de

    mulheres e homens emprestaram suas energias para assegurar o direito

    sade de milhes de cidads e cidados brasileiros. Conta, ainda mais, a

    coragem de uma educadora em se expor, abrindo seus sonhos, corao e

    prticas para leitores e leitoras, trabalhadoras e trabalhadores de sade e,

    especialmente, alunos atuais bem como os que ho de vir. Certamente suas

    lies de vida serviro para a reflexo e a ao de muito sujeitos

    comprometidos com as lutas sociais do povo brasileiro.

  • 7

    Esta Carmen Teixeira, poo de generosidade que se entrega

    inteiramente aos projetos com os quais se apaixona. Assim foi o CEBES, a

    Associao Bahiana de Medicina, a Residncia em Medicina Social, o

    Instituto de Sade Coletiva, a Graduao em Sade Coletiva e, mais

    recentemente, o Bacharelado Interdisciplinar de Sade. Neste livro revela

    um dos mais belos sentimentos humanos: a gratido. Enquanto a

    generosidade pode ser momentnea, resultado de um olhar enternecido

    sobre uma situao ou de uma compaixo pelo outro, a gratido

    duradoura, vai alm da emoo, passa pelo filtro da memria e ultrapassa o

    crivo da reflexo e da crtica. Para mim esta uma marca da vida da autora

    e que se expressa, concretamente, nesta obra.

    No diria que o livro chega a ser um mapa da mina para aqueles que,

    politizados, inspiram-se nas Palavras de Ordem do poeta e revolucionrio

    caboverdeano, Amilcar Cabral: pensar para agir e agir para pensar melhor.

    Estes, ao caminharem, construiro seus prprios caminhos. Mas aqueles

    que, ao buscarem o tesouro do saber, despertam-se para as contradies e

    injustias da sociedade capitalista, seguramente encontraro nessas crnicas

    bons motivos para tomarem posio e se comprometerem, tica e

    politicamente, com a transformao social.

    Enquanto professor e amigo, tive o privilgio de acompanhar a

    constituio de um sujeito pblico ntegro como Carmen Teixeira.

    Percebendo o seu fascnio pelas palavras (Lacan), lembrei-lhe que havia As

    palavras e as coisas (Foucault). Quando se interessou pela Arqueologia do

    Saber, alertei-lhe que existiam a estrutura econmica e a Histria (Marx). E

    quanto mais se extasiava com a leitura dos textos, mais sugeria uma

  • 8

    discusso sobre a prxis e o papel dos intelectuais na sociedade de classes

    (Gramsci).

    Todavia, o percurso ainda mais desafiante do que a formao

    intelectual foi o que Carmen fez, participando das lutas pela

    redemocratizao do Brasil e colaborando na reconstruo do Estado

    nicaragense, aps a derrubada da ditadura somozista. Se isso fora pouco,

    retornando ao Brasil decidiu investir numa estratgia-ponte para a

    construo do SUS, denominada Sistema Unificado e Descentralizado de

    Sade (SUDS) e implantar distritos sanitrios, sementes de um novo sistema

    de sade.

    Se a realidade no acompanhou a radicalidade dos seus sonhos nem

    por isso desertou das lutas por um sistema de sade digno para todas as

    pessoas. Lembro-me que em pleno perodo Collor, quando vicejava o

    neoliberalismo mais destrutivo e quando realizaram a operao desmonte do

    SUS, Carmen viajava por este pas a reorganizar prticas em distritos

    sanitrios, atravs do desenvolvimento da vigilncia da sade. Naquela

    poca, perguntei-lhe como conseguia motivao para trabalhar com um

    sanitarismo de resultados que reduzia a poltica de sade ao Programa dos

    Agentes Comunitrios de Sade (PACS). No entendia como uma pessoa

    com a experincia e qualificao de Carmen, depois de estudar e

    desencadear processos como a Reforma Sanitria, pudesse se contentar em

    restaurar programas de extenso de cobertura (PECs) dos anos setenta. Com

    toda a objetividade, honestidade e segurana, respondeu-me: Sou

    sanitarista, trabalho onde possvel trabalhar.

    Esta a autora desse livro. Com uma escrita cativante pela emoo

    que desperta nos leitores propicia, ao mesmo tempo, um conjunto de

  • 9

    reflexes sobre o que fizemos da vida que nos foi dada a viver. Ou melhor,

    o que aprendemos e fizemos no mundo enquanto tecamos, todo dia, a vida

    de cada um de ns. As coisas esto no mundo, s que eu preciso aprender.1

    Jairnilson Silva Paim

    14 de abril de 2011

    1 Coisas do mundo, minha nega (Paulinho da Viola).

  • 10

    Introduo

    Se de repente ficasse sabendo que s tinha mais um dia para viver,

    gostaria de passar esse dia agradecendo aos meus amigos. Visitaria um por

    um, ou telefonaria, ou passaria um e-mail, dizendo a cada um deles que

    minha vida se tornou rica pela sua presena, pela sua proximidade, por ter

    acedido a suas idias, me engajado em seus projetos, compartilhado suas

    utopias.

    Refletindo sobre isso, dou-me conta de que encontrei, em meu

    caminho, pessoas extraordinrias, que atravs de suas aulas, conferncias,

    textos, e, principalmente, pelo exemplo de suas vidas, dedicadas ao estudo,

    ao trabalho intelectual e prtica poltica, constituram as marcas do meu

    caminho, as luzes que me iluminaram, demarcando o campo onde tratei de

    construir minha casa e onde semeei o meu jardim.

    Pois bem, antes que s tenha mais um dia para viver, decidi escrever

    esse livro, aproveitando o tempo que tenho para contar aos meus alunos as

    histrias da reforma sanitria, forma de tornar sempre presente algumas das

    pessoas extraordinrias que participaram da construo desse movimento.

    Cultivo, assim, a lembrana do que fomos e fizemos, dos sonhos que nos

    embalaram e das lutas que nos forjaram, enternecida ao recordar pessoas

    que me mostraram, com sua seriedade e dedicao, entusiasmo e alegria

    como se pode fazer da vida um lugar melhor.

    Nesse momento, encontrei um trecho de Jorge Luis Borges, que, de

    repente brilhou como a explicao. Por que escrever sobre isso? Porque

  • 11

    escrever para lembrar como fomos constitudos como sujeitos? Porque,

    como diz Borges:

    O escritor, ou todo homem, deve pensar que tudo o que lhe ocorre um instrumento; todas as coisas lhe foram dadas para um fim, e isso tem que ser mais forte no caso do artista. Tudo o que lhe acontece, at mesmo as humilhaes, a vergonha, as desventuras, tudo isso lhe foi dado como argila, como material para sua arte; tem que aproveit-lo. Por isso falei em um poema do antigo alimento dos heris: a humilhao, a desgraa, a discrdia. Essas coisas nos foram dadas para que as transmutemos, para que faamos, da miservel circunstncia de nossa vida, coisas eternas, ou que aspirem a s-lo. (Obras completas, v.3, p;. 322).

    Por isso, esses textos, contando histrias, refletindo sobre pessoas,

    refazendo perguntas, resgatando valores, quem sabe apontando caminhos.

    Dando-me conta de que no s da misria da vida podemos fazer arte e

    poltica, mas tambm de momentos que a enriqueceram, enchendo-a de

    significados que transcendem necessidades e desejos e apontam a

    construo de uma fraternidade que transborda o grupo que a criou.

    Carmen

    Outubro de 2010

  • 12

    De volta s origens

    No Largo da Lapinha, encravado na encosta que margeia a cidade

    baixa, desenha-se o perfil de uma edificao amorfa, casa reformada e

    ampliada, sede de um antigo hospital psiquitrico onde se praticava o

    confinamento e a excluso de pessoas rotuladas como alcoolistas crnicos,

    oligofrnicos, psicticos e histricos.

    Ningum adivinha, ao caminhar apressado ou preguiosamente, nas

    pedras do calamento do largo secular, que atrs dos muros e das grades das

    janelas daquela casa, encerrava-se a dor, a angstia, a loucura, a desrazo.

    Olhos vtreos, testas enrugadas, movimentos lentos, silncio nos corredores

    e enfermarias, s quebrado pela sirene que avisava dos horrios

    padronizados.

    Junto com o alimento, embarcava nas bocas o rosrio de plulas,

    garantia de conteno, apagamento da viso, Por vezes o excesso de

    medicamentos levava rigidez muscular, ao caminhar arrastado, aos sons

    balbuciados, impregnao, camisa de fora qumica, que aprendi logo a

    reconhecer.

    Em mim esse perodo foi marcado pelo esforo de conciliar a nsia

    de liberdade que impulsionava um comportamento rebelde, refratrio s

    tradies, com as prticas necessrias sobrevivncia diria, trabalhando

    por dois anos naquele sanatrio da Lapinha, aonde chegava subindo a p

    ngreme ladeira secular.

  • 13

    Por vezes levantava o olhar da superfcie das pedras irregulares que a

    cobriam e mirava o mar ao longe sentindo nos msculos o cansao da

    subida. Respirava fundo e pensava que afinal aquilo era s um comeo,

    como se antecipasse uma vida inteira de trabalho a tentar compreender,

    participar, mudar.

    Durante o planto, atendendo aos casos que surgiam na emergncia,

    preenchendo formulrios de internamento ou revisando pronturios para

    acompanhar a evoluo dos pacientes, por vezes dava-me conta da trama de

    relaes que conduziram aqueles homens e mulheres a serem apanhados nas

    malhas do poder institucionalizado da psiquiatria.

    E me percebia impotente, completamente impotente, diante desse

    poder, tolamente procurando classificar o conjunto de sintomas em uma

    entidade includa na Classificao Internacional das Doenas, tosca tentativa

    de apaziguar minha ansiedade como se colocar o conjunto de sintomas em

    um rtulo, arrumando cada caso em sua gaveta, ordenando cuidadosamente

    cada um, conferisse inteligibilidade ao que havia levado aquelas pessoas

    loucura.

    No fundo do peito germinava a nsia de romper os grilhes, angstia

    de atravessar as imagens do cotidiano como se fossem sombras projetadas

    nas paredes das cavernas onde vivia ento. Por isso a identidade com os

    loucos encarcerados, o interesse pelos poetas malditos, a tentativa de seguir

    os passos de outros loucos que traaram caminhos para escapar,

    mergulhando em realidades paralelas ou experimentando formas alternativas

    de viver, amar, sonhar.

    Se a psiquiatria revelava a busca pela sade mental, isso se deu

    atravs do encontro com pessoas que tambm exibiam seu

  • 14

    descontentamento, sua decepo com os limites da ateno mdica. Fui

    convidada a participar dos seminrios organizados por Luiz Umberto

    Pinheiro, professor de psiquiatria interessado em discutir as idias e

    experincias de Foucault e Basaglia. Esses encontros na tera-feira tarde

    em uma sala do terceiro andar do Hospital das Clnicas atraram vrios

    alunos do curso mdico, conjunto heterogneo de aspirantes a psiquiatras.

    Ali comecei a vislumbrar a possibilidade de conectar minha

    incompreenso acerca da loucura, com a apreenso de um referencial que

    ajudava a compreender a sociedade que a produzia. As palavras de Foucault

    e as propostas de Basaglia se juntaram s idias de Laing e Cooper1,

    releitura de Freud, atravs dos seminrios de Lacan, misturando-se s vagas

    inquietaes que trazia de buscas anteriores provocadas pela literatura, arte

    e religio.

    O foco da reflexo desencadeada no grupo distava muito de qualquer

    busca que enfatizasse o sobrenatural, o mstico, e at mesmo o potico, o

    artstico. Tratava-se de problematizar o social, em uma perspectiva

    marxista, o que implicava analisar as determinaes estruturais e histricas

    que engendravam condies para a emergncia e psiquiatrizao da loucura.

    A leitura de Foucault fornecia os elementos que nos permitiam

    compreender as relaes entre os pequenos fatos do cotidiano e as grandes

    estruturas que delimitavam as possibilidades do viver. O debate em torno da

    experincia conduzida por Basaglia em Triestre oferecia um caminho para

    se experimentar alternativas de ao teraputica que respeitasse a

    criatividade de cada sujeito na construo do seu modo de vida. A crtica ao

    movimento ideolgico da Psiquiatria Comunitria2 provinda dos EUA

  • 15

    ajudava a aproximar o debate acerca das prticas de sade com a realidade

    latino-americana e brasileira, luz das teses leninistas sobre o imperialismo

    Esse percurso me conduziu Sade Pblica, como aconteceu a

    tantos outros, que a partir da insero no campo da Sade Mental,

    encontraram palavras para nomear a inquietao, a revolta, transformando

    em texto o que at ento era angstia, encontrando um caminho por onde

    aperfeioar o pensamento e a ao, juntando medicina e poltica,

    conhecimento de si e conhecimento do mundo.

    Anos depois, trabalhando na redao do peridico da ABM que

    difundia as idias do grupo fundador do movimento sanitrio na Bahia,

    guardei na lembrana uma frase dele que invertia o significado que eu

    estava habituada a atribuir aos fatos e situaes corriqueiras e que sintetiza o

    que aconteceu comigo naquele distante ano de 1977.

    As pessoas no esto em silncio, elas foram silenciadas!

    Com isso denunciava os mtodos da represso e enunciava um saber

    sobre o acontecido, posto, simultaneamente, como constatao e inspirao.

    Iluminada por essa afirmao, comecei a pensar que se havia algum

    externo a mim responsvel pelo silncio, seria possvel reconhecer a

    existncia de minha voz, lutando contra a represso que a silenciava,

    expulsando de dentro de mim as marcas do poder que encarceravam meus

    pensamentos, abrindo as portas da gaiola mental onde me debatia.

    Se a sociedade era patognica, cabia transform-la. O eco do brado

    de Virchow, propondo a compreenso da poltica como a medicina em larga

    escala, ressoava em cada um de ns, liderados por Luiz Umberto, militante

    decidido a investir na mobilizao e organizao dos profissionais de sade

  • 16

    como modo de enfrentar o silncio ensurdecedor provocado pelo aparato

    repressivo, na vigncia da ditadura militar

    Diante disso, que nos cabia fazer? E ele insistia: O remdio

    lutar. Confiantes, nos entregamos a este desiderato...

    Trinta anos se passaram, mas a insatisfao com os rumos da prtica

    mdica em uma sociedade como a nossa, continua inquietando mentes

    sensveis, que problematizam a escola, a universidade, o trabalho em sade,

    a poltica, e partem em busca de alternativas que confiram um significado

    mais pleno aos seus esforos cotidianos. Lutemos ento... Antes que a noite

    se prolongue tanto que o sol decida no nascer.

  • 17

    Epifania

    Ingressei no Internato de Medicina Preventiva em janeiro de 1978, l

    se vo trinta e dois anos. A histria de como fui parar ali, naquele grupo

    esquisito, que parecia reunir os outsiders do curso mdico, que no

    conseguiram se encaixar em nenhuma das especialidades oferecidas no

    ltimo ano, engraada.

    Decidida a seguir a formao em Psiquiatria, procurei o coordenador

    do Colegiado de Cursos na poca, que me informou gentilmente que j no

    havia vaga no grupo de Psiquiatria, porque, inusitadamente, a demanda

    havia sido bastante alta para o primeiro semestre. Posteriormente fiquei

    sabendo que os internos eram, em sua maioria, os alunos que faziam parte

    do grupo organizado no ano anterior em torno dos seminrios de Psiquiatria

    social.

    Essa circunstncia, ou seja, o atraso em solicitar minha incluso no

    grupo, pelo fato de ser aluna regular de outra faculdade, a Escola Bahiana de

    Medicina e Sade Pblica, e no aluna da UFBA decidiu meu futuro, pois,

    como no havia vaga em Psiquiatria, o coordenador do colegiado me

    ofereceu a possibilidade de ingressar em neurologia, dermatologia, ou...

    Medicina Preventiva!

    De Medicina Preventiva, eu no sabia nada, tinha apenas uma vaga

    idia de que era uma coisa nova, a medicina do futuro, quem sabe,

    influenciada pela leitura de alguns fascculos da Revista Sade no Mundo,

    editada pela OMS, que eu gostava de folhear nas longas tarde que passava

  • 18

    na biblioteca. Afinal, em meu curso tinha tido aulas de Higiene e no de

    Medicina Preventiva.

    Diga-se de passagem, que de todas as matrias do curso, essa foi a

    nica em que s fui aprovada nos exames de segunda poca (a recuperao

    naquele tempo), por pura antipatia com o contedo a ser estudado. Quando

    li a tese de doutorado de Antonio Srgio Arouca, percebi que a Higiene

    fazia parte das origens do pensamento preventivista, e que, de certo modo a

    deciso de cursar o Internato nesta rea implicava um salto de quase um

    sculo.

    Este salto, entretanto, no me colocou exatamente no futuro, como

    anunciava a ideologia da Medicina Preventiva, e sim me ancorou

    firmemente no presente, desde o primeiro momento em que pisei os ps na

    pequena sala do 5 andar do Hospital das Clnicas, na qual o jovem

    professor Jairnilson Paim apresentava o programa dos Seminrios que

    compunham a parte terica do curso.

    Neles estavam previstos duas ordens de leitura e reflexo. De um

    lado, o mergulho na realidade brasileira em termos da situao de sade da

    populao e do debate acerca da organizao dos servios, exatamente no

    momento em que se problematizava a crise do setor sade, e se comeava

    a elaborar alternativas de reformas na poltica e no sistema de sade.

    Nessa perspectiva, ganhava importncia os textos de Carlos Gentile

    de Melo, originalmente escritos como crnicas jornalsticas e naquele

    momento reunidos e publicados em um livro intitulado Assistncia Mdica

    no Brasil, bem como os textos reunidos na coletnea organizada por

    Reinaldo Guimares, sob o ttulo Sade e Medicina no Brasil.

  • 19

    Por outro lado, os Seminrios propostos por Jairnilson incluam a

    leitura de textos, dissertaes e teses elaboradas no perodo, que colocavam

    questes tericas e metodolgicas relativas produo de conhecimentos na

    rea, inclusive aquelas que comeavam a problematizar a prpria natureza

    da Medicina Preventiva, a exemplo da tese de Arouca e dos livros de Maria

    Ceclia Donnangelo, ambos produzidos a partir de suas teses de Doutorado e

    de Livre Docncia na USP.

    A leitura da tese de Arouca foi um ponto de viragem em minha

    compreenso, no s da Medicina Preventiva, como propunha o autor, seno

    que das relaes entre Medicina e Sociedade, temtica que consegui

    aprofundar verdadeiramente estudando o livro homnimo de Ceclia

    Donnangello.

    Sempre volto a refletir sobre a experincia que vivenciei ao tentar

    ler, pela primeira vez a tese de Arouca, e em todas as vezes que penso sobre

    isso, percebo que o essencial dessa experincia foi a dificuldade que tive em

    apreender o significado e o sentido do texto em si. Lembro que consegui

    emprestado um exemplar da tese logo na primeira semana do Internato e fui

    para casa carregando aquele volumoso calhamao de pginas

    mimeografadas, como se carregasse um ba de tesouro, uma caixa de

    Pandora, esperando ser aberta para revelar segredos.

    Afinal, havia ficado intimidada e curiosa com o sorrisinho maroto

    com que Jairnilson acolheu meu comentrio ingnuo sobre as razes que me

    levaram a ingressar no Internato. Penso que no seria educado dizer que foi

    por absoluta falta de opo, ou pior ainda, revelar que entre as opes que

    tive, escolhi aquela porque me pareceu ser a mais fcil, a que me daria

    tempo para continuar estudando Psiquiatria, ou melhor, Psicanlise, j que

  • 20

    fazia parte de um grupo de estudos sobre a obra de Lacan, coordenado por

    Jos Julio do Amaral, psicanalista argentino recm chegado a Salvador.

    Da que, recordando minha empolgao juvenil com as viagens do

    Dr. Albert Schweitzer3 e as fantasias de adolescente com relao a trabalhar

    na Amaznia, achei de dizer qualquer coisa que soava como entusiasmo

    com a possibilidade da Medicina Preventiva ser a medicina do futuro e

    me deparei com o risinho quase sarcstico de Jairnilson, logo seguido de sua

    sugesto educada de que eu lesse a tese de Arouca.

    E l estava eu com a tal tese nas mos, folheando suas pginas e

    deslizando meu olhar sobre o texto, sem entender nada! Exagero, porque

    pelo menos percebia que o autor tinha tomado como ponto de partida a

    proposta metodolgica de Foucault, decidindo-se a tentar fazer uma

    arqueologia do discurso preventivista, buscando suas origens, suas regras de

    enunciao, o lcus institucional onde tal discurso buscava se legitimar, etc.

    Fascinada com o desafio e apavorada com minha ignorncia, tratei

    de ir comprar, rapidinho, o Arqueologia do saber, de Foucault, ampliando

    assim minhas leituras desse filsofo por quem j tinha me interessado

    vivamente atravs da Historia da Loucura. Na arqueologia, entretanto,

    encontrei outro Foucault, mais lgico, mais abstrato, menos histrico,

    menos literrio.

    Apesar disso, ele me ajudou a entender o labirinto em que tinha se

    embrenhado o pensamento de Arouca, labirinto que, fiquei sabendo depois,

    foi necessrio para despistar a censura e a represso poltica que ele,

    enquanto marxista vinculado ao Partido Comunista Brasileiro, ento na

    clandestinidade, corria o risco de sofrer, e sofreu efetivamente, no curso de

    ps-graduao na Universidade de Campinas.

  • 21

    Para mim, a tese de Arouca foi o tesouro de Bresa4. O esforo que

    tive de fazer para decifrar o texto, buscando o significado dos conceitos com

    os quais ele trata de elaborar uma concepo acerca da Medicina Preventiva

    que rompe radicalmente com a ideologia que velava nossa compreenso, me

    ajudou a perceber a possibilidade de construir internamente, em minha

    mente, um referencial, com o qual posso mover o conjunto de termos,

    noes e conceitos que foram sendo incorporados em meu universo

    vocabular.

    Somente mais tarde, lendo Gramsci, especialmente sua reflexo

    acerca de como se pode fazer a autocrtica da viso de mundo que cada um

    de ns forja ao longo da vida, a partir do que lhe dado e absorvido pela

    lngua, costumes, religio, escola, trabalho, compreendi que a leitura da tese

    de Arouca operou em mim como uma alavanca, deslocando a perspectiva

    com que tentava compreender a sade, a doena, a medicina, a sociedade e a

    poltica.

    A partir da, tinha, pelo menos, a experincia vivida da possibilidade

    de constituir-me como sujeito, capaz de pensar criticamente, no sentido

    pleno na palavra crtica tal como formulada por Kant5, ou seja, o processo

    atravs do qual a razo empreende o conhecimento de si. Processo que se

    torna infinito enquanto dura a vida que nos dada e que escolhemos viver.

  • 22

    Uma noite de viglia

    O clima em que vivamos na Universidade e especificamente na

    Faculdade de Medicina naqueles idos de 1978 refletia o processo mais geral

    de abertura poltica que o pas comeava a viver. Multiplicavam-se as

    assemblias de estudantes nas quais se discutia questes especficas do

    curso mdico e posicionamentos a favor da anistia aos presos polticos e

    exilados pela ditadura militar, moes de solidariedade s manifestaes

    produzidas pelos movimentos populares e bandeiras relacionadas com a luta

    pela redemocratizao do processo poltico no pas.

    Participando das assemblias, ficava surpresa e encantada com a

    familiaridade que alguns dos nossos colegas revelavam ter com a prtica

    poltica, discursando com propriedade, usando uma linguagem que

    anteriormente eu s conhecia muito imprecisamente em alguns livros e que

    agora ouvia em alto e bom som, e lia avidamente, nas pginas dos jornais

    Movimento6, Em Tempo7 e Voz da Unidade8.

    Nas letrinhas pequeninas que descreviam o expediente desses

    jornais, percebia que alguns, como o Em tempo e Voz da Unidade,

    intitulavam-se rgos oficiais dos partidos comunistas que atuavam

    clandestinamente, o PCdoB e o PCB. O Movimento, vendido em bancas,

    continha extensos artigos, anlise de conjuntura, densos textos que me

    convocavam a entender um pouco que fosse de economia e de poltica,

    desvelando uma realidade, um pas que eu no conhecia, mutante,

    cambiante, vivo, em ebulio.

  • 23

    Para alm das leituras, um evento, um acontecimento, provocou e

    permitiu que eu passasse da teoria prtica, como se propugnava naquele

    momento. O Diretrio acadmico de Medicina, cujas lideranas faziam

    parte do pequeno grupo de estudantes que j estavam vinculados a partidos

    polticos de oposio, desencadeou um processo de mobilizao do conjunto

    de alunos em torno da crise permanente do Hospital Universitrio.

    Queixavam-se do excesso de estudantes por leito, do pequeno

    numero de supervisores, do fato dos professores mais experientes delegarem

    as tarefas docentes aos mdicos residentes do hospital... enfim, um

    movimento que questionava a poltica estatal com relao aos hospitais

    universitrios e problematizava a qualidade do ensino mdico, numa espcie

    de reao tardia aos efeitos do processo de reforma universitria que havia

    sido implementada pelo regime autoritrio dez anos antes.

    Passei a integrar um grupo responsvel por revisar o debate acerca

    da Educao Mdica. A maioria dos integrantes desse coletivo de estudantes

    tinha uma vaga idia de que a Medicina Preventiva propunha mudanas no

    ensino mdico, da me encomendaram a identificao de textos que

    pudessem ajudar na tomada de posio com relao ao que se passava na

    Faculdade de Medicina, ampliando-se a problemtica inicial restrita s

    deficincias dos estgios no hospital universitrio.

    Textos sobre o ensino mdico? Recorremos ao nosso coordenador,

    professor Jairnilson Paim, e eis que ele nos indicou a leitura de um capitulo

    do livro de Juan Cesar Garcia, Educacon Mdica em America Latina,

    editado pela OPS, como fruto de uma extensa pesquisa emprica que

    abarcou dezenas de escolas mdicas do continente.

  • 24

    O texto em questo, exemplo marcante da aplicao do enfoque

    estruturalista compreenso da historicidade do processo de formao de

    mdicos (e, por extenso, da formao dos profissionais de sade em geral,

    em que pese as especificidades de cada profisso), destacava os elementos

    do processo e mais que isso, o significado atribudo prtica mdica em

    cada modo de produo.

    A influncia do pensamento marxista, especialmente a critica da

    economia poltica e a releitura de O capital operada por Louis Althusser, na

    Frana, era inegvel. Para ns, apesar de certo esquematismo, o texto

    representou a porta de entrada para uma mudana radical da forma de

    compreender a Histria, a partir da vista no mais como um processo

    linear, seqncia de fatos mais ou menos conectados entre si, seno que um

    processo complexo, no qual possvel perceber a sucesso de perodos

    marcados pela vigncia de modos de produo especficos, que determinam

    as caractersticas das sociedades nos quais se reproduzem.

    Mais que isso, a compreenso dos momentos de ruptura, de mudana

    no modo de produo dominante, permitiu que entendssemos a

    possibilidade de vivermos em sociedades nas quais coexistem diversos

    modos de produo, ou melhor, relaes de produo caractersticas de

    diversos modos, coexistindo em funo da dominncia de um modo de

    produo sobre outro.

    No tnhamos muito clareza do que estvamos aprendendo, mas

    creio que a leitura do texto de Juan Csar Garcia nos preparou para

    compreender o chamado materialismo histrico, e nos estimulou,

    concomitantemente a adentrar em leituras especficas sobre histria,

    sociologia e filosofia da cincia, tentando responder uma pergunta que na

  • 25

    poca permanecia sem resposta: como opera, de fato, a tal da determinao

    estrutural sobre o processo criativo, de descoberta e inveno de novos

    saberes e tecnologias para se apreender e intervir sobre o fenmeno sade-

    doena?

    como se pensssemos: est bom! Aceitamos a tese de que a

    medicina determinada estrutural e historicamente, mas como exatamente

    se d esta determinao? Naquele momento, entretanto, deixamos essa

    pergunta de lado e nos contentamos em pensar que a medicina, em uma

    sociedade regida pelo modo de produo capitalista, como a nossa, responde

    a determinaes decorrentes de sua insero neste modo de produo.

    A formao de mdicos, nessa perspectiva, responde a presses

    originadas no mercado de trabalho, e se este dominado pela busca do

    lucro, pela tal extrao da mais valia, esse processo se daria pela

    explorao do trabalho mdico, na medida em que este deixou de ser um

    profissional liberal e passou a ser um trabalhador assalariado. Isso Ceclia

    Donnangelo j nos ensinava com seu estudo sobre o processo de

    transformao da forma de insero do mdico no mercado de trabalho.

    Tambm nos havia alertado para as funes que a medicina exerce no

    processo de reproduo de sociedades capitalistas, em seu livro seminal,

    Sade e Sociedade.

    Assim que a leitura do texto de Juan Cesar simplesmente encaixou

    a compreenso do processo de formao de mdicos como uma linha de

    montagem que envolvia os estudantes, os professores, e as relaes entre

    eles, mediadas pelos saberes e tecnologias que circulam entre esses agentes

    no exerccio de uma prtica, simultaneamente docente e de interveno, que

    se d sobre um paciente expropriado do seu saber, passivo diante do poder

  • 26

    mdico e submisso presso pelo consumo de mercadorias que se

    interpem na relao entre um e outro.

    Ainda que combinasse um referencial terico marxista com a

    diagramao sistmica do processo de produo de mdicos, a anlise

    de Garcia fechou o crculo que inclua a compreenso das relaes entre a

    medicina e a sociedade, explicitando como a Escola Mdica fazia parte do

    circuito de reproduo social de um determinado modelo de prtica,

    reforando, conseqentemente, determinado modelo de produo de

    conhecimentos e de tecnologias de ateno sade-doena.

    O fato que lemos o texto e preparamos uma apresentao de suas

    principais idias, imaginando que a faramos em uma sesso parecida com

    os seminrios que estvamos nos acostumando a fazer no curso. Nesse

    nterim, porm, as relaes entre as lideranas do movimento e a Direo do

    Hospital Universitrio azedaram e a mobilizao tomou um rumo

    inesperado. Algum props e aceitamos fazer uma viglia no saguo do

    Hospital, ou seja, passarmos a noite acordados, ocupando a entrada do

    Hospital, como forma de protesto e como presso para que nossas

    reivindicaes fossem ouvidas e acatadas pelo Conselho Deliberativo.

    Que fazer durante a longa noite em que permanecemos acordados,

    sentados no cho frio sob os olhares atentos dos funcionrios da portaria do

    Hospital e sob os olhares curiosos, risonhos ou zangados, dos membros do

    staff que passavam apressados evitando nossa abordagem? Discutir o

    Ensino Mdico!

    Para isso, sentamos em crculo, e tratamos de apresentar e comentar

    as idias de Juan Csar Garcia. A noite passou, mas ficou em minha

    lembrana, para sempre, a sensao de que estvamos imitando, ainda que

  • 27

    parcamente, algo do esprito rebelde das barricadas de Paris em maio de

    1968.

    Pela manh, mesmo exaustos, decidimos completar a manifestao,

    iniciando uma passeata at o Campo Grande, distante uns 300 metros do

    campus universitrio, onde se situa o Hospital. Um bando trpego dos

    estudantes de medicina, talvez cerca de 70 a 80 estudantes, sai em

    caminhada, atravessa o limite da rea federal protegida do campus e pisa as

    ruas da cidade de Salvador, ruas que ocupvamos to alegremente durante o

    Carnaval.

    Desta vez, no. Em meio caminho, nos deparamos com um

    esquadro da tropa de choque da Polcia Militar, fechando a passagem,

    impedindo que chegssemos ao corao da Praa onde espervamos criar

    um fato poltico que poderia, talvez, aparecer na mdia e repercutir na

    opinio pblica, denunciando a precariedade da situao do Hospital, a m

    qualidade do Ensino Mdico e a represso poltica em que estvamos

    imersos.

    Que fizemos? Parados, imveis diante dos cassetetes e escudos da

    polcia, demos as mos e entoamos o hino nacional. Nunca antes como

    naquele instante, fui tomada pelo ardor cvico, sentindo na pele o que

    significa defender o direito livre expresso de idias e vontades, o direito

    reunio, organizao e mobilizao poltica para que se escute a nossa voz.

  • 28

    Um fator incontrolvel

    A primeira vez que me interessei pelo tema da forma de organizao

    da assistncia mdica no Brasil, foi quando assisti a uma palestra de

    Jairnilson, no distante ano de 1976, no auditrio da escola Baiana de

    Medicina e Sade Pblica. Naquela poca estava envolvida at a raiz dos

    cabelos com a psiquiatria e a msica, assim que no dei continuidade a esta

    reflexo, mas guardei em mim a lembrana daquele jovem professor,

    magrinho, que falava de poltica com um entusiasmo transbordante.

    Posteriormente, j estudando sob sua orientao no Internato em

    Medicina Preventiva e no Mestrado em Sade Comunitria, o tema ganhou

    relevncia, desde que nosso Plano de estudos abarcava a anlise e discusso

    dos problemas relativos organizao da assistncia mdico-hospitalar no

    pas, o que nos levava a ler vrios textos que abordavam o tema sob os mais

    diversos ngulos.

    Um dos autores que lamos era Carlos Gentile de Melo, mdico,

    sanitarista e articulista de vrios jornais, cujos textos incitavam a polmica,

    principalmente os que denunciavam a corrupo que grassava nos bastidores

    das instituies previdencirias responsveis pela prestao de servios aos

    trabalhadores inseridos no mercado formal de trabalho e seus dependentes.

    Os artigos de Gentile de Melo, escritos em linguagem acessvel a

    leigos, constituam, de fato, a porta de entrada ao debate crtico acerca da

    poltica de assistncia mdica e hospitalar, na medida em que apontavam os

    problemas e indicavam possveis causas para a insatisfao de parcela

  • 29

    significativa dos profissionais que comeavam a se organizar no que veio a

    ser o movimento de Renovao Mdica9.

    Alm disso, seus artigos contribuam para esclarecer os leitores

    acerca das formas de financiamento e gesto dos estabelecimentos de sade,

    tanto os que constituam a chamada rede prpria da previdncia social

    quanto a rede contratada e conveniada, ou seja, o conjunto dos

    estabelecimentos privados que tambm atendiam aos segurados da

    previdncia mediante convnios e contratos de prestao de servios.

    O interessante da leitura dos artigos de Gentile, como se pode

    perceber, era que nos levava a atentar para os aspectos econmicos e

    polticos que determinavam as formas de organizao da produo e

    consumo de servios mdico-hospitalares, coisa que nem de longe se

    discutia nas matrias que compunham o currculo da escola mdica.

    Pensando sobre isso, percebo que na maioria quase absoluta das

    matrias, o contedo que era apresentado ao estudante dizia respeito

    basicamente aos conhecimentos e tecnologias que podiam e deviam ser

    utilizadas na prtica mdica em si, isto , no ato mdico, sem se

    problematizar as condies de trabalho e as formas de remunerao do

    profissional.

    como se cada um se ns fssemos sendo formados para exercer a

    prtica clnica, de forma liberal, o que acabava se tornando uma ideologia

    espontnea, por pura falta de oportunidades pedaggicas que nos levasse a

    refletir sobre a organizao social da prtica mdica, conceito

    posteriormente elaborado na dissertao de mestrado de Roberto Passos

    Nogueira, intitulada Medicina e Cirurgia: a formao social da prtica

    mdica, defendida no IMS da UERJ.

  • 30

    Atravs dos artigos de Gentile, portanto, nos dvamos conta de que a

    medicina no era somente a cincia e a arte de curar, como ingenuamente

    pensvamos. Era tambm um servio prestado a pessoas, algumas das quais

    pagavam diretamente, pela consulta, exames ou internao, e outras

    pagavam indiretamente, atravs das instituies governamentais que

    arrecadavam impostos ou que descontavam diretamente do salrio delas o

    percentual de recursos que compunham os fundos de onde saia o pagamento

    dos mdicos, dos outros profissionais, dos hospitais, etc.

    Hoje talvez, por conta de vivermos em uma sociedade que

    transforma tudo, mas tudo mesmo, em mercadoria, afirmar que a ateno

    mdica tambm uma mercadoria e que seu consumo, para ser garantido,

    passa pelo financiamento pblico e ou privado, no cause estranhamento.

    Naquela poca, porm, significava uma ruptura com a forma tradicional e

    ingnua de se pensar a prtica mdica e abria os nossos olhos para a

    compreenso da economia poltica.

    Das polmicas desencadeadas pelos textos de Gentile de Melo, uma

    delas se transformou em um emblema da luta contra a chamada

    mercantilizao da medicina, uma mistura de crtica ao processo de

    capitalizao, com o surgimento de empresas mdicas que sobrepunham o

    interesse pelo lucro qualidade tcnica e tica do cuidado fornecido aos

    pacientes, com uma crtica poltica (e moral) aos mdicos que se tornavam

    empresrios e assalariavam colegas, muitas vezes reproduzindo condies

    de trabalho que comprometiam o exerccio de uma boa prtica.

    Outra questo, correlata denncia do processo de

    mercantilizao e seus efeitos sobre a prtica mdica, tomava como alvo o

    prprio Estado, na medida em que as opes polticas com relao s formas

  • 31

    de financiamento, especialmente a contratao e compra de servios

    produzidos pelos estabelecimentos privados, segundo Gentile de Melo,

    induzia corrupo. De fato, ele apontava que os sistemas de pagamento

    por produo, atravs do clculo das Unidades de Servios (US),

    estimulavam a superproduo de atos mdicos, como forma das clinicas e

    hospitais contratados e mdicos credenciados, faturarem mais.

    Denunciava, por exemplo, a epidemia de cesarianas, induzida pelo

    fato de que um mdico e um hospital recebiam mais por parto cesreo do

    que por um parto normal. Com isso, argumentava, introduziam-se distores

    na prtica mdica que somente poderiam ser corrigidas com mudanas nas

    formas de financiamento e gesto. Tomando a US como smbolo do sistema

    contra o qual investia, Gentile cunhou a expresso a US um fator

    incontrolvel de corrupo, expresso que se tornou um smbolo da sua

    luta quixotesca contra os moinhos da poltica de sade da poca.

    Reconhecido como paladino da reforma do sistema pblico de sade

    pelos jovens mdicos e sanitaristas que comeavam a conformar o

    movimento pela Reforma Sanitria, Gentile de Melo passou a ser convidado

    a proferir palestras e conferncias em eventos que reuniam estudantes,

    professores, profissionais de sade e simpatizantes das lutas pela

    democratizao da sade.

    Dessa forma, veio Bahia, convidado aos seminrios organizados

    pela Associao Psiquitrica da Bahia, APB, na gesto encabeada por Luiz

    Umberto Pinheiro, cuja militncia j havia extrapolado os muros da Escola

    Mdica e se espraiava nas organizaes de profissionais de sade aonde

    veio a exercer uma liderana incontestvel.

  • 32

    Ao Seminrio para o qual Gentile foi convidado, realizado no

    auditrio do IRDEB, sede da Radio Educadora da Bahia, na Federao,

    afluram dezenas de pessoas, entre as quais, o grupo de internos da

    Medicina Preventiva, curiosos para ver e ouvir, de perto, algum que j

    naquela poca, era lendrio.

    No nos decepcionamos. Ainda que pela sua figura lembrasse mais

    Sancho Pana que D. Quixote, Gentile de Melo, com sua postura inquieta,

    sorridente, irnico e provocador, ganhou rapidamente a audincia. Repetia o

    que j conhecamos de seus textos e acrescentava exemplos que

    amplificavam os escndalos que ento, muito parcamente, j comeavam a

    surgir na mdia.

    L pelas tantas resolveu, no sei at hoje se foi de propsito, usar

    como exemplo da ganncia, da usura, praticada pelos empresrios da sade,

    o que ocorria em todo o pas com a chamada indstria da loucura, ou seja,

    a ampliao do atendimento a pacientes diagnosticados como neurticos ou

    psicticos e sua internao por semanas e at meses, como forma de se

    garantir a lucratividade dos hospitais psiquitricos privados.

    Acontece que, na primeira fila do auditrio lotado, encontrava-se o

    maior empresrio privado da rea psiquitrica em Salvador, dono de trs

    hospitais, que havia se tornado alvo das crticas dirigidas pela Associao

    Psiquitrica da Bahia, ao modelo de ateno baseado na medicalizao e na

    mercantilizao da assistncia na rea de Sade Mental. De repente, no

    meio da fala de Gentile, o tal empresrio se levantou e comeou a tentar

    argumentar com ele, defendendo, irritado, o modelo do qual era

    representante e beneficirio.

  • 33

    Pois bem, Gentile inicialmente respondeu com delicadeza, sendo

    novamente questionado, ao que rebateu com ironia, e logo sarcasmo, e o

    oponente foi se enraivecendo, pondo-se vermelho, gesticulando, irado,

    enfim, parecia que estvamos a assistir a um duelo que comeasse com

    elegantes espadas e fosse aos poucos se transformando numa luta sangrenta

    em que usassem pontudas facas.

    Os contendores por pouco no se atracam aos berros e murros. No

    por Gentile, certamente, que estava, apesar de pequenino, alado ao palco e

    mirando o oponente de cima, com um sorriso que revelava o quanto estava

    se divertindo com a situao. O outro, entretanto, alto, nervoso, espumando

    de raiva, ameaou subir ao palco para acabar com a festa e vimos a hora do

    seminrio degringolar numa imensa pancadaria, para lembrar o poeta.

    Quem, seno quem interveio e evitou o pior? O presidente da

    Associao, que adotou a postura do que isso, deixa disso, e tratou de

    convencer o empresrio a retirar-se do recinto, acompanhado, claro, de

    dois homens altos e fortes, que me pareceram guarda-costas, prontos a

    atacar o palestrante e todos os que se dispusessem a defend-lo.

    Ufa! Essa foi por pouco, pensei. Afinal, no ficaria bem um

    seminrio da Associao Psiquitrica terminar em porrada! Naquela noite,

    porm, ficou claro que estvamos de fato entrando na briga. O debate de

    idias em uma sala de aula na universidade e mesmo em um centro de

    estudos organizado independentemente das instituies oficiais era uma

    coisa. Sair a campo, identificar e enfrentar os adversrios, aqueles que

    pensavam diferente de ns e que queriam impedir que nossas idias e

    interesses prevalecessem, era outra coisa, bem diferente.

  • 34

    O exemplo de Gentile de Melo nos contaminou. Ele era um

    guerreiro, um lutador, que usava as armas que dispunha, naquele momento,

    suas palavras cortantes, ferinas, sua ironia, seu sarcasmo.

    De fato, Gentile que era um fator incontrolvel. A ditadura no

    calou a sua voz...

  • 35

    A lio de Ceclia

    Auditrio do IRDEB, sede da Radio Educadora da Bahia, no bairro

    da Federao. Foi nesse auditrio, espao utilizado pela Associao

    Psiquitrica da Bahia, nos idos dos anos setenta, que se realizava um

    conjunto de seminrios abertos aos profissionais, estudantes e pblico em

    geral interessado em problematizar a sade e a sociedade brasileira.

    Como palestrante desses seminrios, recordo a presena magntica

    de Marilena Chau, ento jovem filsofa que havia acabado de defender sua

    tese de doutorado sobre a tica de Spinoza, acontecimento contado e

    recontado nas rodas de conversa sobre o que se passava na intelectualidade

    de esquerda, chegando-se a divulgar uma verso, no sei at que ponto,

    verdadeira, de que ela teria comparecido sesso de defesa da tese,

    transportando, em uma Kombi, caixas e mais caixas de livros utilizados

    como referncia para o seu trabalho.

    Marilena nos falava do discurso competente, texto seu publicado

    na Revista da APB10, libelo que denunciava a crescente tecnificao das

    relaes sociais no mundo contemporneo, cada vez mais mediadas pelo

    saber cientfico, produzido e legitimado pelas disciplinas que compem o

    panteo das cincias humanas e sociais. Mais do que o contedo da sua fala,

    entretanto, percebi que o encantamento que ela produzia na platia provinha

    de seu charme de mulher, sua voz grave, seus cabelos abundantes, uma

    expressividade que seduzia a todos, principalmente os homens.

  • 36

    Quando foi a vez de Ceclia Donnangello, entretanto, dei-me conta

    de outro jeito de ser sedutora. Estava sentada na platia, havia chegado

    cedo, quando Ceclia entrou ladeada pelo presidente da APB e outros

    membros da Diretoria, responsveis pela sua presena ali. Prestei ateno a

    ela, discreta, elegante em um tailleur que escondia seu corpo, saia abaixo

    dos joelhos, casaco com grande gola que deixava entrever uma blusa fina,

    botes redondos, cabelo curto, rosto sem maquiagem.

    Tempos depois, alguma estrada percorrida, consegui identificar o

    tipo que Ceclia fazia, talvez mesmo sem inteno. Reencontrei seu estilo

    em Ruth Cardoso, mais uma intelectual da safra de paulistas formados sob a

    influncia francesa nos anos 50 e 60, quem sabe, todas influenciadas pelo

    modo de vestir, comportar-se, apresentar-se, de Simone de Beauvoir,

    disfarando sua sensualidade, destacando sua capacidade intelectual.

    Nada disso importava, verdadeiramente, seno o fato de que estava

    diante da pessoa que havia escrito a tese Sade e Sociedade, em um estilo

    completamente novo para mim, denso, conciso, rigoroso, fazendo-me

    perceber a importncia de cada pargrafo, que me remetiam s notas de

    rodap onde apareciam nomes como Ivan Illich, Georges Ganguilhem e

    Antonio Gramsci. Os dois primeiros eu j conhecia, de leituras prvias, mas

    a referncia a Gramsci foi uma descoberta que viria posteriormente a se

    tornar essencial na minha compreenso acerca dos desafios e possibilidades

    de ao poltica em uma sociedade como a nossa.

    Isso porque, naquele momento, o debate sobre o processo de

    redemocratizao no pas tinha como um dos seus intelectuais mais

    destacados Carlos Nelson Coutinho, tradutor e divulgador da obra de

    Antonio Gramsci entre ns, a quem conheci em uma palestra promovida

  • 37

    pelo ncleo baiano do CEBES, discutindo a questo do duplo poder, ou seja,

    o momento da transio, da ruptura na configurao de determinados blocos

    histricos, quando o velho ainda no morreu e o novo ainda no nasceu.

    Talvez, quem sabe, eu vivia minha prpria transio, da essas

    palavras ressoavam to fortemente em mim. De todo modo, o que estava em

    xeque era o conceito de hegemonia, trabalhado por Gramsci a partir da

    noo empregada por Lnin em O estado e a revoluo, um dos textos que

    lemos como parte de uma incipiente formao poltica induzida pela

    participao no movimento estudantil.

    Os textos gramscianos apontavam, porm, para uma forma de

    atuao poltica que ultrapassava a ansiedade pelo assalto ao poder,

    indicando a necessidade de se desenvolver uma ao molecular, que

    implicasse a construo da hegemonia antes mesmo da tomada do poder do

    Estado, isto , no fortalecimento da direo intelectual e moral do processo

    de transformao da sociedade e do prprio Estado.

    Essa perspectiva redefinia a noo de revoluo, atualizando o

    debate acerca das estratgias de transformao social em sociedades como a

    italiana na poca em que Gramsci era dirigente do PCI, tendo-se tornado

    uma diretriz dessa organizao nos anos subseqentes. No contexto de nossa

    abertura poltica, uma das vertentes da oposio de esquerda discutia a

    necessidade e a possibilidade de aprofundamento da democracia como

    forma de transio ao socialismo, exatamente a vertente cujas idias

    ressoavam no mbito do nascente movimento sanitrio.

    Adotando esta viso, fortalecida posteriormente pelas leituras e

    reflexes realizadas durante o curso de mestrado, sob orientao de

    Jairnilson, percebo que Gramsci me salvou do leninismo estreito que

  • 38

    grassava nos debates das lideranas estudantis da poca, assim como Ceclia

    me salvou do excesso de estruturalismo no qual poderia incorrer por conta

    das leituras que fazia tentando superar minha ignorncia em cincias sociais.

    De fato, embora vinculada ao pensamento estruturalista basta

    lembrar que o ttulo original de sua tese de livre docncia era Sade e

    Estrutura social o texto se abria para uma reflexo histrica, ancorada nos

    estudos de George Rosen, induzindo leitores vidos, como eu, a perceber

    que entre as determinaes estruturais abstratas e os fatos concretos,

    interpunha-se o curso da histria, que conferia especificidade forma como

    cada sociedade, atravs da ao de seus atores, definia a poltica e a

    organizao de suas prticas de sade.

    claro que naquele momento a tenso entre o estruturalismo e o

    historicismo ainda no se colocava claramente para mim, verde ainda de

    reflexes epistemolgicas mais consistentes. Talvez por simpatia, talvez por

    empatia, o fato que recusava internamente uma concepo que me levasse

    a aderir a um determinismo do qual s pudesse escapar atravs de uma ao

    violenta, de rompimento com a realidade circundante. Com isso tentava me

    aproximar de uma forma de pensar que me ajudasse a consolidar o esforo

    que fazia para ser doce e compreensiva com a distncia que separava o real

    dos meus ideais, e sustentasse uma prtica continuada de dilogo e

    negociao comigo mesma e com os outros.

    A doura de Ceclia, sua calma, seu olhar carinhoso, sem dvida

    contriburam para que eu abrisse o corao e a mente para acolher suas

    idias e as idias dos autores nos quais ela ancorava seu pensamento.

    Durante todo o curso de mestrado, sob orientao de Jairnilson, ele prprio

    um admirador dela, democrata e gramsciano convicto, a leitura e releitura de

  • 39

    seus textos iluminaram o esforo que fiz em elaborar, a partir de fontes

    secundrias, uma narrativa histrica sobre a formao de pessoal em sade,

    com destaque para as transformaes no ensino mdico e na formao em

    sade pblica no Brasil republicano.

    Ao lado do resgate e ordenamento de informaes empricas, tratei

    de construir um referencial terico que agregava de forma bastante

    incipiente, algumas categorias extradas das leituras de Ceclia e de Juan

    Csar Garcia. Movia-me, portanto, entre o terico e o emprico, o histrico e

    o poltico, enfrentando o desafio de compor um texto inteligvel ao tempo

    em que aprendia a manejar mtodos e tcnicas de investigao totalmente

    novas para mim.

    Pois bem, concluda a dissertao, convidamos Ceclia para compor

    a banca examinadora da defesa. Ela no pode vir pessoalmente sesso,

    mas enviou pelo correio o parecer, que li com o corao aos saltos, ansiosa

    pela apreciao do meu trabalho por aquela a quem havia colocado no lugar

    em que colocamos, interiormente, as pessoas que escolhemos como

    exemplo, inspirao e juzes do que nos propomos ser e fazer na vida.

    As poucas pginas do parecer cuidadoso escrito por ela continham o

    que considero, at hoje, um dos presentes mais preciosos que j recebi. Uma

    crtica afiada revelava a dificuldade maior que eu havia enfrentado e que me

    angustiava sem que eu soubesse exatamente porque, quando relia o texto e

    percebia que faltava algo, percebendo que s vezes ele se fechava sobre si

    mesmo e no me dizia o que de fato queria saber quando empreendi a

    investigao.

    Ceclia dizia, com todas as letras, que minha narrativa corria o risco

    de se tornar circular, e que isso decorria da conexo, por vezes apressada,

  • 40

    forada, que eu fazia entre o terico e o histrico, como se pretendesse

    explicar os fatos histricos apenas por sua coerncia com os pressupostos

    tericos que havia adotado em meu trabalho. preciso fazer a distino,

    aprendi. teoria, qualquer teoria, sempre uma tentativa de apropriao de

    um real que sempre escapa, exigindo novas reflexes, novas perspectivas,

    novas descobertas.

    No devo tentar fechar um texto, amarrando as pontas do que vejo,

    com as idias abstratas que me ajudaram a v-lo. bom saber que a

    realidade feita de processos cambiantes, e mesmo aquilo que chamamos

    de invariantes, o so por um tempo determinado, por vezes to longo que

    esquecemos sua durao e tomamos o real como fixo e imutvel. Tudo

    muda e o esforo que fazemos para capturar as mudanas no deve levar,

    jamais tentativa de impedir (ou esquecer) que elas continuem acontecendo.

    Se, como diz Pascal, nossa filosofia v, cabe reconhecer e aceitar

    os limites de nossa cincia e continuar encantando-se com os mistrios que

    existem entre o cu e a terra e envolvendo-se com os processos que

    continuam a recri-los.

  • 41

    Encontro em Dias Dvila

    A pouca distncia de Salvador, localiza-se um pequeno municpio

    conhecido por suas fontes de gua mineral, que antigamente atraiam

    visitantes de toda a regio em busca de cura para seus males atravs dos

    banhos de imerso nas guas tpidas da grande piscina aberta ao pblico.

    Neste balnerio que ainda conserva os ares interioranos, foi realizado

    um encontro de docentes e pesquisadores da emergente Sade Coletiva,

    logo no incio dos anos 80, quando se intensificava o debate acerca dos

    rumos da Medicina Preventiva e Social e da Reforma Sanitria Brasileira.

    No lembro bem como se deu a organizao do evento, mas recordo

    que entre os convidados contamos com Juan Cesar Garcia e Asa Cristina

    Laurell, cuja presena contribua para reforar a percepo de que

    estvamos iniciando um movimento cujas dimenses ultrapassavam nossas

    fronteiras.

    Juan Csar pareceu-me um homem afvel, simptico, sempre

    cercado pelos amigos brasileiros, formando uma turma alegre e sorridente.

    J Asa Cristina me surpreendeu. Alta, magra, loura, fazia jus origem

    sueca, embora vivesse e trabalhasse no Mxico. Conhecia algo de seu

    trabalho atravs das aulas de Epidemiologia Social, ministradas por

    Sebastio Loureiro, epidemiologista, nosso professor, que se revelava amigo

    dela, cercando-a de ateno e mimos.

    De todas as pessoas presentes ao evento, entretanto, havia uma que

    eu sonhava conhecer pessoalmente. Ricardo Bruno Mendes Gonalves,

  • 42

    aluno de Ceclia Donnangello, de quem havia lido, recentemente, a

    dissertao de mestrado, intitulada Medicina e Histria: razes sociais do

    trabalho mdico.

    O interesse pelo trabalho de Ricardo comeou quando fiquei

    sabendo, atravs de Jairnilson, que ele estava desenvolvendo essa

    investigao seguindo as indicaes contidas na tese de Ceclia, ou seja,

    discutindo as determinaes histrico-estruturais do trabalho mdico nas

    sociedades capitalistas. Como estava pesquisando a educao mdica e a

    formao em sade pblica no Brasil, tentando trabalhar com este

    referencial, fantasiava que estvamos de alguma forma, irmanados.

    Da que quando Jairnilson recebeu o primeiro exemplar da

    dissertao, e me mostrou em primeira mo, comecei a ler, imediatamente.

    Lembro nitidamente que me debrucei sobre o calhamao de paginas

    datilografas em mimegrafo a tinta coisa que j nem existe mais, creio e

    me abstra do mundo ao redor, at que Jairnilson cobrou que parasse, pois

    tinha que fechar a sala e ir-se para casa. Quase implorei que ele me

    emprestasse a dissertao, para que eu conclusse a leitura naquela noite

    mesmo, em minha casa, a que ele, no sem alguma relutncia, aquiesceu.

    At hoje, quando recordo a impresso causada por esta primeira

    leitura do texto de Ricardo, lembro que fiquei encantada com a forma como

    ele estruturou o trabalho, a seqncia dos captulos, a organizao dos

    pargrafos em cada um. Penso que em nenhum outro texto que li naquela

    poca, ficou to claro para mim o que significava estruturalismo, porque

    isso aparecia no apenas no contedo das frases escritas por ele, mas

    principalmente, na forma com que o texto inteiro se apresentava.

  • 43

    Na poca estava comeando a exercitar a possibilidade de apropriar-

    se do pensamento de um autor atravs do que chamvamos aproximaes

    sucessivas, como se um texto, um bom texto, fosse feito de camadas

    superpostas, permitindo mltiplas leituras e interpretaes. Com a leitura

    dos textos de Ceclia Donnangello isso j se havia tornado um desafio, mas

    o prazer que tive em ler o texto de Ricardo que pude perceber no s a

    superfcie, o que ele me dizia, mas tambm como ele havia chegado ali.

    Construir um texto como construir uma edificao, um prdio, uma

    casa. Precisamos escolher e organizar a matria prima que ser utilizada,

    definir o projeto, comear a construo, utilizando escadas, cordas,

    andaimes, ps, martelos, serrotes e pincis... Um conjunto de instrumentos

    que depois da casa pronta, limpa, acabada, desaparecem completamente e s

    deixam os vestgios, os resultados da sua utilizao.

    Lembro de ter lido a dissertao de Ricardo como se estivesse

    seguindo as pegadas que ele deixou em solo macio. Relia cada trecho

    procurando imaginar as leituras que ele fez, os trechos que selecionou e o

    que deixou para trs, os autores que tomou como referncia para construir

    seu pensamento. De fato, a dissertao de Ricardo no utiliza material

    emprico, no sentido que damos s informaes produzidas por um

    trabalho de campo. um longo ensaio, construdo com base na reflexo

    acerca das determinaes estruturais que incidem sobre os processos de

    trabalho no modo de produo capitalista, definindo o posicionamento dos

    trabalhadores enquanto membros das classes sociais.

    Fundamentada pesadamente na contribuio de Nicos Poulantzas11, a

    dissertao de Ricardo trazia embutida a preocupao em identificar os

    fundamentos do perfil poltico-ideolgico dos mdicos, apontando sua

  • 44

    insero, do ponto de vista econmico, na pequena-burguesia, e a gama de

    posicionamentos poltico-ideolgicos que vo do mais extremo

    conservadorismo radicalizao da conscincia proletria.

    Ricardo reforava a necessidade de se superar o determinismo

    economicista e indicava a necessidade de se investigar mais detidamente os

    elementos histricos e culturais que determinam as ideologias profissionais,

    amlgamas que vo alm do que Ceclia identificara como posies que

    distinguem os mdicos liberais, dos empresrios e dos assalariados,

    em seu estudo Medicina e Sociedade.

    Com isso, lanava luzes sobre a multiplicidade de posies polticas

    que observvamos cotidianamente entre os profissionais mdicos. Afinal, j

    havamos comeado a nos envolver com a campanha que levou Gerson

    Mascarenhas, mdico obstetra, comunista da velha guarda, presidncia da

    Associao Bahiana de Medicina, no momento em que se iniciava o

    movimento de Renovao Mdica na Bahia.

    Mdicos como o Dr. Gerson, que exerciam uma prtica liberal, em

    consultrio privado, podiam ter uma postura poltica extremamente

    progressista para os padres da poca, enquanto mdicos jovens,

    assalariados ao Estado ou a empresas privadas de prestao de servios, por

    vezes apresentavam posturas ultraconservadoras. At mesmo a gama de

    concepes recobertas pela mobilizao sindical, que inclua desde

    militantes de partidos comunistas a free riders que embarcavam nas greves

    da categoria em busca de melhorias salariais, sem comprometimento com

    mudanas significativas na organizao dos servios, ganhavam

    inteligibilidade luz das reflexes estimuladas pela leitura do trabalho de

    Ricardo.

  • 45

    Eu estava ansiosa por conhec-lo pessoalmente, ainda mais porque

    estava vivendo a dor pela morte prematura de Ceclia. Poucos meses antes,

    chegando s dependncias onde funcionava o curso de mestrado, Jairnilson

    havia me chamado e olhando-me fixamente sugeriu que eu me sentasse.

    Sem entender bem porque me sentei em uma cadeira sua frente e ele me

    disse que Ceclia Donnangello havia sofrido um acidente de carro, na

    estrada que une So Paulo a Araraquara, e que havia falecido.

    O choque me deixou muda, perplexa, sem conseguir acreditar.

    Nesses momentos parece que o crebro demora a processar a informao e

    nos damos conta do passar de cada segundo, como se estivssemos vivendo

    em cmera lenta. Aos poucos a conscincia retorna ao normal, como se

    estivssemos regressando de um lugar distante e escuro, onde o choque nos

    colocou. Imediatamente, tento guardar em mim tudo o que me lembro da

    pessoa que acabei de perder, como se pudesse mant-la viva em mim, para

    sempre comigo na lembrana dos dias.

    Encontrar Ricardo era tambm reencontrar Ceclia, saber um pouco

    mais dela, afinal, ele era seu aluno, seu pupilo, havia convivido com ela

    muito mais do que eu. Assim que, no almoo, tratei de sentar a seu lado,

    entabulei conversa, falamos de seu trabalho, enquanto eu admirava seu talhe

    elegante, seu rosto perfeito, seus olhos imensos. Quando pude, perguntei

    sobre ela e seu olhar se anuviou. Uma sombra de tristeza caiu sobre ele, e

    nesse momento creio que ele se deu conta de mim.

    Segurando a minha mo, comeou a falar dela, de como era como

    professora, exigente e carinhosa, contou de como ela o recebia em sua casa,

    a conversar durante horas sobre os assuntos que abordavam e as leituras que

    faziam. Ouvindo Ricardo, senti como se eu, de alguma forma, tambm

  • 46

    fizesse parte do grupo de estudantes que circulavam ao redor de Ceclia.

    Acho que ele entendeu isso, pois me sorriu compreensivo, e sem dizermos

    palavras, continuamos por um tempo de mos dadas.

    Ao longo dos anos encontrei Ricardo inmeras vezes, nos

    congressos de Sade Coletiva, nos encontros e seminrios. Sempre brilhante

    em suas exposies, instigando reflexes que iam alm da superfcie,

    exigindo nosso esforo de compreenso mais abrangente. A vida nos reunia,

    mas nunca mais voltamos a conversar com a intimidade que vivemos por

    breves minutos naquele encontro em Dias Dvila.

  • 47

    O ncleo baiano do CEBES

    A fundao do ncleo baiano do CEBES remonta ao perodo inicial

    da criao do CEBES nacional, em 1976, em virtude dos contatos

    estabelecidos por Jairnilson com os fundadores do Centro, em Braslia,

    durante a Reunio Anual da SBPC ocorrida naquele ano. A surgiu a idia

    de se criar um espao independente, onde se discutisse temas relacionados

    com o ensino, a pesquisa e a atuao poltica junto aos rgos

    governamentais de Sade, Educao e Cincia e Tecnologia, bem como que

    servisse de ponte entre o debate acadmico e os movimentos sociais que

    ento comeavam a se organizar na rea.

    Comecei a participar das reunies desse ncleo na poca em que elas

    ocorriam na sala da Biblioteca do Anexo II da Faculdade de Medicina,

    pavilho construdo para abrigar os programas de ps-graduao em

    Patologia e, posteriormente, em Sade Comunitria, construo precria,

    com divisrias internas feitas de madeira prensada, que j no existe, pois

    cedeu lugar ao edifcio onde funciona o Ambulatrio Magalhes Neto.

    ramos um grupo pequeno, heterogneo, sentados ao redor de uma

    grande mesa de reunies, que me lembrava vagamente a mesa de madeira da

    minha casa de infncia, onde toda a famlia se reunia hora das refeies.

    Os encontros aconteciam no incio das noites de segunda-feira, e seguiam

    uma agenda de temas polmicos, na abordagem dos quais ensaivamos

    nossa capacidade crtica.

  • 48

    O ncleo baiano constitua um ponto de contato com o CEBES

    nacional, contribuindo para a divulgao das idias que comeavam a se

    configurar e se apresentavam nos textos publicados na Revista Sade em

    Debate, ao tempo em que organizava eventos por onde circulavam os

    intelectuais da sade e de reas afins que comungavam dos princpios e das

    posies polticas dos integrantes do Centro.

    Assim que conheci Giovanni Berlinguer, poltico italiano,

    vinculado ao PCI, um dos responsveis pela elaborao da Lei da Reforma

    Sanitria, aprovada pelo Parlamento Italiano exatamente em 1978, que

    visitou o Brasil na poca para lanar e divulgar o seu livro, Medicina e

    Poltica. O lanamento ocorreu no auditrio do antigo Colgio Dois de

    Julho, no Garcia, do qual tinha sido aluna durante o curso secundrio.

    Seis anos depois de ter deixado seus ptios e corredores, l estava,

    no mesmo auditrio onde fazamos as provas escritas, reunindo mais de uma

    centena de alunos distribudos nas seis turmas do primeiro e segundo ano de

    colgio. Somente no terceiro ano tnhamos sido divididos por rea do

    conhecimento, obedecendo a lgica do vestibular, assim que fiquei junto aos

    colegas que optaram pela chamada rea dois, cincias biolgicas,

    comeando a a ciso que agora tentava superar, integrando novamente o

    biolgico com o social.

    De fato, depois de Ganguilhem, Foucault e Arouca, j no era

    possvel pensar a sade seno enquanto um modo de andar a vida, e a

    vida, j no podia ser vista, enquanto fenmeno meramente biolgico, nem

    apenas social, seno que aparecia em toda a sua infinita multiplicidade e

    mistrio. E com isso nos implicvamos em cuidar da vida, pois ao tom-la

  • 49

    como objeto de estudos, definimos um projeto de vida, escolhendo,

    simultaneamente, que tipo de sujeito queramos ser.

    Ainda no usvamos a terminologia que Mario Testa nos ofertou

    anos depois, ou seja, a compreenso de que podemos ser um sujeito

    produtor de conhecimento um sujeito epistmico -, um sujeito crtico

    que analisa e avalia o que a cincia e a cultura lhe oferecem como

    referenciais para pensar o mundo e a si mesmo-, e um sujeito militante, que

    se compromete, se envolve e participa de aes coletivas tentando

    desencadear processos de mudana que possibilitem a superao de

    problemas e o alcance de uma vida melhor, mais plena e feliz.

    Mesmo sem conscincia clara do que fazamos, estvamos fazendo.

    O posicionamento diante do contexto autoritrio, a crtica represso que

    limitava nosso pensamento e castrava as possibilidades de uma ao

    inovadora, nos impulsionava a participar dessas reunies, desses eventos,

    procurando encontrar pessoas com quem sentssemos afinidade intelectual,

    moral e poltica.

    E ali estava o CEBES, apresentando-se como um espao aberto,

    novo, passvel de ser construdo, de ser colonizado com a contribuio que

    cada um de ns pudesse levar, encontrando um terreno semeado pelos

    fundadores, com as idias que nos haviam atrado, dando significado s

    nossas inquietaes e direo aos nossos esforos criativos.

    Lembro de ter participado de uma comisso que estudou, durante

    diversos meses, a problemtica do Planejamento familiar, posicionando-nos

    simultaneamente contra as teses controlistas, argidas por entidades como a

    BENFAM, por idelogos como Elsimar Coutinho, e a posio defendida

  • 50

    pela Igreja, radicalmente contra o uso de mtodos contraceptivos

    modernamente produzidos pela indstria farmacutica.

    Com isso nos posicionvamos a favor do direito das mulheres

    decidirem sobre o nmero de filhos que queriam ter, aproximando-nos das

    teses feministas, porm sem defender explicitamente o aborto, considerando

    que cabia aos servios pblicos de sade oferecer informaes que

    permitissem s mulheres optar por mtodos seguros, que no

    comprometessem a sua sade. A complexidade do tema nos levava,

    portanto, a refinar nossas anlises e escolher, com delicadeza, a posio

    mais coerente com os princpios democrticos que regiam a existncia do

    CEBES.

    Alm do exerccio da crtica e do entendimento de que fazer poltica

    implicava prestar ateno a detalhes, exigia o tal jogo de cintura de que se

    falava tanto na poca, participar do CEBES naquele momento, me abriu as

    portas da percepo acerca das conexes que existiam entre o trabalho que

    fazamos e o que acontecia em outros estados e em outros pases. De fato,

    alm de atuarmos como espao de difuso de idias, o ncleo era o ponto de

    encontro das lideranas que comeavam a montar estratgias para a

    ocupao poltica das organizaes representativas dos profissionais de

    sade, almejando a acumulao de poder no mbito da sociedade civil

    tendo em vista a mudana dos rumos da poltica governamental na rea.

    A palavra chave era articulao, e isto significava o

    estabelecimento de um processo intensivo de conversaes entre pessoas

    que se moviam no espao acadmico, nos servios de sade e nos partidos

    polticos que estavam na clandestinidade, elaborando-se propostas de

    campanhas para a conquista das diretorias de entidades como a Associao

  • 51

    Bahiana de Medicina, o Sindicato dos Mdicos, o Conselho Regional de

    Medicina, todas, na poca, controladas pelos chamados pelegos, de fato, o

    que Gramsci chamaria de intelectuais tradicionais, comprometidos com a

    manuteno do status quo, fosse por ingenuidade, busca de prestgio ou

    simples oportunismo poltico.

    Vivendo em meio a tudo isso, completamente dedicada a estudar e a

    participar das reunies, comisses e grupos de trabalho, acabei assumindo a

    coordenao do ncleo, nem tanto por competncia ou experincia, talvez

    mais porque as verdadeiras lideranas entendiam que era mais seguro

    colocar algum jovem, que no estava queimada junto aos rgos de

    segurana, ainda muito atuantes no perodo.

    Dei sorte, e com isso tive a oportunidade, no s de aprender a

    coordenar reunies, exercitando o que veio a se tornar um hbito que cultivo

    at hoje, qual seja, o de organizar mentalmente o discurso coletivo, seno

    que passei a conhecer mais de perto um monte de gente que veio a

    desempenhar papis importantes no processo de reforma sanitria na Bahia.

    Mais que isso, participei de uma Assemblia Nacional do CEBES,

    no Rio de Janeiro, para onde viajei sozinha, preocupada, temendo no dar

    conta da responsabilidade que tinha assumido. Fui recebida por Reinaldo

    Guimares, ento coordenador do CEBES nacional, algum que me fez

    recordar e dar sentido palavra gentleman. incrvel como certas palavras,

    que conhecemos em livros, aplicadas a pessoas distantes, que no

    conhecemos, de repente afloram nossa mente como as nicas capazes de

    realmente designar o que estamos vendo e vivendo pela primeira vez.

    Assim foi com Reinaldo, e assim at hoje quando o encontro por

    ocasio dos Congressos da Abrasco ou em reunies do Ministrio da Sade.

  • 52

    Talvez no seja to difcil descrever o que sua elegncia, seus modos

    educados, seu jeito atencioso, provocam em mim. Imagino que assim devem

    ter sido os aristocratas que circulavam nos sales de Paris no sculo XVIII.

    Observadores, mordazes, conhecedores das intrigas palacianas, urdindo

    tramas, enredando pessoas, direcionando sutilmente o rumo das decises

    tomadas pelos poderosos.

    No se veja nisso nenhuma crtica, seno a constatao da

    singularidade desse personagem, a quem admiro mesmo sem conhec-lo

    profundamente, duvidando mesmo que algum o conhea, a no ser

    familiares mais prximos. O fato que para mim, Reinaldo foi como um

    mestre-sala, um anfitrio que me introduziu na grande poltica, ao conectar

    o que fazamos na provncia da Bahia, com o jogo pesado que se jogava no

    Rio de Janeiro, sede do poderoso INAMPS e local onde floresciam as

    idias progressistas em pequenos espaos da UERJ e FIOCRUZ,

    instituies que abrigavam os integrantes do CEBES.

    De fato, percebi na assemblia que o teor do discurso coletivo

    tomava como ponto de partida a questo nacional, como se aqueles

    intelectuais e militantes ainda sentissem que o Rio era a capital da

    Repblica e que lhes cabia pensar a totalidade complexa do pas. Ao mesmo

    tempo em que isso me encantava, por me colocar no centro da reflexo

    poltica, me deixava um tanto incomodada, pois percebia o risco de se

    passar por cima das especificidades regionais, estaduais e locais.

    Racionalizei, considerando que afinal estvamos pensando

    alternativas para a Poltica de sade ao nvel nacional, e que se tratava

    mesmo de pensar o Brasil, de ter um projeto de futuro, e fiquei feliz em

    conhecer as pessoas que estavam assumindo essa responsabilidade com

  • 53

    tanto entusiasmo. Lembro que Reinaldo me apresentou a militantes mais

    antigos, que ele tratava com reverncia, e tambm a jovens militantes, como

    Paulo Amarante, que veio a se tornar uma referncia no debate sobre a

    Reforma Psiquitrica e Jose Gomes Temporo, que chegou a Ministro da

    Sade no segundo mandato de Lula como Presidente.

    Durante os poucos dias em que permaneci no Rio, Reinaldo me

    levou a passear pela cidade, que eu havia conhecido muito rapidamente, de

    passagem, em uma viagem com colegas do curso mdico, anos atrs. Desta

    vez, alm de alguns pontos tursticos obrigatrios, fomos a uma livraria,

    onde comprei um livro intitulado Estado e Democracia, contendo vrios

    textos de tericos italianos vinculados ao PCI. Nesta coletnea, Pietro

    Ingrao, e outros intelectuais italianos discutiam problemas relacionados com

    a gesto democrtica do Estado capitalista e a importncia do planejamento,

    temas que j despertavam meu interesse.

    Idas e vindas, mudanas, viagens, perdi esse pequeno livro, mas ele

    continua guardado em minha lembrana, simbolizando as inquietaes,

    fantasias e esperanas que tnhamos na poca. Ao l-lo, consegui perceber

    que o trabalho no ncleo baiano do CEBES, fazia parte de uma rede que se

    ramificava no Brasil e ecoava o debate que se travava na esquerda europia,

    principalmente a italiana, que havia conquistado a lei da reforma sanitria,

    em 1978, e discutia a possibilidade de democratizao progressiva da

    sociedade e do Estado como estratgia de transio pacfica ao socialismo.

    Creio que encontrei a, o tema que iria direcionar os rumos que

    minha vida tomou nos anos seguintes. Parafraseando o ttulo da pea de

    teatro, que assisti com Reinaldo e sua esposa no Rio, naqueles dias, Quem

  • 54

    diria, Greta Garbo acabou no Iraj12, posso comentar: Quem diria, a

    democratizao da sade me levou ao socialismo!.

  • 55

    Semeando campos de prtica

    A anlise crtica da prtica mdica tal como se configurava nas

    sociedades capitalistas e particularmente no Brasil, nos idos da dcada de

    70, foi o ponto de partida dos processos que confluram para a organizao

    do movimento pela Reforma Sanitria. De fato, a aproximao e

    posteriormente a crtica s noes, conceitos e propostas de reorganizao

    da prtica contidas na Medicina Preventiva e Comunitria, tinham como

    motor principal, a busca de alternativas que implicassem a redefinio dos

    saberes, das tecnologias e das formas de organizao das prticas de sade.

    No debate que se fazia no mbito dos Departamentos de Medicina

    Preventiva e Social que superaram uma viso apologtica e adotaram uma

    perspectiva crtica13, a introduo de mudana no contedo e no processo de

    trabalho em sade colocava-se como o maior desafio, induzindo, por um

    lado, ao esforo de elaborao terica, e por outro, experimentao, nos

    espaos possveis, de prticas inovadoras no mbito dos servios e fora

    deles.

    Inicialmente esse esforo se desenvolveu no espao constitudo pelo

    ambulatrio de Medicina Preventiva, ao interior do prprio Hospital

    universitrio, e logo em seguida nos centros de sade escola, nos quais se

    tratava de articular aes de carter preventivo com aes assistenciais,

    alargando-se o campo de observao e de interveno sobre o processo

    sade-doena.

  • 56

    Quando ingressei no Internato em Medicina Preventiva, fiquei

    sabendo da experincia desenvolvida no 9 Centro de Sade, localizado no

    fim de linha do Nordeste de Amaralina, bairro popular encravado nos

    morros que margeiam a orla de Salvador, altura da cantada praia de

    Amaralina. Este Centro de Sade tinha sido escolhido para sediar os

    estgios dos alunos que cursavam o Mestrado em Sade Comunitria,

    desenvolvido pelo Departamento de Medicina Preventiva, com apoio da

    Fundao Rockfeller a partir de 1973.

    O 9 Centro, como carinhosamente chamvamos, tinha sediado

    vrias pesquisas realizadas pelos mestrandos na comunidade do Nordeste

    de Amaralina, bem como tinha sido local de aprendizado e experimentao

    de prticas de vigilncia epidemiolgica, administrao, programao e

    avaliao de servios de sade, alm de constituir um ponto de apoio para a

    aproximao dos docentes e alunos com as formas incipientes de

    organizao da populao que morava no bairro.

    Em 1978, entretanto, o grupo de docentes do DMP que atuava no

    Mestrado j estava sob influncia da crtica Medicina Preventiva e

    Comunitria. Jairnilson Paim, ento coordenador do Internato, sem dvida o

    expoente mais destacado dessa vertente no mbito do DMP, tratava de

    redefinir o campo de prticas dos estudantes, visando superar o que Juan

    Csar Garcia chamava de modo escolar, ou seja, a criao, no mbito

    acadmico, de espaos ideais de aprendizado das prticas de sade que se

    distanciavam das condies reais em que tais prticas se realizam no

    mbito dos servios de sade.

    Recordo que um dos primeiros trabalhos que discutimos no Internato

    era exatamente uma avaliao da cobertura vacinal em crianas da cidade do

  • 57

    Salvador, medida atravs das informaes obtidas nos Centros de Sade que

    compunham a rede de ateno bsica, na poca sob responsabilidade da

    Secretaria Estadual de Sade, trabalho produzido pelos mestrandos que

    realizaram o Estgio em Sade Comunitria, sob a coordenao de

    Jairnilson.

    A aproximao do DMP com a SESAB, na poca dirigida por Jos

    Alberto Hermgenes, que havia assumido em funo do ex-secretrio,

    Ubaldo Dantas, ter se desincompatibilizado do cargo para concorrer s

    eleies para deputado federal, possibilitou que o grupo do internato tivesse

    acesso aos programas e atividades desenvolvidas no nvel central da

    instituio, cuja sede era no que atualmente o Museu de Arte da Bahia, no

    corredor da Vitria.

    Foi assim que nos aproximamos da Assessoria Tcnica, onde se

    desenvolviam as atividades de planejamento e tambm a coordenao das

    aes de Vigilncia Epidemiolgica, bem como que tivemos acesso

    Coordenao dos Programas de Extenso de Cobertura, especialmente o

    PIASS Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento, na

    poca, coordenado por Vera Lucia Formigli, ex-aluna e tambm docente do

    Mestrado em Sade Comunitria.

    Na rea de planejamento conhecemos Gabriel Nery, figura lendria

    que tinha histrias para contar do tempo em que era psiquiatra e tinha

    participado como fundador e diretor da Casa de Sade Ana Nery, sendo, na

    poca, scio do mesmo dono do Sanatrio onde eu havia estagiado, na

    Lapinha. Da rea de Vigilncia, recordo ter conhecido Maria da Conceio

    Costa, tambm ex-aluna do Mestrado, de quem posteriormente fui aluna e

    de quem sou colega de trabalho.

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    Alm disso, tivemos a oportunidade de nos envolver com um projeto

    experimental na regio de Itapetinga, espao de implantao do Sistema

    nacional de sade, conforme definido pela Lei 6229, aprovada pelo

    Congresso em 1975, primeiro produto da incorporao do enfoque sistmico

    ao debate sobre a organizao de servios de sade em nosso meio, e alvo

    de crticas acerbas por parte dos intelectuais do movimento sanitrio,

    notadamente Hsio Cordeiro, autor de um texto primoroso sobre as

    limitaes do enfoque e da forma como foi assimilado pelos tecnocratas do

    Ministrio da Sade na poca.

    Todas estas iniciativas se inscreviam no esforo de desenvolver o

    aprendizado das prticas de medicina social e/ou sade pblica de acordo

    com o modo em servio, segundo a terminologia utilizada por Juan Csar

    Garcia, coadunando-se com um movimento que comeou a ganhar terreno

    em organizaes internacionais, como a Fundao Kellog, que apoiavam a

    introduo de inovaes no ensino das profisses de sade em pases

    subdesenvolvidos, do terceiro mundo, de fato, sociedades da periferia

    capitalista, como a nossa.

    Tratava-se do movimento em torno da chamada Integrao

    Docente-assistencial, tema que veio a se tornar objeto da dissertao de

    mestrado de Eleutrio Rodrigues Neto, jovem integrante do grupo de

    mdicos que se guindavam para a Medicina Preventiva e Social, vindo a

    tornar-se uma figura destacada na assessoria parlamentar ao Congresso

    Nacional na primeira dcada de implantao do SUS, nos anos 90.

    A importncia desse movimento, em que pesem as crticas que

    fazamos s suas limitaes conceituais, pode ser constatada pelos

    desdobramentos que veio a ter nas dcadas seguintes, com a formao da

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    Rede IDA, atualmente, UNIDA14, conjunto de experincias de integrao

    docente-assistencial que propiciou a realizao de encontros, seminrios e

    congressos que contriburam para a consolidao da articulao entre os

    atores integrantes do movimento sanitrio.

    A integrao das prticas de ensino com os servios de sade deu um

    salto do ponto de vista da importncia estratgica para ns, j em 1980, com

    a implantao da Residncia em Medicina Social, de carter

    multiprofissional, uma vitria do grupo de docentes que integravam o

    movimento sanitrio e defendiam que as mudanas na formao profissional

    no poderiam ser somente da atitude dos mdicos, como propugnava a

    Medicina Preventiva, seno que das formas de organizao do processo de

    trabalho e das polticas de sade.

    Isso exigia a experimentao de alternativas no modo de

    organizao tecnolgica do processo de trabalho em sade, termo cunhado

    por Ricardo Bruno em sua tese de Doutorado, ou, mais simplesmente, no

    modelo de ateno sade, bem como a formao de quadros que

    aliassem competncia tcnica e compromisso poltico com os princpios e

    diretrizes da Reforma Sanitria. Estes princpios e diretrizes, j estavam

    sistematizados, a essa altura, no documento apresentado por Antonio Sergio

    Arouca Comisso de Sade da Cmara dos Deputados, em 1979,

    coincidentemente na poca presidida pelo baiano e ex-secretrio de sade no

    governo Roberto Santos, deputado Ubaldo Dantas.

    Neste documento histrico, intitulado A questo democrtica na

    rea de Sade, encontra-se explicitada claramente a vontade poltica do

    grupo que o subscrevia, atravs do CEBES, em promover uma ampla

    reforma nas concepes e prticas de sade, apontando para a necessidade

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    de se organizar um Sistema nico de Sade, capaz de garantir o acesso

    universal s aes e servios, que fosse governado de forma democrtica,

    atravs de conselhos de sade onde tivesse assento a representao da

    populao organizada.

    De fato, vivamos uma febre que nos animava a investir, com todas

    as nossas energias, em processos de mobilizao, organizao e participao

    nos mais diversos espaos onde fosse possvel reunir duas ou trs pessoas

    para conversar sobre a problemtica da sade e po