manuel atienza - as razoes do direito - 3º edição - ano 2003

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  • Manuel Atienza

    AS RAZES DO DIREITOTEORIAS DA ARGUMENTAO JURDICA

    Traduo de

    M aria Cristina G uim ares Cupertino

    LANDYE D I T O R A

  • Ttulo original:

    Las Razones dei Derecho Teorias de la Argumentacin Jurdica

    desta edio:Centro de Estdios Constitucionales Madri/Espana

    eLandy Livraria Editora e Distribuidora Ltda.

    Traduo:Maria Cristina Guimares Cupertino

    Reviso:Sylmara Beletti

    Capa:Camila Mesquita

    Editor:Antonio Daniel Abreu

    Produo:Kleber Kohn

    Editorao:ETCetera Editora de Livros e Revistas Ltda.

    Fones: (011) 3825-3504 / 3826-4945 / 3661-6380 Fax: (011) 3826-7770

    [email protected]

    1." edio, junho de 20002. edio, fevereiro de 20023. edio, setembro de 2003

    Direitos reservados para a lngua portuguesa

    LANDY

    Landy Livraria Editora e Distribuidora Ltda. AlamedaJa, 1.791 -te l.e fax : (11)3081-4169(tronco-chave)

    CEP 01420-002 - So Paulo, SP, Brasil landy @ landy.com.br www.landy.com.br

    2003

  • SUMRIO

    Nota preliminar.................................................................................. 13

    CAPTULO 1

    DIREITO E ARGUMENTAO

    1. Introduo................................................................................... 172. O mbito da argumentao jurdica........................................... 183. Contexto de descoberta e contexto de justificao. Explicar

    e justificar................................................................................... 204. O conceito de validade dedutiva................................................ 235. Correo formal e correo material dos argumentos................ 286. Silogismo terico e silogismo prtico....................................... 297. Argumentos dedutivos e no dedutivos.................................... 318. O silogismo judicial e seus limites............................................. 349. Aspectos normativos e fticos da argumentao jurdica....... 37

    10. Justificao interna e justificao externa................................ 3911. Lgica jurdica e argumentao jurdica................................... 40

    CAPTULO 2

    A TPICA E O RACIOCNIO JURDICO

    1. O contexto do surgimento da tpica jurdica............................ 452. Theodor Viehweg: Uma concepo tpica do raciocnio jurdico 47

    2.1. O desenvolvimento histrico da tpica............................ 472.2. Caractersticas da tpica.................................................... 492.3. Tpica e jurisprudncia...................................................... 50

  • 3. Consideraes crticas................................................................ 523.1. Imprecises conceituais..................................................... 523.2. A fortuna histrica da tpica e da lgica.......................... 543.3. Tpica e justia................................................................... 543.4. Uma teoria da argumentao jurdica?............................. 553.5. Sobre o desenvolvimento da tpica jurdica..................... 563.6. Sobre o carter descritivo e prescritivo da tpica............ 563.7. O que resta da tpica jurdica?........................................... 57

    CAPTULO 3

    PERELMAN E A NOVA RETRICA

    1. O surgimento da nova retrica................................................... 592. A concepo retrica do raciocnio prtico.............................. 61

    2.1. Lgica e retrica.................................................................. 612.2. Os pressupostos da argumentao.................................... 622.3. O ponto de partida da argumentao................................ 642.4. As tcnicas argumentativas................................................ 66

    2.4.1. Classificao dos argumentos................................ 662.4.2. Argumentos quase-lgicos..................................... 682.4.3. Argumentos baseados na estrutura do rea l.......... 692.4.4. Argumentos que do a base para a estrutura do real 712.4.5. Argumentos de dissociao................................... 722.4.6. Interao e fora dos argumentos.......................... 73

    3. A lgica jurdica como argumentao...................................... 744. Uma avaliao crtica da teoria de Perelman............................ 77

    4.1. Uma teoria da razo prtica............................................... 774.2. Crtica conceituai................................................................ 78

    4.2.1. Sobre a classificao dos argumentos................... 784.2.2. Sobre a fora dos argumentos................................ 794.2.3. O auditrio universal.............................................. 80

    4.3. Crtica ideolgica................................................................ 824.4. Crtica da concepo de Direito e do raciocnio jurdico ... 85

    4.4.1. O conceito de positivismo jurdico........................ 854.4.2. A concepo tpica do raciocnio jurdico............ 874.4.3. Direito e retrica..................................................... 874.4.4. A retrica geral e a retrica jurdica...................... 884.4.5. Deduo e argumentao....................................... 89

    4.5. Concluso............................................................................ 90

  • CAPTULO 4

    A TEORIA DA ARGUMENTAO DETOULMIN

    1. Uma nova concepo da lgica................................................. 932. Uma concepo no formal da argumentao.......................... 95

    2.1. Introduo. O que significa argumentar?.......................... 952.2. O modelo simples de anlise dos argumentos.................. 962.3. O modelo geral. A fora dos argumentos......................... 992.4. Tipos de argumentos......................................................... 1012.5. Tipos de falcias................................................................ 1042.6. A argumentao jurdica.................................................... 106

    3. Avaliao crtica da concepo de Toulmin............................. 1093.1. Uma superao da lgica?................................................ 1103.2. A contribuio de Toulmin para uma teoria da argumentao 113

    CAPTULO 5

    NEIL MACCORMICK:

    UMA TEORIA INTEGRADORA DA ARGUMENTAO JURDICA

    1. Introduo................................................................................... 1171.1. A teoria padro da argumentao jurdica........................ 1171 .2. Argumentao prtica e argumentao jurdica segundo

    MacCormick. Proposio geral.......................................... 1192. Uma teoria integradora da argumentao jurdica...................... 121

    2.1. A justificao dedutiva...................................................... 1212.2. Pressupostos e limites da justificao dedutiva. Casos

    fceis e casos difceis......................................................... 1232.3. A justificao nos casos difceis. O requisito de

    universalidade..................................................................... 1262.4. A justificao de segundo nvel. Consistncia e coerncia 1282.5. Os argumentos conseqencialistas.................................... 1322.6. Sobre a tese da nica resposta correta. Os limites da

    racionalidade prtica.......................................................... 1353. Crtica teoria da argumentao jurdica de MacCormick....... 139

    3.1. Sobre o carter dedutivo do raciocnio jurdico............... 1393.1.1. A reconstruo em termos lgicos do raciocnio

    judicial....................................................................... 1393.1.2. Insuficincia da lgica preposicional.................... 140

  • 3.1.3. Deduo e consistncia normativa....................... 1403.1.4. O que significa subsumir?..................................... 1413.1.5. Deduo e conceitos indeterminados................... 1433.1.6. Necessidade lgica e poder discricionrio judicial 1433.1.7. Os juzos de valor no raciocnio judicial............. 1443.1.8. Verdade e D ireito................................................... 1463.1.9. Inferncias normativas. Norma e proposio

    normativa................................................................ 1473.1.10. necessria uma lgica das normas?................. 1483.1.11. O mbito da deduo............................................ 149

    3.2. Uma anlise ideolgica da teoria...................................... 1503.2.1. O mbito da argumentao................................... 1503.2.2. Poder-se-iam justificar dedues contra le g e m l... 1503.2.3. Conflitos entre os diversos requisitos da

    racionalidade........................................................... 1513.2.4. Justia de acordo com o Direito ......................... 152

    3.3. Sobre os limites da razo prtica...................................... 1533.3.1. Discordncias tericas e discordncias prticas.... 1533.3.2. O pluralismo axiolgico e seus limites.................. 1543.3.3. O espectador imparcial........................................... 154

    CAPTULO 6

    ROBERT ALEXY:A ARGUMENTAO JURDICA COMO DISCURSO RACIONAL

    1. Introduo................................................................................... 1591.1. Proposio geral: argumentao prtico-geral e

    argumentao jurdica........................................................ 1591.2. A teoria do discurso de Habermas.................................... 160

    2. A teoria da argumentao jurdica de A lexy............................ 1632.1. A teoria do discurso como teoria do procedimento.

    Fundamentao das regras do discurso............................. 1632.2. As regras e formas do discurso prtico geral.................... 166

    2.2.1. As regras fundamentais......................................... 1662.2.2. As regras da razo................................................. 1662.2.3. As regras sobre a carga da argumentao............ 1672.2.4. As formas dos argumentos................................... 1672.2.5. As regras de fundamentao................................ 1692.2.6. As regras de transio........................................... 170

    2.3. Os limites do discurso prtico geral.................................. 170

  • 2.4. O discurso jurdico como caso especial do discurso prticogeral. A teoria da argumentao jurdica............................ 1722.4.1. Regras e formas da justificao interna.................. 1732.4.2. Regras e formas da justificao externa................. 174

    2.4.2.1. Regras e formas da interpretao............ 1752.4.2.2. Regras da argumentao dogmtica........ 1772.4.2.3. Regras sobre o uso dos precedentes....... 1782.4.2.4. Formas de argumentos jurdicos especiais 178

    2.5 Os limites do discurso jurdico. O Direito como sistema denormas (regras e princpios) e de procedimentos................ 179

    3. Uma crtica teoria da argumentao jurdica de Alexy....... 1833.1. Crtica teoria do discurso em geral............................... 183

    3.1.1. Sobre o carter do procedimento da teoria daverdade ou da correo........................................... 184

    3.1.2. Sobre o carter comunicativo da fundamentaodos enunciados prticos......................................... 186

    3.1.3. Sobre os limites do consenso................................. 1903.1.4. Sobre a fundamentao das regras do discurso.... 192

    3.2. Crticas teoria do discurso jurdico................................ 1953.2.1. Aspectos conceituais. Sobre a pretenso de correo 1953.2.2. O alcance da teoria.................................................. 2013.2.3. Crtica ideolgica.................................................... 203

    CAPTULO 7

    PROJETO DE UMA TEORIA

    DA ARGUMENTAO JURDICA

    1. Introduo.................................................................................. 2112. O objeto da teoria...................................................................... 2123. Problemas metodolgicos......................................................... 215

    3.1. Representao da argumentao....................................... 2163.2. Critrios de correo.......................................................... 222

    4. As funes da teoria da argumentao jurdica....................... 224

    Bibliografia......................................................................................... 227

  • NOTA PRELIMINAR

    O tema de que trata este livro, a argumentao jurdica, interes- sa-me h muito tempo e por vrias razes. A mais importante que eu no concebo - e por isso no iria tampouco pr em prtica - a filosofia do Direito como uma disciplina fechada em si mesma e elaborada no apenas por, mas tambm para filsofos do Direito. Na minha opinio, a filosofia do Direito deve cumprir uma funo de intermediao entre os saberes e as prticas jurdicas, por um lado, e o resto das prticas e saberes sociais, por outro. Isso significa tambm que os destinatrios dos textos de filosofia do Direito no deveriam ser apenas outros filsofos do Direito, mas tambm - e at fundamentalmente - os cultivadores de outras disciplinas, jurdicas ou no, assim como os juristas com atuao prtica e os estudantes de Direito.

    Uma vez que a prtica do Direito consiste de modo muito fundamental em argumentar, no haveria por que parecer estranho que os juristas com alguma conscincia profissional sentissem curiosidade pelas questes sobre as quais versa este livro. O que significa argumentar juridicamente? At que ponto a argumentao tica ou a argumentao poltica ou, inclusive, a argumentao na vida comum ou na cincia se diferenciam da argumentao jurdica? Como se justificam logicamente as decises jurdicas? Qual o critrio de correo dos argumentos jurdicos? O Direito oferece uma nica resposta correta para cada caso? Quais so, em suma, as razes do Direito: no a razo de ser do Direito, e sim as razes jurdicas que servem de justificao para uma determinada deciso?

    Mas se essas questes so - como suponho - relevantes para a prtica do Direito, tero de s-lo tambm para a dogmtica jurd ica - cuja justificao, em ltima instncia, s pode derivar dos servios que ela capaz de prestar quela - e, afortiori, para os

  • MANUEL ATIENZA

    estudantes de Direito que, supe-se, so quem, no futuro, dever continuar - e oxal tambm renovar! - o trabalho em um e outro campo. Finalmente, parece-me que os cultivadores de outras cincias sociais ou de outros ramos da filosofia encontrariam provavelmente nas diferentes tradies de reflexo sobre o Direito - e em particular na teoria da argumentao jurdica - muito mais do que em princpio poderiam - e parecem efetivamente - pensar. A habitual falta de cultura jurdica desses especialistas explica seu freqente desinteresse - ou at mesmo desdm - intelectual ao contemplarem o mundo do Direito, fato que, embora sem grande relevncia em si mesmo, acaba sendo grave porque com isso eles se privam de poder entender aspectos essenciais da sociedade.

    Apresso-me a declarar que no pretendo ter escrito um livro capaz de interessar a um pblico to amplo quanto o referido anteriormente ou que oferea respostas adequadas a questes to importantes como so - na minha opinio - as apontadas acima. Gostaria de ter feito isso, mas sou perfeitamente consciente de t-lo conseguido apenas em escassa medida. Isso no me impede, no entanto, de continuar achando que esses so os objetivos a serem perseguidos - pelo menos normalmente - pelos trabalhos de filosofia do Direito, que no precisam perder nada do seu rigor pelo fato de se dirigirem a um pblico amplo; no creio que na filosofia do Direito - e nem provavelmente em nenhuma, ou quase nenhuma, cincia social ou ramo filosfico - haja algo de real importncia que no possa ser dito de maneira compreensvel para qualquer pessoa medianamente culta e disposta a despender um esforo srio para entend-lo. As dificuldades que precisam ser enfrentadas nessa disciplina so de outro tipo e se relacionam mais com a falta de idias ou com a falta de idias claras. S espero que o leitor no v descobrir, exatamente nessa ocasio, que tais carncias no impedem que se escrevam muitas pginas sobre um tema.

    Os sete captulos do livro esto estruturados da seguinte maneira: o primeiro pretende oferecer uma introduo geral aos conceitos bsicos da teoria da argumentao jurdica, tomando como ponto de partida a noo de inferncia dedutiva. Os trs seguintes so dedicados obra dos trs autores que podem ser considerados os precursores - na dcada de 50 - da atual teoria da argumentao jurdica e que tm em comum, precisamente, a rejeio da lgica formal dedutiva como modelo que serve de base para o desenvolvimento dessa teoria; refiro-me tpica de Viehweg, nova retrica de Perelman e lgica informal de Toulmin. No quinto e no sexto captulos estudo, respectivamente, as concepes de MacCormick e

  • AS RAZES DO DIREITO

    de Alexy, que configuram o que se poderia chamar de teoria padro (atual) da argumentao jurdica. Com relao obra desses cinco autores, segui um mesmo mtodo expositivo que, talvez, possa parecer excessivamente linear, mas que julgo til do ponto de vista pedaggico: em primeiro lugar me esforcei por apresentar um resumo - s vezes bastante amplo - compreensvel e no distorcido das idias do autor em questo sobre a argumentao; depois quis mostrar quais so as principais objees que cabe dirigir a essa concepo. Finalmente, no ltimo captulo apresento - na forma de um simples projeto - minha idia de como deveria ser uma teoria plenamente desenvolvida e crtica da argumentao jurdica, que espero desenvolver nos prximos anos.

    Na verdade devo dizer que este um livro que eu nunca quis escrever - embora possa parecer estranho que o ato de escrever um livro seja um exemplo de ao no-intencional - , no sentido de que o meu objetivo era - e - uma investigao mais ampla do que partir de uma exposio crtica das teorias da argumentao jurdica existentes para, com base nela, desenvolver uma concepo prpria. O livro que eu gostaria de ter escrito - e que talvez ainda escreva - deveria ser algo assim como a foto revelada - e ampliada - do que agora o negativo.

    Quanto elaborao deste livro (que o leitor tem em mos ou, pelo menos, no muito longe delas), sua origem so os cursos de filosofia do Direito que venho ministrando nos ltimos anos na Faculdade de Direito da Universidade de Alicante, assim como diversos seminrios desenvolvidos no Centro de Estdios Constituciona- les, em Madri, no Instituto Tecnolgico de Mxico e na Universidade Pompeu Fabra de Barcelona. A todos os que tiveram de me escutar na ocasio, desejo agradecer a pacincia e, acima de tudo, as observaes e comentrios que me dirigiram e que, sem dvida, contriburam em grande medida para esclarecer conceitos e corrigir erros. Finalmente - e de modo muito especial - tenho de agradecer a ajuda que me deram meus companheiros do Seminrio de Filosofia do Direito da Universidade de Alicante, que debateram comigo todos e cada um dos captulos e itens do livro. Uma discusso profunda de um trabalho no garante um bom livro, mas pelo menos resulta num livro melhor do que se ela no tivesse ocorrido. O leitor julgar se isso suficiente.

  • CAPTULO 1

    DIREITO E ARGUMENTAO

    1. Introduo

    Ningum duvida que a prtica do Direito consista, fundam entalmente, em argumentar, e todos costumamos convir em que a qualidade que melhor define o que se entende por um bom ju rista talvez seja a sua capacidade de construir argum entos e manej-los com habilidade. Entretanto, pouqussimos juristas leram uma nica vez um livro sobre a matria e seguramente m uitos ignoram por completo a existncia de algo prximo a uma teoria da argumentao jurdica . Este livro pretende expor - alis de modo incompleto - o que significa argumentar juridicamente, e alm disso mostrar como outros autores tm definido esse tipo de argumento. Evidentemente algum pode evidenciar uma boa - at mesmo excelente - capacidade argumentativa e ao mesmo tempo ter muito pouco a dizer sobre essas duas questes. Mas essa circunstncia (sem dvida feliz) parece compatvel com a pretenso de que um livro como este - de teoria do Direito - possa despertar, pelo menos em princpio, algum interesse entre os ju ristas em geral.

    Neste prim eiro captulo apresentarei o que podem ser considerados os conceitos bsicos da teoria da argumentao ju rd ica e tentarei esclarecer, particularm ente, a noo de argumento dedutivo.

  • MANUEL ATIENZA

    2. O mbito da argumentao jurdica

    A teoria (ou teorias) da argumentao jurdica tem como objeto de reflexo, obviamente, as argumentaes produzidas em contextos jurdicos. Em princpio pode-se distinguir trs diferentes campos jurdicos em que ocorrem argumentaes. O primeiro o da produo ou estabelecimento de normas jurdicas. Aqui, por sua vez, se poderia fazer uma diferenciao entre as argumentaes que acontecem numa fase pr-legislativa e as que se produzem na fase propriamente legislativa. As primeiras se efetuam como conseqncia do surgimento de um problema social, cuja soluo - no todo ou em parte - acredita-se que possa ser a adoo de uma medida legislativa. Exemplo disso so as discusses a propsito da despe- nalizao ou no (e em que casos sim ou no) do aborto, da eutansia ou do trfico de drogas, ou da regulamentao do chamado trfico de influncias . Outro tipo de argumentaes surge quando um determinado problema passa a ser considerado pelo Poder Legislativo ou por algum rgo do Governo, tendo ou no sido previamente discutido pela opinio pblica. Enquanto na fase pr-legislativa se pode considerar que os argumentos tm, em geral, um carter mais poltico e moral que jurdico, na fase legislativa os papis se invertem, passando para o primeiro plano as questes de tipo tcnico- jurdico. Em todo caso, as teorias da argumentao jurdica de que dispomos no se ocupam praticamente de nenhum desses dois contextos de argumentao.

    Um segundo campo em que se efetuam argumentos jurdicos o da aplicao de normas jurdicas soluo de casos, embora essa seja uma atividade levada a cabo por juizes em sentido estrito, por rgos administrativos no sentido mais amplo da expresso ou por simples particulares. Aqui, novamente, caberia distinguir entre argumentaes relacionadas a problemas concernentes aos fatos ou ao Direito (esses ltimos, em sentido amplo, poderiam ser designados como problemas de interpretao). Pode-se dizer que a teoria da argumentao jurdica dominante se centra nas questes - os casos difceis - relativas interpretao do Direito e que so propostas nos rgos superiores da administrao da Justia. Mas a maior parte dos problemas que os tribunais como rgos no-jurisdicionais do Governo tm de conhecer e sobre os quais decidem constituda de problemas concernentes aos fatos, e assim os argumentos que ocorrem, suscitados pelos mesmos, recaem fora do campo de estudo das teorias usuais da argumentao jurdica.

  • AS RAZES DO DIREITO

    Finalmente, o terceiro mbito em que se verificam argumentos jurd icos o da dogmtica jurdica. A dogm tica , sem dvida, uma atividade complexa, na qual cabe distinguir essencialmente as seguintes funes: 1) fornecer critrios para a produo do Direito nas diversas instncias em que ele ocorre; 2) oferecer critrios para a aplicao do Direito; 3) ordenar e sistem atizar um setor do ordenamento jurdico. As teorias comuns da argumentao jurdica se ocupam tambm das argumentaes que a dogmtica desenvolve para cumprir a segunda dessas funes. Esses processos de argumentao no so muito diferentes dos efetuados pelos rgos aplicadores, uma vez que se trata de oferecer, a esses rgos, critrios - argumentos - para facilitar-lhes (em sentido amplo) a tomada de uma deciso jurdica que consiste em aplicar uma norma a um caso. A diferena que, no obstante, existe entre os dois processos de argumentao poderia ser assim sintetizada: enquanto os rgos aplicadores tm de resolver casos concretos (por exemplo, se se deve ou no alimentar fora os presos que esto em greve de fome para obter determinadas mudanas em sua situao carcerria),1 o dogm tico do Direito se ocupa de casos abstratos (por exemplo, determinar quais so os limites entre o direito vida e o direito liberdade pessoal e qual dos dois deve prevalecer quando h conflito entre eles). Contudo, parece claro que a distino no pode sempre (ou talvez quase nunca) ser feita de forma muito taxativa. Por um lado porque o praticante precisa recorrer a critrios fornecidos pela dogmtica, pelo menos quando enfrenta casos difceis (por exemplo, para adotar uma deciso fundamentada na primeira questo proposta acima seria necessrio responder, antecipadamente, segunda), e ao mesmo tempo a dogmtica se apia tambm em casos concretos. Por outro lado, porque ocorre de os tribunais (ou certo tipo de tribunais) terem de resolver casos abstratos, isto , suas decises podem no consistir sim plesm ente em condenar X a pagar uma certa quantidade de dinheiro ou em absolver Y de um determinado delito, mas tambm em declarar que uma determinada lei inconstitucional, que um regulamento ilegal ou que uma determinada norma deve ser interpretada num determinado sentido; alm disso alguns tribunais, ao decidirem um caso concreto, criam jurisprudncia, o que significa que a regra em que baseiam a sua deciso - e que se expressa na ratio decidendi da sentena - tem um carter geral e abstrato, e conseqentemente vale para os casos futuros.

  • MANUEL ATIENZA

    3. Contexto de descoberta e contexto de justificao. Explicar e justificar

    Na filosofia da cincia costuma-se distinguir (cf. Reichenbach, 1951) entre o contexto de descoberta e o contexto de justificao das teorias cientficas. Assim, de um lado est a atividade que consiste em descobrir ou enunciar uma teoria e que, segundo a opinio geral, no suscetvel de uma anlise de tipo lgico; nesse plano, cabe unicamente mostrar como se gera e se desenvolve o conhecimento cientfico, o que constitui tarefa para o socilogo e o historiador da cincia. Mas do outro lado est o procedimento que consiste em justificar ou validar a teoria, isto , em confront-la com os fatos a fim de mostrar a sua validade; essa ltima tarefa exige uma anlise de tipo lgico (embora no apenas lgico) e se rege pelas regras do mtodo cientfico (que no so aplicveis no contexto da descoberta). Pode-se tambm estender a distino ao campo da argumentao em geral e ao da argumentao jurdica em particular (cf. Wasserstrom, 1961, e Golding, 1984, pgs. 22-3). Assim, uma coisa o procedimento mediante o qual se estabelece uma determinada premissa ou concluso, e outra coisa o procedimento que consiste em justificar essa premissa ou concluso. Se consideramos o argumento que conclui afirmando ser necessrio alimentar fora os detentos do GRAPO, a distino pode ser traada entre as causas psicolgicas, o contexto social, as circunstncias ideolgicas etc. que levaram um determinado juiz a emitir essa resoluo, e as razes dadas pelo rgo em questo para mostrar que a sua deciso correta ou aceitvel (que est justificada). Dizer que o juiz tomou essa deciso devido s suas fortes crenas religiosas significa enunciar uma razo explicativa', dizer que a deciso do juiz se baseou numa determinada interpretao do artigo 15 da Constituio significa enunciar uma razo justificadora. De modo geral os rgos jurisdicionais ou administrativos no precisam explicar as suas decises; o que devem fazer justific-las.2

    A distino entre contexto de descoberta e contexto de justificao no coincide com aquela existente entre discurso descritivo e discurso prescritivo, a no ser pelo fato de que em relao tanto a um quanto ao outro contexto se pode adotar uma atitude descritiva ou prescritiva. Por exemplo, pode-se descrever quais so as causas que levaram o juiz a emitir uma resoluo no sentido indicado (o que significaria explicar a sua conduta), mas tambm se pode indicar ou recomendar determinadas mudanas processuais para evitar

  • AS RAZES DO DIREITO

    que a ideologia dos juizes (ou dos jurados) tenha um peso excessivo nas decises a tomar (por exemplo, fazendo com que tenham mais relevncia outros elementos que fazem parte da deciso ou propondo ampliar as causas de rejeio de juizes ou jurados). E por outro lado pode-se descrever como o juiz em questo efetivamente fundamentou a sua deciso (baseou-se no argumento de que - de acordo com a Constituio - o valor vida humana deve prevalecer sobre o valor liberdade pessoal); ou ento se pode dispor ou sugerir - o que exige por sua vez uma justificao - como o juiz deveria ter fundamentado a sua deciso (sua fundamentao devia ter se baseado em outra interpretao da Constituio que subordina o valor vida humana ao valor liberdade pessoal).

    Em todo caso a distino entre contexto de descoberta e contexto de justificao nos permite, por sua vez, distinguir duas perspectivas de anlise das argumentaes: a primeira seria a perspectiva de algumas cincias sociais, como a psicologia social, que esboaram diversos modelos para explicar o processo de tomada de decises a que se chega, em parte, mediante o uso de argumentos. No campo do Direito, um desses modelos o da informao integrada, elaborado por Martin F. Kaplan (cf. Kaplan, 1983). Segundo ele, o processo de tomada de deciso por um juiz ou um jurado resultado da combinao dos valores da informao com os da impresso inicial. O processo de deciso comea com a acumulao de unidades de prova ou informao; a isso se segue o processo de avaliao, em que a cada item informativo se atribui um valor numa escala especfica para o julgamento que est se desenvolvendo; o terceiro passo consiste em atribuir um peso para cada informao; depois a informao avaliada e sopesada integrada num julgamento singular, como por exemplo probabilidade de culpabilidade ; e finalmente se leva em conta a impresso inicial, isto , os preconceitos do juiz ou do jurado, que podem provir tanto de condies circunstanciais (por exemplo, seu estado de humor no momento do julgamento) quanto de condies ligadas sua personalidade (por exemplo, preconceitos raciais ou religiosos). O modelo no pretende explicar apenas como se decide (e se argumenta) de fato, mas tambm sugere o que se poderia fazer para reduzir o peso dos preconceitos (dar um peso maior aos outros elementos) ou, ento, sob que condies os julgamentos com jurados (o que implica tambm as argumentaes dos jurados, que conduzem a uma determinada concluso) poderiam ser to confiveis quanto os ju lgamentos com juizes profissionais.

  • MANUEL ATIENZA

    A segunda perspectiva seria a de outras disciplinas que estudam sob que condies se pode considerar justificado um argumento. Aqui, por sua vez, caberia falar de uma justificao formal dos argumentos (quando um argumento formalmente correto) e de uma justificao material (quando se pode considerar que um argumento, num campo determinado, aceitvel). Isso permitiria distinguir entre a lgica formal ou dedutiva, por um lado, e o que s vezes se chama de lgica material ou informal (onde se incluiriam coisas tais como a tpica ou a retrica), por outro.

    A teoria padro da argumentao jurdica se situa precisamente nessa segunda perspectiva, isto , no contexto de justificao dos argumentos, e em geral costuma ter pretenses tanto descritivas quanto prescritivas; trata-se, portanto, de teorias (como as de Alexy ou de MacCormick, abordadas mais adiante neste livro) que pretendem mostrar como as decises jurdicas se justificam de fato e tambm (e ao mesmo tempo, pois segundo eles os dois planos em geral coincidem) como deveriam elas ser justificadas. Tais teorias partem do fato de que as decises jurdicas devem e podem ser justificadas, e nesse sentido se opem tanto ao determinismo metodolgico (as decises jurdicas no precisam ser justificadas porque procedem de uma autoridade legtima e/ou so o resultado de simples aplicaes de normas gerais) quanto ao decisionismo metodolgico (as decises jurdicas no podem ser justificadas porque so puros atos de vontade) (cf. Neumann, 1986, pgs. 2 e 3).

    A primeira dessas duas posturas parece insustentvel, especialmente no contexto do Direito moderno, no qual a obrigao estabelecida de motivar - justificar - as decises contribui no s para torn-las aceitveis - , e isso particularmente relevante nas sociedades pluralistas que no consideram como fonte de legitimidade ou de consenso coisas tais como tradio ou autoridade como tambm para que o Direito possa cumprir a sua funo de guia da conduta humana (Golding, 1984, pg. 9); por outro lado, justificar uma deciso, num caso difcil, significa algo mais que efetuar uma operao dedutiva que consiste em extrair uma concluso a partir de premissas normativas e fticas. E o mesmo ocorre com a segunda postura, isto , com a opinio de que os juizes (ou os jurados) no justificam - nem poderiam justificar propriamente - suas decises, e sim as adotam de forma irracional - ou ento sem a participao da razo - e depois as submetem a um processo de racionalizao. Assim, alguns representantes do realismo americano - sobretudo Frank (1970)3 - sustentaram, efetivamente, que as sentenas judiciais so desenvolvidas de modo retrospectivo, a partir de

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    concluses formuladas com carter provisrio (pg. 109); que no se pode aceitar a tese que apresenta o juiz aplicando leis e princpios aos fatos, isto , adotando alguma regra ou princpio [...] como sua premissa maior, empregando os fatos do caso como premissa menor e chegando ento resoluo mediante processos de puro raciocnio (pg. 111); e que, resumindo, as decises se baseiam nos impulsos do juiz, que fundamentalmente no extrai esses impulsos das leis e dos princpios gerais do Direito, mas sobretudo de fatores individuais que, entretanto, so mais importantes que qualquer coisa que poderia ser referida como preconceitos polticos, econmicos ou morais (pg. 114).

    Mais adiante voltarei a tratar do silogismo judicial, mas a distino que acabo de introduzir permite mostrar com clareza o erro em que incorrem esses ltimos autores, que no outro seno o de confundir o contexto de descoberta e o contexto de justificao. E possvel que, de fato, as decises sejam tomadas, pelo menos em parte, como eles sugerem, isto , que o processo mental do juiz v da concluso s premissas e inclusive que a deciso seja, sobretudo, fruto de preconceitos; mas isso no anula a necessidade de justificar a deciso e tampouco converte essa tarefa em algo impossvel; do contrrio seria preciso negar tambm que possa ocorrer a passagem das intuies s teorias cientficas ou que, por exemplo, cientistas que ocultam certos dados que se ajustam mal s suas teorias estejam por isso mesmo privando-as de justificao.

    4. O conceito de validade dedutiva

    Disse anteriormente que a lgica formal ou dedutiva se ocupa dos argumentos do ponto de vista de sua correo formal. Mas o que significa isso mais precisamente? Para esclarecer essa definio de campo de estudo partirei de algo que bvio, a saber, que no apenas se argumenta em contextos jurdicos como tambm no mbito dos vrios conhecimentos especializados e no da vida cotidiana. Tambm na literatura defrontamo-nos muitas vezes com argumentaes, embora, evidentemente, a funo principal das obras literrias no seja registrar argumentos, e sim expressar sentimentos, narrar histrias, fabular etc. Entretanto, h um gnero literrio particularmente denso em argumentaes: trata-se do gnero policial, cujo inventor - nas palavras de Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges (1972) - teria sido Edgard Allan Poe. Um de seus contos mais clebres leva por ttulo A carta roubada; nele se narra uma histria que aproximadamente esta:

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    A uguste Dupin (precursor de Sherlock Holm es, do padre Brown, de Hercule Poirot etc.) recebe, um dia, a visita do chefe da polcia de Paris, que o consulta sobre o seguinte problema: um documento da maior importncia foi roubado na residncia real. Sabe-se que o autor do roubo o ministro D., que usa a carta como instrumento de chantagem contra uma dama da realeza. O ministro certamente escondeu a carta em algum lugar da sua casa, mas o chefe da polcia, apesar de ter realizado uma busca minuciosa e sistemtica, no consegue encontr-la. Dupin bem sucedido no caso, graas a um processo de raciocnio que, grosso modo, o seguinte: se a carta tivesse estado ao alcance da busca os agentes a teriam descoberto, e, como a carta tem de estar na residncia do ministro, isso quer dizer que a polcia no procurou direito. Dupin sabe que o ministro uma pessoa audaz e inteligente, e que, alm disso, tem no apenas uma inteligncia matemtica como tambm- se assim se pode chamar - uma inteligncia potica. Assim, o ministro pde prever que a sua casa seria revistada pela polcia e que os homens do prefeito procurariam em todos os lugares onde se supe que uma pessoa pode deixar um objeto que deseja esconder. Com base nisso, Dupin infere que o ministro teve de deixar a carta num lugar muito visvel, mas, precisamente por isso, inesperado. E efetivamente ele encontra a carta numa caixa de papelo para cartes que pendia de uma tira azul sobre a lareira, enrugada e manchada (como se se tratasse de algo sem importncia) e exibindo um sinete e um tipo de letra no endereo de caractersticas opostas s da carta roubada (pois o envelope havia sido convenientemente trocado). Dupin explica assim o fracasso do chefe da polcia: A causa remota do seu fracasso a hiptese de que o ministro um imbecil porque tem fama de poeta. Todos os imbecis so poetas; isso que acha o chefe da polcia, e ele incorre numa non distributio medii ao inferir que todos os poetas so imbecis (pg. 33).

    Assim, de acordo com o relato, o chefe da polcia cometeu um erro de tipo lgico, uma falcia, pois da afirmao todos os imbecis so poetas no se infere logicamente que todos os poetas so imbecis. A partir dessa afirmao - poderamos acrescentar - o chefe da polcia fez um raciocnio logicamente vlido, mas com uma premissa falsa:

    a) Todos os poetas so im becis.O m inistro poeta.Logo, o m inistro um imbecil.

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    Na lgica preposicional, a inferncia poderia ser representada aproximadamente (cf. Infra, cap. V, item 3.1.2) assim:

    P q

    P

    q

    E, mais precisamente, na lgica de predicados de primeira ordem:

    Ax Px > Qx

    Pa

    Qa

    O argumento em questo vlido em termos lgicos porque a concluso necessariamente inferida das premissas. Isso fcil de perceber graficamente. Se simbolizamos com P a classe dos poetas, com I a dos imbecis e com m o ministro (m - assinalado no grfico com um ponto - designa um indivduo, ao passo que F e / designam classes ou conjuntos de indivduos), a informao contida nas duas premissas do argumento pode ser representada assim:

    Agora, se quisssemos representar tambm a informao da concluso, perceberamos que no precisaramos acrescentar nada: a informao da concluso j estava includa na das premissas, o que explica termos podido dizer que a passagem de umas para a outra necessria; ou seja, no possvel que as premissas sejam verdadeiras e a concluso no seja.

    Ao passo que a) um exemplo de argumento vlido logicamente, mas com uma premissa falsa; o argumento seguinte b) quase representa o caso oposto, quer dizer, aquele em que as premissas so verdadeiras (verdadeiras, naturalmente, em relao ao conto de Poe), mas o argumento logicamente invlido. Concretamente, trata-se da falcia denominada afirmao do conseqente;

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    b) Todos os imbecis so poetas.O ministro poeta.Logo, o m inistro imbecil.

    E em notao lgica:

    Ax Px - Qx

    Qa

    Pa

    Para comprovar que esse de fato um argumento logicamente incorreto ou invlido, podemos submet-lo mesma prova anterior. Mas uma representao que est de acordo com a informao contida nas premissas poderia ser esta:

    E, contudo, ela incompatvel com a informao que a concluso transmite. Assim, nesse caso que possvel as premissas serem verdadeiras, mas a concluso, falsa.

    Antes eu disse que a) e b) eram casos quase opostos. Se no so de todo opostos porque em ambos a concluso, que a mesma, falsa. No exemplo seguinte c) tanto as premissas quanto a concluso so verdadeiras, mas apesar disso no se trata de um argumento logicamente vlido:

    c) Todos os imbecis so poetas. Ax Px - QxO m inistro poeta. QaLogo, o ministro no im becil. -Pa

    Para provar a sua invalidade lgica, bastar fazer novamente uma representao possvel da informao contida nas premissas que, contudo, contradiz a informao da concluso.

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    Por fim, um exemplo de argumento vlido logicamente e cujas premissas so verdadeiras (e, portanto, tambm a sua concluso) seria este:

    d ) Os m inistros que so poetas no so imbecis. Ax Px a Qx -> -R x O m inistro poeta. Pa a QaLogo, o m inistro no imbecil. -R a

    Nesse caso, qualquer representao possvel das premissas conteria tambm a concluso. Assim, um modo de representar a informao contida nas premissas seria este:

    no qual, obviamente, est contida tambm a informao da concluso.Agora estamos sem dvida em condies de entender melhor

    a noo de argumento lgico, que pode ser definida da seguinte maneira: Temos uma implicao, ou uma inferncia lgica, ou uma argumentao vlida (dedutivamente) quando a concluso necessariamente verdadeira se as premissas so verdadeiras (Que- sada, 1985, pg. 9). A lgica, a lgica dedutiva, pode se apresentar de forma axiomtica ou como um sistema de regras de inferncia, mas essa segunda forma de apresentao a que melhor se ajusta maneira natural de raciocinar. Isso porque, no modo axiomtico de deduzir, parte-se de enunciados formalmente verdadeiros (tautologias) e se chega, no final da deduo, a enunciados tambm formalmente verdadeiros; enquanto que, no modo natural de fazer inferncias dedutivas, possvel partir - e isso o mais freqente - de enunciados indeterminados em seu valor de verdade, ou inclusive declaradamente falsos, e se chegar a enunciados que podem ser verdadeiros ou falsos (cf. Deano, pg. 146). A nica coisa que determina uma regra de inferncia que se as premissas so verdadeiras, ento a concluso tambm tem necessariamente de s-lo. Os raciocnios indicados com a) e d) e os

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    esquemas lgicos correspondentes so vlidos em virtude da regra chamada modus ponens, que pode ser escrita assim:

    X -> Y X

    Y

    (O uso das letras X e Y deve-se ao fato de que as regras so expressas numa metalinguagem relacionada das frmulas da lgica para a qual empregamos as letras p, q, P, Q etc.). Ao contrrio, os raciocnios b) e c) e os esquemas correspondentes so invlidos logicamente, porque nenhuma regra de inferncia lgica autoriza a efetuar a passagem que neles se d.

    5. Correo formal e correo material dos argumentos

    A caracterizao feita do que um argumento dedutivo apresenta, contudo, diversos motivos de insatisfao se passamos para o campo dos argumentos que se costuma articular no plano do Direito ou no da vida comum. Um primeiro motivo de insatisfao - alis bvio - deriva precisamente do fato de que a lgica dedutiva s nos oferece critrios de correo formais, mas no se ocupa das questes materiais ou de contedo que, claramente, so relevantes quando se argumenta em contextos que no sejam os das cincias formais (lgica e matemtica). Assim, por um lado, como vimos, a partir de premissas falsas pode-se argumentar corretamente do ponto de vista lgico; e, por outro lado, possvel que um argumento seja incorreto do ponto de vista lgico, embora a concluso e as premissas sejam verdadeiras, ou pelo menos altamente plausveis.4 Em alguns casos a lgica aparece como um instrumento necessrio, mas insuficiente, para o controle dos argumentos (um bom argumento deve s-lo tanto do ponto de vista formal quanto do material). Em outros casos possvel que a lgica (lgica dedutiva) no permita nem sequer estabelecer requisitos necessrios com relao ao que deve ser um bom argumento; como veremos, um argumento no lgico - no sentido de no dedutivo - pode ser, contudo, um bom argumento.

    Por outras palavras, propor a questo da correo dos argumentos significa propor o problema de como distinguir os argumentos corretos dos incorretos, os vlidos dos invlidos. Aqui possvel,

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    entretanto, distinguir entre argumentos manifestamente invlidos e argumentos que parecem vlidos mas no so, denominados fa l cias. O problema, claro, coloca-se a propsito da distino entre os argumentos vlidos e as falcias (os argumentos manifestamente invlidos no so problemticos, uma vez que no podem levar confuso), coisa que a lgica dedutiva s consegue fazer pela metade. A razo disso que no s existem falcias formais, isto , argumentos que parecem corretos do ponto de vista formal - dedutivamente - , mas no so,5 como tambm falcias no formais. Estas, por sua vez, podem se classificar em outras duas categorias, dando lugar s falcias de concernncia e de ambigidade. Nas primeiras, as premissas no tm atinncia lgica em relao s concluses, e portanto so incapazes de estabelecer a sua verdade (Copi, 1986, pg. 83); assim ocorre, por exemplo, com o argumento ad ignono- rantiam, com o argumento ad hominem ou com apetitio principii. As segundas, pelo contrrio, aparecem em raciocnios cuja formulao contm palavras ou frases ambguas, cujos significados oscilam e mudam de modo mais ou menos sutil no curso do raciocnio (Copi, 1986, pg. 194). Naturalmente, a lgica formal dedutiva s nos fornece instrumentos plenamente adequados para fazer frente s falcias formais.

    6. Silogismo terico e silogismo prtico

    Outro dos possveis motivos de insatisfao provm do fato de a definio de argumento vlido dedutivamente (aquela que encontrada nos livros de lgica) se referir a proposies (premissas e concluses) que podem ser verdadeiras ou falsas. Mas no D ireito, na moral etc. os argumentos que se articulam partem muitas vezes de, e chegam a, normas; isto , empregam um tipo de enunciados em relao aos quais no parece que tenha sentido falar de verdade ou falsidade. Em conseqncia, surge o problema de se a lgica se aplica ou no s normas. Por exemplo, Kelsen, sobretudo em sua obra pstuma, La teoria general de las normas (1979), sustentou enfaticamente que a inferncia silogstica no funciona com relao s normas. As regras da lgica se aplicam ao silogismo terico que se baseia num ato de pensamento, mas no ao silogismo prtico ou normativo (o silogismo em que pelo menos uma das premissas e a concluso so normas), que se baseia num ato de vontade (numa norma). N a tradio da filosofia do Direito, a questo costuma remontar a Jorgensen (1937), que props um

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    problema por ele denominado quebra-cabea, e que Ross (1941 e 1971) chamou de dilema de Jorgensen . De acordo com Ross, uma inferncia prtica como:

    Voc deve m anter as suas prom essas.Essa um a das suas prom essas.Logo, voc deve m anter essa promessa.

    carece de validade lgica. No logicamente necessrio que um sujeito que estabelece uma regra geral deva tambm estabelecer a aplicao particular dessa regra. Que isso se verifique ou no depende de fatos psicolgicos. No raro - acrescenta Ross - que um sujeito formule uma regra geral, mas evite a sua aplicao quando se v afetado.

    Entretanto, se examinarmos bem, essa idia decididamente estranha. Se A aceita como moralmente obrigatria a regra de que as promessas devem ser mantidas (todas as promessas e em qualquer circunstncia)6 e aceita como verdadeiro o fato de que prometeu a B acompanh-lo ao cinema na tarde de quarta-feira, e contudo sustenta tambm que apesar disso no se considera no dever de acompanhar B ao cinema nesse dia, seu comportamento to irracional quanto o de quem considere enunciados verdadeiros os ministros que so poetas no so imbecis e X um ministro que poeta e, entretanto, no esteja disposto a aceitar que X no seja imbecil . Naturalmente, possvel que essas duas situaes (tambm a segunda) ocorram de fato, mas isso no parece ter relao com a lgica, que - como a gramtica - uma disciplina prescritiva: no diz como os homens pensam ou raciocinam de fato, apenas como deveriam faz-lo.

    Para provar que o argumento anterior um argumento correto, podemos recorrer de novo s figuras utilizadas antes. Sendo P a classe das promessas, D a das promessas que devem ser mantidas (de acordo com a primeira premissa, ambas as classes tm a mesma extenso) e p a promessa concreta feita por A a B, as premissas do raciocnio poderiam ser representadas por meio da seguinte figura:

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    E fica patente que essa informao contm tambm a da concluso: p se encontra necessariamente dentro de D, isto , dentro da classe das promessas que devem ser mantidas.

    Evidentemente isso no soluciona um problema que tem um alcance terico indubitvel.7 Mas me parece que pode servir como prova de que, na vida comum, atribumos s inferncias prticas a mesma validade que s tericas. Alm do mais, parece-me que Gianfor- maggio (1987; cf. tambm Ruiz Manero, 1990, pg. 71) tem razo ao considerar que os defensores da tese de que a lgica no se aplica s normas esto, na verdade, confundindo os termos do problema, na medida em que no parecem ter reparado no carter diferente dessas duas perguntas.8 Por um lado, est a questo de se a relao que mantm entre si as normas vlidas (no sentido de pertencentes a um sistema) so relaes de tipo lgico. A resposta a essa pergunta obviamente negativa, uma vez ser possvel que normas contraditrias entre si pertenam a um mesmo sistema. Por exemplo, a um mesmo sistema moral poderia pertencer tanto a norma devem-se cumprir todas as promessas quanto a norma no tenho por que cumprir a promessa que fiz a fi ; o sistema em questo ficaria pouco atraente devido precisamente ao fato de ser inconsistente do ponto de vista lgico, mas isso no vem ao caso. E por outro lado h a questo de se vlido inferir uma norma de outra. A resposta a essa ltima pergunta absolutamente independente da anterior, e no vejo por que no h de ser afirmativa. Na realidade, o problema com que esbarramos aqui que, na definio de argumento dedutivo anteriormente aceita, consideravam-se apenas enunciados suscetveis de serem qualificados como verdadeiros ou falsos, e essa caracterstica - segundo opinio generalizada, embora no unnime - inerente s normas. Mas o que isso comporta a necessidade de corrigir aquela definio que poderia agora ser assim formulada: Temos uma implicao ou uma inferncia lgica ou uma argumentao vlida (dedutivamente) quando a concluso necessariamente verdadeira (ou seja, correta, justa, vlida etc.) se as premissas so verdadeiras (ou seja, corretas, justas, vlidas etc.) . Isso suscita alguns problemas lgicos de tipo tcnico, dos quais, entretanto, podemos prescindir aqui (cf. infra, captulo quinto, item 3.1).

    7. Argumentos dedutivos e no dedutivos

    Mas ainda assim essa nova definio no resolve todos os problemas. No item 5 vimos que um dos limites da lgica derivava do

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    seu carter formal. Agora, devemos nos fixar em outro limite que se liga ao seu carter dedutivo, quer dizer, ao carter de necessidade que, de acordo com a definio, tem a passagem das premissas concluso.

    Se voltarmos de novo a A carta roubada e ao senhor Dupin, poderemos sintetizar (e simplificar) da seguinte maneira a argumentao que lhe permitiu descobrir o mistrio:

    O m inistro um hom em ousado e inteligente.O m inistro sabia que sua casa ia ser revistada.O m inistro sabia que a polcia procuraria em todos os lugares em que fosse possvel esconder um a carta.Logo, o ministro deve ter deixado a carta num lugar to visvel que, precisam ente por isso, ela passou despercebida pelos hom ens do chefe de polcia.

    Contudo, esse ltimo no , obviamente, um argumento dedutivo, j que a passagem das premissas concluso no necessria, mas apenas provvel ou plausvel. Poderia ter ocorrido, por exemplo, que o ministro tivesse deixado a carta com um amigo ntimo, ou ento que a houvesse ocultado to bem que a polcia no tivesse sido capaz de encontr-la etc. A esse tipo de argumentos, nos quais a passagem das premissas concluso no necessariamente feita, chama-se s vezes de argumentos indutivos ou no dedutivos. Deve- se ter em conta, no entanto, que por induo no se entende aqui a passagem do particular para o geral: no caso anterior, por exemplo, o que ocorre um trnsito do particular para o particular. Alm do mais, os argumentos desse tipo so (ou podem ser) bons argumentos, pois h muitas ocasies em que nos deparamos com a necessidade de argumentar, sem que, no entanto, seja possvel utilizar argumentos dedutivos.9 Isso ocorre, evidentemente, no apenas nos romances policiais como tambm na vida comum e no Direito.

    Vejamos este exemplo, extrado de uma sentena recente da Audincia Provincial de Alicante (n. 477/89). A e B so acusados do delito de trfico de drogas tipificado no artigo 344 do Cdigo Penal, com a concorrncia da circunstncia agravante do artigo 344 rep. a) 3., pois a quantidade de herona apreendida com eles (mais de 122 gramas de herona pura) considerada - de acordo com a jurisprudncia do Supremo Tribunal - de notria importncia . A droga tinha sido encontrada pela polcia numa bolsa, escondida no travesseiro de uma cama de casal, situada no quarto de um apartamento onde - quando a polcia entrou para

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    efetuar a verificao - estavam A e B (um homem e uma mulher respectivamente). Na audincia o advogado de defesa e os acusados, A e B, sustentaram que, embora os dois ltimos vivessem juntos no mesmo apartamento, eles no mantinham mais que uma relao de amizade, dormiam em quartos diferentes e, concretamente, B no tinha conhecimento da existncia da droga. Em decorrncia disso, o advogado de defesa, em suas concluses definitivas, solicitou a absolvio de B. Entretanto a sentena, num dos seus antecedentes do fato, considerou fato provado que A & B compartilhavam o quarto referido e que, conseqentemente, B tinha conhecimento e havia participado da atividade de trfico de drogas, da qual ambos eram acusados. A justificao que aparece esta: Os acusados (A e B) compartilhavam a habitao referida, como prova - apesar de, na audincia, eles terem declarado no serem mais que simples amigos - o testemunho dos dois policiais que fizeram a verificao e que disseram ser essa a nica cama que estava desfeita (a verificao foi realizada s 6 horas da manh) e em cujo quarto estavam todos os objetos pessoais dos acusados, e o fato de que, em escrito ao juiz de instruo (dirigido enquanto A estava cumprindo priso preventiva), [...] o acusado (A) se refere a (B) como minha mulher .

    Esquematicamente, o argumento seria o seguinte:

    Havia apenas uma cam a desfeita na casa.E ram 6 horas da m anh quando ocorreu a verificao.Toda a roupa e os objetos pessoais de A e de B estavam na m esm a habitao em que se encontrava a cama.M eses depois, A se refere a B com o m inha m ulher .Logo, na poca em que se realizou a verificao, A t B m antinham relaes ntim as (e, conseqentem ente, B sabia da existncia da droga).

    Como no exemplo anterior, o argumento no tem carter dedutivo, pois a passagem das premissas concluso no necessria, embora altamente provvel. Se se aceita a verdade das premissas, ento existe uma razo forte para aceitar tambm a concluso, embora, claro, no possa haver certeza absoluta: teoricamente possvel que B tivesse acabado de chegar em casa s 6 da manh, que seus objetos pessoais estivessem na casa de A porque ele pensava em fazer uma limpeza em regra nos armrios, e que, depois da deteno de ambos, a amizade existente entre eles tivesse se convertido numa relao mais ntima.

    O argumento tem uma grande semelhana com o anterior (o articulado por Dupin), mas talvez eles no sejam totalmente iguais,

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    se se observa a extremidade seguinte. certo que tanto Dupin quanto o autor (ou autores) da sentena se guiam em sua argumentao pelo que poderamos chamar regras de experincia, que desempenham aqui um papel semelhante ao das regras de inferncia nos argumentos dedutivos. Contudo, para esses casos os magistrados no podem se servir unicamente das regras de experincia, pois eles precisam se sujeitar tambm (ao contrrio do detetive Dupin) s regras processuais de avaliao da prova . Por exemplo, um juiz pode estar pessoalmente convencido de que B tambm sabia da existncia da droga (assim como Dupin estava quanto ao lugar onde a carta podia ser encontrada) e, entretanto, no considerar isso um fato provado , pois o princpio da presuno de inocncia (tal e como ele o interpreta) exige que a certeza sobre os fatos seja no apenas altamente provvel, mas sim - poderamos dizer - absoluta. E, embora haja razes para no interpretar assim o princpio da presuno de inocncia (pois do contrrio seriam realmente muito poucos os atos delituosos suscetveis de ser considerados provados), o que interessa aqui mostrar uma peculiaridade do raciocnio jurdico: o seu carter fortemente institucionalizado.

    8. O silogismo judicial e seus limites

    Se agora quisssemos escrever esquematicamente o tipo de raciocnio qumico que se utiliza na sentena anterior, poderamos propor a seguinte formulao:

    Quem realizar atos de trfico de drogas numa quantidade de notria importncia dever ser punido, de acordo com o artigo 344 e 344 rep. a) 3. do Cdigo Penal, com a pena de priso maior.*A e S cometeram esse tipo de ato.Logo, A e B devem ser castigados com a pena de priso maior.

    E em notao lgica:

    Ax Px a Q x -> ORx

    Pa a Qa a Pb a Qb

    ORa a ORb

    * De acordo com o Cdigo Penal Espanhol, prisin m syor a pena de priso que dura de seis anos e um dia at doze anos. (N. da T.)

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    Esse tipo de esquema lgico que, mais simplificadamente, poderamos escrever assim:

    Ax Px -> OQx

    Pa

    OQa

    costuma ser chamado de silogismo judicial ou silogismo jurdico, e serve ao mesmo tempo como esquema para o silogismo prtico ou normativo de que tratamos no item 6. A primeira premissa enuncia uma norma geral e abstrata na qual um caso concreto (x uma varivel de indivduo e P uma letra atributiva) aparece como condio para uma conseqncia jurdica; o smbolo O indica que a conseqncia (R) deve em geral (pode se tratar de uma obrigao, de uma proibio ou de uma permisso) se seguir quando se realiza o caso concreto, embora seja possvel que, na realidade, no acontea isso. A segunda premissa representa a situao na qual se produziu um determinado fato {a um indivduo concreto ao qual se atribui a propriedade P) que recai sob o caso concreto da norma. E a concluso estabelece que a a se deve juntar a conseqncia jurdica prevista pela norma.

    O esquema em questo apresenta, contudo, alguns inconvenientes. O primeiro deles que h suposies (como a do exemplo mencionado), nas quais a concluso do silogismo no representa a concluso ou a deciso da sentena, e sim, por assim dizer, um passo prvio para a mesma. Na sentena que tomamos como exemplo, a parte dispositiva no estabelece apenas que A e B devem ser condenados pena de priso maior, e sim, concretamente, pena de oito anos e um dia de priso maior.10 O argumento anterior poderia, portanto, ser completado com este:

    A e B devem ser condenados pena de priso maior.N a execuo do delito referido no concorreram circunstncias m odificadoras da responsabilidade crim inal.Q uando no concorrem circunstncias m odificadoras da responsabilidade crim inal, os tribunais im poro a pena em grau m nim o ou mdio atendendo gravidade do fato e personalidade do delinqente (art. 61, 4. do Cdigo Penal).Logo, A e B devem ser condenados pena de oito anos e um dia de priso m aior (esse o m nim o de pena perm itido pela lei).

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    Esse tipo de raciocnio , contudo, um raciocnio no dedutivo, pois a passagem das premissas concluso no tem carter necessrio (o tribunal podia ter imposto uma pena de at doze anos sem infringir a lei, isto , sem contradizer as premissas). No entanto, poderia ser considerado dedutivo (todo argumento indutivo pode se converter em dedutivo se se acrescentam as premissas adequadas) caso se entendesse incorporada (implicitamente) na argumentao anterior uma premissa do seguinte teor:

    A reduzida gravidade do fato e a personalidade no particularm ente perigosa do delinqente fazem com que se deva impor o mnimo da pena perm itido pela lei.

    Essa ltima premissa no enuncia uma norma do Direito vigente e nem supe a constatao de que se produziu um determinado fato, mas sim que o fundamento da mesma so, antes, juzos de valor, pois gravidade do fato e personalidade do delinqente no so termos que se refiram a fatos objetivos ou verificveis de algum modo; no estabelecimento dessa premissa, poderamos dizer que o arbtrio judicial desempenha um papel fundamental. Mas isso significa que o silogismo judicial no permite reconstruir satisfatoriamente o processo de argumentao jurdica, porque as premissas de que se parte - como ocorre nesse caso - podem precisar por sua vez ser justificadas, e porque a argumentao jurdica entimem- tica. Um argumento entimemtico pode sempre ser proposto de forma dedutiva, mas isso supe acrescentar premissas s explicitamente formuladas, o que significa reconstruir, no reproduzir, um processo argumentativo.11

    Outro possvel inconveniente consiste em que o silogismo ju dicial conclui com um enunciado normativo que estabelece que A e B devem ser condenados, ao passo que, na deciso da sentena, no apenas se diz isso como tambm se condena A e B. Essa distino entre o enunciado normativo e o enunciado perfor- mativo (o ato lingstico da condenao) em que consiste propriamente a deciso implica que, na mesma, est se fazendo uma passagem do plano do discurso para o da ao, isto , uma passagem que recai fora da competncia da lgica. E interessante deixar claro que na redao da parte dispositiva das sentenas - pelo menos no nosso pas - emprega-se uma clusula de estilo que abriga precisamente essa distino: Decidimos que devemos condenar e condenamos ou devemos absolver e absolvemos. E interessante observar que consideraramos sem dvida incorreta uma expresso

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    como decidimos que devemos condenar, mas no condenamos , mas no porque se trate de uma contradio de tipo lgico, e sim porque haveria nela uma contradio pragmtica ou performativa (cf. captulo sexto, item 3.2.1).

    9. Aspectos normativos e fticos da argumentao jurdica

    Num item anterior vimos que o estabelecimento da premissa menor do silogismo judicial, a premissa ftica, podia ser o resultado de um raciocnio de tipo no dedutivo. O mesmo pode acontecer com relao ao estabelecimento da premissa maior, da premissa normativa. Um bom exemplo disso a utilizao do raciocnio por analogia, que para muitos autores o prottipo do argumento jurdico. Vejamos, com uma hiptese prtica, como funciona a analogia no Direito (cf. Atienza, 1986 e 1988).

    Numa sentena de 17 de outubro de 1985 (137/1985) o Tribunal Constitucional entendeu que o princpio constitucional de inviolabilidade do domiclio se estende tambm sede social das empresas. O domiclio de uma pessoa jurdica to inviolvel quanto a moradia de uma pessoa fsica. Conseqentemente, a autorizao para que um inspetor ou um cobrador se apresente no domiclio social de uma empresa deve ser estabelecida por um juiz de instruo, assim como no caso de uma residncia particular. Poderamos esquematizar assim o argumento em questo:

    A residncia de um indivduo inviolvel.O dom iclio social de um a em presa sem elhante ao de um indivduo.Logo, o dom iclio social de um a em presa inviolvel.

    Em smbolos:

    Ax Px > OQx

    Ax Rx > P x

    Ax Rx -> OQx

    bvio que a concluso no se segue dedutivamente das premissas (P = semelhante a P), mas o argumento - como sempre ocorre - pode se tornar dedutivo se se acrescentar uma nova premissa que estabelea que tanto a residncia de um indivduo quanto o que

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    semelhante a ela inviolvel (em smbolos: x Px v P 'x > OQx), isto , se se d um passo no sentido de generalizar ou de estender para casos no expressamente previstos na norma estabelecida legalmente.

    Outro argumento, utilizado com certa freqncia para estabelecer a premissa normativa quando no se pode partir apenas das normas fixadas legalmente, a reduo ao absurdo. Esse argumento tem, em princpio, uma forma dedutiva, mas, tal e qual a utilizam os juristas, a reduo ao absurdo costuma ir alm de uma simples deduo, por duas razes: em primeiro lugar porque, com freqncia, preciso entender que determinadas premissas esto simplesmente implcitas (e sem elas no teramos a forma dedutiva do argumento); e em segundo lugar porque a noo de absurdo utilizada pelos juristas no coincide exatamente com a de contradio lgica, e sim com a de conseqncia inaceitvel .12 No final das contas, do ponto de vista do seu carter dedutivo ou no dedutivo, esse tipo de argumento no difere muito do anterior; pode-se considerar - como acabamos de ver - que tambm o argumento por analogia tem uma forma dedutiva, uma vez que a norma estabelecida legalmente foi reformulada para incluir o novo caso. Vejamos agora um exemplo de argumento por reduo ao absurdo.

    A sentena do Tribunal Constitucional 160/1987, de 27 de outubro, acolhe a deciso do tribunal declarando a constitucional idade da lei de objeo de conscincia. Contudo, o tribunal chegou a essa deciso apenas por maioria; vrios magistrados divergiram com relao a diversos aspectos da sentena. Um dos elementos importantes da fundamentao se referia a como os magistrados concebiam o direito de objeo de conscincia (como um direito fundamental ou como um direito autnomo no-fundamental). Durante a argumentao (para sustentar que se tratava de um direito fundamental), um dos magistrados que divergiam afirmou no poder o direito de objeo de conscincia ser considerado apenas como uma iseno do servio m ilitar (portanto, sim plesm ente como um direito autnomo, mas no-fundamental), e justificou sua proposio assim: Embora o direito de objeo de conscincia possa ser, e de fato seja, uma causa de iseno do servio militar, ele no apenas isso, porque se assim fosse seria um despropsito qualific-lo de fundamental . Acrescentando algumas premissas que preciso entender como implcitas, o argumento poderia ser assim escrito:

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    1. Suponhamos que o direito de objeo de conscincia seja apenas uma causa de iseno do servio militar.

    2. M as se apenas isso, ento seria um despropsito qualific-lo de fundam ental (ou seja, ele no pode ser qualificado de fundam ental).

    3. M as o direito de objeo de conscincia um direito fundam ental, de acordo com o estabelecido pela Constituio.

    4. Da prem issa 1 e 2 se depreende que o direito de objeo de conscincia no pode ser qualificado de fundamental.

    5. As prem issas 3 e 4 enunciam um a contradio.6. Portanto, no cabe supor que o direito de objeo de conscincia

    seja apenas uma causa de iseno do servio militar.

    Em smbolos lgicos:

    1. r Pa

    2. Pa

    3. Qa

    4. -Q a

    5. -Q a -

    6. -P a

    10. Justificao interna e justificao externa

    Voltemos novamente distino entre contexto de descoberta e contexto de justificao, e concentremo-nos agora na noo de justificao. Tanto no item 7 quanto no 8 e no 9, ofereceram-se exemplos de raciocnios jurdicos que exibiam esquemas de justificao. No 8 - e, um pouco antes, no 6 - vimos como se podia justificar dedutivamente a passagem de uma premissa normativa e de uma premissa ftica para uma concluso normativa. Nos casos jurdicos simples ou rotineiros, pode-se considerar que o trabalho argumenta- tivo do juiz se reduza a efetuar uma inferncia desse tipo (que de todas as formas, e sem necessidade de sair dos casos simples, pode oferecer mais complicaes do que as sugeridas pelo esquema; basta pensar que, na realidade, em qualquer caso jurdico que se procure resolver se aplica um nmero muito elevado de normas e que, por exemplo, no Direito Penal preciso passar da soluo parcialmente indeterminada contida no Cdigo - priso maior - para a soluo plenamente determinada - oito anos e um dia - contida na sentena). Mas, naturalmente, alm dos casos simples h tambm

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    casos difceis (de que se ocupa em especial a teoria da argumentao jurdica), isto , suposies nas quais a tarefa de estabelecer a premissa ftica e/ou a premissa normativa exige novas argumentaes que podem ou no ser dedutivas. Wrblewski (e a sua terminologia hoje amplamente aceita) chamou ao primeiro tipo de justificao, o que se refere validade de uma inferncia a partir de premissas dadas, justificao interna. E ao segundo tipo de justificao, o que pe prova o carter menos ou mais fundamentado de suas premissas, justificao externa (Wrblewski, 1971 e 1974). A justificao interna apenas questo de lgica dedutiva, mas, na justificao externa, preciso ir alm da lgica em sentido estrito. As teorias da argumentao jurdica que vamos estudar nos captulos seguintes deste livro se ocupam fundamentalmente desse segundo tipo de justificao.

    11. Lgica jurdica e argumentao jurdica

    Antes de passar a considerar essas teorias, convm esclarecer um ltimo ponto: como a argumentao jurdica (ou a teoria da argumentao jurdica) se relaciona com a lgica jurdica.

    Por um lado, se pode dizer que a argumentao jurdica vai alm da lgica jurdica porque, como vimos anteriormente, os argumentos jurdicos podem ser estudados tambm de uma perspectiva que no a da lgica: por exemplo, da perspectiva psicolgica ou sociolgica, ou ento da perspectiva no formal, s vezes chamada de lgica material ou lgica informal, e outras vezes de tpica, retrica , dialtica etc.

    Por outro lado, a lgica jurdica vai alm da argumentao jurdica no sentido de que tem um objeto de estudo mais amplo. Para esclarecer isso podemos utilizar uma conhecida distino feita por Bobbio (1965) dentro da lgica jurdica. Na sua opinio a lgica jurdica seria constituda pela lgica do Direito, que se concentra na anlise da estrutura lgica das normas e do ordenamento jurdico, e pela lgica dos juristas, que se ocupa do estudo dos diversos raciocnios ou argumentaes feitos pelos juristas tericos ou prticos. Naturalmente esses dois campos de estudo no podem se separar de maneira taxativa: por exemplo, a construo do silogismo jurdico no pode ser feita desconsiderando-se a anlise lgica das normas jurdicas, j que - como vimos - uma de suas premissas e a concluso so normas; e quando discutimos a questo de se a lgica se aplica ou no s normas, surgiu o problema das contradies entre

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    normas, um problema tpico da lgica do Direito ou - como hoje se costuma denominar - da lgica dentica ou das normas.

    A anlise lgica dos raciocnios jurdicos - a lgica dos ju ristas - um campo de estudo tradicional da teoria do Direito. Contudo a utilizao da lgica formal moderna - isto , da lgica matemtica ou lgica simblica - para esses propsitos algo que ocorreu basicamente a partir da Segunda Guerra Mundial. A obra que se costuma considerar como pioneira a Juristische Logik de Ulrich Klug, cuja primeira edio data de 1951, embora - como explica o autor no prlogo - sua concepo da lgica jurdica j estivesse elaborada desde 1939.13 Klug parte de uma concepo da lgica geral como teoria da conseqncia lgica (pg. 2), o que lhe permite distinguir entre argumentos vlidos e no vlidos do ponto de vista lgico-formal. A lgica jurdica seria uma parte especial dessa lgica geral, ou seja, a teoria das regras lgico- form ais que so empregadas na aplicao do Direito" (pg. 8). E nela, por sua vez, ele distingue entre a form a bsica do raciocnio jurdico - o que chamamos de silogismo judicial ou ju rd ico - , que, na sua opinio, seria uma aplicao ao campo do D ireito do silogismo tradicional modus barbara', e os argumentos especiais da lgica jurdica. Nessa ltima categoria incluem-se: o raciocnio por analogia (ou a simili), o raciocnio a contrario, os argumentos a fortiori (a maiore ad minus e a minori ad maius), o argumentum ad absurdum e os argumentos interpretativos; estes so os que servem para estabelecer as premissas dos raciocnios dedutivos - seriam os meios a utilizar no que chamamos de justificao externa - e no fazem parte propriamente da lgica jurdica: so princpios para a interpretao, no problemas lgico-jurdicos (pg. 197).

    Em sua anlise dos raciocnios jurdicos, Klug no leva em conta, entretanto, a lgica dentica ou lgica das normas. Essa disciplina se desenvolve tambm a partir de 1951 (ano em que aparece o ensaio de George H. von Wright, Deontic logic) e leva concepo da lgica jurdica tanto como lgica do Direito quanto como lgica dos juristas - no como uma aplicao da lgica formal geral ao campo do Direito, e sim como uma lgica especial, elaborada a partir das modalidades denticas de obrigao, proibio e permisso. Esses operadores denticos podem, assim, ser utilizados - como fizemos anteriormente - para dar conta dos (ou de alguns dos) raciocnios jurdicos. Vejamos, de modo resumido, como se prope essa tarefa um autor como Kalinowski, que foi tambm um dos fundadores da lgica dentica.

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    Kalinowski (1973) considera raciocnios jurdicos aqueles que so exigidos pela vida jurdica, e apresenta para eles uma dupla classificao. Por um lado, distingue entre raciocnios de coao intelectual (lgicos), de persuaso (tericos) e propriamente jurdicos (os que se baseiam em suposies, prescries, fices etc. estabelecidas pela lei). Por outro lado, ele separa os raciocnios normativos (em que pelo menos uma das premissas e a concluso so normas) dos no-normativos (que seriam jurdicos apenas por acidente). Os raciocnios normativos, por seu lado, podem ocorrer no plano da elaborao, da interpretao ou da aplicao do Direito. Concretamen- te, no plano da interpretao do Direito utilizam-se tanto argumentos extralgicos, baseados em meios puramente jurdicos (por exemplo, os argumentos a rubrica, pro subjecta matria etc.), quanto argumentos paralgicos, que se baseiam em tcnicas retricas (por exemplo, os argumentos ab autoritate, a generali sensu, ratione legis estricta etc.) e argumentos lgicos, que se baseiam na lgica formal propriamente dita (por exemplo, argumentos a fortiori, a maiori, a pari e a contrario). Contudo, os argumentos estritamente lgicos so regidos tanto por regras lgicas em sentido estrito (as da lgica dentica fazem parte da lgica formal dedutiva) quanto por regras extralgicas, isto , por regras jurdicas de interpretao do Direito. Alm disso, Kalinowski considera que o primeiro tipo de regras se subordina ao segundo, o que poderia ser entendido no sentido de que a justificao interna depende da (ou um momento logicamente posterior ao da) justificao externa.

    Notas

    1. No final de 1989, vrios presos dos Grupos Anfascistas Prim ero de Octubre (GRAPO) declararam-se em greve de fome como medida para conseguir algumas melhorias em sua situao carcerria; com isso eles basicamente pressionavam no sentido da reunificao dos membros do grupo num mesmo centro penitencirio, o que significava modificar a poltica governamental de disperso dos presos por delito de terrorismo. Nos meses seguintes, vrios juizes da vigilncia penitenciria e vrios tribunais provinciais tiveram de se pronunciar sobre se cabia ou no autorizar a alimentao fora desses presos quando sua sade estivesse ameaada, precisamente em conseqncia da longa durao da greve de fome. A soluo dada por alguns rgos judiciais foi considerar que o governo autorizava a alimentao dos presos fora mesmo quando eles se encontrassem em estado de plena conscincia e manifestassem sua repulsa medida. Outros, pelo contrrio, entenderam que o governo s estava autorizado a tomar esse tipo de medida quando o preso tivesse perdido a conscincia. Uma anlise das diversas argumentaes levadas a cabo a propsito desse caso pode ser vista em Atienza, 1990a.

  • AS RAZES DO DIREITO 4 3

    2. As razes explicativas se identificam com os motivos. Elas se compem de estados mentais que so antecedentes causais de certas aes. O caso central de razo explicativa ou motivo dado por uma combinao de crenas e desejos [...]. As razes justificadoras ou objetivas no servem para entender por que se realizou uma ao ou eventualmente para prever a execuo de uma ao, e sim para avali-la, para determinar se ela foi boa ou m segundo diferentes pontos de vista (Nino, 1985, pg. 126).

    3. A crtica de Frank se encontra num dos captulos, The judging process and the judges personality, daquela que provavelmente a sua obra mais conhecida, Law and the m odem mind, cuja primeira edio de 1930.

    4. Em geral um argumento, do ponto de vista lgico, pode ser correto, em bora o que se diz nas premissas no seja relevante ou pertinente em relao ao estabelecido na concluso. Isso ocorre devido ao carter puramente sinttico da noo de inferncia da lgica dedutiva. Para evitar isso, desenvolveram-se as chamadas lgicas relevantes, nas quais se fortalece essa noo de inferncia, fazendo com que a relao de conseqncia lgica tambm seja uma relao entre os significados e os enunciados; cf. Snchez Pozos, 1990.

    5. Por exemplo, o argumento assinalado antes como b) que, como j disse, um caso de falcia da afirmao do conseqente. Sobre o conceito de falcia, cf. Pereda, 1986.

    6. Outra coisa pensar que a primeira premissa enuncia na realidade uma obrigao prima facie. Nesse caso poderia ser que, na verdade, se tivesse em principio a obrigao de manter as promessas, mas no a de manter uma determinada promessa (porque aqui atua outra obrigao de sinal contrrio que cancela a anterior). Mas isso, naturalmente, no quer dizer que em tal situao deixem de atuar as leis da lgica, mas sim que a primeira premissa enuncia uma norma no-categrica ou, talvez melhor, um princpio. Sobre a natureza da premissa maior nos silogismos tratarei mais adiante, a propsito da concepo de Toulmin (quarto captulo). E sobre o que se deve entender por princpios (e o papel que eles desem penham no raciocnio jurdico) falarei com algum vagar nos captulos dedicados a MacCormick e a Alexy (sexto e stimo, respectivamente).

    7. Mais adiante, no captulo dedicado teoria da argumentao jurdica de MacCormick, esse problema voltar a aparecer.

    8. Gianformaggio prope outra questo, da qual prescindo aqui.9. Esse tipo de argumento poderia se denominar tambm, segundo Peirce,

    abduo. Para Peirce (cf. Sebeok e Umiker-Sebeok, 1987) a abduo - que s vezes tambm chamada de hiptese ou retroduo - um tipo de argumentao diferente tanto da deduo quanto da induo, pois se trata de um argumento original, no sentido de que com ele surge uma idia nova: Na realidade a sua nica justificativa que se alguma vez quisermos entender totalmente as coisas, dever ser a partir dele. Do mesmo modo, a deduo e a induo nunca podem oferecer a menor informao aos dados da percepo; e [...] as meras percepes no constituem nenhum conhecimento aplicvel a nenhum uso prtico ou terico. O que faz com que o conhecimento se apresente por meio da abduo '

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    (pg. 351). Vejamos - seguindo sempre a exposio de Sebeok e Umiker- Sebeok - um exemplo de abduo oferecido pelo prprio Peirce: Certa ocasio desembarquei num porto de uma provncia da Turquia e subi, passeando, at uma casa que ia em visita. Encontrei um homem num cavalo, rodeado de quatro cavaleiros que, sobre a cabea dele, sustinham um dossel. O governador da provncia era o nico personagem que podia ter uma honra to grande, portanto inferi que aquele homem era ele. Isso era uma hiptese (pg. 73). Como o leitor provavelmente j adivinhou - isto , abduziu - , dessa forma de raciocinar pode-se encontrar exemplos abundantes nos romances policiais. As famosas dedues de Sherlock Holmes no seriam, assim, outra coisa seno abdues, no sentido em que Peirce em prega essa expresso. Para uma viso geral da obra de Peirce, veja-se Proni, 1990.

    10. Tambm a uma pena de multa da qual se prescinde aqui.11. A circunstncia de que o raciocnio jurdico - e o raciocnio que se rea

    liza na vida comum - no obedece totalmente noo de inferncia lgica - de inferncia dedutiva - levou criao de lgicas nas quais a relao de inferncia debilitada. Esses sistemas de lgica so chamados lgicas no monotnicas, pois a monotonicidade uma propriedade da inferncia dedutiva que no parece ocorrer nas inferncias realizadas no raciocnio comum. Com isso se quer dizer o seguinte: a lgica dedutiva monotnica, porque se das premissas p > q e p se infere q, ento essa mesma concluso continua sendo inferida por mais que acrescentemos novas premissas (por exemplo, embora tivssemos tambm r, -p. etc). Contudo, no raciocnio com um (que, com o j disse, norm alm ente entimemtico, quer dizer, nele no aparecem explicitadas todas as premissas utilizadas), a concluso pode mudar quando se acrescentam outras informaes; assim, no ocorre a propriedade de monotonicidade. Por exemplo, no caso anterior se chegaria a outra concluso, se em lugar de pressupor a ltima premissa indicada, pressupusssemos outra que estabelecesse que a gravidade do fato e a personalidade perigosa do delinqente aconselham fixar uma pena superior ao mnimo estabelecido pela lei . Cf. Bibel, 1985.

    12. Mais adiante, ao tratar da teoria de Perelman, veremos que ele considera a reduo ao absurdo um argumento quase-lgico ; cf. infra, captulo 3, item 2.4.2. Em Ezquiaga, 1987, pode-se encontrar muitos exemplos desse e de outros tipos de argumentos.

    13. Nessa data, Klug tinha apresentado o seu trabalho como habilitao para a Universidade de Berlim, que no o aceitou ento por razes polticas (cf. Klug, 1990, prlogo quarta edio).

  • CAPTULO 2

    A TPICA E O RACIOCNIO JURDICO

    1. O contexto do surgimento da tpica jurdica

    O que normalmente se entende hoje por teoria da argumentao jurdica tem sua origem numa srie de obras dos anos 50 que compartilham entre si a rejeio da lgica formal como instrumento para analisar os raciocnios jurdicos. As trs concepes mais relevantes (s quais dedicarei, respectivamente, este captulo e os dois seguintes) so a tpica de Viehweg, a nova retrica de Perelman e a lgica informal de Toulmin.

    Em 1953 foi publicada a primeira edio da obra de Theodor Viehweg Topik und Jurisprudenz, cuja idia fundamental consistia em reivindicar o interesse que, para a teoria e a prtica jurdicas, tinha a ressurreio do modo de pensar tpico ou retrico. O livro de Viehweg teve grande xito na teoria do Direito da Europa continental1 e se converteu, desde ento, num dos centros de ateno da polmica em torno do chamado mtodo jurdico. Com relao s muitas discusses que, a partir da, se sucederam - sobretudo, naturalmente, na Alemanha - entre partidrios e os detratores da tpica, preciso dizer que, em geral, o debate foi proposto em termos no muito claros, devido em grande parte ao carter esquemtico e impreciso da obra fundadora de Viehweg.2 Alm disso, para avaliar em seu contexto o livro de Viehweg, h trs dados que vale a pena levar em conta.

    Um deles que a ressurreio da tpica um fenmeno que ocorre na Europa do ps-guerra em diversas disciplinas, e no apenas, nem

  • MANUEL ATIENZA

    em primeiro lugar, no Direito. O livro pioneiro parece ter sido o de R. Curtius, Europische Literatur und lateinisches Mittelalter, de 1948; desde ento as proposies tpicas tm um certo desenvolvimento em matrias como a cincia poltica, a sociologia, a teoria literria, a filosofia ou a jurisprudncia.

    O segundo dado que a obra de Viehweg aparece muito pouco depois da irrupo da lgica moderna no mundo do Direito. Como antes j indiquei, tanto a Juristische Logik de Klug (que representa a primeira - ou uma das primeiras - tentativas de aplicar a lgica formal geral ao campo do Direito) quanto o ensaio Deontic logic de H. G. von Wright (que supe o surgimento da lgica das normas, isto , a construo de uma lgica especial para o mundo das normas - e, portanto, tambm para o mundo do Direito) datam de 1951. A contraposio entre lgica e tpica , como em seguida veremos, uma das idias centrais da obra de Viehweg e tambm um dos aspectos mais discutidos com relao tpica jurdica.

    E, por fim, o terceiro dado a assinalar que as idias de Viehweg tm uma semelhana bvia (cf. Carri, 1964, pg. 137) com as defendidas por Edward H. Levi numa obra publicada tambm em 1951, An introduction to legal reasoning, que desde esto teve uma grande influncia no mbito da common law, e qual o prprio Viehweg se refere episodicamente (1964, pg. 70). Tambm por essa mesma poca outros autores, como Luis Recasns Siches (1956) ou Joseph Esser (1961), publicaram diversos trabalhos nos quais sustentavam uma concepo da argumentao e da interpretao ju rdica muito semelhante de Viehweg. Vejamos, muito resumidamente, em que consistia a proposio de Levi, que, na minha opinio, tambm quem apresenta um interesse maior do ponto de vista da teoria da argumentao jurdica.

    Na opinio de Levi, tanto no campo do Direito jurisprudencial quanto no da interpretao das leis e da constituio (ele se refere constituio americana), o processo do raciocnio jurdico obedece a um esquema bsico, que o do raciocnio por exemplos. Trata-se de um raciocnio de caso a caso, do particular para o particular, que Levi descreve assim em suas primeiras pginas: E um processo que se compe de trs passos, caracterizados pela doutrina do precedente, no curso do qual uma proposio descritiva do primeiro caso convertida numa regra de direito e aplicada depois a outra situao semelhante. Os passos so os seguintes: primeiro se descobrem semelhanas entre os casos; depois se exprime a regra de direito implcita no primeiro; por ltimo, ela aplicada ao segundo. O raciocnio por exemplos um mtodo de raciocnio necessrio ao Direito, mas

  • AS RAZES DO DIREITO

    tem caractersticas que, em outras circunstncias, poderiam ser consideradas imperfeies (pgs. 9-10). Essas caractersticas consistem em que no se parte de regras fixas e sim de regras que mudam de um caso para outro e so reformuladas em cada um deles (pg. 10): as categorias usadas no processo jurdico tm de permanecer ambguas para permitir a acolhida de novas idias (pg. 12); isso pode parecer uma imperfeio, mas permite que as idias da comunidade e das cincias sociais, certas ou no, medida que ganham aceitao naquela, controlem as decises (pg. 15). Resumindo, o Direito se configura no como um sistema fechado, e sim como um sistema aberto (cf. Carri, 1964, pg. 135), e no se pode apresentar o raciocnio jurdico como meramente dedutivo; apenas o movimento dos conceitos jurdicos bastante circular (pg. 18): o conceito vai se construindo medida que se comparam os casos e pode chegar a ser modificado no sentido de que, ao final do processo, o que era uma circunstncia excepcional no tocante sua aplicao se converte em regra geral. A lgica jurdica , poder-se-ia dizer, uma lgica peculiar, enraizada no prprio processo de desenvolvimento do Direito, e na qual a noo de consenso desempenha um papel de grande importncia: O contraste entre a lgica e o mtodo da prxis do direito no beneficia a primeira e nem o segundo. O raciocnio jurdico tem uma lgica prpria. Sua estrutura o ajusta para dar sentido ambigidade e para constantemente verificar se a sociedade observou novas diferenas ou semelhanas [...]. Esse o nico sistema capaz de funcionar, embora os homens no estejam em total acordo. Os membros da comunidade so leais instituio da qual participam. As palavras mudam para receber o contedo que a comunidade lhes confere. No tem sentido se esforar para encontrar acordo pleno antes de a instituio se pr em funcionamento (pg. 132).

    2. Theodor Viehweg: uma concepo tpica do raciocnio jurdico

    2.1. O desenvolvimento histrico da tpica

    O livro de Viehweg, anteriormente mencionado, comea com uma referncia a uma obra de Vio do incio do sculo XVIII, na qual o autor contrapunha o mtodo antigo, tpico ou retrico, ao mtodo novo, o mtodo crtico do cartesianismo, e propunha a necessidade de intercalar no novo mtodo a tpica (que ensina a examinar uma

  • MANUEL ATIENZA

    coisa sob ngulos muitos diferentes; a tpica toma como ponto de partida no um primum verum, e sim o verossmil, o sentido comum, e o desenvolve mediante um tecido de silogismos e no mediante longas dedues em cadeia). A tpica constitui, com efeito, uma parte da retrica, isto , de uma disciplina que teve uma grande importncia na Antiguidade e na Idade Mdia e inclusive depois, at a poca do racionalismo.

    As duas grandes contribuies da Antiguidade so as obras de Aristteles e Ccero. A Tpica de Aristteles era uma das seis obras que compunham o Organon. Nela, Aristteles parte de uma caracterizao dos argumentos dialticos (dos quais se ocupam os retricos e os sofistas) com relao aos argumentos apodticos ou demonstrativos (dos quais se ocupam os filsofos), aos argumentos ersticos e s pseudoconcluses ou paralogismos. Os argumentos dialticos (os da tpica) se diferenciam dos apodticos porque partem do simplesmente provvel ou verossmil, e no de proposies primeiras ou verdadeiras.3 Quanto ao mais, contudo, as concluses dialticas so iguais s apodticas e, ao contrrio das ersticas e das pseudo