análise de manuel atienza

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6003 A LÓGICA JURÍDICA E A SUPERAÇÃO DO SILOGISMO JUSPOSITIVISTA LA LÓGICA JURÍDICA E LA SUPERACIÓN DEL SILOGISMO JUSPOSITIVISTA Giovani da Silva Corralo RESUMO Este trabalho busca a análise crítica do raciocínio jurídico no paradigma positivista, a fim de superá-lo, uma vez que a sua reprodução colabora para a manutenção do status quo jurídico-social. Para tanto, é fundamental que se discorra sobre a origem histórica e o desenvolvimento teórico do juspositivismo, com especial atenção à sua teoria da interpretação. Após, analisam-se os processos lógicos de produção do conhecimento, especialmente a lógica silogística, focados na sua aplicação na práxis judiciária, com o intuito de demonstrar a sua insuficiência na resolução dos complexos problemas da sociedade contemporânea brasileira. Por fim, demonstra-se que a crise porquê passa o positivismo jurídico também está calcada na lógica jurídica adotada, razão pela qual é preciso superá-la. PALAVRAS-CHAVES: INTERPRETAÇÃO;LÓGICA;POSITIVISMO JURÍDICO. RESUMEN Este trabajo busca la análisis crítica del raciocinio jurídico en el paradigma positivista, a fin de tener su superación, porque su reprodución ayuda a mantener el status quo jurídico-social. Así, es crucial la compreensión sobre la origen histórica y el desarrollo teórico del juspositivismo, con especial relevo para su teoria de la interpretación. Después, se estudia los procesos lógicos de produción del conocimiento, especialmente la lógica silogística, con base en su aplicación en la práxis judicial, con el propósito de traer su insuficiencia en la resolución de los complexos problemas de la sociedad contemporânea brasileira. Por fin, se mostra que la crise del positivismo jurídico también está fundamentada en la lógica jurídica adotada, que debe ser superada. PALAVRAS-CLAVE: INTERPRETACIÓN;LÓGICA;POSITIVISMO JURÍDICO. Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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A LÓGICA JURÍDICA E A SUPERAÇÃO DO SILOGISMO JUSPOSITIVISTA

LA LÓGICA JURÍDICA E LA SUPERACIÓN DEL SILOGISMO JUSPOSITIVISTA

Giovani da Silva Corralo

RESUMO

Este trabalho busca a análise crítica do raciocínio jurídico no paradigma positivista, a fim de superá-lo, uma vez que a sua reprodução colabora para a manutenção do status quo jurídico-social. Para tanto, é fundamental que se discorra sobre a origem histórica e o desenvolvimento teórico do juspositivismo, com especial atenção à sua teoria da interpretação. Após, analisam-se os processos lógicos de produção do conhecimento, especialmente a lógica silogística, focados na sua aplicação na práxis judiciária, com o intuito de demonstrar a sua insuficiência na resolução dos complexos problemas da sociedade contemporânea brasileira. Por fim, demonstra-se que a crise porquê passa o positivismo jurídico também está calcada na lógica jurídica adotada, razão pela qual é preciso superá-la.

PALAVRAS-CHAVES: INTERPRETAÇÃO;LÓGICA;POSITIVISMO JURÍDICO.

RESUMEN

Este trabajo busca la análisis crítica del raciocinio jurídico en el paradigma positivista, a fin de tener su superación, porque su reprodución ayuda a mantener el status quo jurídico-social. Así, es crucial la compreensión sobre la origen histórica y el desarrollo teórico del juspositivismo, con especial relevo para su teoria de la interpretación. Después, se estudia los procesos lógicos de produción del conocimiento, especialmente la lógica silogística, con base en su aplicación en la práxis judicial, con el propósito de traer su insuficiencia en la resolución de los complexos problemas de la sociedad contemporânea brasileira. Por fin, se mostra que la crise del positivismo jurídico también está fundamentada en la lógica jurídica adotada, que debe ser superada.

PALAVRAS-CLAVE: INTERPRETACIÓN;LÓGICA;POSITIVISMO JURÍDICO.

Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho versa sobre a lógica adotada pelo positivismo jurídico, fundamentada na sua Teoria da Interpretação, que tem contribuído para a manutenção e reprodução de um modelo jurídico comprometido com o status quo vigente. Isso se demonstra pelo abismo existente entre a realidade dos fatos e a realidade normativa pugnada pela Constituição Federal de 1988, que passados 20 anos da sua promulgação, ainda se encontra distante de uma efetiva e factual concretização das suas normas.

É diante desse contexto que se analisa, pormenorizadamente, o surgimento histórico e os fundamentos teóricos do positivismo jurídico, especialmente a forma adotada para a interpretação dos textos legislativos. Assim, o estudo do raciocínio jurídico efetivado pelo positivismo é crucial, entendendo-se por raciocínio tanto o produto de uma atividade como a atividade em si, questões essas que se encontram imbricadas e que são indissociáveis, até mesmo porque não se pode desvincular o resultado do processo do processo em si, uma vez que ambos estão inter-relacionados numa retro-alimentação permanente.[1]

Considera-se lógica a disciplina que tem por foco o estudo do pensamento, dos caminhos percorridos na construção do conhecimento, do raciocínio propriamente dito.[2] Por conseqüência, superam-se as concepções eminentemente formais, focadas somente na forma do pensamento, para abranger também o seu conteúdo. A lógica, assim, tem por foco o raciocínio e os seus pressupostos (idéias, juízos...), verificando-lhes a adequação aos fins propostos. No presente trabalho, discorre-se sobre a lógica jurídica, que tem por objeto a aferição do raciocínio dos juristas na produção do direito. Mais especificamente, coloca-se em xeque a lógica pugnada pelo positivismo jurídico, indissociável da sua forma de interpretar os textos normativos e do arcabouço ideológico e conceitual que lhe é subjacente.

A complexidade da sociedade contemporânea do final do sec. XX e início do séc. XXI traz a necessidade de métodos (meta+odos: caminho para) adequados para a compreensão dos fenômenos sociais. No caso do direito, a aplicação é ínsita à compreensão e interpretação, alçando o construtor da ordem jurídica a uma condição sui generis no comparativo com as outras ciências sociais, pois o seu labor consubstancia-se num processo de normatização da sociedade, através da criação de normas jurídicas a partir dos textos jurídicos-legislativos positivados.

Para que o objetivo deste trabalho possa ser alcançado é que se parte de uma análise da origem e evolução do positivismo jurídico, tanto numa perspectiva diacrônica como sincrônica, pois o entendimento histórico-conceitual-teórico imbrica-se para a adequada compreensão do juspositivismo. Em seqüência, parte-se para a análise crítica do silogismo positivista, elemento essencial na interpretação levada a cabo por essa corrente do pensamento jurídico, apresentando-se a necessidade premente da sua superação para que o Estado Democrático de Direito exposto na Constituição Federal possa exsurgir e, conseqüentemente, suas normas possam dotar-se de eficácia e efetividade.

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1 Origem e Evolução do Positivismo Jurídico

O positivismo jurídico, concepção do fenômeno jurídico que reduz o direito estritamente à lei posta pelo Estado,[3] encontra o seu gênesis na Escola da Exegese, que se constitui no início do séc. XIX, na França. Essa forma de compreender o direito encontra no período pós-revolucionário os pressupostos para o seu desenvolvimento: a) Estado de Direito, com a respectiva repartição de competências entre as funções estatais, conferindo ao Legislativo o poder de apor leis válidas; b) Codificação empreendida com o Código de Napoleão, que buscou abarcar num texto legislativo os signos lingüísticos suficientes para fundamentar as normas necessárias para a regulação social.

L´État légal, superador do ancién regime, significou uma mudança paradigmática do Estado francês, solapando o absolutismo reinante. Não obstante a manutenção de muitas instituições do regime anterior, até mesmo por uma questão de sobrevivência, estas foram se amoldando às exigências trazida por esta nova ordem, pautada pela repartição de competências entre as funções estatais – Executivo, Legislativo e Judiciário, como também pelo monopólio estatal da produção jurídica, conferida ao Legislativo.[4] Todas as disposições textuais que não fossem oriundas do poder Legislativo não eram consideradas válidas, logo, não serviam de fundamento para a resolução dos mais diversos litígios em apreciação pelo Judiciário.

O Estado de Direito francês, pós-revolucionário, pautou-se pelo atendimento dos desejos de uma burguesia ascendente, impulsionadora dessa nova ordem, que por sua vez, deveria consignar as condições necessárias para o desenvolvimento de um capitalismo expansionista. Por isso Karl Marx afirma que os direitos humanos nas Constituições Francesas – direito à liberdade, igualdade, propriedade e segurança – são direitos de um homem egoísta, necessários para o desenvolvimento solipsista do ser humano, desagregado dos outros indivíduos: “os direitos humanos (...) nada mais são do que direitos do membro da sociedade burguesa (...) do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade.”[5]

A separação entre as funções estatais assume contornos rígidos, diminuindo-se as competências jurisdicionais, chegando até mesmo a vetar a própria interpretação da lei pelos magistrados, já que estes poderiam desconstituir a vontade legislativa. À autoridade jurisdicional competia simplesmente repetir o texto legal, sem alterar-lhe o significado.[6] Diante de insuficiências legais, em 1790 foi instituído um recurso geral, para todos os tribunais, dirigido ao Legislativo, a quem competia efetivar a sua interpretação.[7] Também foi criado um Tribunal de Cassação, responsável pela fiscalização dos órgãos judiciais, a quem estes deviam prestar contas periódicas.[8]

O próprio sistema do contencioso administrativo francês - sistema de direito administrativo onde os litígios que envolvem a Administração são julgados por tribunais administrativos e não pelo Judiciário, previa o contencioso de interpretação, espécie de recurso submetido aos tribunais administrativos quando necessária a adjudicação de sentido a determinado ato administrativo obscuro/vago. [9] A interpretação de um ato

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administrativo pelo Judiciário era visto como uma interferência à atividade administrativa, logo, aos tribunais administrativos competia essa interpretação, normalmente acessória a um litígio judicial.

Além disso, a hierarquia normativa na França considerava a Declaração de Direitos como uma fonte hierarquicamente superior à Constituição, que era superior às demais leis, por sua vez superiores aos atos administrativos do Executivo para a sua aplicação. Isso na teoria. A tentativa de um Estado constitucional cedeu à efetividade de um Estado legal, pois as leis – amparadas pela generalidade, em contraposição aos privilégios legais do regime anterior – acabaram se impondo sobre a própria Constituição.[10]

As codificações, por sua vez, significaram uma tentativa de positivação das regras necessárias para a resolução dos conflitos inter-individuais, já que o direito no paradigma liberal-individualista está centrado na resolução desse jaez de litígios. Essas regras também tiveram a sua origem no jusnaturalismo, entretanto, após a sua consolidação em textos expedidos pelo Poder Legislativo, mais especificamente o Código de Napoleão, passou-se a considerar como direito somente essas disposições, ignorando-se toda e qualquer outra fonte que não seja a lei expedida pelo Estado. O direito natural passou a integrar o campo do não-direito, por mais que os construtores do Código de Napoleão tivessem deixado uma “válvula de escape” no famoso art. 4º: “O juiz que se recusar a julgar sob o pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei poderá ser processado como culpável de justiça denegada.”[11]

O direito positivo, que no decorrer da história apresentara, ora momentos de supremacia (p. ex. antiga Grécia e Roma), ora momentos de submissão ao direito natural (p. ex. Idade Média), passou a ser considerado não como fonte preponderante do direito, mas como sua única fonte. O recurso à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito somente eram aceitos para a resolução de eventuais lacunas da lei, já que ao magistrado não se admitia a excusa de proferir o direito.

Dessa forma, o imutável Direito Natural, composto por normas universalmente válidas para todos os povos e gerações, acessível pela razão em virtude da sua ínsita necessidade ao desenvolvimento humano, passou a integrar o campo do não-direito, já que não correspondia a uma manifestação estatal de vontade por órgão competente. As concepções da Escola Clássica do Direito Natural forjada por Hugo Grócio, Samuel Pufendorf e John Locke, no séc. XVII, calcada na indelével força da razão, acima de quaisquer concepções teológicas, foram sepultadas pelo positivismo exsurgente do séc. XIX.[12]

O positivismo jurídico também não pode ser confundido como sinônimo do positivismo científico de Augusto Comte. Pertencem ao mesmo período histórico, já que se desenvolvem no séc. XIX; abeberam-se das mesmas fontes do conhecimento, com especial influência do iluminismo e o conseqüente racionalismo imperante no pensamento ocidental, que empodera a razão enquanto molda propulsora do desenvolvimento humano; utilizam-se dos mesmos métodos, apropriando-se dos procedimentos utilizados pelas ciências naturais; ambas as construções teóricas possuem uma grande preocupação com a segurança, jurídica de um lado, científica do outro – a segurança do direito está nos textos legislativos emanados do órgão competente e a segurança científica está na observação dos fenômenos apreensíveis ao

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homem.[13] Ademais, pode-se afirmar que o pensamento positivo comtiano, na sua configuração reordenadora do conhecimento, pode servir de base para juspositivismo.

Entretanto, essas correntes do pensamento humano possuem contornos e configurações distintas. O positivismo jurídico é desenvolvido, inicialmente, pela Escola da Exegese, na França; o positivismo científico é fruto da construção teórica do matemático e filósofo francês Augusto Comte; o positivismo jurídico está focado numa melhor compreensão do fenômeno jurídico para a sua aplicação prática; o positivismo científico traz uma explicação filosófica da sociedade, alicerçada numa reestruturação desta e do próprio homem nos termos do pensamento positivo; o positivismo considera direito os textos legislativos postos pelo Estado; o positivismo científico busca transformar a sociedade, o homem e o próprio conhecimento com base no pensamento positivo.[14]

O positivismo jurídico, por coerência aos seus postulados, vai possuir uma concepção avalorativa do direito, não o interligando a quaisquer valores. Por óbvio, se o direito deve ser compreendido somente em relação às leis emanadas pelo Estado, que prevalecem sobre quaisquer outras fontes, com base na equivalência lei válida = lei posta, a ciência jurídica não pode compreender o ordenamento com base em valores pressupostos. O foco de estudos deve ser a lei válida, seja qual foi esta lei, seja qual for o seu mandamento, sejam quais forem as valorações do legislador ou do órgão estatal encarregado em positivá-la. Está-se diante de uma concepção eminentemente formal do Direito, que prescinde do conteúdo das normas postas pelo Estado.

Mais do que isso, vai desenvolver uma teoria própria do Direito, calcada nos seguintes fundamentos:[15]

a) Direito como coação: as normas postas pelo Estado são destinadas precipuamente aos juízes, a fim de regular o uso da força coativa estatal. A coação é o objeto das normas que trazem sanções, definindo quem, quando, como e quanto de coação pode/deve o Estado impor a quem descumpre os seus mandamentos;

b) Fontes: a teoria das fontes, construída sob o pressuposto de um ordenamento complexo e hierárquico, apresenta a lei no seu ápice, preponderando sobre quaisquer outras fontes;

c) Imperativismo: as normas postas pelo órgão estatal competente constituem-se em comandos a serem observados, adentrando na categoria de imperativos hipotéticos. Isso porque o direito não é forjado por normas descritivas de uma realidade posta, mas constituído por proposições prescritivas, que apontam conseqüências para determinados comportamentos, sem relação de causalidade (postulado do dever-ser às normas jurídicas positivas);

d) Teoria do ordenamento: alicerçam-se na unidade, coerência e completude do ordenamento jurídico. A unidade repousa, faticamente, na Constituição, e a unidade desta, para fins lógico-teóricos, na norma fundamental, criação kelseniana para fechar o sistema jurídico. A coerência conduz à eliminação de antinomias, para o qual há os critérios cronológico, hierárquico e da especialidade. A completude remete o magistrado a encontrar as soluções para eventuais lacunas ou insuficiências legislativas no próprio ordenamento, já que este deve ser concebido como completo;

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e) Teoria da interpretação: na busca máxima de segurança jurídica, o positivismo atrelou-se às interpretações textuais (gramatical, teleológica, sistemática e histórica), inicialmente fundadas no signo lingüístico (interpretação estática), e posteriormente no seu significado (interpretação dinâmica), o que possibilitou uma adequação histórica aos textos legislativos. É nesse ínterim que se avança da busca da vontade do legislador para a vontade da norma. O papel do direito consubstancia-se numa atividade declarativa, não construtiva-produtiva de significados, mas atrelada ao signo. Nas extremas situações onde se aceitasse a lacuna ou insuficiência legislativa o positivismo apresentou a interpretação extratextual, onde exsurgem as analogias legis e juris.[16]

Segundo Castanheira Neves,[17] a relação intencional que o positivismo jurídico estabelece entre a razão e o procedimento é de uma exterioridade construtiva, pautada por uma pré-determinação finalística e por um logos prescritivo, com base num método ideal-matemático-dedutivo, que é a base de uma técnica que converge para a prática nos moldes da ciência moderna. Além da redução do direito às normas postas pelo órgão competente, este é compreendido como um estatuto normativo-formal, num sentido dogmático e lógico-sistemático, alicerçado em conceitos abstratos que se constituem em premissas para uma lógica subsuntiva com estruturas invariáveis. O direito é concebido enquanto um objeto, totalmente distinto da moral e da política.[18]

A racionalidade positivista é de uma discursividade pura (estrutura sintática de lógica formal). Predomina a intenção teorética e normativo-dogmática (legalista ou analítico-lingüístico), numa concepção dogmática-sistemático-conceitual do direito, que constitui um sistema fechado, racional e auto-subsistente. O direito, conseqüentemente, é pressuposto/dado, com intenção de “verdade”. Assim, concebe-se o texto não apenas em termos expressivo, mas constitutivo e pré-determinao, excludente de uma mediação significante que transponha os limites lingüísticos. O direito equipara-se à lei.

Ainda, para o jusfilósofo português, o modelo metódico da teoria positivista da interpretação pressupõe o texto como um objeto, seja na teoria subjetivista (mens legislatoris), seja na teoria objetivista (mens legis), seja na perspectiva analítico-linguística (interpretação semântica para obter premissas). A evolução contínua da primeira para a segunda e terceira teorias marca um importante avanço na interpretação jurídica positivista, possibilitando uma melhor adequação do texto posto à realidade concreta.[19] Em todas essas situações impõe-se uma lógica dedutiva, alicerçada em premissas fundamentantes da decisão e respectivo juízo judicante. Os elementos gramatical, histórico, sistemático e teleológico são fundamentais para a interpretação positivista, a primeira preponderando na teoria subjetivista e as três últimas na teoria objetivista.

O juspositivismo, enquanto uma concepção avalorativa do direito, encerra-se num normativismo formal-teorético-dogmático que tem a norma positiva como o prius metodológico, voltado à sua mera aplicação mediante uma técnica dedutivo-subsuntiva, que estigmatiza este processo enquanto uma simples reprodução de sentidos adjudicados do texto oriundo da autoridade estatal competente.

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2 O Silogismo Juspositivista: Considerações Críticas e Superação

A lógica é o locus filosófico que se atem ao estudo do complexo pensamento humano e suas conseqüências. Não obstante seja possível discorrer sobre importantes reflexões acerca do pensamento antes de Aristóteles (Zenão de Eléa, Sócrates, Parmênides...), foi com o estagirista que se forjou um trabalho mais profundo e sistemático sobre essa questão.[20]

A lógica aristotélica silogística tem preponderado desde a Idade Antiga, ganhando importante densidade teórico-filosófica na escolástica de Santo Tomás de Aquino, até mesmo pela sua adequação ao conhecimento científico e pelo seu caráter conservador-acrítico.[21]

Tal lógica é construída com base em três proposições: uma premissa maior (verdade inquestionável e geral/universal), uma premissa menor (particularidade) e uma conclusão, esta última inferida daquelas. As premissas são permeadas pelo termo médio, interligando-as conceitual-lógicamente, possibilitando que se infira uma conclusão, da qual não participa. Eis um modelo tradicionalmente trabalhado e que permite compreensão deste silogismo:

Os homens são mortais premissa maior

Sócrates é um homem[22] premissa menor

Logo, Sócrates é mortal conclusão

Desde já, apreende-se que a plausibilidade de tal forma de proceder na construção do raciocínio está na adequação das premissas. Ou parte-se de premissas verdadeiras ou o silogismo estará comprometido. Mais do que isso, várias regras são de observância obrigatória para que o silogismo possa concretizar-se com retidão:[23] tem que ter três proposições; a conclusão não pode ser mais abrangente do que as premissas;[24] o termo médio deve ser concebido universalmente uma vez;[25] o termo médio não pode estar na conclusão; duas premissas negativas não chegam a conclusão alguma;[26] duas premissas afirmativas não podem concluir negativamente; a conclusão seguirá a premissa negativa ou particular; duas premissas particulares nada concluem.[27] A essas considerações devem-se acrescentar os sofismas, que são artifícios que forjam raciocínios falsos.[28]

De acordo com essas regras, depreende-se que o silogismo aristotélico é eminentemente formal, abstraindo-se do conteúdo das proposições relacionadas, das quais se extrai a conclusão. É por essa razão que Aristóteles definiu este modelo metodológico como o ideal para as ciências da natureza, já que estas trabalham com a objetificação do seu foco de estudos. Ademais, tamanho emaranhado de regras formais demonstram a própria falibilidade do silogismo apofântico.

Entretanto, os pressupostos do conhecimento científico, que foram forjados nos últimos dois mil e quinhentos anos, se encontram em xeque. A complexidade do conhecimento alcançado no séc. XX fez ruir os inquestionáveis princípios da ordem, da separação, da

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redução e da lógica silogística. As revoluções impulsionadas pela física quântica e pela interdisciplinariedade ressaltaram a complexidade do conhecimento humano, não mais apreensível através dos princípios aristotélicos da identidade, não contradição e terceiro excluído. A clássica lógica apofântica demonstrou-se insuficiente para abarcar esta realidade de complexidade crescente, especialmente diante das irredutíveis e interligadas instâncias contraditórias que forjam o atual saber humano e que devem conviver conjuntamente numa dialógica pautada por um modus compreensivo distinto: ordem - desordem - desorganização.[29]

Como conseqüência dessa crise dos pressupostos do conhecimento científico-ocidental expõe-se: a) questionamento do conceito de lei e de causalidade, ambas relativizadas em virtude do viés probabilístico da lei e da assunção de um finalismo-pragmático; b) preponderância do conteúdo sobre a forma, já que o primeiro, esteriotipado na cientificidade moderna, se expressa numa relação sujeito-objeto “que interioriza o sujeito à custa da exteriorização do objeto, tornando-os estanques e incomunicáveis”; c) superação da redução e especialidade em prol do relevo às relações entre as partes, o que evita distorções no conhecimento.[30]

O paradigma científico dominante da modernidade possui uma grande confiança epistemológica com base na distinção entre o conhecimento científico e senso comum e entre natureza e pessoa humana. As idéias matemáticas presidem, enquanto instrumento e lógica, a produção desse conhecimento teorético-científico: “é um conhecimento causal que aspira à formulação de leis, à luz de regularidades observadas, com vista a prever o comportamento futuro dos fenômenos.”[31] Essa mesma compreensão da natureza foi transposta para a compreensão da sociedade e descoberta das suas leis imutáveis, o que será aprofundado pelo Iluminismo, no séc. XVIII, que impulsiona o surgimento das ciências sociais, no séc. XIX, especialmente com o positivismo. Neste contexto predominou a aplicação dos princípios metodológicos e epistemológicos das ciências da natureza para as ciências sociais, não obstante a reivindicação de uma metodologia e epistemologia próprias às particularidades e especificidades humanas, já que as ciências sociais fundam-se na ação humana, subjetiva, compreensível via métodos qualitativos para a consecução de um “conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo, em vez de um conhecimento objetivo, explicativo e nomotético”.[32]

A crise desse paradigma dominante remete a uma crise do seu modelo metodológico, lógico-formal. O direito sob o manto juspositivista teve o encobrimento das particularidades e singularidades do caso concreto pela assunção de um postulado metodológico inadequado, silogístico-dedutivo, que o desconsiderava enquanto ciência social-prática.

Segundo Manuel Atienza a prática do direito centra-se na argumentação, que ocorre em três situações: a) produção de normas: abrange o período pré-legislativo e o momento legislativo propriamente dito, cujos procedimentos conduzem à produção de textos jurídico-normativos pelo órgão competente; b) aplicação: caracterizada, no processo jurisdicional e no processo administrativo, pela concretização das normas postas pelo órgão estatal; c) dogmática: ordena e sistematiza as normas postas, apresentando critérios para a produção e aplicação do direito.[33]

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A argumentação jurídica pressupõe a necessidade dos argumentos jurídicos serem justificados, especialmente nos processos decisionais. Tal justificação deve situar-se não no campo da sua adequação formal-dedutiva, mas deve adentrar na sua materialidade, o que remete à superação do silogismo jurídico e do determinismo e decisionismo metodológicos.[34]

Para uma melhor compreensão dos limites e da falibilidade do silogismo e sua respectiva validade dedutivo-formal, Manuel Atienza faz uma análise do poema de Edgard Allan Poe A Carta Roubada, que gira em torno do roubo de uma carta na residência real, feita por um ministro, que tem a usado como forma de chantagem. Nessa estória o chefe de polícia não consegue encontrar a carta e pede auxilia a Dupin, que a encontra, partindo do pressuposto que o ministro é uma pessoa inteligente e que deixara a carta num lugar visível, como algo sem valor, pois isso seria inesperado quando da realização da busca. Ao explicar o fracasso da incursão anterior, descobre uma falácia levada a cabo pelo chefe de polícia, que deduziu que o ministro é um imbecil porque tem fama de poeta (todos os imbecis são poetas, logo, infere que todos os poetas são imbecis).

O jusfilósofo espanhol apresenta quatro silogismos a fim de demonstrar a falibilidade dessa lógica dedutiva, que não se impõe como correção às falácias materiais oriundas de premissas não-verdadeiras. Numa primeira situação apresenta uma argumentação válida logicamente, porém concludentemente falsa, pois oriunda de uma falsa premissa. No segundo caso uma argumentação inválida logicamente, porém concludentemente falsa, não obstante oriunda de premissas verdadeiras. No terceiro caso outra argumentação inválida logicamente, porém concludentemente verdadeira, oriunda de premissas verdadeira. No quarto caso a argumentação é válida logicamente, concludentemente verdadeira, oriunda de premissas verdadeiras.[35]

A principal crítica ao silogismo-dedutivo-formal está no fato de não propiciar critérios para a aferição da correção material dos argumentos, mas somente de falácias formais, pois se atem a critérios eminentemente formais, o que não é adequado para as ciências sociais-práticas como o direito, que também deve relevar a materialidade corretiva/válida dos argumentos.

Há argumentos não-dedutivos que orientam momentos decisionais, inferidos de proposições particulares que não possuem uma conclusão necessária - como ocorre na dedução formal -, mas conclusões prováveis.[36] Não há exatidão na certeza, mas apenas probabilidade. Por conseqüência, afirmam-se os limites do silogismo judicial: a) conduz a uma conclusão que servirá de base para a sentença e não à própria sentença; b) inexistência da necessariedade dedutiva da sentença - salvo quando os argumentos não-dedutivos são transformados em dedutivos, pois a sentença pode variar sem contraditar as premissas; c) participação da convicção valorativa na construção dos pressupostos na determinação da sentença jurídica, ressaltado pelo seu caráter antimemático;[37] d) o silogismo judicial, que alcança um enunciado normativo, não é competente para adentrar no plano da ação, que por sua vez permeia a decisão judicial.[38]

Quanto à passagem das premissas à conclusão, necessária nos raciocínios analíticos-dedutivos e não necessárias nos raciocínios dialéticos:

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Enquanto no silogismo a passagem das premissas à conclusão é obrigatória, o mesmo não acontece quando se trata de passar dos argumentos à decisão: tal passagem não é de modo algum obrigatório, pois se o fosse não estaríamos diante de uma decisão, que supõe sempre a possibilidade quer de decidir de outro modo, quer de não decidir de modo algum.[39]

Mais do que isso, a lógica tradicional-silogística-dedutiva aprioriza os juízos da vida jurídica e o significado jurídico dos fatos, abarcando a própria atividade dogmática.[40] Além de um controle meramente formal, ignora os elementos irracionais, contingentes e extralógicos que influenciam na decisão, como também a imanente dialeticidade do direito. O direito, enquanto juris prudentia, deve abarcar toda esta realidade, partindo da norma posta pelo órgão estatal como um pedaço objetivado da vida humana, conforme Recasens, revivendo-a na sua aplicação. A norma jurídica, assim revivida, deve adequar-se e adequar o caso concreto, permeado pela sua ínsita historicidade e circunstâncias próprias, sobre os quais incide um juízo axiológico que possibilita a criação de uma norma ao caso concreto.[41]

Trata-se da compreensão do direito como uma ciência prática e não como uma verdade-axiomática, que busca decisões razoáveis e argumentativas ao invés de decisões meramente racionais-monológicas, norteado por um normativismo dialético. A coerência material coexiste com a coerência formal e com a coerência axiológica-principiológica, ambas cruciais no processo de aplicação do direito. Do primado da lei ao primado dos valores.[42]

Na compreensão do direito enquanto ciência prática é que reside um dos pontos cruciais do raciocínio jurídico, distinguindo-o do raciocínio das ciências da natureza e das ciências humanas não normativas e, conseqüentemente, do seu método formal-dedutivo:

É nisto que o raciocínio jurídico se distingue do raciocínio que caracteriza as ciências, especialmente as ciências dedutivas – nas quais é mais fácil chegar a um acordo sobre as técnicas de cálculo e de medição -, e daquele que encontramos em filosofia e nas ciências humanas, nas quais na falta de um acordo e na ausência de um juiz capaz de encerrar os debates com sua sentença, cada um permanece em suas posições. Por se quase sempre controvertido, o raciocínio jurídico, ao contrário do raciocínio dedutivo puramente formal, só muito raramente poderá ser considerado correto ou incorreto, de um modo, por assim dizer, impessoal.[43]

A lógica formal que (in)forma a metodologia do positivismo jurídico faz a desvinculação da individualizável história do caso em análise, visando uma abstração generalizável. A pressuposição de regras, num contexto metafísico, suficientes para dar conta da realidade via um processo de subsunção-dedutiva e, conseqüentemente, de objetivação subjeito-objeto, que não releva a importância dos princípios, é um dos postulados fundamentais do positivismo. Aliás, essa é uma das facetas da crise de dupla face acerca da qual discorre Lênio Streck, ou seja, a crise de um modelo de direito

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insuficiente para enfrentar os problemas contemporêneos e supraindividuais de uma complexa sociedade.[44]

O uso do silogismo jurídico-judicial permite a distorção das suas conclusões via manipulação das premissas, pois o método analítico somente observa a formalidade do raciocínio.[45] Mais do que isso, na espacialidade penal, com o sistema inquisitório (ainda vigente no Brasil), a garantia de direitos não se encontra na dialética do sistema acusatório, mas na lei, vinculando a todos – especialmente o juiz-condutor. Como conseqüência está a distorção da lógica pela razão, decorrência do próprio processo lógico dedutivo-subsuntivo, e o surgimento de quadros paranóicos que distorcem a processualística e a garantia de direitos.[46]

Ainda quanto ao método silogístico, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho afirma a sua insegurança, ou melhor, a certeza da possibilidade de manipulação das premissas, até mesmo porque possui enquanto ponto de partida um axioma indemonstrável[47]:

Neste campo, reinou e reina a analítica aristotélica, porque por excelência diz com o método da ciência. Para um direito órfão da vera e própria cientificidade, nada mais superficial que se engajar em algo do gênero, tendo-se por pano de fundo, por sintomático e mais uma vez, a aparente segurança jurídica. (...) Pense-se (...) como se estuda – e se ensina a sentença e o ato de sentenciar; o requerimento petição e o ato de requerer, e assim por diante. Tudo, enfim, resume-se a silogismos, muitas vezes sem qualquer sentido; ou o que é muito pior, que dão, categoricamente, o sentido.[48]

Segundo Castanheira Neves, trabalhar metodicamente com a lógica formal-dedutiva significa desconsiderar a realização jurídica na sua concreta problematicidade e intencionalidade normativa material, fundamentais para a construção crítico-reflexivo do direito no seu devir. É visível a crise do sistematismo dogmático-conceitual do positivismo, que desconsidera o direito na sua realização, pois o reduz à abstração das normas postas positivamente. O positivismo oculta o problema jurídico em sua faticidade concreta, recorrendo a um pensamento cognitivo-analítico e lógico-dedutivo focado unicamente na Lex scripta. Trata-se de uma concepção que ignora o sentido prático-normativo e normativo-teleológico do direito, que se socorre a elementos extratextuais/transpositivos na concreta decisão judicativa.

A racionalidade jurídica deve ser eminentemente prática em uma atividade comunicativa sujeito/sujeito e não objetivadora sujeito/objeto, calcada numa troca dialógica-dialética de argumentos para a concretização de uma decisão razoável-situacional e prática-contextual, consoante as exigências normativas específicas compreendidas autonomamente. A dimensão problemática propicia uma abertura na textura dogmática da norma posta para a realização da justa e adequada juridicidade materialmente correta e normativamente plausível.

A interpretação jurídica tem que superar o postulado positivista do sentido hermenêutico-positivo para alcançar o sentido prático-normativo no caso concreto-

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decidendo. Assim, a determinação dos sentidos dos signos lingüísticos deve ocorrer pela adjudicação do sentido jurídico numa função pragmática de uso variável e aplicável à problematicidade concreta, como o resultado de um processo de interpretação que releva o caráter normativo-decisório-judicativo.

A realização jurídica na sua práxis requer a superação do primado da lógica para alcançar o primado da investigação da vida. A experimentação concretizadora conduz à reconstrução e problematização da dogmática (enquanto intenção teórética de tendência formalista) permeada por uma teleologia que reforçam a intencionalidade prática do direito numa abertura a elementos extratextuais/transpositivos na sua concreta realização. A interpretação, a aplicação e a integração no momento judicativo não são fases estanques, mas indissociáveis de um mesmo momento realizador, numa dialética que exclui quaisquer formalismos-dedutivistas:

A interpretação jurídica deixar de ser, assim, um pressuposto algaritmo metodológico ou uma técnica que simplesmente se postule, para ser um acto metodológico que se problematiza pelo problema geral da realização do direito – o seu problema é o próprio problema da realização do direito, e a sua intenção (jurídico-metodológica) a própria intenção jurídico-normativa dessa realização. Ou seja, a realização do direito não é o que for a interpretação jurídica considerada em si e como momento determinante daquela, antes a interpretação jurídica deverá ser o que a realização do direito, compreendida no seu sentido problemático-normativo específico, implique que ela deve ser.[49]

A índole analítico-interpretativa, peculiar ao positivismo, deve abrir-se para uma índole sintética-normativista, que tenha como base o caso concreto e a compreensão do direito enquanto uma ciência prática, hermeneuticamente aberta.[50]

A lógica dedutivo-formal positivista aplicada ao processo de construção do direito significa remontar a um positivismo-normativista-teórico incapaz de dar conta dos complexos problemas da sociedade contemporânea, já que possui enquanto prius metodológico a norma positiva, na compreensão de um sistema fechado, referido a estas mesmas normas enquanto pressuposto e enquanto fim.

A superação da lógica formal , seja na fase de elaboração legislativa, seja no momento da aplicação constitutiva das normas, seja na construção doutrinária, é crucial para que a faticidade de uma ciência prática como o direito possa exsurgir na sua índole normativa-concreta. As insuficiências deste modelo lógico também conduz à crise porque passa o positivismo jurídico e a sua inaptidão para dar conta dos problemas prático-normativos atuais.

Aliás, a lógica dedutivo-formal, originariamente aplicada às ciências naturais, tem estado numa grande crise paradigmática, que também conduz à sua superação enquanto modelo metodológico. Diante das ciências sociais, mais especificamente a ciência jurídica, que é prática por excelência, tem se demonstrado insuficiente, a não ser para a (re)produção de um modus operandi conservador de um status jurídico e social

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inaceitável num Estado Democrático de Direito que ainda não conseguiu efetivar os direitos fundamentais, mormente os sociais, consignados na Constituição.

Esse modelo metodológico deve ser substituído por outros que permitam o “acontecer” do direito e não a reprodução mecanizada de standards normativos que retroalimentam um senso comum jurídico preocupado com a resolução de conflitos inter-individuais e não supra-individuais. O método dialético, defendido por várias correntes do pensamento jurídico – hermenêutica filosófica, tópico-retórica, argumentação jurídica, judicatismo decisório –, é um desses caminhos, entretanto, trata-se de um tema cujo desenvolvimento não se encontra no escopo deste trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho enfoca a crise do modelo metódico lógico-dedutivo do positivismo jurídico, o que remete, conseqüentemente, a uma crítica do próprio positivismo. Isso porque o modelo juspositivista de elaboração do direito ainda se encontra presente no senso comum teórico dos “operadores” do direito brasileiro, cuja superação é fundamental para a concretização dos direitos fundamentais, especialmente os direitos sociais, previstos na Constituição Federal.

Para tanto, discorreu-se sobre a evolução histórica do positivismo, remontando à Revolução Francesa e ao Estado de Direito emergente, que no seu bojo configurou a separação entre as funções estatais. Ao Legislativo competia a formulação de leis positivas, a serem aplicadas “reprodutivamente” pelo magistrado. Em seqüencia, abordou-se a codificação francesa, que na sua suficiência normativa para apreender na lei - enquanto pressuposto normativo - toda a complexa realidade, impulsionou o desenvolvimento da Escola da Exegese, marco de maior importância ao positivismo. Tais vetores forjaram uma compreensão reducionista do direito, simplesmente equiparado à lei posta.

Mais do que isso, o positivismo cinge-se a uma concepção eminentemente avalorativa do direito, abstraindo-se de quaisquer valorações na sua aplicação. Constrói-se um arcabouço teórico que conceitua o direito enquanto coação; que apreende o seu caráter imperativista; que apresenta uma teoria das fontes; que fundamenta uma teoria do ordenamento; e que, principalmente, alicerça uma teoria da interpretação, questão de fundo do maior alcance na sua metodologia.

O positivismo, assim, é compreendido como uma razão prescritiva, conseqüência do método matemático-dedutivo, que objetifica o direito via uma lógica subsuntiva, que tem a pretensão de abarcar toda a realidade através das suas premissas extraídas do texto positivo. Aliás, o prius metodológico encontra-se na norma positiva, longe do caso concreto decidendo.

O silogismo formal-dedutivo, pilar central do método juspositivista, foi analisado na sua origem filosófica, remontando ao seu principal expoente, Aristóteles. Suas regras formais, que permitem extrair uma conclusão independentemente do seu conteúdo,

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foram analisadas. Demonstrou-se, também, que os pressupostos do conhecimento moderno-ocidental encontram-se em crise, e, dentre estes, a lógica dedutivo-silogística. Isso quanto às ciências da natureza. No que tange ao fenômeno jurídico a situação se agrava, pois enquanto ciência social possui especificidades próprias, pautadas pelas contingências histórico-culturais-sociais e pela subjetividade imanente, longe de quaisquer determinismos ou relações de causalidade. Mesmo assim, o séc. XIX observou a transposição do modelo metodológico – lógica dedutiva – das ciências naturais para as ciências sociais, nas quais se incluiu o direito. Esses dois fatores demonstram a inadequação deste modelo lógico-formal.

Esta forma de proceder desconsidera o direito enquanto ciência prática e a sua imanente dialeticidade, obnubilando o caso concreto pela preponderância de abstrações generalizáveis. Além disso, permite a manipulação das suas premissas, o que vem a romper com a sua pretensão de (in)segurança absoluta.

O direito tem que ser reconduzido à problematicidade-factual do caso concreto, compreendido enquanto prius metodológico no processo normativo de construção do direito. É essa consideração que permitirá uma abertura na textura dogmática da norma posta para a realização de uma juridicidade materialmente correta e normativamente plausível. O direito se concretiza na sua faticidade-problemática, da qual se adjudica a norma oriunda de um texto positivo que não servirá de premissa, mas que se amoldará às circunstâncias jurídico-normativas no processo de construção de sentidos.

A superação do positivismo e respectivo silogismo formal-dedutivo que lhe é imanente é condição essencial para o rompimento de um senso comum teórico-jurídico que aprioriza os juízos normativos e da vida em abstrações generalizáveis e não permite o exsurgir do problema concreto no processo judicante-decisional, olvidando o caráter eminentemente prático e dialético do direito. Mais do que isso, corrobora com a manutenção de um status jurídico e social que afronta os direitos consignados na Constituição, mormente os direitos fundamentais sociais.

O direito também pode corroborar com profundas transformações sociais mediante uma maior eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, entretanto é preciso que rompa com os grilhões de um juspositivismo reprodutor de uma ordem constituída que se retroalimenta num senso comum teórico conservador.

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[1] Seria o mesmo que aceitar a absolutização do decadente e superado princípio da redução, que durante muito tempo figurou como um dos pressupostos do conhecimento ocidental. Por esse princípio aceita-se o “fracionamento” do todo em partes, para que o estudo destas partes permita o conhecimento do todo em questão. Hoje em dia sabe-se que o todo é muito mais do que a mera junção das suas partes isoladamente, pois há inúmeras variáveis decorrentes das suas respectivas interações que não são perceptíveis isoladamente. Aliás, Pascal já se manifestara sobre isso. MORIN, Edgar. A Religação dos Saberes: o desafio do séc. XXI. São Paulo: Bertrand Brasil, 2001, p. 559-567.

[2] Lógica etimologicamente deriva do grego logos (razão, discurso), podendo ser concebida como a “ciência das leis do pensamento e a arte de aplicá-las ao conhecimento da verdade.” Abstraindo-se dos debates acerca da verdade no mundo jurídico, a lógica tradicionalmente é concebida como uma ciência prática e uma arte, que tem como objeto o pensamento humano e as suas operações básicas – idéia, juízo e raciocínio. CRUZ, Estêvão. Compêndio de Filosofia. Porto Alegre: Globo, 1932, p. 277-280.

[3] BOBBIO, Norberto. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995.

[4] MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. A administrativista (p.12-19) apresenta razões para demonstrar que muitos procedimentos e institutos jurídico-administrativos anteriores à Revolução Francesa tiveram a sua continuidade, adaptando-se ao novo contexto, que inovou ao

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dispor de um estatuto jurídico-vinculante a todas as autoridades administrativas, por reconhecer direitos aos administrados e pela elaboração dogmática-doutrinária e jurisprudencial-vinculativa para a Administração.

[5] MARX, Karl. A Questão Judaica. São Paulo: Moraes, p. 41.

[6] MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. São Paulo: Martin Claret, 2001.

[7] Este recurso foi substituído pelo célebre art. 4 do Código de Napoleão, em 1804. Assim, remanesceu até 1837 o último recurso ao Legislativo, denominado recurso de caráter especial, que ocorria quando uma sentença tivesse sido cassada três vezes, obrigando a manifestação do parlamento antes do Tribunal de Cassação. Com essa alteração, o tribunal tinha que seguir a decisão da Corte de Cassação.

[8] PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 23-26.

[9] NICZ, Alvacir Alfredo. Estudos de Direito Administrativo. Curitiba: JM Editora, 1995, p. 80-85.

[10] “A limitação do poder pelo direito acabaria, em França, numa situação paradoxal. A supremacia da constituição foi neutralizada pela primazia da lei. Daí que um célebre jurista francês – Carré de Malberg – se tenha referido ao ‘Estado de direito francês’ como um Estado legal ou Estado de legalidade relativamente eficaz no cumprimento do princípio da legalidade por parte da Administração mas incapaz de compreender o sentido da supremacia da constituição (...)”. CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 91-92.

[11] BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 74.

[12] Grócio, Pufendor e Locke tiveram em comum a superação das concepções teológicas do direito, que remontavam a origem de todas as leis à lei divina, o que era próprio da perspectiva teocêntrica então vigente, especialmente nas lições de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. A fundamentação do Direito (Natural) por esses autores era extraída da razão humana, o que permitia superar as antigas concepções jusnaturalistas gregas, calcadas na natureza. Através da razão, tal qual ocorria com as ciências naturais, era possível alcançar as profundas verdades e amoldar o comportamento humano a esses ditames: “Deus deixa de ser visto como o emanador das normas jurídicas, e a natureza passa a ocupar esse lugar. Ora, com um detalhe: a natureza não dá aos homens esse entendimento; é ele mesmo, por meio do uso da razão, que apreende esse conhecimento e o coloca em prática na sociedade.” BITTAR, Eduardo; ALMEIDA, Guilherme. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2001, p, 227.

[13] Consoante esta última distinção, o positivismo comtiano é radicalmente contrário à metafísica, tanto que esta é considerada numa etapa anterior ao apogeu alcançado com o pensamento positivo (fase teológica, metafísica e positiva). Paradoxalmente, Comte chega a elevar a sua construção à condição de uma religião. O positivismo jurídico, entretanto, não consegue se desgarrar da metafísica, tanto que um dos seus expoentes,

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Hans Kelsen, vai fundamentar a unidade do ordenamento jurídico na fictícia norma fundamental.

[14] O espírito positivo, onde a observação prepondera sobre a imaginação e a abstração, almeja a harmonia do conhecimento humano, entre teoria e prática, entre ciência e arte. Aponta, conseqüentemente, a incompatibilidade entre a ciência e a teologia. COMTE, Augusto. El Espírito Positivo. Buenos Aires: Editorial Tor, p. 32-60.

[15] BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995.

[16] Segundo Perelman: “(...) os juristas da escola da exegese se empenharam em seu trabalho, procurando limitar o papel do juiz ao estabelecimento dos fatos à sua subsunção sob os termos da lei. (...) Na tradição da escola da exegese as noções de ‘clareza’ e ‘interpretação’ são antitéticas. De fato, diz-se interpretatio cessat in claris, não cabe interpretar um texto claro.” PERELMAN, Chäim. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

p. 35 e 50.

[17] NEVES, Castanheira. Metodologia Jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993.

[18] Também nesse sentido Lênio Streck, ao discorrer sobre o senso comum teórico dos juristas, que se encontra na base dos discursos epistemológicos do direito nas suas funções normativa, ideológica, retórica e política. “O sentido comum sufoca as possibilidades interpretativas. (...) no contexto da dogmática jurídica, os fenômenos sociais que chegam ao Judiciário passam a ser analisados como meras abstrações jurídicas e as pessoas, protagonistas do processo, são transformadas em autor e réu, reclamante e reclamado, e, não raras vezes ‘suplicante e suplicado’, expressões estas que, convenhamos, deveriam envergonhar (sobremodo) a todos nós. (...) pode-se dizer que ocorre uma espécie de ‘coisificação’ (objetificação) das relações jurídicas.” STRECK, Lênio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 53-64.

[19] “Se assegurar uma estrita obediência ao poder constituído em veste legislativa, e a segurança jurídica são o que sobretudo determinam praticamente o subjectivismo, já o objectivismo, ao assumir uma perspectiva que lhe permite uma evolução adequada a actualizadas exigências jurídicas da aplicação e do contexto normativos, visa antes de mais nada a justeza ou a rectidão das soluções a obter pela interpretação.” NEVES, Castanheira. Metodologia Jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 100-101.

[20] Aristóteles apresenta a proximidade da retórica, que busca a persuasão, com a dialética, considerando aquela uma parte desta enquanto faculdades que fornecem argumentos: “A retórica não deixa de apresentar analogias com a dialética, pois ambas tratam de questões que de algum modo são da competência comum de todos os homens, sem pertencerem ao domínio de uma ciência determinada. Todos os homens participam, até certo ponto, de uma e de outra; todos se empenham, dentro de certos limites em submeter a exame ou defender uma tese, em apresentar uma defesa ou uma acusação.

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(...)” Aristóteles. Arte Retórica. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1959, p. 19. O estagirista não desconheceu a importância do silogismo para a retórica, entretanto, o considera de crucia importância para o conhecimento científico, conforme Luis Angiogi: “um argumento conta como uma demonstração científica se ele satisfaz conjuntamente as três condições seguintes: ser um argumento válido (71b 17-19), constituir-se de proposições verdadeiras (71b 19-20, 25-27) e explicar adequadamente o objeto assumido como explanandum (cf. 71b 22-23). Mas é nesta última condição que Aristóteles concentra sua ênfase, justamente porque ela envolve as duas anteriores.” ANGIOGI, Luis. O conhecimento científico no livro I dos Segundos Analíticos de Aristóteles. Extraído de <http://www.filosofiaantiga.com/documents/Lucas-2007-2.pdf> em 25/09 às 3h16min.

[21] “ De maneira geral, independentemente das intenções dos filósofos, a concepção metafísica prevaleceu, ao longo da história, porque correspondia, nas sociedades divididas em classes, aos interesses das classes dominantes, sempre preocupadas em organizar duradouramente o que já está funcionando, sempre interessadas em ‘armar’ bem tanto os valores e conceitos como as instituições existentes, para impedir que os homens cedam à tentação de querer mudar o regime social vigente.” KONDER, Leandro. O Que é Dialética. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 9.

[22] “Homem”, neste silogismo, constitui o termo médio.

[23] CRUZ, Estêvão. Compêndio de Filosofia. Porto Alegre: Globo, 1932.

[24] Eis um exemplo de silogismo falho: “As crianças são inocentes

Ora, as crianças são homens

Logo, os homens são inocentes.”

[25] Eis outro exemplo falacioso: “Todo o metal é pesado

Ora, esta substância é pesada

Logo, esta substância é metal.”

[26] Mais um exemplo: “O ouro não é vegetal

Ora, esta faca não é ouro

Logo, esta faca...”

[27] Por fim, este último caso exemplificativo: “Um homem é trabalhador

Sócrates é um homem

Logo, Sócrates é um trabalhador”

[28] Vários são os sofismas, dentre os quais se destacam o sofisma do excludente (toda a medicina é inútil porque um medicamento falhou), o sofisma da interrogação (por que

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mataste aquele homem?, independentemente de sabê-lo), o sofisma da ignorância (intervenções desfocadas), dentre outros. O sofisma de Epimênides é paradigmático para demonstrar as múltiplas possibilidades discursivas não-conclusivas: Epimênides diz que todos os cretenses são mentirosos, Epimênides é cretense, logo, mente. Assim, os cretenses não são mentirosos. Não os sendo, Epimênides fala a verdade, então os cretenses são mentirosos... temos um encadeamento que segue na linha do infinito.

[29] O princípio da ordem, ou seja, de uma imanente estabilidade do cosmos, a semelhança de uma máquina, implodiu com a hermodinâmica e a física quântica, que também demonstraram a falibilidade dos princípios da identidade e da não-contradição. Os princípios da separação e da redução olvidam que o todo é mais do que o simples somatório das suas partes – idéia de recursão organizacional, e que não pode ser compreendido mediante a análise pormenorizada de cada uma das suas unidades. Por conseqüência, acaba ignorando o conhecimento que surge nas “fronteiras” do conhecido, ou seja, a interdisciplinariedade. Por fim, a lógica apofântica impossibilita a apreensão das contradições, imprescindíveis enquanto condição de cognoscibilidade. MORIN, Edgar. A Religação dos Saberes: o desafio do séc. XXI. São Paulo: Bertrand Brasil, 2001, p. 559-567. Nesse mesmo sentido, Boaventura de Souza Santos discorre sobre a crise do paradigma epistemológico dominante da modernidade (ciências naturais), forjada pela relatividade de Einstein (astrofísica), pela mecânica quântica (microfísica), pelos teoremas de Gödel (demonstram a falibilidade do rigor matemático) e pelos avanços da química e da biologia nas últimas décadas. SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000, p. 69-70.

[30] SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000, p. 71-73.

[31] SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000, p. 63. Segundo o jusfilósofo lusitano (p. 64) “as leis da ciência moderna são um tipo de causa formal que privilegia o como funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas. (...) Um conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto metateórico a idéia de ordem e de estabilidade do mundo, a idéia de que o passado se repete no futuro. (...) a ordem e a estabilidade do mundo são a pré-condição da transformação tecnológica do real.”

[32] Essa redução ao método e epistemologia das ciências naturais normalmente corrompe a faticidade das ciências sociais, cujos obstáculos são de difícil superação, conforme expõe Ernest Nagel: “as ciências sociais não dispõem de teorias explicativas que lhes permitam abstrair do real para depois buscar nele, de modo metodologicamente controlado, a prova adequada; as ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque os fenômenos sociais são historicamente condicionados e culturalmente determinados; as ciências sociais não podem produzir previsões fiáveis porque os seres humanos modificam o seu comportamento em função do conhecimento que sobre ele se adquire; os fenômenos sociais são de natureza subjetiva e, como tal, não se deixam captar pela objetividade do comportamento; as ciências sociais não são objetivas porque o cientista social não pode libertar-se, no ato de observação, dos valores que informam a sua prática em geral e, portanto, também a sua prática de cientista.” SANTOS,

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Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000, p. 66.

[33] ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2002, p. 18-21.

[34] “(...) se opõem tanto ao determinismo metodológico (as decisões jurídicas não precisam ser justificadas porque procedem de uma autoridade legítima e/ou são o resultado de simples aplicações de normas gerais) quanto ao decisionismo metodológico (as decisões jurídicas não podem ser justificadas porque são puros atos de vontade.” ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2002, p. 25.

[35] Caso número um: todos os poetas são imbecis, o ministro é poeta, logo o ministro é um imbecil; caso número dois: todos os imbecis são poetas, o ministro é poeta, logo o ministro é imbecil; caso número três: todos os imbecis são poetas, o ministro é poeta, logo o ministro não é imbecil; caso número quatro: os ministros que são poetas não são imbecis, o ministro é poeta, logo o ministro não é imbecil. ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2002, p. 27-33.

[36] Eis um exemplo de argumentos não-dedutivos: “Havia apenas uma cama desfeita na casa. Eram 6 horas da manhã quando ocorreu a verificação. Toda a roupa de os objetos pessoais de A e de B estavam na mesma habitação em que se encontrava a cama. Meses depois, A se refere a B como ‘minha mulher’. Logo, na época em que se realizou a verificação A e B mantinham relações íntimas (e, conseqüentemente, B sabia da existência da droga no travesseiro)”. ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2002, p. 41.

[37] Aristóteles discorre sobre o entimema na sua obra Arte Retórica, diferindo-a do exemplo, uma vez que este é uma indução e o entimema é um silogismo (silogismo é a forma de raciocínio pautada decorrência de proposições, ou seja, de uma proposição – premissa - decorre de outra. O entimema, embora não seja tão eficiente para a persuasão, impressionam mais. Das proposições que compõem os entimemas, poucas são necessárias, ou seja, a sua grande maioria são contingências oriundas de verossimilhança (o que acontece freqüentemente). Aristóteles. Arte Retórica. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1959, p. 19-27.

[38] ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2002, p. 35-47.

[39] PERELMAN, Chäim. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes,2000, p. 3.

[40] Esta apriorização abrange o pensamento jurídico nas suas mais diversas facetas, seja o científico-doutrinário (doutrina feita pelos escritores), seja o argumentativo (contencioso levado a cabo pelos advogados), seja o decisional (judicativo efetivado pelos juízes).

[41] Nota-se uma forte influência da teoria da argumentação em Luis Fernando Coelho, ao pugnar por uma ciência prática, superadora da lógica formal-dedutiva; que não

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alcance a verdade, mas a certeza/razoável; que esteja fundada na argumentação e não em axiomas: “A lógica da argumentação, frontalmente contrária à lógica formal, diametralmente oposta à proposta por Hans Kelsen, pretensamente científica, vislumbra na atividade do juiz um complexo empreendimento de elaboração, condensação, valoração, ponderação, divisão de elementos de diversas naturezas, em que não somente a norma jurídica é um ponto de referência, pois divide espaço e, por vezes, colide com impressões psicológicas, históricas e vivências comunitárias, intuições pessoais, provas não produzidas... que para outros modelos teóricos são simplesmente motivo de desprezo.” BITTAR, Eduardo; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2001. p. 402-403.

[42] COELHO, Luis Fernando. Lógica Jurídica e Interpretação das Leis. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p.146-176..

[43] PERELMAN, Chäim. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes,2000, p. 8. O autor assim continua: “Quem é encarregado de tomar uma decisão em direito, seja ele legislador, magistrado ou administrador público, deve arcar com as responsabilidades. Seu comprometimento pessoal é inevitável, por melhores que sejam as razões que possa alegar em favor de sua tese.”

[44] STRECK, Lênio. Verdade e Consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Lumen Juris, 2006, p.7, 149-151. Para o autor (p. 161 e 216-217), que critica o uso desmedido dos precedentes judiciais “Ainda é dominante o método subsuntivo igual ao utilizado no séc. XIX. O perigo maior representado pelas súmulas-vinculantes (...) está no fato de que cada uma delas transforma-se em uma ‘premissa maior’ ou ‘categoria’ (significante) própria para a elaboração de deduções/subsunções. (...) Interpretar (e aplicar) não é nunca uma subsunção do individual sob os conceitos do geral. E exemplos de pautas gerais são comuns e recorrentes em nossa jurisprudência. Dito de outro modo, no ‘verbete jurisprudencial’ não está contida a essencialidade relativa ao que seja uma insignificância jurídica (como era o caso sob judice).(...) os verbetes jurisprudenciais não possuem uma ess (...) que se adapte a todos os casos jurídicos. Na verdade, aplicados de forma descontextualizada, levam ao obscurecimento da singularidade do caso.”

[45] Importa observa o silogismo apresentado por Beccaria “Em todo o delito deve fazer o juiz um silogismo perfeito: a maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a conseqüência, a liberdade ou a pena. Quando o juiz for constrangido ou desejar fazer também dois silogismos somente, abrir-se-á a porta à incerteza. Não há coisa mais perigosa do que aquele axioma comu: ‘É preciso consultar o espírito da lei.’ É uma barragem rompida frente à torrente das opiniões.” BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Martin Claret, 2005.

[46] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Direito e Psicanálise: interseções a partir de ‘o Mercador de Veneza’ de William Shakespeare. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema Inquisitório e o Processo em ‘O Mercador de Veneza.’p. 164-167.

[47] Para Enrique Dussel as ciências fáticas semanticamente têm por base fenômenos naturais e demonstráveis, entretanto, sua metodologia não é adequada para os problemas humanos, calcados numa práxis: “As ciências contemporâneas desenvolveram, por sua

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parte, toda uma implementação metodológica com base em certas técnicas que podem ajudar a sabe manejar um número imenso de variáveis, constituindo modelos quer permitem avaliar grande número de alternativas hipotéticas, considerando os seus resultados por simulações muito precisas. Todavia, deve-se ter clara consciência que os melhores computadores não podem suplantar os quatorze bilhões de neurônios (com suas duzentas mil conexões de cada um com os outros) situados somente em nosso córtex cerebral. O método para a melhor decisão prática é prático. Pode usar mediações científicas, mas integradas num discurso prático que lança mal da ciência quando julga conveniente. Os cientificistas matemáticos são péssimos políticos. Não é o mesmo manejar entes de razão e respeitar homens que se ocultam no mistério de sua exterioridade.” DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação na América Latina. Piracicaba: Edições Loyola,1980, p. 167.

[48] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, Certeza e Dúvida” de Francesco Carnelutti para os Operadores do Direito. São Paulo: Lumen Juris, 2002, p. 180-181. Nesta glosa ao texto de Carnelutti “Verdade, Certeza e Dúvida”, Jacinto aponta a impossibilidade de aplicação do silogismo, amparado em axiomas, por não se ter condições gnoseológicas de se alcançar a verdade. Eis um vício insuperável neste método.

[49][49] NEVES, Castanheira. Metodologia Jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 127. O jusfilósofo lusitano também afirma (p. 137): “(...) diferentemente um pólo dinãmico de autonomia constitutiva e codeterminada na dialéctica que a interpretação jurídica é chamada a actuar na problemático-concreta realização do direito – pelo que de novo se reconhecerá que esta realização não é redutível a um esquema lógico-dedutivo.”

[50] NEVES, Castanheira. Metodologia Jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993.