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MARIA LUCIA POLVERARI ANÁLISE DO DISCURSO: PRINCÍPIOS E ASPECTOS GERAIS PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – PUC/SP São Paulo – 2006 .

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Page 1: 40338533 Analise Do Discurso Principios e Aspectos Gerais

MARIA LUCIA POLVERARI

ANÁLISE DO DISCURSO: PRINCÍPIOS E ASPECTOS GERAIS

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – PUC/SP

São Paulo – 2006

.

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MARIA LUCIA POLVERARI

ANÁLISE DO DISCURSO: PRINCÍPIOS E ASPECTOS GERAIS

Monografia apresentada no curso de especialização em Língua Portuguesa sob orientação da Profa. Dra. Anna Maria M. Cintra.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – PUC/SP

São Paulo – 2006

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 1

Capítulo1 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS .................................................................. 3

1.1 O Estruturalismo......................................................................................... 3

1.2 Do Estruturalismo ao Gerativismo.............................................................. 4

Capítulo 2 A AD – UM NOVO MÉTODO PARA A ANÁLISE DO DISCURSO..... 7

2.1 A Tríplice Entente: Saussure, Marx e Freud – nos primórdios da AD....... 8

Capítulo 3 NOÇÕES–CHAVES DA AD..................................................................... 12

3.1 Discurso e Sujeito....................................................................................... 12

3.2 Discurso e Ideologia................................................................................... 14

3.3 Formações discursivas e Instituições discursivas....................................... 14

3.4 Interdiscurso e Formação discursiva........................................................... 15

3.5 Condições de Produção e Interdiscurso...................................................... 18

Capítulo 4 UMA PROPOSTA DE ANÁLISE ......................................................... 20

4.1 Da Carta-Testamento de Getúlio Vargas.................................................... 20

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................. 25

BIBLIOGRAFIA................................................................................................................ 27

ANEXO – CARTA TESTAMENTO DE GETÚLIO VARGAS

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INTRODUÇÃO

Não há ser humano que prescinda da linguagem. É através dela que nos comunicamos, temos

acesso à informação, expressamos e defendemos nossos pontos de vista, partilhamos e

construímos visões de mundo. Dessa maneira, os saberes a serem privilegiados nessa área do

conhecimento são aqueles que dizem respeito à produção e a compreensão de significações.

Na atualidade, conforme proposto nos PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais, uma das

prioridades do ensino de língua materna na escola é o desenvolvimento da capacidade leitora

e escritora dos alunos, a partir de um trabalho articulado com áreas afins, tendo como ponto

convergente o desenvolvimento de competências próximas, cuja área de intersecção, como

dissemos acima, é a produção e a compreensão de significações. Nesse sentido, cada uma das

disciplinas relacionadas ao ensino da língua deve ter por meta comum, desenvolver o domínio

das diversas linguagens.

Considerar a Língua Portuguesa como fonte de legitimação de acordos e condutas sociais e

como representação simbólica de experiências humanas, manifestas nas formas de sentir,

pensar e agir na vida social é enfim o grande objetivo da escola.

Em resposta às preocupações que marcam os espaços educativos nos campos da linguagem e

da comunicação, por parte dos professores, cuja grande maioria foi, e ainda é, formada dentro

dos moldes estruturalistas do ensino de língua, pretende-se, com esse trabalho percorrer o

caminho traçado pela Análise do Discurso, com base na teoria da escola francesa, na tentativa

de proporcionar um suporte teórico que ajude a compreendê-la como um dos pilares de

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qualquer prática educativa que objetive o ensino da língua portuguesa hoje, ou seja, o de

formar leitores críticos, formadores de opinião, conscientes de seu lugar na sociedade.

Serão abordadas, neste estudo diacrônico, diferentes correntes teóricas que auxiliaram na

construção desta metodologia. Outro objetivo e talvez o grande desafio será delimitar e

sintetizar essas diferentes teorias, sem que cada uma delas perca sua especificidade e,

principalmente, sem confundir o leitor.

Para esboçar o percurso histórico da AD, o capítulo 1 enfocará os modelos estruturalista e

gerativista que impulsionaram o surgimento do novo método de análise. A seguir, no capítulo

2, trataremos da constituição da Análise do Discurso da escola francesa, cujas diretrizes se

desenvolveram a partir de Michel Pêcheux que vai propor a articulação do lingüístico com o

histórico e, conseqüentemente, com o ideológico. No capítulo 3, tendo por base a tríade

sujeito/história/ideologia, algumas noções-chave da AD virão pareadas, para melhor

compreensão, dada a interdependência entre os termos.

Por fim, a título de exemplo, procederemos à análise de um corpus, abordando alguns

aspectos da Análise do discurso na tentativa de ilustrar como um objeto simbólico produz

sentidos. Para esse propósito tomaremos a Carta Testamento de Getúlio Vargas.

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1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

Desde a Antigüidade, as questões da linguagem têm sido objeto de atenção por parte de

estudiosos. No começo do século XX, os estudos lingüísticos, particularmente, o

estruturalismo e o gerativismo focavam o estudo da língua como um sistema e suas estruturas

gramaticais, sem considerar seu uso efetivo. A linguagem era tomada como um produto

acabado, ignorando-se as condições de produção. A preocupação, então, resumia-se em

explicar e descrever os fenômenos. A Análise do Discurso impõe-se, dessa forma, como

reação ao estruturalismo reinante, que sufocava o surgimento do sujeito, noção central no

quadro teórico do discurso.

1.1. O Estruturalismo

Saussure, considerado o mestre fundador da Ciência da Linguagem, cujas lições de três anos

de ensino foram sintetizadas, em 1916, três anos após a sua morte, na obra Curso de

Lingüística Geral, postula que a “Lingüística tem por único e verdadeiro objeto a língua

considerada em si mesma e por si mesma”. Essa definição de língua afasta tudo o que for

estranho a seu organismo, a seu sistema, eliminando, assim, todas as causas e determinações

exteriores que possam afetá-la, como fatores etnológicos, geográficos, histórico- políticos e

institucional e tudo aquilo que não diz “respeito ao organismo interior do idioma”. Toma

como exemplo, para ilustrar essa distinção, o jogo de xadrez: elementos externos seriam a

origem do jogo, a matéria ou a forma das peças; e internos, aqueles relacionados com as

regras do jogo, do seu ordenamento.

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A partir dos anos 60, abarcando outras áreas do conhecimento, o estruturalismo difundiu-se

em várias partes do mundo, particularmente na França, e embora rejeitasse o existencialismo

de Jean Paul Sartre, aceitava o fato de que o comportamento humano era determinado por

estruturas culturais, sociais e psicológicas. Outros estudiosos como Roland Barthes e Jacques

Derrida explicavam como o estruturalismo poderia ser aplicado à literatura; Jacques Lacan o

aplicou na área da Psicologia, relacionando Freud e Saussure; Louis Althusser combinou

Marxismo com estruturalismo para criar seu próprio tipo de análise social. Bakhtin, com a

“teoria da enunciação” que concebe a língua como um produto sócio-histórico, como forma

de interação social realizada por meio de enunciações. Essa teoria ganhou impulso na França

com a obra do lingüista Benveniste, que propôs estudar a subjetividade na língua: o aparelho

formal da enunciação. E, assim, outros autores, tanto na França quanto em outros países, têm

desde então estendido a análise estrutural a praticamente toda disciplina. 1

Embora todas essas correntes estruturalistas, surgidas a partir de Saussure, tivessem seguido

tendências muitas vezes divergentes, os estruturalistas, de modo geral, não consideravam o

falante como elemento importante na produção lingüística nem as condições desta produção.

1.2. Do estruturalismo ao gerativismo

O Gerativismo, uma das correntes abarcadas pelo estruturalismo, surge, a partir dos anos 60,

para postular um novo paradigma na ciência lingüística. Enquanto na perspectiva

estruturalista a língua é externa e social, sendo, portanto, produto do desempenho, na

perspectiva gerativista a língua é interna e individual. Para o gerativista, o objeto de estudo é

postulado como o conhecimento inconsciente da língua.

1 Texto adaptado do site http://pt.wikipedia.org/wiki/Estruturalismo#Estruturalismo_na_Lingu.C3.ADstica (acesso em 22/10/06)

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Desse modo, o gerativismo se inscreve na tradição do estruturalismo, dando-lhe continuidade

com a teoria de Noam Chomsky que apesar de colocar como fator secundário a qualidade

comunicativa da língua, causou uma revolução nos estudos da linguagem ao ocupar os

espaços deixados vazios pelo estruturalismo de Saussure. Sua teoria postula que os

"enunciados" ou "frases" das línguas naturais devem ser interpretados de dois modos

distintos: pelas "estruturas superficiais" que correspondem à estrutura patente das frases, e

pelas "estruturas profundas", uma representação abstrata das relações lógico-semânticas das

mesmas. Essa teoria substitui uma concepção estática da língua por uma concepção mais

dinâmica, pois o falante, a partir de um número finito de regras e categorias, podia produzir

um número infinito de frases. Defende, ainda, que a linguagem deriva de um fator genético –

toda pessoa possui uma intuição gramatical – ou seja, a linguagem não é adquirida por fatores

externos – a mente sustenta a dedução.

O modelo gerativista, cuja preocupação, a rigor, era vincular o léxico à sintaxe, não vai muito

além da lingüística estrutural e conseqüentemente, também não irá satisfazer aos que

ansiavam por respostas às inquietações nesse campo do saber pois, além de não considerar a

heterogeneidade do meio lingüístico, limita-se à sentença complexa, ou seja, o sistema da

língua e a produtividade das regras gramaticais da competência do falante tinham a frase

como a unidade mais original da linguagem humana. Era preciso considerar a comunicação

humana, não a partir de frases e de sentenças mas, de unidades maiores (enunciados,

discursos, textos) e cuja análise deveria romper os limites da morfologia e da sintaxe e

considerar os fatores extralingüísticos para a produção de sentidos.

No intuito de levar a lingüística a uma formalização cada vez mais apurada, Chomsky acaba,

por separá-la das outras ciências sociais.

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Foi, então, contra esse cientificismo explícito do modelo chomskiano de gramática gerativa

que se insurgiu a Análise do Discurso. Não era possível compactuar com um paradigma

cognitivista, que desistoriciza o sujeito e trata a língua como um órgão mental. Embora

Pêcheux tenha reconhecido o mérito histórico da gramática gerativo-transformacional em ter

designado o lugar onde, na língua, o gramatical não cessa de negociar com o não-gramatical,

não deixa, por isso, de criticar Chomsky por ter cedido à pressão das línguas lógicas e

encobrir suas descobertas no espaço da normalidade biológica.

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2. A AD – UM NOVO MÉTODO PARA A ANÁLISE DO DISCURSO

Como fruto de insatisfações e questionamentos e de uma inquietação crescente entre as

ciências que se ocupavam dos estudos da linguagem, ainda na década de 60, surge uma nova

metodologia de análise do discurso (AD) que vai privilegiar, não mais a frase, mas o texto e o

discurso, no momento de produção, melhor dizendo, a atenção volta-se para o sujeito e para

as condições de produção do texto (ou discurso). Isto vai provocar uma mudança

metodológica na maneira de entender a língua.

A AD, embora se materialize na língua e lhe interesse sobremaneira a gramática, tem como

finalidade maior explicar os fenômenos discursivos e a produção de sentidos a partir da

articulação entre língua/história/sujeito, pois entende a linguagem como mediação necessária

entre o homem e a realidade natural e social.

Contrariando o princípio saussuriano de língua como um sistema homogêneo e fechado, a AD

trata a língua na intersecção da Lingüística – uma vez que a língua é matéria específica do

discurso – e das Ciências Sociais – a Sociologia, a Antropologia e a Filosofia – que têm o

homem como produtor da História. Dessa forma, o objeto da AD reflete as práticas sociais do

sujeito histórico-ideológico, inserido no tempo e no espaço, que faz uso da língua para

produzir sentidos.

A partir de então, articulando-se três teorias do conhecimento – a teoria da sintaxe e da

enunciação, a teoria da ideologia e a teoria do discurso – e visando compreender como os

objetos simbólicos produzem sentidos, surge uma nova posição crítica em relação à noção de

leitura, de interpretação, que problematiza a relação do sujeito com o sentido, da língua com a

história. (ORLANDI, 1999: 26)

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Em 1969, Michel Pêcheux, com a intenção de produzir um espaço de reflexão que colocasse

em questão a prática elitizada e isolada das Ciências Humanas da época, institui a Análise

Automática do Discurso, uma nova maneira de conceber a linguagem humana que não

enfatiza a análise do produto pronto ou do processo interno de produção, como propunham o

estruturalismo e o gerativismo, mas sim a análise das condições de produção. O foco do

objeto de estudo desloca-se para as condições em que determinado discurso é produzido, ou

seja, para a situação, para o momento de produção, invertendo, assim, a linha de raciocínio a

respeito do processo de produção. A questão passa a ser: Por que determinado tipo de

indivíduo produz determinado tipo de discurso?

2.1. A Tríplice Entente: Saussure, Marx e Freud – nos primórdios da AD

Conforme Orlandi (1999:20), a Análise do Discurso é herdeira de três regiões do

conhecimento humano: da Lingüística, a qual interroga por não considerar a historicidade; do

Materialismo, ao perguntar pelo simbólico; e, da Psicanálise pelo modo como, considerando a

historicidade, trabalha a ideologia como materialmente relacionada ao inconsciente sem ser

absorvida por ele.

Do ponto de vista lingüístico, a AD vai operar na superfície discursiva o que caracteriza uma

relação de afinidade com o estruturalismo, e vai questionar a sintaxe discursiva o que

caracteriza uma incompatibilidade com o gerativismo enquanto modelo vertical de linguagem

que articula teoria do espírito, competência e performance.

Das relações com a psicanálise, esta fica com o encargo de fornecer uma teoria sobre a

subjetividade que articule estas três regiões (PÊCHEUX & FUCHS, 1975). Portanto, quando

falamos de sujeito em análise do discurso, remetemos à definição de sujeito na psicanálise,

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precisamente na releitura lacaniana da obra de Freud (MAINGUENEAU, 1996;

MALDIDIER, 1990), que parte do axioma “o inconsciente estruturado como uma linguagem”

(LACAN, 1964). Esses estudiosos sublinham a enunciação como a presença do sujeito no

enunciado. Esta presença subverte a idéia de simetria do diálogo, onde supostamente haveria

comunicação. Se aceitarmos que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, os

estudos sobre a linguagem se tornam imprescindíveis para o analista. Além disso, noções

comuns circulam entre as duas áreas, como sujeito, inconsciente, interpretação, real da língua,

simbólico e imaginário.

Por último, sob o ponto de vista político, a AD nasce na perspectiva de uma intervenção, de

uma ação transformadora. Apóia-se numa visão materialista da linguagem, pois é “concebida

como um dispositivo que coloca em relação a língua e a história”. (FERREIRA, 2000:39).

Esse materialismo histórico inclui a ideologia, pois não há discurso sem sujeito e nem sujeito

sem ideologia. Se considerarmos que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a

materialidade específica do discurso é a língua esta fará sentido na medida em que o indivíduo

é interpelado em sujeito pela ideologia. Isso equivale a dizer que o sujeito é produzido a partir

das posições ideológicas assumidas dentro do processo sócio-histórico em que as palavras são

proferidas (ORLANDI, 1999:42). Dessa forma, o que é dito por um sujeito faz sentido porque

se inscreve numa formação discursiva que, por sua vez, representa no discurso uma formação

ideológica.

Nessa perspectiva, a relação entre linguagem/mundo/pensamento se dá por meio do fator

ideológico e a AD vai tratar a ideologia não como visão de mundo, mas como um mecanismo

do processo de significação. E nesse sentido, não podemos deixar de mencionar outra ciência:

a Filosofia. Uma vez que, aceitamos o discurso como prática social e o sujeito discursivo

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funcionando pelo inconsciente e pela ideologia, estaremos, conseqüentemente, falando de

tomada crítica de atitude, o que significa, que estaremos tratando de uma atitude filosófica.

Essa articulação das propostas de Saussure, Marx e Freud vão marcar a evolução operada no

campo teórico da análise do discurso da escola francesa e daí vão surgir as reflexões sobre os

conceitos de discurso, sujeito, História e língua, as quais são balizadas, principalmente, pelas

propostas de Althusser que, assentando suas bases no fenômeno ideológico de Marx, amplia o

conceito de ideologia, argumentando que a classe dominante gera mecanismos para perpetuar

as condições materiais, ideológicas e políticas de exploração.

É a partir das teses de Althusser que Pêcheux (1969) redefine conceitos como os de

“ideologia” e de “assujeitamento ideológico”. Pela reconsideração da proposta de Althusser

sobre a interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia, Pêcheux demonstra que o

indivíduo “é chamado a existir”, a constituir-se como sujeito, deflagrando que a “evidência da

identidade” é resultado de uma contradição no processo identificatório. Contradição porque,

segundo Orlandi (1999:46):

“A evidência do sentido – a que faz com que uma palavra designe uma coisa – apaga o seu caráter material, isto é, faz ver como transparente aquilo que se constitui pela remissão a um conjunto de formações discursivas que funcionam com uma dominante. As palavras recebem seus sentidos de formações discursivas em suas relações. Este é o efeito da determinação do interdiscurso (da memória). Por sua vez, a evidência do sujeito – a de que somos sempre já sujeitos – apaga o fato de que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia. Esse é o paradoxo pelo qual o sujeito é chamado à existência: sua interpelação pela ideologia.”

Essas evidências funcionam por meio daquilo que Pêcheux chama de “esquecimentos”.

Segundo Pêcheux (1975, apud ORLANDI, 1999:34) há duas formas de esquecimento no

discurso. O primeiro tipo é da ordem do inconsciente, também chamado de esquecimento

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ideológico, resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia, daí termos a ilusão de

ser a origem do que dizemos. Segundo esse esquecimento, o sujeito “recalca que o sentido se

forma em um processo que lhe é exterior” (MALDIDIER, 2003:42). O outro tipo de

esquecimento, é da ordem do pré-consciente ou da enunciação: “ao falarmos, o fazemos de

uma maneira e não de outra”. Por exemplo, ao invés de falarmos “sem medo”, pode-se dizer

“com coragem”. Isto significa em nosso dizer e nem sempre temos consciência disto.”

(ORLANDI, 1999:35).

Neste capítulo, havemos, ainda, que lembrar Michel Foucault, cuja noção de formação

discursiva, reformulada por Pêcheux, vai ocupar um lugar central na articulação entre língua e

discurso. Para Foucault, ao enunciarmos, o fazemos de um lugar que nos confere uma

identidade uma vez que, para ele, o poder nos classifica, enquanto indivíduos, em categorias,

segundo uma individualidade que nos relaciona a uma pretensa identidade, transformando-nos

em sujeitos.

Assim, a partir do referencial foucaultiano, a teoria do discurso de Michel Pêcheux, explica a

íntima relação entre poder e discurso, bem como as várias e complexas formas de investigar

as “coisas ditas”. 2

2 FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault e a análise do discurso em educação. Cad. Pesqui., São Paulo, n. 114, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742001000300009&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 10 Dez 2006. doi: 10.1590/S0100-15742001000300009.

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3. NOÇÕES-CHAVES DA AD

No universo das ciências da linguagem, a Análise do Discurso surge como resultado da

convergência de movimentos com pressupostos muito diferentes e por isso, cada um deles

adota uma terminologia que lhe é própria. A partir dos anos 80-90, ocorre uma

descompartimentalização entre as diferentes correntes teóricas que têm o discurso como

objeto de estudo. Então, dado o desenvolvimento das pesquisas em AD, gradativamente,

passa a haver uma certa uniformidade terminológica entre os estudiosos dessa área.

Assim, sem pretensão de dar conta da gama de conceitos existentes em AD, este capítulo se

propõe a abordar os mais importantes para a compreensão da proposta intelectual em que ela

se situa.

3.1. Discurso e Sujeito

De um modo geral, discurso é toda e qualquer atividade comunicativa entre locutores, numa

situação de comunicação determinada, englobando não só o conjunto de enunciados por eles

produzidos em tal situação como também o evento de sua enunciação. Para a AD, o conceito

de discurso vai mais além, a língua em funcionamento põe em relação sujeitos, afetados pela

língua e pela história, produzindo sentidos. Daí, “discurso é efeito de sentidos entre locutores”

e, a questão do sentido é o fundamento da Análise de Discurso posto que, “na perspectiva

discursiva, a linguagem é linguagem porque faz sentido. E a linguagem só faz sentido porque

se inscreve na história.” (ORLANDI, 1999:21-25)

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Para essa autora, discurso é “um objeto sócio-histórico em que o lingüístico intervém como

pressuposto (...); é o lugar onde se pode observar a relação entre a língua e ideologia na

produção de sentidos por e para os sujeitos.”

“É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta, na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ‘ego’ (...). É ‘ego’ que se diz ego. Encontramos aí o fundamento da ‘subjetividade’ que se determina pelo status lingüístico da ‘pessoa’.” (BENVENISTE, 1995:286)

Nesse sentido, as unidades lingüísticas que carregam as marcas da subjetividade, são os

dêiticos e no que diz respeito ao mecanismo de deitização, destacam-se três elementos:

pessoa, espaço e tempo. Nesse sistema, os pronomes pessoais (EU-TU), por exemplo,

constituem o primeiro ponto de ancoragem para a inscrição da subjetividade no discurso, que

partindo deles, organiza os outros indicadores da dêixis. Assim também, os pronomes

demonstrativos, os advérbios e expressões adverbiais, estabelecem relações espaciais (AQUI)

ou temporais (AGORA) em torno do sujeito. Segundo Benveniste, a subjetividade é a

capacidade de o locutor se propor como sujeito de um discurso e ela se funda no exercício da

língua. Esse locutor enuncia sua posição no discurso por meio de determinados índices

formais dos quais os pronomes pessoais constituem o primeiro ponto de apoio na revelação da

subjetividade da linguagem. Obrigatória e concomitantemente, no processo da enunciação, ao

instituir-se um EU, institui-se um TU que são os protagonistas desse processo e, referindo um

indivíduo específico, apresenta a marca da pessoa, sendo EU a pessoa subjetiva e TU a pessoa

não-subjetiva. O EU se constitui na medida em que interage com TU, opondo-se ambos à não-

pessoa, ELE. Essas ‘pessoas’ discursivas, ‘falam’ a partir de um lugar (AQUI) e num

determinado tempo (AGORA) marcando, assim, a cronografia e a topografia da cena

enunciativa.

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3.2. Discurso e ideologia

A ideologia é um dos conceitos fundamentais para AD. Seguindo os preceitos de Althusser, a

ideologia é considerada fundamental por enquadrar o discurso do indivíduo em um conjunto

de crenças cujo valor de verdade dependerá da sua posição enunciativa, assim como do

contexto histórico-social relacionado. Dessa forma, Ideologia e discurso não podem estar

dissociados, pois um não se manifesta sem o outro.

Essa dimensão ideológica do discurso que relaciona as marcas deixadas no texto com as suas

condições de produção pode tanto transformar quanto reproduzir as relações de dominação.

Para Marx, essa dominação se dá pelas relações de produção que se estabelecem entre as

classes que estas criam numa sociedade. Por isso, a ideologia cria uma “falsa consciência”

sobre a realidade que visa a reforçar e perpetuar essa dominação. Já para Gramsci, a ideologia

não é enganosa ou negativa em si, constituindo qualquer ideário de um grupo de indivíduos.

Mas, para Althusser, com base na ótica marxista, a ideologia é materializada nas práticas das

instituições e o discurso, como prática social, seria então “ideologia materializada”. 3

3.3. Formações Discursivas e Instituições Discursivas

Tomando concepções da Pragmática que concebe a linguagem como prática social, isto é,

como uma forma de ação inseparável de uma instituição, cujas regras são capazes de atribuir-

lhe sentido, a AD parte do objeto discursivo, procurando relacionar as formações discursivas

com as formações ideológicas para atingir a constituição dos efeitos de sentidos produzidos

nessa relação (MAINGUENEAU, 1997).

3 texto adaptado do site http://pt.wikipedia.org/wiki/Ideologia (acesso em 22/10/06)

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Conforme defende Michel Pêcheux (1969), em AAD, o discurso deve ser trabalhado sob uma

tríplice tensão: a historicidade, a interdiscursividade e a sistematicidade da língua, ou seja, o

sujeito-falante é resultado de um processo histórico-social e influenciado ideologicamente.

Maingueneau (1997) também corrobora ao reforçar que a AD “refere-se à linguagem à

medida que esta faz sentido para sujeitos inscritos em estratégias de interlocução, em posições

sociais ou em conjunturas históricas”. Para esse teórico, a Escola francesa de Análise do

Discurso “apóia-se sobre os conceitos e os métodos da lingüística” para a análise do que

Michel Foucault entende como “Formações Discursivas”:

“Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou lingüística da, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT apud MAINGUENEAU, 1997:14).

Sob esta perspectiva, à AD interessa os textos produzidos no quadro de instituições nos quais

se cristalizam conflitos históricos, sociais etc, que delimitam um espaço próprio no exterior de

um interdiscurso limitado (MAINGUENEAU, 1997:13-14).

3.4. Interdiscurso e Formação discursiva

O interdiscurso compreende o conjunto das formações discursivas e se inscreve no nível da

constituição do discurso, na medida em que trabalha com a re-significação do sujeito sobre o

que já foi dito, o repetível, determinando os deslocamentos promovidos pelo sujeito nas

fronteiras de uma formação discursiva.

Para Orlandi, todo dizer encontra-se na confluência de dois eixos: o da memória e o da

atualidade e é aí onde se produzem os sentidos. A essa memória discursiva, ela vai chamar de

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interdiscurso, ou seja aquilo que fala antes, o já-dito. Para essa autora, “interdiscurso é todo o

conjunto de formulações já feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos. É ele quem

“disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma dada situação

discursiva.” Para explicar o fenômeno, Orlandi retoma Pêcheux e sua teoria dos

“esquecimentos” que distinguia duas formas de esquecimento no discurso. O primeiro deles é

da “instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia”. É o

chamado esquecimento ideológico. Já o segundo tipo “é da ordem da enunciação, ou seja, ao

falarmos, o fazemos de uma maneira e não de outra. É o chamado esquecimento enunciativo e

que atesta que a sintaxe significa: o modo de dizer não é indiferente aos sentidos.”

Já, Maingueneau, em “Initiation aux méthodes de l’analyse du discours”, (apud

MAINGUENEAU, 1997:113), postula que:

“O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva é levada (...) a incorporar elementos pré-construídos, produzidos fora dela, com eles provocando sua redefinição e redirecionamento, suscitando, igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para organizar sua repetição, mas também provocando, eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de determinados elementos.”

Com essa definição e de uma maneira mais operacional e produtiva, ele defende que a

formação discursiva é domínio do inconsciente e não uma expressão de visão de mundo de

um grupo social. Afirma ainda que, toda formação discursiva é associada a uma memória

discursiva, constituída de formulações que repetem, recusam e transformam outras

formulações possíveis do enunciado no interdiscurso.

Para reforçar a noção de interdiscurso, esse autor recorre a três outros termos: universo

discursivo, campo discursivo e espaço discursivo.

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Como “universo discursivo”, define o conjunto finito, ainda que não possa ser apreendido em

sua totalidade, de formações discursivas de todos os tipos que coexistem numa dada

conjuntura e, nesse sentido, essa definição equivale à noção de interdiscurso proposta por

Pêcheux.

Procedendo a um recorte do “universo discursivo” tem-se o “campo discursivo”, definido

como um conjunto de formações discursivas em relação de concorrência delimitadas por uma

posição enunciativa. Para ele, é no interior do campo discursivo que se constitui o discurso.

Como exemplo, cita os campos discursivos, religioso, político, literário etc.

Enfim, o “espaço discursivo” que ele define como sendo um subconjunto do campo

discursivo que liga, pelo menos, duas formações discursivas que mantêm relações em comum.

Relação esta que o analista julga pertinente para ao seu propósito.

À relação que um discurso mantém com o seu exterior, Maingueneau chama de

heterogeneidade constitutiva, que é aquela que AD poderá definir, “formulando hipóteses,

através do interdiscurso, a propósito da constituição de uma formação discursiva.”

Além da heterogeneidade constitutiva, esse teórico aborda a heterogeneidade mostrada que

são as manifestações explícitas no discurso, ou seja, as marcas lingüísticas deixadas na

superfície de um texto e que vão sobremaneira influenciar na produção de sentidos. Entre elas

destacam-se:

- A polifonia, desenvolvida sistematicamente por O. Ducrot. “Para ele, há polifonia

quando é possível distinguir em uma enunciação dois tipos de personagens, os

enunciadores e os locutores (...), sendo o locutor o responsável pelo enunciado e o

enunciador aquele cuja voz se faz ouvir através do locutor.. Para exemplificar, “o

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enunciador representa, de certa forma, frente ao locutor o que o personagem representa

para o autor em uma ficção.” (MAINGUENEAU, 1997:76-77). Dessa forma, os

discursos são construídos por elementos externos à voz do sujeito enunciador, ou seja,

outras vozes, advindas do inconsciente e da memória, são inscritas no interior de um

discurso, isto é, constroem sentidos por meio de outras palavras já ditas por alguém,

em algum lugar e tempo da história.

- a pressuposição e o pré-construído: Por pressuposição entende-se aquilo que não é

dito explicitamente, mas que está presente no enunciado e é ao lado da noção de

pressuposição que é preciso buscar a fonte da noção de pré-construído que por sua

vez, designa aquilo que remete a uma construção anterior e exterior. (...) Remete,

dessa maneira, às evidências através das quais o sujeito dá a conhecer os objetos de

seu discurso: o que cada um sabe e simultaneamente o que cada um pode ver em uma

situação dada.” (BRANDÃO, 1997).

- a paráfrase e polissemia: a paráfrase compreende os enunciados que são retomados e

reformulados. É a repetição; é também, um mecanismo de fechamento, de

“delimitação de fronteiras de uma formação discursiva”. Já, a polissemia “rompe essas

fronteiras (...) instalando a pluralidade, a multiplicidade de sentidos”. (BRANDÃO,

1997)

3.5. Condições de Produção e Interdiscurso

Segundo Orlandi, os sujeitos, a situação e a memória compreendem as condições de produção

do discurso. Os dizeres são efeitos de sentidos que vão além das palavras nos textos. É preciso

considerar as condições em que determinado discurso é produzido para que se possa

compreender os sentidos.

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Para essa autora, pode-se considerar as condições de produção em sentido estrito e em sentido

amplo. O primeiro engloba o sujeito e a situação discursiva imediata enquanto o segundo

engloba, além desses, o contexto sócio-histórico-ideológico. A memória, por sua vez, é

tratada como interdiscurso, ou seja, é o que chamamos de memória discursiva e que vai

disponibilizar dizeres que vão afetar o modo como o sujeito significa em uma da situação

discursiva. (1999:30-31)

Conforme enfatizado, no início desse capítulo, esses são apenas alguns termos usados em AD.

Limitamo-nos a agrupar aqueles mencionados pelos autores que serviram de aporte teórico

para a elaboração deste trabalho e cujo destaque pareceu-nos mais relevantes para o proposto.

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4. UMA PROPOSTA DE ANÁLISE

A seguir, abordando alguns aspectos da Análise do discurso, citados ao longo deste trabalho,

tentaremos ilustrar como um objeto simbólico produz sentidos. Para esse propósito

tomaremos a Carta Testamento de Getúlio Vargas.

4.1. Da Carta-Testamento de Getúlio Vargas (Anexo)

O contexto histórico-situacional no qual está inserida a Carta-Testamento foi marcado por

turbulências sociais, econômicas e políticas. Getúlio Vargas era o então presidente do Brasil,

cumprindo seu segundo mandato – que compreendeu o período de 1951 a 1954.

Em agosto de 1954, Vargas suicidou-se no Palácio do Catete com um tiro no peito. Deixou

uma carta testamento com uma frase que entrou para a história : "Deixo a vida para entrar na

História." Até hoje o suicídio de Vargas gera polêmicas. O que sabemos é que seus últimos

dias de governo foram marcados por forte pressão política por parte da imprensa e dos

militares. A situação econômica do país não era positiva o que gerava muito

descontentamento tanto por parte dos poderosos quanto por parte da população.

Na Carta Testamento, que a partir deste ponto chamaremos CT, o ex-estadista dá início ao

texto com a expressão ‘mais uma vez’, a qual nos remete a um fato que já aconteceu em

outro momento. O que foi dito em outro lugar também significa aqui-agora, ou seja, deduz-se

que há uma relação entre o já-dito e o que se está dizendo que é a relação que existe entre

discurso e o interdiscurso. Ainda no primeiro parágrafo, o enunciador apresenta os

protagonistas desse processo: o EU (sujeito) - Getúlio Vargas que se constitui na medida que

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interage com TU (não-sujeito) - o povo, opondo-se ambos à não-pessoa, ELE - as forças e os

interesses contra o povo.

Essas ‘pessoas’ discursivas, ‘falam’ a partir de um lugar (AQUI). O topos é a cidade do Rio

de Janeiro, então capital do Brasil, onde G.V. era presidente da República. Para a AD, no

entanto, esse conceito de ‘lugar’ refere-se à topografia social, ou seja, qual é a posição que

pode e deve ocupar cada indivíduo para ser o sujeito de uma enunciação e, nesse sentido, na

cena enunciativa da CT a posição ocupada pelo sujeito enunciador (EU) alterna-se entre a

posição de chefe da nação, herói, defensor do povo, o Salvador e a posição de vítima, o EU-

oprimido, caluniado e insultado, sem direito de defesa. Já o povo, ocupa o lugar dos

oprimidos, dos humilhados.

A cronografia (AGORA), subdivide-se em três momentos: presente, passado e futuro. O

tempo da enunciação é o presente, revelado na materialidade: 13/08/1954, data em que foi

produzido o texto, ou seja, a data da enunciação:

“Sigo o destino que me é imposto...” ou ainda,

“Escolho este meio de estar sempre convosco.”

A esse fato, cabe ressaltar que Ingedore Koch (1996:39-40) diz que “a forma verbal do

Presente nada tem a ver com o Tempo: ela constitui, justamente, o tempo principal do mundo

comentado, designando uma atitude comunicativa de engajamento, de compromisso (...) O

Presente constitui o tempo zero do mundo comentado.”

O tempo Passado constante da CT é um passado relatado, ou histórico, marcado pelos verbos

nos tempos Pretérito Perfeito e Imperfeito do Indicativo:

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“Tive de renunciar...”

“Nas declarações de valores do que importávamos...”

Os tempos Futuro do Presente do Indicativo e Futuro do Subjuntivo indicam no texto uma

prospecção, o que está por vir:

“Quando vos humilharem, sentireis minha alma...”

“Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento...”

Nota-se, nos quatro primeiros parágrafos da CT, uma oscilação entre os tempos presente e

Passado, em que G.V. fala sobre o que fez, do que lhe fizeram e do que continua fazendo e,

nos dois últimos parágrafos, observa-se a constância do Futuro, em que fala daquilo que fará,

ainda que morto.

Ao longo do texto pode-se entrever a construção do ‘ethos’, ou seja, a revelação do sujeito

pelo modo como se expressa, imposta pela formação discursiva. Vargas se revela ora como

herói, ora como ‘porta-voz’ do povo. Nos três primeiros parágrafos da carta, que vão de

“Mais uma vez...” até “...obrigados a ceder.”, tem-se um Getúlio extremamente oprimido,

situando-se num mesmo patamar que o povo. Já, no quarto parágrafo, o autor do texto revela-

se como o herói, ascendendo ao povo, como salvador da pátria:

“Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.”

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Percebe-se, ao longo do texto que Getúlio Vargas deixa entrever discursos, de classes sociais

diversas, reproduzidos por ele próprio, enquanto dirigente da nação, pelo povo, pelos

oposicionistas em geral, pelos políticos, pelos estrangeiros etc., materializando, dessa forma,

as diversas instituições discursivas.

Quanto às formações ideológicas, percebe-se claramente a predominância do cristianismo e

do capitalismo. Referindo-se ao cristianismo, pode-se fazer uma analogia à via-crucis, ou seja,

o caminho percorrido por Jesus até chegar ao calvário e que representa na CT a trajetória

política empreendida por Getúlio Vargas. Referindo-se ao capitalismo, a luta entre opressores

e oprimidos permeia todo o texto.

Outro fato interessante a se observar é que, apesar da CT criar a imagem de um Getúlio

oprimido, se lançarmos um olhar para a história, fica claro a sua condição de opressor, que é

evidenciada quando da implantação do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), órgão

de sustentação da ditadura do Estado Novo que detinha o poder centralizado, pois difundia a

propaganda do governo e controlava, através de uma censura extremamente rígida, toda a

imprensa e meios de comunicação em geral. Isso, nos remete a Althusser em “Ideologia e

aparelhos ideológicos do Estado”. Segundo este autor, o Estado através de seus aparelhos

Repressores (ARE) e os Aparelhos Ideológicos (AIE) intervém pela repressão ou pela

ideologia, sustentando o poder e a ideologia nos oprimidos, assim como o fez Getúlio Vargas.

Em suma, após a análise da Carta-Testamento, observamos que Getúlio ocupa o lugar de

opressor, oprimido e salvador ao mesmo tempo. Em conseqüência, tem-se um discurso maior,

que permeia o campo da religiosidade e, um discurso capitalista, representado, no texto, pela

luta entre opressores e oprimidos. Com isso, o autor da carta usa essas dimensões como

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estratégia de persuasão para envolver seu principal alvo – o povo brasileiro – apossando-se do

lugar dele, tendo em vista que ele não fala da perspectiva do povo mas, sim, de sua própria

perspectiva.

Segundo Orlandi (1999:31):

“(...) o que chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra, O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada”.

Dessa forma, podemos afirmar que o dialogismo estabelecido com o discurso religioso foi

proposital para que se alcançasse o objetivo da carta, e que este mesmo discurso religioso é de

alcance do grande público, ou seja, o povo, e ao traçar um paralelo entre sofrimento do Eu

Presidente e do Eu Resgatador, o enunciatário atingiu o seu objetivo que foi o de dar

significação maior a sua morte.

Na análise deste corpus, na qual foram abordadas apenas algumas das diversas relações que

permeiam o processo social de produção da linguagem, tentamos mostrar como é possível

proceder a uma reflexão crítica sobre a leitura segundo a teoria da análise do discurso,

buscando a percepção da multiplicidade de sentidos. No caso do texto analisado, podemos ver

como estão representadas as várias posições do sujeito, as várias formações discursivas que o

atravessam e a polifonia presente ao tratar das intenções nele representadas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As abordagens aqui postas tiveram por objetivo esboçar um quadro teórico da constituição da

Análise do Discurso da Escola Francesa a fim de compreendê-la como aporte teórico na

prática escolar. A análise do corpus – a Carta-Testamento de Getúlio Vargas - não teve a

pretensão de se esgotar neste trabalho. A priori, o intuito foi o de mostrar como um objeto

simbólico produz sentido. No entanto, a tensão instalada nesse espaço, diante da não

unanimidade entre os autores estudados levou-nos à pergunta: Como enquadrar a AD nas

ciências que se ocupam da linguagem?

Alguns enquadram-na como uma ciência, uma vez que serve de aporte teórico para outras

ciências; outros, ao interrogarem o que ler quer dizer, defendem-na como uma disciplina.

A preocupação com a leitura desemboca no reconhecimento de que esta deve se sustentar em

um dispositivo teórico e, aí, pode-se pensar a AD como uma disciplina e, enquanto disciplina,

é relevante para os profissionais que se ocupam dos estudos da linguagem, tendo em vista o

fato de possibilitar uma compreensão crítica da linguagem e das práticas discursivas na

sociedade contemporânea. É essencial, ainda, pela base teórico-metodológica que

disponibiliza para a produção e interpretação crítica dos discursos sociais, tanto na área da

pesquisa acadêmica, quanto nos demais espaços do mercado profissional.

Análise do Discurso (AD) significa tentar entender e explicar como se constrói o sentido de

um texto e como esse texto se articula com a história e a sociedade em que foi produzido.

Assim sendo, em resposta às preocupações que marcam os espaços educativos nos campos da

linguagem e da comunicação, a AD nos oferece meios para reflexão sobre a estrutura e a

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geração de sentido do texto; leva à descoberta de interpretações de sentidos, de marcas

estruturais e ideológicas nos textos, disponibilizando mecanismos através dos quais é possível

compreender como o pensamento produz efeitos de conhecimento e de convicção.

Para Orlandi (2006), a AD vai-se constituir como uma disciplina de entremeio entre a

Lingüística e as Ciências Sociais. Já, para Maingueneau, em entrevista concedida à Revista

Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL, existem três maneiras de praticar a AD: a

primeira consiste em utilizá-la para perguntar de maneira indireta questões filosóficas e, nesse

caso, a dimensão da análise empírica é secundária; a segunda, consiste em ver na AD um

conjunto de “métodos qualitativos” à disposição das ciências humanas e sociais e, aí, a AD

não passa de uma espécie de ferramenta que permite construir interpretações em outras

disciplinas. A terceira maneira que, segundo esse autor, é a que lhe interessa, consiste em ver

na AD um espaço de pleno direito dentro das ciências humanas e sociais, um conjunto de

abordagens que pretende elaborar os conceitos e os métodos fundados sobre as propriedades

empíricas das atitudes discursivas, querendo dizer que a AD não se reduz a uma disciplina

empírica, mas que ela deve se organizar tendo as pesquisas empíricas em vista.4

Finalmente, pode-se inferir que AD, seja como ciência, disciplina ou simples ferramenta,

pode fornecer, de forma substancial, a qualquer prática educativa que objetive o ensino da

língua portuguesa, sustentação teórica e metodológica para formar leitores críticos,

formadores de opinião e conscientes de seu lugar na sociedade.

4 Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL. Ano 4 – nº 6 – março de 2006. http://paginas.terra.com.br/educacao/revel/edicoes/num_6/entrevista_maingueneau.htm (acessado em 05/12/2006)

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BIBLIOGRAFIA

BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral. Tomo I e II. Campinas: Pontes, 1995.

BRANDÃO, Helena. H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas: Editora da

Unicamp, 1997.

FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Da ambigüidade ao equívoco: a resistência a língua

nos limites da sintaxe e do discurso. Porto Alegre: Universidade/UFRGS, 2000.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Trad. De Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 1987.

KOCH, Ingedore.G.Villaça. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 1996.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes,

1997.

MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso – (RE)ler Michel Pêcheux Hoje. Trad. Eni

P.Orlandi. Campinas: Pontes, 2003.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas:

Pontes, 1999.

______________________. “Análise de Discurso”. In: ORLANDI, Eni Puccinelli e

LAGAZZI-RODRIGUES, Suzy. Introdução às Ciências da Linguagem – Discurso e

Textualidade. Campinas: Pontes, p. 11-31, 2006.

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ANEXO

A Carta Testamento do Presidente Getúlio Vargas

"Mais uma vez, a forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se

desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me

dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu

não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos

econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o

trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao

governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à

dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros

extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se

desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas

através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A

Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.

Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária

que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500%

ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de

mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal

produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa

economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante,

tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o

povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as

aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu

ofereço em holocausto a minha vida.

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma

sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia

para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força

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para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta.

Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração

sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.

E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e

hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo

de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu

resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado

de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha

vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no

caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História."

(Rio de Janeiro, 23/08/54 - Getúlio Vargas)