analise de discurso pontos de ancoragem
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ANÁLISE DE DISCURSO: PONTOS DE ANCORAGEM PARA UM GESTO DE LEITURA
Ana Maria de Fátima Leme Tarini
RESUMO: A Análise de Discurso Francesa (AD) é uma teoria que tem construído metodologias de
pesquisa, mecanismos e dispositivos para análise nos últimos anos, de forma ampla e contínua. Nasceu
na França no final da década de 1960, no entanto logo chegou ao Brasil por meio de estudiosos da
linguística. Os estudos feitos nos últimos 30 anos em diferentes universidades têm contribuído
expressivamente para a consolidação deste campo da linguística no Brasil, essencialmente os
realizados, a princípio, na UNICAMP, UNESP e UFRGS. Com base nestes estudos, propõe-se
apresentar um percurso teórico de leitura (pontos de ancoragem) discutido no programa de pós-
graduação da Unicamp, na disciplina de Introdução à análise de discurso, ministrado pela professora
Suzy Lagazzi, em 2012, a partir de escritos de Michel Pêcheux, Eni Orlandi e Paul Henry.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Sujeito; Interpelação Ideológica.
INTRODUÇÃO
Quando me foi solicitado que escrevesse um trabalho a respeito de um percurso de leitura,
pensei: Como assim um percurso? O que já percorri? No que se refere à Análise de Discurso (AD)
sinto que há muito a percorrer. Essa teoria de análise tem construído metodologias e mecanismos de
estudo nos últimos anos, de forma ampla e contínua. Nasceu na França no final da década de 1960,
mas logo chegou ao Brasil por meio de estudiosos da linguística. Os estudos feitos nos últimos 30 anos
em diferentes universidades têm contribuído expressivamente para a consolidação deste campo da
linguística no Brasil, principalmente os realizados, inicialmente, na UNICAMP, UNESP e UFRGS.
A respeito de percurso de leitura na AD Eni Orlandi (2006), na década de 80, escreveu na
apresentação de A linguagem e seu funcionamento que se colocava no centro da tensão entre o “já-dito
e o a-se-dizer” e que aceitava passar pelos mesmos lugares para conhecer o objeto de estudo. No meu
caso, diferentemente de Orlandi, linguista fundamental para o desenvolvimento da AD no Brasil, eu
transitarei pela primeira vez por estes estudos da Análise de discurso, feito por meio das leituras
incentivadas e/ou apresentadas nas aulas da disciplina Introdução à análise de discurso de linha
francesa, ministrada pela professora Suzy Lagazzi, na UNICAMP, da qual participei como aluna
especial, além de alguns textos que penso serem pertinentes ao trabalho para demonstrar conceitos,
funcionamento e procedimentos da AD.
A apresentação deste percurso se dará em tópicos, devido a minha flagrante necessidade de
organização linear das ideias, resultado de anos de estudo em disciplinas divididas em séries, etapas,
cursos (em caixinhas, gavetinhas, nas quais vamos arquivando o que vamos aprendendo), próprios da
instrução/educação dos/nos aparelhos ideológicos de Estado, como nomeados por Althusser.
PRIMEIROS PASSOS: COMPREENDENDO CONCEITOS
A análise de discurso surgiu na década de 1960 no cenário de estudos da linguagem, mas
somente recentemente se consolidou como uma disciplina com maturidade teórica e metodológica,
embora em muitas análises ainda apareça uma miscelânea de perspectivas ou teorias tentando analisar
discursos.
Pensando em Análise de Discurso, torna-se importante compreender alguns conceitos. Faz-se
necessário conceituar linguística para/na AD, pois tudo que acontece na/com a língua faz parte da
materialidade linguística. Assim, conceituamos linguística “como o estudo científico que visa
descrever ou explicar a linguagem verbal humana.” (ORLANDI, 2009, p.9). O que dá corpo à
configuração epistêmica da linguística, segundo Henry (1992, p.20) é a noção de instituição linguística
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“da qual retomamos os elementos fundamentais: desdobramento da forma-sujeito (com a oposição
competência-desempenho) e a questão de sentido na sua relação materialidade fônica ou gráfica da
linguagem)”. Sendo estes os (forma-sujeito e sentido) dois pilares para os estudos na linguística,
principalmente, a partir dos estudos de Henry e Pêcheux. Isto rompe com a noção de linguagem
enquanto instrumento de comunicação humana.
A linguística se tornou, no século passado, a ciência piloto das ciências humanas, e tem
contribuído muito para estudos sobre a evolução humana. É uma ciência bastante nova, pelo menos
como ciência existe a pouco mais de um século, talvez por isso em muitas Universidades ainda haja
estudos pouco significativos, incipientes. Vale destacar que alguns cursos de letras (licenciatura)
possuem a disciplina de linguística dividida em: linguística I, II, III, IV (ou Estudos linguísticos) na
qual muitas vezes englobam estudos da sistemática da gramática com a linguística. Às vezes abordam
teoria e estudos de fonética/fonologia, morfologia, sintaxe e semântica prioritariamente, de forma que
não chegam a estudar Análise da Conversação, Sociolinguística, Linguística Aplicada e Pragmática,
muito menos Análise Crítica do Discurso ou Análise de Discurso. Como aconteceu com o curso que
estudei nos anos 90. Fato que justifica minha (e de muitos outros colegas de área) inserção numa
disciplina introdutória sobre AD em programas de pós-graduação.
Embora saibamos desta jovialidade da linguística, desde que tivemos acesso aos estudos de
Ferdinand Saussure compreendemos a língua como um sistema de signos, ou seja, pequenas unidades
que formam um todo, dotado de significado, mas que se significam diferentemente para cada
sociedade. É um sistema convencional adquirido no convívio social. Saussure acreditava que o
significado é arbitrário, imotivado e convencional, pois um signo é o que o outro signo não é. Assim,
se convencionamos (estabelecemos em nossa mente) o significado de um signo, ele é o que
estabelecemos. “Por isso se diz que o valor do signo é relativo e negativo” (ORLANDI, 2009, p. 22),
um signo vale pelo que outro não vale.
Outro conceito fundamental para a AD é a de Discurso, o que Pêcheux, fundador da AD na
França, define como efeito de sentidos entre locutores, sendo o discurso um espaço de funcionamento,
materialização da relação língua/ideologia, enquanto para Orlandi (2005, p. 15) “a palavra discurso,
etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é
assim palavra em movimento, prática de linguagem [...]”, um objeto sócio-histórico no qual a
Linguística está pressuposta, então onde houver esta práxis linguística, haverá espaço para estudos da
AD.
É na prática de linguagem, ou seja, na materialidade discursiva que se pode observar o
discurso e suas condições de produção “pois, no funcionamento da linguagem, que põe em relação
sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição de
sujeitos e produção de sentidos”(ORLANDI, 2005, p. 21). Os discursos constituem sujeitos e são
constituídos pelos sujeitos nas relações de linguagem, o que significa dizer, que “são processos de
identificação do sujeito, de argumentação, de subjetivação, de construção da realidade, etc” (op. cit., p.
21).
Orlandi (2006) esclarece que o uso que se faz do conceito de discurso é o da linguagem em
interação, o qual considera tanto a relação estabelecida pelos interlocutores, como o contexto,
constitutivo da significação do que se diz. O discurso se materializa na língua, assim como a língua se
materializa no discurso, sendo que a língua, para a AD, não é um sistema abstrato, mas sim repleto de
significado materializado pelo sujeito e para o sujeito do discurso.
Todavia, é uma questão intrigante para nós estudantes da AD entender o que é sujeito na AD?
Sujeito a que? A quem? Estas indagações nos vem a mente quando pensamos em sujeição. E, neste
momento, podemos ficar chocados ao percebermos que não somos proprietários de nosso dizer, que
não somos o indivíduo cartesiano do iluminismo, do “cogito ergo sum”, idealizado, racional, que
primeiro pensa e por isso, ou como consequência disso, existe, conforme Tarini (2007).
No que tange a sujeição, Pêcheux (2009, p. 272), com base nas leituras de Althusser, entende
que “as condições materiais da existência dos homens determinam as formas de sua consciência, sem
que as duas jamais coincidam; ou ainda dizendo que os homens fazem sua história mas não a história
que eles querem ou acreditam fazer“, mas a história que é possível, dentro das condições materiais
existentes, pois ao mesmo tempo que acreditam poder pensar e agir livremente, estão determinados a
não deixar de pensar e agir.
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Assim, não há espaço para o idealismo, muito menos para o subjetividade do sujeito dono de
si e de seu destino. Conforme cita Pecheux (2009, p. 272), para Althusser “os sujeitos ‘funcionam
sozinhos’ porque são sujeitos, isto é indivíduos interpelados em sujeito pela ideologia”. A grande
contradição mostrada pela AD é que o sujeito produz discurso e é produzido por ele.
Observa-se que, ao falar em sujeito, Althusser não abre mão da teoria da interpelação
ideológica, ponto fundamental para a AD. Nesta linha de pensamento, em uma de suas teses sobre a
ideologia, afirma que “A ideologia é uma representação da relação imaginária dos indivíduos com
suas condições reais de existência” (ALTHUSSER, 2001, p.85), o que nos leva a concordar com Paul
Henry ao afirmar que somos apenas suporte, e não a raiz (a fonte do dizer), diferentemente do que
estabelecia a concepção idealista e subjetivista de Hegel, visto que “todo sujeito humano, isto é, social,
só pode ser agente de uma prática social enquanto sujeito” (HENRY, 2010, p.31).
Ser agente de uma prática social é se posicionar enquanto sujeito, argumentar a partir de uma
posição que ocupa. As posições sujeito se constituem na/pela história. Uma história contraditória na
qual o sujeito tem como possibilidade a tomada de decisão, tem escolhas. O sujeito escolhe dentro das
possibilidades que lhe são postas, não há como escapar da ideologia. É um ser social, historicamente
determinado, que funciona no coletivo, pelo coletivo.
PERCORRENDO O CAMINHO: DESVENDANDO POSSIBILIDADES
Nas leituras que fazemos a respeito da Análise de Discurso francesa, Pecheux nos mostra a
impossibilidade da identificação logicamente estabilizada, do indivíduo essência, fonte do dizer.
Critica o Marxismo ortodoxo que prende o sujeito à identificação da/na luta de classe e a
impossibilidade do deslocamento, afirmando que “o termo ‘luta de deslocamento ideológica’ pode ser
chocante ou incompreensível para os representantes da metafísica Marxista ortodoxa do realismo de
classe que subordina uma identidade estável (com fronteiras definidas)” (Pecheux, 2011, p. 116).
Sabemos que somos interpelados em sujeitos, mas há falhas na interpelação, mostradas por
meio de sonhos, lapsos, ato falho, witz, no qual aparecem a resistência, a revolta; são falhas no ritual
de interpelação do sujeito. Por isso, nos é cara a retomada que Pecheux (2009) faz de um dito de
Lacan sobre o inconsciente, demonstrando a incompletude da língua, uma falha no processo de
identificação (do Eu), “Só há causa daquilo que falha”, uma causa que se manifesta numa pulsação
sentido/non-sens (evidência de sentido/ subjetividade) mostrando um sujeito dividido entre o que fala
no sonho, no chiste, no lapso e em outras tantas falhas e aquele que relata o que fala no sonho, que
troca uma palavra por outra, que usa de metáforas. Assim não há uma interpelação “perfeita”,
“definitiva”, bem como não há um assujeitamento “perfeito”, no qual se garanta o resultado.
Segundo Pecheux (2009, p. 281) também há outros pontos incontornáveis a se observar no
discurso, o de que “Não há dominação sem resistência”, uma só existe se houver a outra, num
processo de identificação e negação; e “ninguém pode pensar do lugar de quem quer que seja”, de
forma que pensamos a partir de uma posição-sujeito. Neste ponto, Pecheux/Althusser se diferenciam
de Foucault/Lacan/Derrida. O sujeito para Pecheux é o sujeito da ideologia, incapaz de escapar da
ideologia, a não ser por meio do Lapso, do ato falho, enquanto o sujeito para Foucault é o sujeito do
discurso, que ocupa uma posição enquanto enunciador do discurso, é o sujeito da ordem do discurso,
“do jogo da ordem do signo”, do qual é incapaz de escapar, pois não há saída. Foucault (2006, p. 43)
escreve que há uma “doutrina que liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe,
consequentemente, todos os outros”, estes mesmos tipos de enunciação servem “para ligar indivíduos
entre si e diferenciá-los, por isso mesmo, de todos os outros”.
Percebe-se então que o discurso de Foucault, também não é o mesmo discurso para Pecheux.
Foucault entende que os discursos são enunciados, e o enunciado partícula elementar de um discurso,
sendo que o sujeito é o sujeito do discurso, num jogo discursivo.
Diante destes passos dados neste percurso de leitura, percebe-se que o ponto nodal, o ponto de
maior discussão na AD, é a questão do assujeitamento, talvez esteja aí um espaço para investimento
em mais pesquisas, análises e debates.
É interessante se questionar quais são as possibilidades para o sujeito na AD pechetiana.
Indagar se não é audácia demais da AD pensar neste sujeito pego pela ideologia, incapaz de fugir das
armadilhas ideológicas? Se a única possibilidade é o lapso, o ato falho, como resistência e resultado da
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imperfeita interpelação pela incompletude da língua? Talvez seja arrogância de Foucault pensar o
sujeito assujeitado no discurso, incapaz de fugir do jogo discursivo da ordem do discurso.
Estes questionamentos demonstram algumas das interrogações que ainda permanecem e o
quanto pode ser interessante analisar quais são as proximidades e distanciamentos entre os ditos de
Foucault e Pêcheux.
LEITURA, INTERPRETAÇÃO E ANÁLISE POSSÍVEIS AO ANALISTA DO DISCURSO:
PONTOS DE ANCORAGEM.
Com a efervescência da linguística nos anos 60 (século XX), os linguistas que se preocupavam
mais com os estudos da estrutura da língua, com a sintaxe e a semântica, passam a observar em suas
leituras e interpretações a semântica e a enunciação, o sentido dos ditos e o sujeito do dizer.
Se questionar o que quer o analista do discurso num gesto de leitura, parece ser meio que
questionar o óbvio. Como numa brincadeira francesa dita “lapalissade”, conhecida a partir das coisas
óbvias ditas pelo Senhor de La Palice. Então respondendo ao óbvio, o analista quer analisar,
compreender o que diz e o que não diz tal discurso. Como se chegou a este discurso? Quais foram as
condições de produção? Que negações trazem estas afirmações do discurso? Enfim, que evidências de
sentido estão presentes?
O sujeito do discurso, conforme dito, não está centrado, então não analisamos a
intencionalidade do discurso se o sujeito não é a origem do dizer (ao contrário dos estudos da filosofia
da linguagem Bakhtiniana). O discurso é resultante de um efeito de sentido, em virtude de “que se
considera que o que se diz não resulta só da intenção de um indivíduo em informar um outro, mas da
relação de sentidos estabelecida por eles num contexto social e histórico” (ORLANDI, 2009). Ao
analista cabe ficar atento ao perigo de cair apenas na análise de conteúdo, na análise linguística do
texto e contexto. Como se o sujeito fosse a fonte do dizer e o que está no entorno explicasse todo o
dito, e este parece ser um problema quando se pensa em produzir uma análise, estamos acostumados a
pesquisar para responder se é ou não é, sim ou não a isto ou aquilo.
Contudo, nos estudos desta linha de pesquisa percebe-se que a AD não abre mão da relação
sujeito/língua/história. Na qual o real do sujeito é o inconsciente, o real da língua é a incompletude e o
real da história é a contradição. O inconsciente é o que nos possibilita a fuga, o ato falho, o
descentramento do sujeito. A língua não transparente, opaca, incompleta, em que um signo vale pelo
que outro não vale, num constante ir e vir de afirmação negação. A história é contraditória, sempre
inacabada, incompleta. E, nesta perspectiva, Pêcheux e Gadet (2010) comentam o estudo de
Benveniste que desloca a carga arbitrária da relação de significação (significante/significado) e a
realidade, afirmando que os valores são relativos uns aos outros, na relação de um signo com outros.
Enquanto analista/estudioso da AD devemos lembrar que o “sujeito de linguagem é
descentrado, pois é afetado pelo real da língua e pelo real da história, não tendo o controle sobre o
modo como elas o afetam” (ORLANDI, 2005, p. 20). Saussure deixa claro no Curso de linguística
Geral que a língua é um sistema social que preexiste a nós, não é individual. O sujeito é descentrado
pela ideologia e pelo inconsciente, todavia “todo sujeito é colocado como autor de e responsável por
seus atos [...] é interpelado em ‘sujeito responsável’” (PÊCHEUX, 2009, p.198). A nós cabe pensar o
sujeito em novas bases, não como sujeito voluntarioso que consegue sair da interpelação ideológica
por uma atitude consciente, como na história do Barão de Münchhausen que consegue puxar a si
mesmo pelos próprios cabelos e se livrar do pântano. Pensar no sujeito que “é múltiplo porque
atravessa e é atravessado por vários discursos, por que não se relaciona mecanicamente com a ordem
social da qual faz parte, por que representa vários papéis, etc.” (ORLANDI, 1988, p.11)
O analista de discurso objetiva explicitar os mecanismos da determinação histórica dos
processos de significação, tem o dever de buscar interpretações possíveis, de pensar as possibilidades
de interpretação do objeto de estudo, expor a descrição e se expor ao jogo de interpretação com base
a/em. Num jogo de exposição do invisível, das fronteiras do invisível. A invisibilidade muitas vezes
está no ponto de partida. Parece-nos que partimos do mesmo ponto, mas as diferenças são silenciadas
e/ou negadas nos discursos. A sociedade é desigual, embora haja o discurso jurídico da igualdade.
Conforme acredita Pêcheux (1990, p. 11), “a dominação da ideologia jurídica introduz assim, por meio
de seu universalismo, uma barreira política invisível”, a unificação apenas apaga nossas diferenças.
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Temos a sensação de vivermos num mundo unificado, do “nós”, do “todos”, haja vista que
temos os mesmos direitos e usamos a mesma língua, na verdade, conforme Pêcheux (1990) declara,
podem ser as mesmas palavras, expressões e enunciados, contudo não tem o mesmo sentido para as
diferentes classes. Há fronteiras econômicas que dividem o mundo em dois. Invisíveis no discurso do
direito “Todos são iguais perante a lei”. Derrubar as fronteiras, ou torná-las visíveis, demonstrando as
contradições existentes é a função da AD. Apontar rupturas no interior do capitalismo que tem como
cerne o sujeito de direito, da “liberdade individual”, a qual nos traz a falsa sensação de podermos
construir nosso destino e nossas vidas, embora o que vemos é a eficácia de um sistema que coloca
sobre os ombros do sujeito a obrigação do sucesso e da felicidade. Nosso comportamento demonstra
que há uma “constante dependência de administrações e burocracias, respeito a ordens, hierarquias e
barreiras, que funcionam visivelmente como instâncias de opressão. Observamos também costume à
obediência e ao adestramento” (PECHEUX, 2011, p. 109).
Essa pseudo liberdade, que garante o direito individual, o direito a propriedade, nos faz
acreditar que o sistema capitalista é democrático, o socialista não, pois não garante tais direitos da
sociedade burguesa. O que se sabe é que as tentativas de instalação do socialismo foram frustradas,
atingiram apenas a periferia do sistema capitalista, não seu núcleo. Pêcheux (2011, p.111) destaca que
“o ‘socialismo existente’ não é independente de um mundo simétrico do capitalismo, mas, sim, é uma
sequência de incrustações, que surgiram uma após a outra no interior de seu desenvolvimento geral”,
por isso a saída do Capitalismo não está no socialismo enquanto regime de estado, ou regime militar,
não está na imposição de cima para baixo.
Ações de grupos, movimentos sociais, sindicatos conduzem a conquistas de direitos
específicos (políticas afirmativas, “reforma agrária”, direitos dos idosos, dos indígenas, das mulheres,
etc.), enfim medidas paliativas que reforçam o capitalismo embasado no sistema jurídico do direito
individual. A luta por direitos, nossa militância e engajamento apenas reforçam o que já existe. Nisto
está, de forma dissimulada, a eficácia do sistema capitalista, que nos faz pensar que estamos
avançando. A eficácia está no fato de que a nós faz sentido que seja assim. Que o sujeito deve agir,
trabalhar, batalhar para ser bem sucedido, do contrário ele é um incompetente. Não conseguirá ter o
que deseja e não será feliz nesta sociedade.
A AD tem como função apontar estes limites, as imposições do sempre-já-aí, do pré-
construído, nos mostrar caminhos para desestruturar, desconstruir. Os gestos de leitura podem apontar
as brechas, as falhas. A análise não deve simplesmente desvendar um texto, não se trata de encontrar
significados no texto, fechado em si, trata-se de descrever as possibilidades do dizer que foram
silenciadas ou não ditas, mas que são constituídas pelo próprio dizer.
Pêcheux (2011, p. 122) ao pensar nos discursos políticos e nos domínios da ciência, argumenta
que “as palavras podem mudar de sentido de acordo com as posições sustentadas por aqueles que as
empregam”, como consequência nos questiona se o discurso - e a análise discursiva - é um problema
apenas linguístico, visto que envolve, além dos saberes linguísticos, outros campos das ciências
sociais. A AD não acredita na significância imanente da palavra, mas sim nos sentidos construídos no
social.
Diferentemente da análise de discurso em que os sentidos são constituídos no social, na
materialidade discursiva, na análise de conteúdo “a produção de sentido se refere apenas a uma
realidade dada a priori, ou seja, o objetivo do tipo de análise preconizado pela Análise de Conteúdo é
alcançar uma pretensa significação profunda, um sentido estável, conferido pelo locutor no próprio ato
de produção do texto” (ROCHA, D.; DEUSDARÁ, B., 2005, p. 307). Além disso, para a análise de
discurso o texto é entremeado pelo contexto ideológico.
Desde o lançamento do artigo Análise Automática do Discurso, a AAD-69, de Pêcheux,
entende-se que ao pensar na língua somente como sistema, silencia-se, ou subtrai da língua sua função.
A língua tem uma função social. É constituída na materialidade ideológica do social. No entanto, no
Brasil, historicamente falando, há uma tradição de estudos da filologia (história e etimologia da
língua), do sistema gramaticallinguístico (fonologia, morfologia, sintaxe e semântica), bem como da
análise de conteúdo (ou análise de texto), mas não das funções sociais da língua. O que não justifica,
mas explica a opção curricular dos cursos de Letras, citado anteriormente neste artigo.
Ao analisar um texto, pela análise de conteúdo, busca-se compreender o que o autor quis
dizer, o que o texto aborda, que significações estão presentes (que ideias traz) e o que está implícito
(nas entrelinhas do texto). Para a AAD, há que se compreender o funcionamento discursivo e este
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funcionamento não formado totalmente pelo linguístico, tanto que Pêcheux (2010, p. 77-78) afirma ser
necessário definir os elementos teóricos primeiro para com isso pensar os processos discursivos,
observando que “os fenômenos linguísticos de dimensão superior à frase podem efetivamente ser
concebidos como um funcionamento” e que deve ser definido “em relação ao mecanismo que
chamamos de ‘condições de produção’ do discurso”[grifos do autor].
Nesta perspectiva das condições de produção, Pêcheux (2010, p. 78) ressalta ainda que “é
impossível analisar um discurso como um texto, isto é, como uma sequência linguística fechada sobre
si mesma, mas que é necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado
definido das condições de produção” [grifos do autor]. Com isto Pêcheux distancia a Análise de
Discurso da teoria da análise de conteúdo. Com os estudos posteriores (AAD-75 e AAD-82) vai
sedimentando e consagrando o entendimento de discurso para AD, além de estabelecer conceitos de
formação imaginária, formação ideológica, discursiva, efeito metafórico, paráfrase, etc. Partindo,
essencialmente, da compreensão de sujeito e ideologia.
Os estudos no âmbito da análise de discurso, já em minha pesquisa de Mestrado, em 2007,
sobre As condições de produção dos discursos de identidade: um estudo sobre os jovens militantes do
MST foram indispensáveis “para se ver o que não se via, para perceber o que não se percebia e para
refletir acerca do que antes parecia não existir” (TARINI, 2007, p. 188). Isto porque foi possível
compreender o interdiscurso (as memórias) presente no intradiscurso, bem como observar os
silenciamentos presentes ou pela ausência do dizer ou pela escolha do que dizer em determinadas
situações.
Assim, as práticas de leitura também devem traçar uma relação entre o “que é dito em um
discurso e o que é dito em outro, o que é dito de um modo e o que é dito de outro, procurando
‘escutar’ a presença do não-dito no que é dito [...]”(ORLANDI, 2008, p. 60), a fim de compreender o
não dito pelo dito.
Já Pêcheux (1990) busca fazer um furo no social. Aponta para o alhures (algo ainda não
vivido, não imaginado), o inexistente em nossa sociedade (até o momento) como forma de resistência.
Uma resistência que possa fazer diferença, não reafirmar o que está posto. Argumenta que os
processos de reprodução ideológicos devem ser abordados como local de resistência múltipla, “um
local no qual surge o imprevisível contínuo, porque cada ritual ideológico continuamente se depara
com rejeições e atos falhos de todos os tipos, que interrompem a perpetuação das reproduções”
(PÊCHEUX, 2011, p. 115).
É intrigante ver que na AD há uma impossibilidade de síntese, não há uma resposta pronta,
conclusiva. Isto pode representar uma angústia, se buscamos a calmaria da homogeneidade e
parâmetros para seguir. A AD não é uma ferramenta imperfeita, tampouco propõe perfeição nas
análises, mas sim nos conduz a perspectivas de leitura e compreensão a respeito da imperfeição da
língua em sua materialidade. O que não significa relativização das possibilidades de interpretação, mas
um apego à materialidade do objeto, do corpus de estudo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todas estas questões de estabelecimento de um dispositivo de análise para os discursos
propiciam que reflitamos acerca das produções teóricas e práticas brasileiras. Importamos uma teoria
francesa, a adotamos, buscamos compreender a epistemologia para as possíveis análises. Nesse intuito,
estudiosos desenvolveram práticas de análise, ao mesmo tempo em que tentaram discutir e especificar
pontos nebulosos da teoria.
Penso ainda nos ditos de Orlandi (2005) ao demonstrar-se com reservas quanto à existência de
“Uma Escola de Análise de Discurso” no Brasil. Justamente por acreditar que ainda há um longo
caminho a percorrer. Não bastam mais análises (aumentar o volume de produções), prima-se por
estudos, debates, diálogos, visando dar mais visibilidade, consistência teórica e mesmo histórica às
produções.
Se no início titubeio ao apresentar minhas incipientes leituras sobre a AD, é porque sei do
longo caminho a percorrer enquanto leitora e estudante da análise de discurso, sei também (ou penso
saber) do desafio que é refletir sobre a incompletude da língua, sobre a ideologia. Parece mais fácil
estudar algo definitivo, acabado, uma teoria que trabalhe com a língua enquanto sistema estável, que
pareça homogêneo, se é que é possível falar em homogeneidade depois de todas essas leituras a
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respeito da materialidade discursiva pechetiana. Acredito que a língua é sempre um já-dito e um vir a
ser, a constituir-se, incompleta como este percurso de leitura, que espero, num outro momento, ter
mais a dizer.
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